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Direito Administrativo

Mestrado em Ciências Jurídico Forenses

Dr. Licínio Lopes Martins


ALEXANDRA DUARTE MORGADO 2020/2021
A atividade sancionatória da Administração e o novo Código do Procedimento
Administrativo

1. Nota Prévia

Com o presente artigo é nossa pretensão ensinar algumas das possíveis potencialidades da aplicação do
regime pertinente do novo Código do Procedimento Administrativo aos procedimentos sancionatórios
instaurados e decididos pelos órgãos públicos (administrativos).

2. Enquadramento geral da atividade sancionatória da Administração Pública

Num sentido amplo, poderá dezer-se que a atividade administrativa de ordenação social corresponde a
uma função clássica da Administração, abrangendo, a função administrativa (geral) de ordenação social e a
função administrativa de polícia (as “medidas de polícia”), na medida em que ambas têm por fim a prevenção,
o controlo ou a resposta a situações de perigo/risco.

❖ Medidas de polícia
As designadas medidas de polícia assumem configurações diversas, podendo consistir em ordens de
evacuação ou de interdição de acesso a locais, no encerramento temporário de estabelecimentos, na
apreensão de objetos ou em ações de foscalização efetuadas por autoridades legalmente habilitadas (por
exemplo, por autoridades reguladoras, pela ASAE e outras entidades com funções equivalentes).

A competência para adotar “medidas de polícia” cabe, naturalmente, ás autoridades administrativas e


tem por fundamento evitar ou impedir a continuação da lesão de interesses públicos relevantes (segurança
das pessoas e bens, saúde pública, ambiente, etc).

O pressuposto da respetiva adoção reside no perigo ou na verificação de um dano, independentemente


de qualquer ilicitude ou culpabilidade. O conteúdo das “medidas de polícia” pode variar em função das
concretas situações e dos pressupostos legais de atuação das autoridades administrativas (por exemplo, a
suspensão de atividades, o encerramento de estabelecimentos até que seja retomada a normalidade, etc).

O controlo judicial da legalidade da adoção de “medidas de polícia” pertence, entre nós aos Tribunais
Administrativos.

2.1. A atividade sancionatória exercida no âmbito do ilícito administrativo em sentido estrito

A atividade sancionatória exercida no âmbito do ilícito administrativo em sentido estrito pressupõe a


violação de específicos deveres emergentes ou, pelo menos, relacionados como uma relação jurídica
administrativa constituída por ato administrativo ou por contrato, ainda que qualquer destes títulos se limite
a investir o destinatário da sanção num “status” (por exemplo, o status de trabalhador público ou o status de
“profissional liberal” de uma atividade sujeita a uma regulação pública por uma ordem profissional). A esta
categoria devem igualmente reconduzir-se os específicos contextos relacionais de natureza jurídico-
administrativa inerentes ás relações contratuais jurídico-administrativas ou a atos administrativos, em geral
favoráveis para os destinatários, mas aos quais se encontra associado o cumprimento de devres impostos
através do próprio ato administrativo (deveres resultantes do conteúdo principal do ato ou de cláusulas

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acessórias que sejam apostas) ou deveres a cujo incumprimento a própria lei faz corresponder uma sanção
administrativa.
A esta categoria reconduz-se, o “ilícito disciplinar”, incluindo nele os “ilícitos profissionais” no quadro do
exercício de profissões publicamente reguladas, o ilícito contratual, por incumprimento de deveres inerentes
às relações contratuais administrativas, e o ilícito resultante da violação de específicos deveres associados
ao conteúdo principal ou acessório de atos administrativos.

a) As sanções administrativas aplicadas no contexto do “direito disciplinar”

Reconduzem-se a esta categoria não apenas as sanções administrativas aplicadas no âmbito das relações
de trabalho subordinada da Administração Pública (relações de trabalho constituídas por contrato de trabalho
em funções públicas, por nomeação ou em comissão de serviço), mas também o quadro das relações
estabelecidas por determinadas categorias de profissionais, em especial as dos generalizadamente designados
“profissionais liberais”, com as associações públicas profissionais de que sejam membros (por exemplo, a
Ordem dos Advogados, Ordem dos Médicos,etc), assim como as relações emergentes de um específico
contexto relacional dos particulares com a Administração ou com certas entidades administrativas, ainda que
esse contexto seja temporário (por exemplo, o “estatuto disciplinar” dos alunos dos estabelecimentos de
ensino públicos, do ensino de nível superior ou não superior).
Em geral está em causa um conjunto de relações que envolve a observância de deveres de disciplina
inerentes ás designadas “relações especiais de Direito Administrativo”.

b) A atividade sancionatória da Administração no âmbito de relações contratuais


administrativas

Esta atividade sancionatória da Administração tem por objeto punir comportamentos de particulares
adotados fora quer de um ambiente de direito disciplinar, quer do direito de mera ordenação social.
As medidas sancionatórias no âmbito de relações emergentes de contrato administrativo traduzem-se na
aplicação de multas contratuais, sequestro de concessão e na resolução sancionatória de contrato, incluindo
nesta o resgate de conceções.

c) A revogação-sancionatória, a caducidade-sanção e a expropriação-sanção

Trata-se de figuras nem sempre fáceis de distinguir, especialmente a revogação sancionatória e a


caducidade-sanção, havendo mesmo autores que não incluem nenhuma daquelas categorias no quadro da
atividade sancionatória da Administração.

❖ Revogação-sancionatória

A revogação sancionatória de um ato administrativo favorável para o respetivo destinatário (por exemplo,
uma autorização) é desencadeada, instituída e decidida ou imposta de modo autónomo, isto é, fora de
qualquer processo sancionatório, incluindo os processos de contra-ordenação.
Neste âmbito, o art.149º/1 do CPA, dispõe que “os atos administrativos podem ser sujeitos, pelo seu autor,
mediante decisão fundamentada, a condição, termo, modo ou reserva…” Ou seja, há decisões da
Administração- as decisões favoráveis para os destinatários- que podem ser acompanhadas da imposição de
condições e obrigações e/ou de uma reserva de revogação. O desrespeito ou o incumprimento de tais

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obrigações ou condições que acompanham a decisão pode dar origem a uma (superveniente) decisão de
revogação sancionatória como reação contra esse desrespeito ou incumprimento. Mas note-se, que o novo
CPA não prevê expressamente a figura da revogação sancionatória, nem em termos específicos, nem no
contexto do regime geral da revogação de atos administrativos (art.165º e ss). Efetivamente, a figura da
revogação sancionatória não surge no novo CPA como um fundamento específico e autónomo de revogação
dos atos administrativos, a par com a “superveniência de conhecimentos técnicos e científicos ou em alteração
objetiva das circunstâncias de facto, em face das quais, num ou noutro caso, não poderiam ter sido praticados”
e com a “reserva de revogação”, mas só “na medida em que o quadro normativo aplicável consinta a
precarização do ato em causa e se verifique o circunstancialismo específico previsto na própria cláusula” (al.c)
e d) do nº2 do art.167º).

