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Terra de Fome e Sonho: o paraíso material de Glauber

Rocha
Ivana Bentes∗

Índice a pobreza, buscando reverter “forças auto-


destrutivas máximas” num impulso criador,
1 Introdução 1 mítico e onírico.
2 A Revolução Mística e a Pedagogia da As metáforas da fome e da devoração já
Violência 5 tinham alimentado o modernismo de 1922, a
3 O Transe como Celebração cinemato- teoria antropofágica de Oswald de Andrade
gráfica 7 e chegou atualizada pelo movimento pop-
4 Restituir a Crença no Mundo 8 tropicalista brasileiro, nos anos 70, uma de-
voração típica da cultura de massas e sua
1 Introdução "geléia geral"
Também no cinema latino-americano a
Reverter a fraqueza em força. Passar da fome foi tematizada, e no Brasil é um tema
Fome ao Sonho. Transformar a repressão recorrente do Cinema Novo, que explodiu
política em exercício de Liberdade. Politi- nos anos 60. A fome, diz Glauber, foi tratada
zar a Fé e Celebrar o transe latino-americano nesses filmes de modo fenomenológico, so-
como uma força singular e vital. Poucos cial, político, estético. poético, demagógico,
artistas contemporâneos sintetizaram todas experimental, documental, cômico. Mas sua
essas questões de forma tão complexa e proposta iria além: transformar a fome em
original quanto o cineasta Glauber Rocha, “princípio”, uma espécie de “impensado” la-
um artista que deu um sentido afirmativo tino americano, capaz de funcionar como
e transformador para os fenômenos ligados motor de um pensamento, novo.

É pesquisadora de cinema, comunicação e artes Ao invés de tentar explicar a miséria e a
visuais. Professora do Programa de Pós-Graduação escravidão de uma forma puramente política
em Comunicação e Cultura da Escola de Comuni- e racional, Glauber lança mão da experiência
cação da Universidade Federal do Rio de Janeiro mítica e religiosa e mergulha no inconsciente
(UFRJ), autora de Joaquim Pedro de Andrade: a revo-
lução intimista (Ed. Relume Dumará, 1996) e Cartas
explodido e no transe latino-americano. Fé,
ao Mundo. Glauber Rocha (organização e introdu- Transe e Celebração são a base da sua nova
ção). Ed. Companhia das Letras. Rio de Janeiro. política.
1997. Este texto foi publicado no livro Ressonâncias Dois textos-manifestos de Glauber servem
do Brasil. Fundación Santillana. Pgs. 90-109. Santil- como a base ética e estética para se enten-
lana del Mar. Espanha. 2002
2 Ivana Bentes

der seu cinema e pensamento: “Eztetyka da fazer da pobreza e da miséria um “plus”, um


Fome” , escrito em 1965 e “Eztetyka do So- charme adicional, nicho temático, entre a de-
nho” , de 1971 1 . Neles Glauber vai da fome núncia, o miserabilismo exótico-típico, e o
ao delírio do faminto, do realismo ao surrea- paternalismo? Fome e miséria racionaliza-
lismo, fazendo da brutalidade e do onírico a das, explicadas, “conformadas” e entendidas
base de um novo pensamento . como um dado “natural”, ou “decorativo”? 2
“Eztetyka da Fome” é o primeiro desses Voltamos a Glauber. “[A fome ] para o eu-
manifestos e o mais conhecido, escrito em ropeu é um estranho surrealismo tropical”,
1965, quando Glauber já tinha filmado Bar- escreve 3 , ou ainda: “Para o observador eu-
ravento (1961) e obtido reconhecimento in- ropeu, os processos de criação artística do
ternacional com Deus e o Diabo na Terra mundo subdesenvolvido só o interessam na
do Sol (1964). Nesse texto _ apresentado medida que satisfazem sua nostalgia de pri-
em Gênova, na Resenha do Cinema Latino- mitivismo”4 .
Americano, durante uma retrospectiva de fil- A essa leitura piedosa e nostálgica da mi-
mes do Cinema Novo_ Glauber tematiza séria, Glauber propõe uma saída estrutural.
com urgência e virulência sobre “o pater- Para “compreender” a fome, dentro ou fora
nalismo do europeu em relação ao Terceiro da América Latina, seria necessário violentar
Mundo” e a “linguagem de lágrimas e mudo a percepção, os sentidos e o pensamento: “o
sofrimento” do humanismo, incapaz de ex- público não suportando as imagens da pró-
pressar a brutalidade da pobreza. pria miséria” (...) “Assim somente uma cul-
Em “Eztetyka da Fome” não se trata de ro- tura da fome, minando suas próprias estru-
mantizar ou glamourizar a fome e a miséria: turas, pode superar-se qualitativamente: e a
“a pobreza é a carga alto destrutiva máxima mais nobre manifestação cultural da fome é
de cada homem”, diz Glauber no seu texto, a violência”. 5
mas partir dela, como dado do presente para Essa estética da fome e seu correlato, uma
constituir “uma cultura da fome” , intolerá- ética do intolerável, atravessam de forma
vel e explosiva, capaz de problematizar-se e mais ou menos aguda, os filmes desse pe-
superar-se . E a chave para essa virada, no 2
Alguns exemplos contemporâneos dão a medida
primeiro manifesto é constituir uma estética da questão: Flores decorativas “fabricadas por pre-
da violência. sidiários” enfeitando a Bienal de Arte dos 500 anos
A questão não foi superada nem “re- do descobrimento do Brasil. Quadros “pintados por
solvida” pela arte contemporânea latino- doentes mentais” e consumidos confortavelmente,
abstraindo-se o sofrimento e desconforto da sua ori-
americana que ainda se vê enredada em apo-
gem. A culpa social e o paternalismo em desfiles de
rias do tipo: como tematizar a “fome” sem modas em que meninos de rua e doentes de câncer fa-
1 zem figuração “chic”. Filmes e obras em que a “cos-
Essa passagem no pensamento de Glauber foi
mética” da fome desperta a piedade e um humanismo
apontada por diferentes estudiosos: Sylvie Pierre em
despotencializado.
“Glauber Rocha” (Paris. 1987 e edição brasileira pela 3
Glauber Rocha. “Eztetyka da Fome 65” in A Re-
Papirus, de 1996), Arnaldo Carrilho iem “Da fome
volução do Cinema Novo, de Glauber Rocha. pg. 31.
à falta de razão” in “Glauber Rocha”, por José Carlos 4
Idem. Ibidem, pg. 29
Avellar in “A Ponte Clandestina” (Editora 34 e Edusp. 5
idem. Ib., pg. 31
Rio de Janeiro. 1995)

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O paraíso material de Glauber Rocha 3

ríodo: Barravento (61) Deus e o Diabo na de consciências, a fragilidade de intelectuais,