❖ Caducidade-sanção

A caducidade-sanção de um ato administrativo anda associada a situações em que a causa de caducidade


tem caráter sancionatório, por ter origem no incumprimento, por parte do particular, de um dever ou ónus
ou uma condição, incluindo também o incumprimento de obrigações legais (obrigações resultantes
diretamente da lei ou de regulamento. A caducidade-sanção baseia-se num incumprimento do destinatário; é
uma sanção por incumprimento de deveres, o que pressupõe uma avaliação do comportamento do particular
pela Administração no contexto de uma atuação minimamente procedimentalizada. Efetivamente, mesmo
que verificadas as causas de caducidade, não raras vezes o legislador atribui á Administração o poder de
avaliar, ponderar e decidira declaração, ou não, da caducidade. Contudo, mesmo nestas situações- situações
em que a declaração administrativa da caducidade é constitutiva- esta não deixa de ser obrigatória para a
Administração, pois se a Administração concluir que se encontram verificados os pressupostos de facto ou de
direito da caducidade- legais, regulamentares, contratuais ou resultantes do próprio ato que emitiu- e verificar
que existe um interesse público cuja salvaguarda se revela incompatível com a manutenção do ato (e do
direito), terá, por regra, de declarar a caducidade. Neste sentido vai a orientação jurisprudencial maioritária
do Supremo Tribunal Administrativo, ao afirmar que a declaração de caducidade tem de constituir o ato final
de um procedimento no seio do qual deverá, inclusivamente, ser garantido ao interessado o direito de
audiência prévia (Acórdão do STA de 24-04-1997, Proc nº30130… embora o Acórdão do STA, de 3-31998, Proc
nº41730, se tenha concluído pela irrelevância da audiência do interessado em virtude da natureza vinculada
da declaração de candidato). Esta jurisprudência deve ser extensiva aos atos meramente declarativos,
reconhecendo-se que, mesmo nestes casos, há momentos constitutivos, pois, um ato que declara a
caducidade de um direito ou de uma situação jurídica, embora tenha natureza de ato declarativo, vem criar
uma situação de maior “certeza” sobre a existência dos pressupostos da caducidade. Trata-se, de um ato
meramente declarativo, mas um ato-declaração sui generis, ao qual é associado um efeito de “certeza legal”
(e até de “força probatória”). E, enquanto atos declarativos ou verificativos produzem na ordem jurídica e na
esfera jurídica de um sujeito um efeito constitutivo.

O novo CPA também não prevê um regime próprio e autónomo para a caducidade-sanção, nem, em geral,
para a caducidade dos atos administrativos. A referência á caducidade surge apenas a propósito de específicos
atos administrativos: é o que sucede com a caducidade das medidas provisórias (art.90º); ou, em termos
gerais, com a menção a atos “cujos efeitos tenham caducado” (art.166º/2).

❖ Expropriação-sanção

A expropriação-sanção associada á expropriação acessória aos planos urbanísticos ou a venda forçada de


bens, como sucede, quando esta, no regime da reabilitação urbana, constituem reações administrativas contra

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o incumprimento de deveres por parte dos particulares. A denominada expropriação-sanção tem como
pressuposto necessário o facto de o proprietário não dar aos bens o aproveitamento exigido pela função,
vinculação ou obrigação social da propriedade nos terrenos para tal aptos ou da obrigação de reconstrução
ou remodelação de edifícios, quando se verificarem os pressupostos nelas referidos.

2.1.1. Síntese sobre a ausência no novo CPA de um regime geral para a revogação
sancionatória e para a caducidade-sanção

O novo CPA prevê expressamente um regime geral, próprio e autónomo, quer para a revogação
sancionatória, quer para a caducidade-sanção. Mas, estando em causa atos com um conteúdo sancionatório
talvez se justificasse a previsão, em escassas normas, de um regime que, a título de regime geral, contemplasse
alguns princípios-regra.

 Exemplo:
• A necessidade da prática de um ato expresso pela Administração, desde logo quando á
caducidade, não produzindo esta efeitos imediatos, necessitando, por princípio, de uma
mediação verificativa ou declarativa da Administração, traduzindo-se, assim, num efeito
que só se produz através da vontade da Administração (não podendo, pois, constituir um
resultado automático e direto da lei ou de regulamento);

• A que acresce a exigência da emissão de um juízo de ponderação pelos órgãos


administrativos, designadamente para avaliar, no caso concreto, a relevância do princípio
da proporcionalidade;

• A exigência de um procedimento (prévio), com especiais cautelas ao nível da instrução, na


medida em que estão em causa atos sancionatórios, impondo-se o dever oficioso de
verificar e avaliar os pressupostos revogatórios e as causas de caducidade ou a conduta do
particular para apurar se o incumprimento lhe é imputável ou se este contribuiu de algum
modo e em que grau para aquele incumprimento;

• Estabelecer se deverá, nestes casos, valer apenas o regime geral da audiência do


interessado ou senão se justificaria um regime mais garantístico, por, repetimos, se tratar
de atos com um conteúdo predominantemente sancionatório (ou também com um
conteúdo sancionatório).

2.2. A atividade administrativa sancionatória no âmbito do ilícito de mera ordenação


social

O ilícito de mera ordenação social (e a respetiva sanção pecuniária/económica, designada por contra-
ordenação) constitui um “super-conceito”, abrangendo hoje, áreas da atividade administrativa que,
provavelmente, não teriam sido antecipadas pelo legislador do D.L nº433/82, de 27 de Outubro, que institui
o ilícito de mera ordenação social e respetivo progresso (RRGCO).
Este tipo de ilícito tem, em geral, como fundamento a violação de normas jurídicas que prescrevem
imposições e proibições de condutas a adotar pelos particulares com o objeto da prevenção e do controlo de
perigos ou que, de qualquer modo, determinam uma ordenação da vida em sociedade. O RCCO adotou uma
noção formal de contra-ordenação: “Constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha
um tipo legal no qual se comine uma coima” (art.1º do RGCO).

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Designadamente nos anos mais recentes temos assistido a uma progressiva e extensa expansão do ilícito
de mera ordenação social para inúmeros regimes setoriais da atividade administrativa, mas em geral, cada um
desses regimes remete para aplicação subsidiária do RGCO.

Podem enunciar-se os seguintes regimes setoriais:


• As contraordenações ambientais;
• As contraordenações no âmbito do urbanismo e do ordenamento do território;
• As contraordenações marítimas;
• As contraordenações laborais;
• As contraordenações no domínio dos transportes;
• As contraordenações no âmbito da segurança social;
• As contraordenações no âmbito da saúde pública;
• As contraordenações no âmbito do consumo de estupefacientes e substâncias psivotrópicas.

2.3. Síntese das sanções aplicadas por órgãos da Administração: tipos de ilícito e de
sanções

2.3.1. Ilícito administrativo em sentido estrito

➢ Ilícito disciplinar: sanções disciplinares (advertência, multa, suspensão ou interdição profissional)


aplicadas no âmbito do exercício de uma “profissão pública ou publicamente regulada”
(trabalhadores em funções públicas, profissionais regulados por associações públicas) e do
relacionamento com um estabelecimento público (p.ex. alunos numa escola pública).

➢ Ilícito contratual: sanções contratuais aplicadas no âmbito de relações contratuais administrativos


(multas/sanções pecuniárias, sequestro de concessões, resolução sancionatória, etc).

➢ Ilícito por incumprimento de obrigações impostas por ato administrativo (ou resultantes
diretamente da lei, mas a pressupor a prática de um ato administrativo): revogação-sanção de
autorizações administrativas; caducidade-sanção de autorizações administrativas; expropriação-
sanção; venda forçada de bens.