Terra do Sol (64), O Dragão da Maldade militantes, estudantes e artistas; o confor-
Contra o Santo Guerreiro (69), o média me- mismo popular, levam Glauber a uma nova
tragem Câncer (69). Sendo que o filme Terra questão. Lutar não no campo da razão opres-
em Transe, de 67, trará uma nova torção no sora, mas nos territórios da desrazão e do
pensamento da fome, explicitando o tema do mito.
delírio, do sonho e da desrazão, o inconsci-
“A Estética da Fome era a medida da
ente explodido do faminto.
minha compreensão racional da pobreza
em 1965”, escreve Glauber no novo ma-
Lutar no território dos Sonhos nifesto: “Hoje recuso falar em qualquer
Em “Eztetyka do Sonho”, Glauber vai dar estética. A plena vivência não pode se
outro salto ao rejeitar a leitura sociológica sujeitar a conceitos filosóficos. Arte re-
da esquerda, que “racionaliza” a miséria ao volucionária deve ser uma mágica capaz
encaixá-la no teatro da luta de classes, como de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele
um “mal necessário” do capitalismo, supe- não suporte mais viver nesta realidade
rada apenas com a supressão deste sistema. absurda.” 6
O que Glauber parece dizer é que nenhuma Glauber cita Jorge Luis Borges e Luis
explicação histórica, sociológica, marxista Buñuel para falar da necessidade uma “sen-
ou capitalista, pode dar conta da complexi- sibilidade dilatada” que “elabora na mística
dade e tragédia da experiência da pobreza, seu momento de Liberdade”.
algo, para ele, da ordem do “icognoscível”,
do “impensado” e do “intolerável”. Eztetyka do Sonho: “A ruptura com os
É esse “impensado” que leva Glauber a racionalismos colonizadores é a única
uma nova visada, explicitada no seu segundo saída. As vanguardas do pensamento
manifesto, “Eztetyka do Sonho”, escrito em não podem mais se dar ao sucesso inú-
1971, seis anos depois do primeiro, e apre- til de responder à razão opressiva com
sentado aos alunos da Universidade de Co- a razão revolucionária. A revolução é a
lumbia, nos Estados Unidos. Texto escrito anti-razão que comunica tensões e rebe-
depois da experiência de filmes como Terra liões do mais irracional de todos os fenô-
em Transe, Câncer, O Dragão da Maldade menos que é a pobreza.” 7
Contra o Santo Guerrreiro , além do projeto Nem a fome pode ser “compreendida”,
América Nuestra ( roteiro de 65/66) e do ci- nem a revolução pode ser “racionalizada”. À
nema feito depois da sua saída do Brasil, em um intolerável da experiência, Glauber res-
70: os filmes do exílio, O Leão de Sete Ca- ponde com uma rebelião igualmente “irraci-
beças e Cabezas Cortadas, onal” , mística e apocalíptica. Capaz de de-
A impotência e a perplexidade com os ru- sestabilizar toda ordem, estrutura ou sujeito.
mos políticos do Brasil pós-golpe de 64, a
6
exacerbação da repressão política no país, na Glauber Rocha . “Eztetyka do Sonho 71” in A
Revolução do Cinema Novo, de Glauber Rocha. pg.
década de 70, a tragédia e opressão das di-
221
taduras latino-americanas, o transe político e 7
Idem,ib. , pgs. 219 e 220.

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Glauber começa a articular a relação entre Pereira dos Santos, Os Fuzis, de Ruy Guerra,
misticismo, mito, religião e revolução, um La Hora de los Hornos, de Fernando Solanas
movimento extremamente original no pensa- e sua proposta de politização e estetização do
mento latino-americano. Nesse movimento, místico, do irracional e do inconsciente:
parte para uma desidealização do povo e
ao mesmo tempo para a construção de uma “ (...) Há um corte naquela estrutura ra-
mitologia popular poderosa, capaz de fazer cional, lukacsiana, que marca o Nelson
frente a um imaginário colonizado ou colo- [Pereira dos Santos] em Vidas Secas, que
nizador: “Os Deuses Afros-índios negarão a não é um defeito, é uma qualidade, que é
mística colonizadora do catolicismo, que é a o vigor do realismo crítico, mas em Deus
feitiçaria da repressão e da redenção moral e o Diabo tem uma ruptura em que é ad-
dos ricos”. 8 mitida a comunicação do inconsciente .
Evitando cair numa mera idealização ” 10
desse povo colonizado, Glauber analisa os E ainda: “O filme [Deus e o Diabo na
diferentes efeitos da fome sobre a consciên- Terra do Sol ] é uma uma espécie de libe-
cia e o inconsciente popular: ração da violência, através dos seus fantas-
mas, uma liberação do inconsciente coletivo,
“ [ A pobreza] repercute psiquicamente do camponês brasileiro, do Terceiro Mundo,
de tal forma que este pobre se converte através dos seus fantasmas mais expressivos
num animal de duas cabeças: uma é fa- que carregam em si, inclusive, os seus tra-
talista e submissa à razão que o explora ços, os seus caracteres mais agressivos do
como escravo. A outra, na medida em arcaismo barbárico ”. 11
que o pobre não pode explicar o absurdo Glauber propõe em “Eztetyka do Sonho”
de sua própria pobreza, é naturalmente uma nova relação entre arte e revolução. Pro-
mística”9 . posta que se afasta do realismo crítico, do
cinema de inspiração literária, do cinema
Glauber vai trabalhar com essas diferentes
político latino-americano dos anos 60 e se
experiências de forma original, relacionando
aproxima ainda mais da antropofagia moder-
Fé, Fome, Sonho e Transe. Em seu cinema
nista, do surrealismo europeu, do realismo
não encontramos uma única chave de abor-
mágico latino: Jorge Luis Borges, Gabriel
dagem da pobreza: nem conformismo, nem
Garcia Marques, Jorge Amado, Luis Buñuel
misticismo serão tratados de forma “explica-
de L’Âge D’Or e Los Olvidados.
tiva” ou “realista”. Trata-se de uma operação
“A Estética da Fome era a medida da mi-
simbólica e mística que entrará em curso no
nha compreensão racional da pobreza em
seu pensamento e cinema.
1965” , escreve Glauber no início do ma-
Glauber já apontava, em outros textos, as
nifesto de 1971, “compreesão racional” que
distinções estéticas entre o realismo crítico e
10
humanista, que produziu obras vigorosas do Depoimento a Raquel Gerber (Fevereiro de 1973)
cinema latino, como Vidas Secas, de Nelson in O Mito da Civilização Atlântica: Glauber Rocha,
Cinema, Política e a Estética do Inconsciente. Ed. Vo-
8
Idem, ib. , pg. 221 zes.1982. Rio de Janeiro, pg 180
9 11
idem, ib., pg. 220 idem

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será substituída por uma nova experiência ser submetida, confrontada a um transe ou
e fluxo, não mais da ordem do explicativo crise radicais, capazes de despertar um pen-
e da razão, mas uma experiência mística, samento que nasce dessa violência. E encon-
uma “mística política”, que funcionaria pelo tra esse transe em manifestações como o can-
transe, pela possessão, pela desrazão: domblé, o transe místico e o Carnaval, mas
também na instabilidade estrutural que cons-
“A razão dominadora classifica o mis- titui o imaginário político latino-americano.
ticismo de irracionalista e o reprime a Glauber vai dar um sentido estético, ético
bala. Para ela tudo que é irracional e místico a palavra Revolução. Transe e crise
deve ser destruído, seja a mística religi- são condições de um cinema diferencial que
osa, seja a mística política. A revolução, nasce dos impasses diante do que é “terrível
como possessão do homem que lança sua demais, belo demais, intolerável”13 . Algo
vida rumo a uma idéia, é o mais alto as- que excede nossa capacidade de reação: uma
tral do misticismo ”12 . beleza ou uma dor fortes demais. Ao invés
de um pensamento ou de um cinema que to-
É da fome que Glauber parte para chegar lera e suporta praticamente qualquer coisa,
a estetyka do sonho e do transe, a estética Do exercício da crise, nasce sua pedago-
da violência e do inconsciente e a uma ética gia ou estética da violência. Nos seus filmes,
do intolerável. Mas a fome, no seu pensa- o povo é chicoteado, espancado, amorda-
mento, sofre uma série de transmutações e çado, fuzilado. Ao invés de condenar “mo-
torna-se uma metáfora do desejo e do de- ralmente” a violência e exploração, repre-
vir revolucionário e também uma “fome de senta essa violência com tal radicalidade e
absoluto”, como brada o poeta/guerrilheiro força que ela passa a ser um intolerável para
Paulo Martins, no final de Terra em transe o espectador.
(1967). Glauber passa da fome ao sonho e ao Não se trata de uma “espetacularização”
transe, num movimento habilidoso do pen- da violência ou sentimentalização da impo-
samento, indicando tanto o conformismo na tência. Para Glauber, a violência é "um amor
miséria quanto explorando a carga trágica, de ação e transformação". O marxismo de
mística e potencialmente transformadora da Glauber tem algo de sádico e histérico, de
fome e da pobreza, através da fé popular. apocalíptico e messiânico. Para explodir,
a revolução tem que ser precedida por um
2 A Revolução Mística e a crime ou massacre. Daí seus filmes tema-
tizarem confrontos, violências, transes, mais
Pedagogia da Violência
do que alianças ou apaziguamentos. Mesmo
Misticismo e violência são também duas en- as celebrações em seus filmes surgem como
tradas chaves para o seu pensamento. Ao momentos de rebeldia, anarquia e liberdade.
invés de trabalhar no campo da razão e da Em Glauber podemos falar de uma peda-
consciência, Glauber procura mostrar que gogia da violência que responderia a uma
toda ordem, estrutura ou indivíduo poderá 13
Gilles Deleuze, A imagem-tempo. São Paulo. Ed.
12
idem, ib., pg. 220 Brasiliense. 1985