2.3.2. Ilícito contraordenacional

Sanções pecuniárias/sanção principal (coimas) e sanções acessórias (D.L nº433/82, de 27-10, Regime Geral
das Contra-Ordenações- RGCO e legislação especial).

2.3.3. Sanções

A competência para a aplicação das sanções cabe aos órgãos da Administração, constituindo uma reserva
da função administrativa, em primeira linha.

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O fundamento da sanção, isto é, da medida punitiva reside na adoção de uma conduta que, por ação ou
por omissão provoca uma infração ás leis e regulamentos administrativos ou que se traduz no incumprimento
de uma medida administrativa obrigatória.

O pressuposto da aplicação está, naturalmente, na verificação de um ilícito (infrações disciplinares,


contraordenações,etc), com culpa dos agentes (arguidos), a título de dolo ou de negligência.

Quanto ao seu conteúdo, as sanções classificam-se em principais e acessórias (sanções pecuniárias,


suspensão de atividades, encerramento de estabelecimento, inibições profissionais, etc).

O controlo judicial da legalidade dos atos sancionatórios é também atribuída aos Tribunais
Administrativos, exceto no caso das contraordenações, em que a competência cabe, em geral, aos Tribunais
Judiciais ou a jurisdições especializadas.

NOTA: O ETAF revisto atribui á jurisdição administrativa a competência para apreciar e julgar as
“Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de
mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo
(art4º/1/l)). A Lei nº114/2015, de 28-8, que alterou a Lei-quadro das contraordenações ambientais (Lei
nº50/2006, de 29-8) veio estabelecer que “Caso o mesmo facto dê origem á aplicação, pela mesma entidade,
de decisões por contraordenação do ordenamento do território, prevista na presente lei, e por
contraordenação por violação de normas constantes do Regime Urbanístico e Edificação, aprovada pelo D.L
Nº555/99, de 16 de dezembro, a apreciação da impugnação judicial da decisão adotada pela autoridade
administrativa compete aos tribunais administrativos” (art.75º-A).
O que significa mais um alargamento do âmbito da jurisdição administrativa no domínio do ilícito de mera
ordenação social, relativamente á delimitação constante da citada alínea do ETAF. Mas, o regime processual
de tramitação das ações impugnatórias das sanções administrativas deverá ser o previsto no RGCO, por se
tratar de regime especial e não revogado pelo CPTA.

2.3.4. Caraterísticas das sanções aplicadas pelas autoridades administrativas

a) A relativa indeterminação na definição dos ilícitos e considerável amplitude das sanções, em


especial:

i. Na fixação dos limites mínimos e máximos da sanção principal (assim sucede nas
contraordenações, por exemplo, a “moldura abstrata de uma sanção pecuniária pode variar
entre 25 mil e 5 milhões de euros);
ii. E nas sanções acessórias, que podem variar entre interdição em particular em feita até á
expulsão de um município, como se encontra previsto no art.99º do Regime Jurídico da
Urbanização e Edificação, determinando-se aí, com a epígrafe “Sanções acessórias”.
iii. Daí a relativa discricionariedade administrativa na aplicação das sanções (o que suscita
questões quanto á determinabilidade, previsibilidade, segurança e certeza jurídicas.
iv. A iniciativa administrativa (oficiosa) do procedimento sancionatório (reserva da Administração,
em primeira linha, e os desafios suscitados aos princípios da legalidade e da oportunidade na
decisão de início do procedimento sancionatório e na decisão punitiva).
v. As exceções, cada vez mais frequentes, ao princípio da proibição da reformatio in pejus (por
exemplo, nas contraordenações ambientais, no domínio da regulação das atividades
económicas e na concorrência, nas atividades financeiras, etc).

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3. A fase administrativa da aplicação de sanções e o novo CPA: em especial, as sanções
contraordenacionais

Estruturalmente, os procedimentos de aplicação de sanções subdividem-se em duas fases distintas: a fase


administrativa/procedimental e a fase judicial/processual. A fase necessária é apenas a
administrativa/procedimental. A fase judicial/processual é meramente eventual, só existindo quando o
arguido impugne o ato punitivo da Administração.
Os princípios e as regras estruturantes do procedimento administrativo de aplicação das sanções
contraordenacionais (principais e acessórias) constam do regime geral do ilícito contraordenacinal (isto é, do
D.L nº433/82) que, em regra, tem também aplicação subsidiária nos procedimentos contraordenacionais
sectorialmente previstos e disciplinados.

Ora o RGCO estabelece o princípio-regra da aplicação subsidiária do CPP á fase administrativa da aplicação
de sanções contraordenacionais (principais e acessórias) (art.41º).
Também quanto á parte substantiva determina a aplicação subsidiária do Código Penal (art.32º do RGCO,
igualmente com a epigrafe “Direito Subsidiário”).
Na realidade, no RGCO, dada a extensa aplicação subsidiária do CPP á fase administrativa de aplicação de
contraordenações, verdadeiramente não temos um procedimento administrativo, mas um regime do
processo penal dividido em duas fases: a fase administrativa e a fase judicial. Ou seja, o que se nos apresenta
é uma fase administrativa com um regime marcadamente processual.

A conformação da “parte geral” do regime do ilícito contraordenacional é feito segundo os princípios


típicos de direito penal: o princípio da legalidade criminal; o princípio da culpa; a estruturação do facto ilícito
á semelhança do direito penal (facto típico, ilícito e culposo).

Como já salientamos, quanto a esta específica atividade sancionatória da Administração, nem o Código do
Processo Administrativo de 1991, nem o novo CPA incluíram um capítulo onde se estabelecesse um regime
geral dedicado aos procedimentos administrativos sancionatórios, pelo menos com um catálogo de princípios
vocacionados para a atividade sancionatória da Administração ou para o exercício do poder sancionatório da
Administração. E haverá razões substantivas, procedimentais e orgânicas que poderiam justificar esta opção,
contribuindo também, de tal modo, para uma autonomização do direito sancionatório da Administração, em
especial do direito de mera ordenação social, relativamente ao Processo Penal e ao Direito Penal (pelo menos,
na fase administrativa de aplicação das sanções):

 Em primeiro lugar, a atividade sancionatória, incluindo a própria tipificação dos ilícitos por via
regulamentar, expressa, hoje, uma função normal da Administração. A decisão sancionatória é o
resultado do exercício de uma generalizada competência administrativa de decisão primária ou em
primeira linha das autoridades administrativas: da generalidade dos departamentos da
Administração estadual direta (incluindo a própria tipificação das sanções, designadamente
através de decretos regulamentares; da Administração estadual indireta; dos Governos das
Regiões Autónomas; das autarquias locais (incluindo também a concreta tipificação dos ilícitos
através de regulamentos municipais); e das autoridades administrativas independentes com
funções de regulação das atividades económicas e sociais.

 Em segundo lugar, a decisão administrativa sancionatória é um ato administrativo (sancionatório),


cuja aplicação deveria, constituir essencialmente o resultado de um direito administrativo
procedimental (e não de um direito processual, como sucede nas contraordenações).