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questão crucial: como passar da “alienação” cineastas, vai tratar da violência, da misé-
e passividade à resistência e atividade? ria e do povo, de forma diferenciada. O
Em Terra em Transe, Glauber debocha do sadismo de Glauber, sua ira-revolucionária
populismo e do pacifismo na boca de Vieira, diverge da lírica-romântica de filmes como
o político populista, que brada “o sangue das Rio, Zona Norte, de Nelson Pereira dos San-
massas é sagrado”. Paulo Martins, persona- tos ou mesmo do classicismo humanista de
gem do poeta e jornalista, o próprio artista Vidas Secas, também de Nelson Pereira.
dilacerado, reage: ”o sangue não tem impor- Com Terra em Transe, Glauber coloca
tância. Não se muda a história com lágri- esse povo (subserviente, vitimizado, fraco)
mas”. Em O Dragão da Maldade contra o em questão com a mesma radicalidade e pa-
Santo Guerreiro, antes de tomar consciência roxismo com que criticou o intelectual de es-
da sua subserviência, o negro Antão é espan- querda, Paulo Martins, um Hamlet tropical,
cado e humilhado. Em Câncer, Antônio Pi- entre banhos de sangue e exaltação poética,
tanga, que faz um marginal negro, se ajoe- em estado de possessão. Esse tipo de repre-
lha choramingando, sacaneado por brancos e sentação crua de um povo despotencializado
negros de todas as classes. A pedagogia da e assujeitado combinado com uma pedago-
violência em Glauber forja um povo em re- gia da violência produziu certa animosidade
volta, traz um sentido ativo para a dor, um na esquerda brasileira, e Glauber chegou a
sentido externo, como em Nietzsche: ser chamado de “fascista”.
“A dor não é um argumento contra a Numa outra torção e afastando-se da solu-
vida, mas ao contrário um excitante da ção “conciliatória” ou paternalista na repre-
vida (...), um argumento em seu favor. sentação das relações de poder entre diferen-
Ver sofrer ou mesmo infligir o sofri- tes classes, nos seus filmes e textos rejeita-
mento é uma estrutura da vida como vida se a posição do intelectual como “legítimo”
ativa”.14 representante do povo assim como o dis-
curso da exaltação ou “vitimização” desse
A Pedagogia da dor e da violência é, em povo, comum nos anos 60. Glauber também
Glauber, o primeiro momento da constitui- aponta novos agentes e mediadores da cul-
ção de um povo. O que é explicitada em tura (o cangaceiro, o beato, o mercenário, os
Terra e Transe na fala do poeta Paulo Mar- místicos em Deus e o Diabo ) que destituem
tins: “eu bati num pobre camponês porque o intelectual do seu lugar privilegiado como
ele me ameaçou. Podia ter metido a enxada agente de saber e transformação.
na minha cabeça, mas era tão covarde e tão Em Deus e o Diabo na Terra do Sol , Glau-
servil! E eu queria provar que ele era tão co- ber instaura discursos ambíguos. Os can-
varde e servil”. E depois, “a caridade ape- gaceiros tornam-se “revolucionários primiti-
nas adia, agrava mais a miséria”. vos” e agentes de transformação social; os
“De sangue se desenha o Atlântico", diz beatos surgem como figuras catalizadoras de
Paulo Martins. O Cinema Novo, tão múlti- forças sociais à deriva; mercenários, como o
plo e singular na obra de cada um dos seus personagem de Antonio das Mortes, podem
14
Gilles Deleuze. Nietzsche e a Filosofia. Semeion. assumir uma função transformadora e ace-
Rio de Janeiro. 1977 leradora de mudanças sociais. Antonio das

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Mortes mata pobres e camponeses sob o co- gens não representam, entram em “transe”
mando de latifundiários e da Igreja em nome ou “fase” com os personagens, cenários,
de uma “revolta radical”, a precipitação do objetos, com o espectador, formam um só
intolerável como acelerador das mudanças. fluxo.
Caráter apocalíptico e messiânico do ci- No cinema de Glauber acompanhamos a
nema de Glauber que ecoa muitos dos afo- crise e o transe da Terra, do homem, das for-
rismas de Oswald de Andrade sobre a antro- mações sociais. Em seu primeiro longa, Bar-
pofagia e a revolução como “culturas natu- ravento, Fé e Política, Fé e Liberdade apare-
rais” e nosso barbarismo e vitalismo violento cem a princípio em conflito: de um lado o
como virtudes transformadoras. misticismo trágico e fatalista da raça negra,
ligado a religião, de outro, a tomada de cons-
ciência da situação econômica de dependên-
3 O Transe como Celebração
cia e uma mudança e superação da dupla
cinematográfica “alienação” 15 . O filme, entretando, é nossa
Esse cinema da desestabilização e do transe leitura, em certa medida desmente o próprio
marca filmes como Deus e o Diabo,Terra em discurso inicial e ultrapassa o que Glauber
Transe , O Dragão da Maldade Contra o admitia ser um ponto de partida “primário”:
Santo Guerreiro e Cabeças Cortadas., Di e a idéia da religião como alienação.
A Idade da Terra. Nesses filmes, Glauber te- O resultado é um marxismo tropicalizado,
matiza o transe do povo faminto, mas tam- atravessado pelo misticismo, onde os mitos
bém o que poderíamos chamar de pulsões surgem ao mesmo tempo como tradição a ser
anarco-ditatoriais da elite. Seus persona- superada e fator de transformação e resis-
gens, Paulo Martins, Porfírio Diaz, Brahms, tência cultural. O transe e as práticas do
o Cristo Militar, vivem as delícias e loucuras candomblé estão presentes em Barravento
do poder de forma desmesurada, numa pura não só como “mistificação”, mas como ce-
hybris. lebração, “violência plástica&sensualismo”,
Fazer entrar em Transe ou em crise é uma como experiência estética e gnose, o “barra-
das características do pensamento e do ci- vento” (súbita mudança dos ventos, tempes-
nema de Glauber. O transe é transição, pas- tade) a natureza em convulsão e transe, é a
sagem, devir e possessão. Para entrar em contrapartida cósmica e celebratória das mu-
crise ou em transe é preciso se deixar atra- danças sociais e políticas radicais.
vessar, possuir, por um outro. Glauber faz No cinema de Glauber, a violência e o
do transe uma forma de experimentação e transe surgem ainda na paisagem tropical ou
conhecimento. Entrar em transe é entrar em sertaneja, seja por luxúria ou aridez. A pai-
fase com um objeto ou situação, é conhecer sagem ou o meio é importante figura concei-
de dentro. tual na “tropicologia” oswaldiana e glaube-
Eis porque seus filmes por mais “alegó- riana. Na tradição teórica brasileira, a idéia
ricos” ou “metafóricos” que se apresentem 15
Cf. análise de Ismail Xavier em Sertão/Mar.
têm a força de uma “verdade” ou melhor Glauber Rocha e a estética da fome. Ed. Brasiliense.
tem uma consistência, são críveis, as ima- São Paulo. 1983