 Em terceiro lugar, a decisão sancionatória projeta momentos que relevam de um dos elementos
nucleares da atividade administrativa, da reserva da função administrativa: a discricionariedade
administrativa, a envolver inevitáveis juízos de avaliação próprios da Administração.

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Por isso, na ausência de uma lei geral ou de uma lei-quadro sobre a atividade sancionatória da
Administração e constituindo o CPA o Código Geral da atividade administrativa, justificar-se-ia a inclusão de
um capítulo autónomo dedicado á atividade sancionatória da Administração, em que, entre outros aspetos,
se estabelecem alguns princípios-regra. Por exemplo, e de forma meramente enumerativa:

a) A relevância do princípio da legalidade em matéria sancionatória (e não apenas oficialidade): a


relevância deste princípio, é mais ampla do que aquela que resulta da aplicação subsidiária do
Processo Penal e do Código Penal aos processos contraordenacionais;

b) O estatuto de sujeitos procedimentais (e não de sujeitos processuais, como resulta da aplicação do


CPP, no caso das contraordenações;

c) A legitimidade procedimental (e não legitimidade processual, como resulta da aplicação do CPP


aos processos contraordenacionais) dos órgãos administrativos, do arguido e de eventuais
interessados;

d) As garantias específicas de imparcialidade nos procedimentos administrativos sancionatórios: não


apenas de garantias de imparcialidade subjetiva (impedimentos, supeição), mas- e, sobretudo-
garantias de imparcialidade objetiva;

e) O princípio da separação orgânica e funcional entre órgão instrutor e órgão decisor (que é uma
garantia de imparcialidade objetiva;

f) A específica relevância das autoridades administrativas, designadamente no domínio da


“discricionariedade administrativa sancionatória”;

g) Regras sobre o auxílio administrativo/colaboração de órgãos administrativos (órgãos de


investigação, de inspeção, de fiscalização;

h) Regras sobre a anulação administrativa e a declaração administrativa de nulidade de atos


administrativos sancionatórios;

i) Regras sobre a possibilidade de sanação administrativa de decisões sancionatórias ilegais (de


decisões anuláveis);

j) Regras sobre atos-compromisso em matéria sancionatória (a imposição de condições, modos e a


reserva de revogação em caso de incumprimento dessas condições e modos);

k) Regras sobre a relação entre o direito sancionatório interno e o direito sancionatório da União
Europeia;

l) Normas gerais sobre a adoção de medidas cautelares e/ou provisórias;

m) Normas sobre a comunicação e notificação de atos procedimentais;

n) Em que medida deverá valer, ou não, o princípio da proibição da reformatio in pejus no direito
sancionatório da Administração, etc.

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3.1. A relevância da aplicação do CPA

Não obstante a notada ausência de um conjunto de princípios-regra, deve, indagar-se a possível relevância
da aplicação, ainda que a título subsidiário, do regime do novo CPA a todos os procedimentos da
Administração especialmente disciplinados, partindo da indicação normativa prevista no art.2º/5 “as
disposições do presente Código, designadamente as garantias nele reconhecidas aos particulares, aplicam-se
subsidiariamente aos procedimentos administrativos especiais”.
Na fase administrativa de aplicação de sanções administrativas e independentemente da natureza da
sanção a aplicar, garantias nele previstas serão sempre aplicáveis a todo e qualquer procedimento
administrativo sancionatório.
Contudo, as potencialidades de aplicação do regime do novo CPA aos procedimentos sancionatórios não
tem de esgotar-se aos princípios ou normas-garantia; pelo contrário, o seu âmbito de aplicação é,
necessariamente mais vasto, mesmo que, a disciplina setorial se afigure tendencialmente esgotante na
regulação que estabeleça.
A hipótese que colocamos assume particular relevância e até quando se pretenda equacionar a aplicação
do regime do novo CPA á fase administrativa de aplicação de sanções contraordenacionais. Efetivamente o
art.41º/1 do RGCO determina que “O Direito subsidiário” da fase administrativa de aplicação deste tipo de
sanções é o previsto no CPP, ao determinar-se aí: “Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são
aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal”.
Mas, note-se, que é o próprio RGCO a impor uma “aplicação adaptada”, isto é, uma aplicação
funcionalmente adequada do regime do CPP á fase administrativa de aplicação de sanções
contraordenacionais: a aplicação não é, pois, automática.

Exemplo: No ilícito contraordenacional vigora o princípio da legalidade, no sentido que lhe pretende ser
conferido pelo art.43º do RGCO (“O processo das contraordenações obedecerá ao princípio da legalidade”).
E vigora também o princípio da iniciativa oficiosa ou princípio da oficiosidade, na medida em que “o processo
iniciar-se-á oficiosamente, mediante participação das autoridades policiais ou fiscalizadoras ou ainda
mediante denúncia particular” (art.54º/1 do RGCO).

Destes princípios resultam imediatamente alguns corolários lógicos. Constatada a ocorrência de uma
infração, a autoridade administrativa competente fica vinculada:
i. No dever de instaurar o procedimento sancionatório;
ii. Á prossecução do procedimento sancionatório;
iii. A aplicar uma sanção (se dos factos apurados e do direito aplicável resultar esta consequência).

Ou seja:
a) As autoridades administrativas, em face do conhecimento de factos integradores de uma
contraordenação, ficam vinculadas a instaurar o procedimento sancionatório respetivo e, uma vez
instaurado e provados os factos constitutivos do cometimento de uma contraordenação, estão
igualmente vinculadas a aplicar a sanção legalmente prevista;
b) Não podem decidir instaurar ou não instaurar o procedimento sancionatório por critérios de
oportunidade; não podem perdoar a sanção igualmente por mero critério de oportunidade. Por força
do art.43º do RGCO vigora, pois, e estritamente, o princípio da legalidade (e não o princípio da
oportunidade);
c) Numa outra vertente, se as autoridades administrativas ainda não tiveram concluído pela
impossibilidade de comprovação dos factos constitutivos de uma contraordenação encontram-se
impedidas de decidir pelo arquivamento, por estarem vinculadas ao dever de prossecução processual
(rectius, vinculadas ao dever de prossecução procedimental).

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O princípio da legalidade apresenta-se, com diversas dimensões: a legalidade na vertente substantiva
(tipicidade das sanções dos respetivos pressupostos); a legalidade na vertente procedimental (conjunto de
atos, formalidades e de fases de cuja observância depende a legalidade da aplicação da decisão sancionatória);
a legalidade na vertente orgânica (competencial), vigorando, neste aspeto, o princípio-regra da reserva de
competência das autoridades administrativas, como, aliás, resulta expressamente do art.33º do RGCO.

Mas o âmbito e a intensidade do princípio da legalidade que vincula as autoridades administrativas na fase
administrativa de aplicação das sanções contraordenacionais são bem mais amplos do que resulta, da redação
do CPP e do próprio Código Penal. Desde logo, no plano jurídico-constitucional.
Efetivamente, o art.1º do RGCO fornece uma noção legal-formal de contra-ordenação: “Constituiu
contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima”.
Isto é, uma sanção pecuniária (uma sanção económica) aplicada por autoridades administrativas, com o
sentido de uma advertência social, que se traduz na imposição do pagamento de uma quantia fixada entre os
montantes previstos no art.17º.

Contudo subsiste á luz do princípio da legalidade, o que deverá entender-se por “tipo legal” no direito
contraordenacional. O art.29º/1 da CRP estabelece o princípio constitucional da legalidade criminal:
“Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação
ou omissão”.

Por sua vez, no art.2º do RGCO determina-se que “Só será punido como contraordenação o facto descrito
e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática”. Significa que cabe á lei a definição
das contraordenações e o estabelecimento das respetivas sanções. Mas cabe perguntar se o princípio da
legalidade, tal como resulta do art.29º da CRP e do RGCO, é extensivo, nesses exatos termos, ao direito de
mera ordenação social?
Quer do tratamento jurisprudencial que tem vindo a ser conferido ao princípio da legalidade no âmbito do
direito de mera ordenação social, quer da evolução do regime constitucional resulta a progressiva
autonomização do direito de mera ordenação social relativamente ao Direito Penal e ao Processo Penal:

 Em primeiro lugar, a Constituição prevê uma disciplina autónoma para o direito


contraordenacional. Á semelhança do que sucede com os ilícitos criminais, o regime geral de
punição dos ilícitos de mera ordenação social e do respetivo processo integra-se na reserva relativa
de competência legislativa da Assembleia da República.

 Em segundo lugar, o facto de não constituírem sanções privativas da liberdade, permite


compreender que a concreta tipificação de contraordenações e a respetiva previsão de sanções
não estejam integradas na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
Na verdade, ao contrário do que sucede com o ilícito criminal, quanto á definição dos crimes e das
penas, a tipificação das contraordenações e das respetivas coimas não está reservada á
A.República, como resulta, a contrario, do art.165º/1/d) da CRP. A constituição atribui
competência legislativa concorrente á A.R, ao Governo e ás Assembleias Legislativas das Regiões
Autónomas para a criação de contraordenações, como se infere expressamente do
art.227º/nº1/q) e do art.232º/1.

✓ Ou seja: Em matéria contraordenacional, a Constituição não estabelece a exigência de que


os pressupostos da aplicação de sanções sob a forma de coima devam estar previstos num
diploma com força legislativa de lei da Administração da República, prevendo apenas que
se insere no âmbito da respetiva reserva relativa da competência legislativa a definição do
regime geral de punição dos atos ilícitos de mera ordenação social e o respetivo processo
(art.165º/1/d).

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A diferenciação de regime entre o princípio da legalidade criminal e o princípio da legalidade no direito de
mera ordenação social é explicada pelo Tribunal Constitucional com fundamento numa distinção qualitativa
entre os ilícitos e as sanções penal e contraordenacionais, através do critério da relevância ético-social: a
“contraordenação é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respetivo ilícito
e as reações que lhe cabem não são diretamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando,
portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal”.

Menos coerente foi a evolução jurisprudência quanto ao princípio da tipicidade, especialmente quando
aplicado á definição dos limites mínimos e máximos das coimas, mas tem-se, hoje, por assente que a exigência
de determinabilidade do tipo predominante no direito criminal não vale no domínio contraordenacional, o
que significa que as projeções normativas do princípio da legalidade sancionatória previsto no art.29º/1, 3 e
4 da CRP não são extensíveis ao direito das contraordenações, ao direito de mera ordenação social.
Jurisprudência esta firmada no Acórdão nº41/2004, no qual o fundamento constitucional do princípio da
legalidade em matéria de sanções contraordenacionais foi deslocado do art.29º da CRP para o princípio geral
do Estado de Direito (art.2º).

A temática da legalidade (e da tipicidade) sancionatória assume uma acuidade acrescida quando a lei, não
raras vezes, delega em regulamentos (em regulamentos do Governo, das autarquias locais, das autoridades
reguladoras, etc) a concreta tipificação dos ilícitos, sendo, aliás, cada vez mais habitual a utilização de técnicas
legislativas com o seguinte estilo:
 A violação de posturas e de regulamentos de natureza genérica e execução permanente das
autarquias locais constitui contraordenação sancionada com coima.
Trata-se de uma técnica que constitui uma genuína “remissão em branco” para normas administrativas,
quanto á definição dos pressupostos tipificadores do ilícito de mera ordenação social e, portanto, das sanções
contraordenacionais.

❖ Em síntese

Da jurisprudência retirada do Tribunal Constitucional resulta uma autonomização substantiva e processual,


logo no pleno jurídico-constitucional, do direito sancionatório da Administração e, em especial, do direito de
mera ordenação social relativamente às exigências do direito penal e do processo penal. A autonomização
que tem consequência de regime, não apenas ao nível jurídico-constitucional, mas igualmente no plano
jurídico-administrativo.
Desde logo, na fase administrativa de aplicação de sanções, o princípio da legalidade que vincula as
autoridades administrativas na sua atividade sancionatória é mais amplo do que o resultante do RGCO e, por
via deste, da aplicação do Processo Penal e do Direito Penal.

E, neste contexto, surge, em primeira linha, o art.3º/1 do CPA, dedicado ao princípio da legalidade,
estabelecendo-se que os “órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência á lei e ao direito,
dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins par que os mesmos
poderes lhe foram conferidos”.

Entre outras projeções, uma ato administrativo sancionatório que seja praticado com desvio de poder-
desvio de poder sancionatório- não poderá deixar de ser sancionado com a nulidade, quando á finalidade da
sanções aplicada presidam interesses privados, ou com a anulabilidade na hipótese de o ato sancionatório
visar interesses públicos, mas não especificamente os previstos na lei tipificadora do ilícito e da sanção. Ora
este regime, resulta do art.161º/nº1/e) e do art.163º do CPA. Isto, não obstante o art.118º/1 e 2 do CPP.

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O mesmo princípio impõe ainda, quanto á definição da competência das autoridades administrativas e á
delegação de poderes e outras figuras pertinentes, a necessária conjugação do RGCO com o regime do CPA,
em especial com o art.36º/nº1, na medida em que a “competência é definida por lei ou por regulamento e é
irrenunciável e inalienável, sem prejuízo do disposto quanto á delegação de poderes, á suplência e á
substituição. E sobre a delegação de poderes, impõe-se a conjugação do RGCO com o regime geral da
delegação de poderes previstos no CPA (art.36º/nº2 e arts 44º a 50º), em especial do disposto no art.37º/nº2
daquele regime, nos termos do qual as autoridades competentes podem, por razões de economia, celeridade
ou eficácia processuais, acordar em atribuir a competência a autoridade diversa da que resultaria da aplicação
do nº1.
Significa isto que a ilegalidade da decisão administrativa sancionatória por vícios de incompetência (relativa
ou absoluta), deverá resultar do regime geral do CPA e não do regime do CPP.

Também no art.54º/nº3 do RGCO, nos termos do qual as “autoridades administrativas poderão confiar a
investigação e instrução, no todo ou em parte, ás autoridades policiais, bem como solicitar o auxílio de outras
autoridades ou serviços públicos”), deverá, hoje, ser conjugada com o regime do art.66º do CPA, relativa ao
“Auxílio administrativo”.