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de uma dissolução do sujeito está fortemente em Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dra-
ligada a uma espécie de dissolução na pai- gão da Maldade Contra o Santo Guerreiro; o
sagem: derreter-se ou deixar-se vencer pelos transe das consciências em Terra em Transe
trópicos. e Claro, o transe estético, em Di e o transe
A beleza tropical em revolta de Barra- carnavalesco em A Idade da Terra. Glauber
vento dá lugar, em Deus e o Diabo na Terra não tematiza o transe, cria cinematografica-
do Sol, a uma terra seca, calcinada, infértil. mente o transe através da câmera na mão e
O sertão, em Glauber, é o grande outro da ci- da montagem. O transe em Glauber é uma
vilização tropical e paradisíaca do litoral. É Celebração propriamente cinematográfica.
um território de transformações violentas, de
um natureza hostil, capaz de passar da aridez
4 Restituir a Crença no Mundo
extrema a exuberância extrema.
Glauber parte de um discurso de politiza- Se há um princípio de conversão em Glau-
ção da natureza e naturalização da cultura ber, que opera essas torções, esse princípio é
na contramão dos discursos de oposição dos a Crença numa espécie de devir revolucio-
dois pólos. Dessa forma vemos a utiliza- nário que não se reduz a crença religiosa ou
ção dos elementos e cenários naturais (os de- a crença na Revolução. E aqui chegamos a
sertos, o sertão, as paisagens selvagens) de outra importante figura do pensamento glau-
forma dinâmica e atuante e uma dramatiza- beriano:
ção dos cenários. Os seus personagens per-
tencem à terra e se confundem com a paisa- “O fato moderno é que já não acredita-
gem. A cultura é mostrada não como algo mos neste mundo. Nem mesmo nos acon-
que se opõe a natureza, mas como a natureza tecimentos que nos acontecem _o amor,
continuada por outros meios. a morte _como se nos dissessem respeito
Nessa dissolução das dualidades, o ci- apenas pela metade.”16
nema de Glauber utiliza-se de narrativas ale-
góricas e/ou em forma de parábolas, dis- É o vínculo do homem com o mundo que
curso alegórico que marca a década de 60 se rompeu. Por isso, é o vínculo que deve
(relacionando o antigo e o novo, o histórico se tornar objeto de crença, ele é o impossí-
e o atemporal, o mais moderno e o mais vel que só pode ser restituído pela crença. A
arcaico). As alegorias são materialização crise dos valores, a crise da verdade a crise
de conceitos. Glauber cria tipos alegóricos, dos esquemas produz esse rompimento radi-
não-psicológicos que se definem pela sua ex- cal. Aruan em Barravento, o vaqueiro Ma-
terioridade e imagem: enfeites e adereços, nuel em Deus e O Diabo, o poeta Paulo Mar-
figurinos, símbolos e ícones religiosos, e di- tins de Terra em Transe, os personagens des-
ferentes estéticas vindas do catolicismo e do territorializados de O Dragão da maldade
folclore afro-brasileiro. contra o Santo Guerreiro e Cabeças Corta-
O transe em seus filmes se articula direta- das , os personagens de Glauber perderam a
mente com os rituais afro-brasileiros como o 16
Gilles Deleuze, A imagem-tempo. Ed. Brasili-
Candomblé (Barravento), mas também com ense. 1985.
o transe místico católico e a possessão como