Em síntese e não obstante o artigo 118º do CPP, o que vimos dizendo significa que:

a) A ilegalidade da decisão administrativa, por vícios de incompetência (relativa ou absoluta), deverá


resultar do regime geral do CPA;
b) O regime de anulação oficiosa (administrativa) dessa decisão e da respetiva sanação- assim como
de outras invalidades sanáveis- deve igualmente resultar da aplicação do CPA (art.163º e ss do
CPA);
c) Outras causas de invalidade da decisão final podem resultar não apenas do CPP, mas também- ou
necessariamente- da aplicação de leis administrativas, designadamente as causas de nulidade
tipificadas no art.161º CPA. Por exemplo, para além do já referido desvio de poder sancionatório,
a nulidade de decisões sancionatórias estranhas ás atribuições dos ministérios, ou das pessoas
coletivas públicas em que o respetivo autor se integre; de decisões sancionatórias cujo objeto ou
conteúdo seja impossível, ininteligível ou constitua ou seja determinado pela prática de um crime;
de decisões sancionatórias que ofendem o conteúdo essencial de um direito fundamental; de
deliberações sancionatórias de órgãos colegiais tomadas tumultuosamente ou com inobservância
do quórum ou da maioria legalmente exigidas; de atos certificativos de factos inverídicos ou
inexistentes (p.ex., certidões juntas á instrução do procedimento sancionatório); de decisões
sancionatórias que imponham obrigações pecuniárias não previstas na lei; e de decisão
sancionatórias tomadas, salvo em estado de necessidade, com preterição total do procedimento
legalmente exigido.

Ainda no âmbito do princípio da legalidade, ou melhor, do princípio da juridicidade em matéria


sancionatória, deverá ter-se em conta a relevância autónoma do princípio da proporcionalidade,
especialmente nos domínios da “discricionariedade sancionatória” (art.7º/nº2 do CPA), bem como a
relevância, igualmente no domínio do exercício do “poder discricionário sancionatório”, do princípio da justiça
e do novo princípio da razoabilidade na interpretação e aplicação das leis tipificadoras das sanções (art.8º do
CPA).
Na medida em que o procedimento administrativo sancionatório, máxime o que tenha por objeto a
aplicação de contraordenações, tem uma estrutura inquisitória e não acusatória, como sucede no processo
penal, deve, do mesmo modo, conferir-se uma relevância autónoma ao princípio do inquisitório no âmbito da
investigação e da procura da verdade material. Relevância essa que, para os órgãos da Administração, resulta,

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direta ou subsidiariamente, do regime geral do novo CPA e não do CPP. Este princípio recomendará, desde
logo, a conjugação do disposto no art.54º/nº2 do RGCO, com os deveres especificamente impostos pelo
art.58º do CPA ao responsável pela direção do procedimento e a outros órgãos que participem na instrução
do procedimento, devendo proceder a quaisquer diligências que se revelem adequadas e necessárias á
preparação de uma decisão legal e justa. Sobretudo o responsável pela direção do procedimento deve
procurar averiguar todos os factos cujo conhecimento seja adequado e necessário á tomada de uma decisão
legal e justa dentro do prazo razoável, podendo, para o efeito, recorrer a todos os meios de prova admitidos
em direito (art.115º/1 do CPA) incluindo, se necessário ao regime do art.120º, sobre a produção antecipada
de prova.

Ainda na realização de diligências instrutórias e como “pautas de conduta” para os sujeitos procedimentais,
deverá conceder-se igualmente uma relevância autónoma aos princípios da cooperação e da boa-fé
procedimental (art.60º do CPA); relevância normativa que poderá ser mais qualificada quando estejam em
causa procedimentos sancionatórios.

E, por fim, a relevância do princípio da imparcialidade, não apenas no plano da imparcialidade subjeiva
(impedimentos, suspeições), mas sobretudo no plano da imparcialidade objetiva.

• Quanto á imparcialidade subjetiva, o CPP estabelece expressos impedimentos para os juízes,


funcionários, intérpretes, peritos (arts.39º a 47º, que são extensivas ao Ministério Público por
força do art.54º). Mas entendemos, que também não deve excluir-se a aplicação do regime
equivalente (impedimentos e suspeições) do novo CPA, previsto nos arts.69º a 76º do CPA, sendo
que a inobservância deste regime determina a ilegalidade da decisão sancionatória (art.76º).

• E, sobretudo, a relevância do princípio da imparcialidade em sentido objetivo, que é mais amplo


no novo CPA do que o subjacente ao RGCO e ao CPP. Efetivamente, estabelece o art.9º daquele
código que a Administração Pública deve tratar de forma imparcial aqueles que com ela entrem
em relação, designadamente, considerando com objetividade todos e apenas os interesses
relevantes no contexto decisório e adotando as soluções organizatórias e procedimentais
indispensáveis á preservação da isenção administrativa e á confiança nessa intenção. E convirá
conjugar estas diretrizes normativas com o disposto no art.55º/nº2 do CPA, cujo âmbito de
aplicação deve ser extensivo aos procedimentos sancionatórios:
o O órgão competente para a decisão final delega em inferior hierárquico seu, o poder de
direção do procedimento, salvo disposição legal, regularmente ou estatutária em contrário
ou quando a isso obviarem as condições de serviço ou outras razões ponderosas, invocadas
fundamentadamente no procedimento concreto ou em diretiva interna respeitante a
certos procedimentos”. Solução que já constitui um avanço, mas insuficiente para a
relevância que deve assumir o princípio da separação funcional/orgânica entre a fase da
instrução e a fase da decisão punitiva (da decisão sancionatória).

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O Direito Sancionatório Público enquanto bissetriz (imperfeita) entre o Direito
Penal e o Direito Administrativo- a pretexto de alguma jurisprudência
constitucional

1. Um conceito amplo de Direito Sancionatório Púbico

Sustentam os juspenalistas que mesmo os subramos destinados á regulação do exercício de poder


sancionatório não penal compartilham e beneficiam do mesmo tipo de garantias próprias da aplicação de
normas jurídico-penais, ainda que em menor grau e intensidade. Replicam os jusadministrativistas que a
decisão sancionatória não penal constitui, ela própria, um ato típico da função administrativa, não podendo
deixar de ficar sujeito ás regras próprias do procedimento administrativo, bem como ás respetivas garantias.
Dúvidas não restam que esse bloco de fontes normativas que dá pelo nome de Direito Sancionatório, em
sentido bem amplo, não pode senão ser qualificado como próprio do Direito Público. Sucede, porém, que ele
abrange todas as expressões de exercício de poder sancionatório, cometido a órgãos de pessoas coletivas
públicas, sejam elas jurisdicionais ou administrativas. Entre essas manifestações de poder sancionatório
destaca-se, o exercício do poder punitivo penal. Mas o exercício da ação, perseguição e punição penal não
esgota a panóplia de poderes sancionatórios públicos.

Com ele convivem:


i. O poder sancionatório contraordenacional;
ii. O poder sancionatório disciplinar público;
iii. O poder sancionatório financeiro;
iv. O poder sancionatório administrativo, em sentido estrito.

Dá que possa falar-se, com toda a propriedade, num verdadeiro e autónomo ramo do Direito Sancionatório
Público.

A sanção corresponde a uma via de reestabelecer o respeito social/comunitário por algo que deve ser
sagrado e inviolável, mediante a sujeição do infrator a uma punição. O reestabelecimento da ordem pública
(e das prescrições normativas) obtém-se, assim, por via do exercício de poderes sancionatórios públicos.
Ora, essa garantia do respeito pelo bloco normativo vigente em cada local e momento histórico não fica
exclusivamente dependente da previsão e condenação dos agentes de eventuais ilícitos a uma punição de tipo
penal, em especial, através da sujeição a uma pena privativa da liberdade pessoal. Pelo contrário, os Estados
de Direito Democrático- em homenagem ao princípio da proporcionalidade- têm vindo a consolidar uma
estrutura multifacetada de sanções tendentes á garantia do cumprimento do bloco de normatividade vigente.

2. O dualismo funcional entre o Direito Penal e o Direito Administrativo

A garantia da força conformadora de qualquer bloco de normatividade tanto pode ser prosseguida através
de um “método preventivo”, que opera antes da ofensa á normatividade instituída, como mediante um
“método repressivo”, que intervém após a ocorrência de uma violação da legalidade democrática. Tem-se
preconizado uma cisão entre o Direito Administrativo e o Direito Penal, precisamente com base na recondução
do primeiro a um “método preventivo” de efetivação do bloco de normatividade, enquanto o segundo
interviria apenas, a posteriori, face a um ataque consumado (ou meramente tentado) ao bloco de
normatividade democraticamente instituído. A Administração Pública preveniria desrespeitos á
normatividade vigente, adotando medidas de “polícia administrativa” que não só difundissem os parâmetros
de conduta a adotar pelos indivíduos, mas que dificultassem igualmente a sua violação, conduzindo-os a uma

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observância voluntária dessa normatividade. Os Tribunais criminais e os demais órgãos de polícia criminal
perseguiriam e sancionariam condutas, que violassem essa mesma normatividade vigente.

Razões contra esse entendimento simplista:


 Em primeiro lugar, os “fins das penas” já há muito deixaram de cingir-se á mera repressão ou
retorsão dos agentes de condutas ilícitas. Pelo contrário, as sanções penais visam, efeitos de
prevenção geral ou de prevenção especial. Não pode, afirmar-se que as normas sancionatórias
penais se circunscreveram a um momento subsequentes á prática da infração, antes sendo
decisivas enquanto instrumentos de conformação das condutas dos particulares ao bloco de
normatividade vigente. Daqui nasce, uma necessidade imperiosa de equacionar diversos
problemas relacionados com o concurso de normas sancionatórias de natureza diversa, visto que
as suas finalidades preventivas correm o risco de conflituar entre si.

 Em segundo lugar, o legislador tem vindo a cometer á administração pública inúmeros poderes de
supervisão e de sancionamento de condutas ilícitas já praticadas, transformando o Direito
Administrativo num complexo normativo de repressão de condutas ilícitas. Este fenómeno resulta
de inúmeros fatores:

• Procura de descongestionamento dos tribunais criminais, libertando-os de “bagatelas


penais” ou mesmo de outros ilícitos socialmente significativos;
• Aproveitamento dos recursos e das habilitações técnicas da administração pública com
vista ao combate de ilícitos dotados de uma maior tecnicidade;
• Necessidade de respeito pelo “princípio da proporcionalidade”, através da reserva da
intervenção penal para situações reveladoras de uma maior intensidade da ilicitude
intrínseca ao ato.

 Em terceiro lugar, esta ambivalência espelha-se ainda na circunstância de os serviços policiais do


Estado funcionarem, á vez, quer enquanto “entidades administrativas” - “forças de segurança”-,
quer enquanto “órgãos de polícia criminal”. Esta cumulação de funções não pode ser menorizada.
Cabe às forças de segurança uma tarefa diária de interpretação e de aplicação dos comandos
normativos, selecionando que condutas concretas devem enquadrar-se na categoria de “ilícitos
criminais” ou de meros “ilícitos administrativos”, em sentido amplo.

A distinção mais intuitiva entre um e outro ramo jurídico reside na circunstância de, no limite, o Direito
Penal poder desembocar na aplicação de uma sanção privativa da liberdade pessoal, enquanto o Direito
Administrativo Sancionatório, em sentido amplo, apenas se circunscreve a outras formas de sanção, que
passam pela restrição de direitos fundamentais distintos da liberdade pessoal. Essa constitui, aliás, outra das
vantagens deste último tipo de sanções não penais: o seu caráter não infamante e, assim, a consequente
redução do efeito estigmatizador sobre o sujeito sancionado.

3. A tipologia: sanções contraordenacionais, sanções disciplinadores, sanções


financeiras e sanções administrativas “strictu sensu”

A emergência de um “movimento descriminalizador” conduziu á sedimentação de um regime jurídico


específico de verificação e de punição de ilícitos de mera ordenação social (“sanções contraordenacionais”),
como o paralelismo substantivo das posições que os particulares ocupam em certas situações jurídico-públicas
justificou a aplicação de algumas garantias penais e administrativas a processos que incorporam o exercício
de poderes sancionatórios.

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Sempre que os poderes públicos atuam com vista a impor ónus, encargos ou a exigir a sujeição dos
particulares a consequências jurídicas desfavoráveis, decorrentes de comandos normativos públicos, com o
intuito de sancionar uma prévia conduta ilícita, passa a poder traçar-se uma linha comum a várias subespécies
de sanções. De onde surge a necessidade de crismar esse regime geral como “Direito Sancionatório Público”
não penal.
Entre essas várias subespécies, encontram-se:
i) As sanções contraordenacionais;
ii) As sanções disciplinares públicas;
iii) As sanções financeiras; e
iv) As sanções administrativas stritu sensu.

❖ Direito Sancionatório Contraordenacional


O “Direito Sancionatório Contraordenacional” exibe, a sua intrínseca dualidade, pois tanto convoca a
aplicação subsidiária de normas jurídico- penais- que quanto aos elementos constitutivos da prática de tipos
de ilícito contraordenacional, quer ainda quanto á própria tramitação perante os tribunais competentes para
aferir da sua impugnação-, como justifica a aplicação subsidiária de normas jurídico-administrativas- em
especial, na fase administrativa de aferição procedimentalizada tendente a uma decisão acerca da
responsabilidade pela prática do ilícito.

❖ Direito Sancionatório Disciplinar (Público)

Mas deve ainda ter-se presente o “Direito Sancionatório Disciplinar Público”, que incide sobre os
procedimentos de aferição da violação de regras de disciplina e funcionamento interno dos órgãos e dos
serviços da administração pública. Em regra, essa responsabilidade disciplinar não se deve confundir com
aquela de tipo juslaboral- que envolve a violação de ordens e de instruções emitidas pelo empregador ou por
um superior hierárquico devidamente legitimado para o efeito-, de cunho privado. O que não significa, porém,
que a sujeição de colaboradores de órgãos e serviços públicos a um regime de “contrato individual de trabalho
em funções públicas” não convoque, igualmente, garantias de audiência e de defesa perante a abertura do
correspondente processo disciplinar. Porém, o cerne do “Direito Sancionatório Disciplinar Público” pode
encontrar-se na subdivisão entre responsabilidade disciplinar de:
i. Titulares de órgãos;
ii. Funcionários ou agente da administração pública;
iii. Utentes ou outras pessoas que entrem em contacto com serviços públicos.