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O paraíso material de Glauber Rocha 9

crença no mundo. O homem está no mundo, dos mais belos movimentos do seu cinema.
vê, sente, mas não sabe mais como agir: Numa carta para Zelito Viana de 1978 sobre
a legendagem de Cabezas Cortadas, Glau-
“Restituir-nos a crença no mundo eis o ber insiste numa frase que deve permanecer
poder do cinema e do pensamento mo- fixa durante todo um plano em que o ditador
derno. Cristão ou ateus em nossa univer- Diaz II diz justamente: “Eu perdi a fé. Que
sal esquizofrenia precisamos de razões enfermidade mais terrível.”
para crer neste mundo”17 . Para fazer a revolução ou instaurar o fas-
cismo é preciso crer, paradoxo da moderni-
Reencontramos Nietzsche e Glauber nessa dade que reduz a “pós-modernidade” a uma
proposição. É toda uma reversão da fé cristã questão decisiva: não se crê em mais nada,
que Glauber levará ao cúmulo num filme o que torna a Revolução inútil e o fascismo
como A Idade da Terra, com a multiplica- uma aberração. Há um grande medo e des-
ção do Cristo, liberado do cristianismo (o confiança na atualidade em relação aos que
Cristo índio, o Cristo negro, o Cristo mili- crêem, seja lá no que for.
tar, o Cristo guerrilheiro). Um Cristo inves- Glauber tematiza a crença em vários fil-
tido de forças desestabilizadoras, tema que mes, mas é no Dragão da Maldade contra o
iremos analisar mais detidamente quando fa- Santo Guerreiro, que a questão ganha corpo.
larmos da relação entre “romantismo revolu- O Dragão é um filme sobre os desterritoriali-
cionário”, messianismo e marxismo. zados, os descrentes, destituídos de qualquer
“Nem conformismo, nem resignação, nem crença, personagens que vagam procurando
submissão passiva: amor, nem lei, nem uma nova terra, um novo corpo.
causa, nem finalidade: fatum (destino)”18 . A questão do mito e do místico é retomada
Amor ao destino nietzschiano, que Glauber sob um novo plano. A ambiguidade e nega-
parece retomar em toda sua obra. Deleuze: tividade de alguns personagens de Deus e o
“Precisamos de uma ética ou de uma fé, o Diabo tornam-se positividade no Dragão. O
que faz rir os idiotas, não é a necessidade de impossível é restituído por uma crença. Con-
crer em outra coisa, mas uma necessidade versão radical: Antônio das Mortes, o mata-
de crer neste mundo aqui, do qual os idiotas dor, torna-se protetor dos cangaceiros e bea-
fazem parte ”.19 tos, o negro Antão deixa seu conformismo, o
O pensamento é arrebatado pela exteriori- professor sai do seu niilismo e torna-se guer-
dade de uma crença, para for a _de qualquer reiro, o padre torna-se revolucionário, o povo
saber. Glauber arranca, como Nietzsche, a se arma.
crença da fé e a restitui ao pensamento. Faz Diante do intolerável e da miséria, Glau-
da crença um método de conhecimento, num ber constrói uma saída pelo mito e pelo mís-
17
Gilles Deleuze, A imagem-tempo. Ed. Brasili- tico, pela revolta em estado puro, uma estra-
ense. 1985. tégia, uma composição possível.
18
Scarlet Marton em Nietzsche, uma filosofia a Se historicamente ou materialmente a re-
marteladas. Ed. Brasiliense. 1991. volução desejada por toda uma geração não
19
Gilles Deleuze, A Imagem-Tempo. Ed. Brasili-
aconteceu, Glauber monta seu apocalipse
ense. 1985.
estético-revolucionário-cinematográfico e

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10 Ivana Bentes

projeta no Brasil o seu “Parayzo Material


Dezenraizado” construção cinematográfica
e messiânica de uma democracia mística
brasileira instaurada pelo cinema e pela arte
em sintonia com o econômico, o cultural e
o industrial, onde “um conjunto de filmes
em evolução dará, por fim, ao público, a
consciência de sua própria existência”.
O cinema de Glauber é um monumento
cindido, marcado pela história e pelos mi-
tos fundadores e instauradores do que se-
ria uma civilização pan-americana. Cons-
trói nos seus filmes um discurso não apenas
sobre o Brasil, mas tenta esboçar um pen-
samento transnacional, pan-americano, luso-
afro-brasileiro, ibero-hispânico, euro-latino
ou tricontinental, inserindo o devir latino-
americano na história do capitalismo.

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