❖ Direito Sancionatório Financeiro

O Direito Sancionatório Financeiro visa aferir a responsabilidade pela gestão de recursos públicos-
financeiros, infraestruturais ou humanos-, por parte de titulares de órgãos ou de agentes da administração
pública. Ela tanto pode decorrer da violação de um interesse público nacional, como da violação de um
interesse público transnacional.
 Exemplo do primeiro caso, é a consagração legal da responsabilidade financeira de titulares de
órgãos ou de agente da administração pública, mediante a instauração de procedimentos
sancionatórios pelo Tribunal de Contas (art.214º/1/c) da CRP e art.65º/1 e 66º da Lei do Tribunal
de Contas), ou ainda pelo Tribunal Constitucional, no caso de financiamento dos partidos políticos

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(arts.23º/1, art.24º/2 e art.33º/1 da Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das
Campanhas Eleitorais), que, ainda que assumam a natureza de pessoas coletivas privadas, não
deixam de ser qualificados como “associações privadas de interesse constitucional”.

Porém, a efetivação dessa responsabilidade não se circunscreve á proteção de “interesses financeiros


nacionais”, sendo hoje mais evidente a previsão de mecanismos de garantia dos “interesses financeiros da
União Europeia”, que envolve não só a aplicação de sanções penais, mas igualmente a necessidade de
reposição de fundos comunitários indevidamente utilizados e a imposição de sanções pecuniárias pelo
cometimento de tais ilícitos.

❖ Direito Administrativo Sancionatório strictu sensu

Quando ocorre uma restrição de um “direito subjetivo” ou a imposição de ónus ou encargo a um particular,
por decisão unilateral da administração pública, com intuito sancionatório- ou seja, predominantemente
destinada á imposição de um sacrifício, como consequência de um incumprimento do conteúdo precetivo de
um comando normativo-, pode ainda justificar-se a aplicação de regras e princípios próprios do “Direito
Sancionatório Administrativo strictu sensu.

Diferença entre o “Direito Sancionatório Público” em sentido muito amplo e o “Direito


Sancionatório Administrativo” em sentido estrito
Apesar de serem aplicadas por órgãos administrativos, as “sanções públicas não penais” também não se
reconduzem diretamente a meras decisões administrativas, antes tendo subjacentes caraterísticas próprias-
históricas e culturais, já impregnadas na consciência jurídica geral-que as individualizam face ás “sanções
administrativas strictu sensu. Entre estas últimas, importa destacar:
i. A revogação-sanção;
ii. A privação (temporária ou permanente) do exercício de direitos submetidos a um regime de
condicionamento ou de habilitação administrativa;
iii. A imposição de “sanções pecuniárias compulsórias”.

A própria CRP se encarrega de dar devida nota da subsistência dessa diversidade de “sanções públicas não
penais”, pois expressamente determina que algumas delas beneficiem de regimes jurídicos aplicáveis ao
“poder punitivo penal”, seja quando lhes aplica, as regras relativas ao processo penal (art.32º/nº10 da CRP),
seja quando lhes garante a aplicação da lei sancionatória mais favorável, em caso de declaração de
inconstitucionalidade com força obrigatória geral ressalvada por prévia existência de caso julgado
(art.282º/nº2 da CRP). Não só isola e identifica as sanções contraordenacionais, como expressamente
reconhece a necessidade de garantir o respeito por um leque de direitos procedimentais e processuais dos
indivíduos “em quaisquer processos sancionatórios” (art.32º/nº10 da CRP). Mais adiante, chega mesmo a
individualizar as “sanções disciplinares” (art.214º/1/c) da CRP) e as “sanções disciplinares” (art.269º/3,
271º/1 e art.282º/nº3 da CRP).
Vigora portanto, uma reserva constitucional de sanção pública, nos termos da qual o legislador não pode
deixar de prever um regime multifacetado de sanções públicas não penais, sob pena de desproteção dos bens
jurídicos constitucionalmente protegidos ou- no caso de substituição dessa proteção por sanções penais- de
desrespeito pelo “princípio da proporcionalidade”, na sua vertente de “princípio da intervenção mínima”
(art.18º/nº2 da CRP).
Poderia apenas questionar-se se a não previsão literal, pelo texto constitucional, de certo tipo de “sanções
públicas não penais” libertaria o legislador ordinário da sua expressa consagração infraconstitucional ou se,
pelo contrário, tais sanções não expressamente previstas, ficariam desprovidas de proteção constitucional

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conferida às demais. Quer parecer-me que o que deve prevalecer é o conteúdo material da norma
sancionatória. Sempre que esta vise punir o particular, mediante a imposição de uma redução da esfera
normativa de proteção de um direito subjetivo ou da imposição de um ónus ou encargo, dever-se-ão aplicar
toas as garantias- administrativas e jurisdicionais- de que beneficia qualquer sujeito passivo dessa situação
resultante do exercício de poder sancionatório.

4. Em especial, o ilícito contraordenacional: “contraordenação por natureza” (ou


originárias) e “contraordenações por descriminalização” (ou supervenientes)

Uma visão simplista e simplificadora, de acordo com a qual todos os ilícitos contraordenacionais
decorreriam de um fenómeno de descriminalização, não basta para explicar e compreender o objeto do
Direito Contraordenacional. Isto porque se limita a considerá-lo como uma antecâmara dos ilícitos criminais.
Desse modo, apenas a exclusão da possibilidade de aplicação de uma pena privativa da liberdade permitiria
desgraduar cada um dos ilícitos á categoria de ilícito contraordenacional, em função do seu menor desvalor
jurídico- contraordenações por descriminalização ou supervenientes.

Nem todos os ilícitos contraordenacionais decorrem de uma anterior descriminalização de condutas que,
entretanto, tenham deixado de ser tidas como tão intensamente desvaliosas que merecessem continuar a
justificar uma tutela jurídico-penal. Pelo contrário, inúmeros desses ilícitos correspondem a verdadeiras
contraordenações por natureza ou originárias.

O próprio Direito Administrativo, visa a implementação efetiva do bloco de normatividade vigente em


determinado espaço geográfico, sendo que cabe os órgãos administrativos garantir a implementação coerciva
dessa mesma normatividade democrática. O legislador concede á administração pública um conjunto de
poderes funcionai tendentes a garantir essa mesma implementação. Entre tais poderes, podem destacar-se o
exercício de poderes de direção e de supervisão sobre os próprios agentes e serviços- no qual vai incluído o
poder disciplinar-, de poderes de superintendência sobre outras pessoas coletivas públicas que prossigam a
função administrativa- entre os quais figuram o poder de destituição de cargos públicos diretivos e de
aplicação de sanções financeiras, com vista a efetivar a respetiva responsabilidade pela má gestão de recursos
públicos- e de poderes de tutela- que incorporam não só uma mera tutela inspetiva, mas igualmente uma
tutela substitutiva e uma tutela sancionatória.
Da própria CRP decorre que o Governo goza dos poderes necessários á boa implementação da lei
(art.199º/al.f) da CRP), incluindo aqueles necessários á satisfação das necessidades coletivas (al.g)) a tal ponto
que o seu despojo pode mesmo redundar numa verdadeira inconstitucionalidade da decisão normativa que o
opera.

Confrontados com a excessiva extensão do regime contraordenacional, importará começar a segmentar os


vários bens jurídicos protegidos por cada tipo de norma sancionatória, destrinçando cada subramo do Direito
Sancionatório Público, em função das suas especificidades próprias. Sob pena de o sucesso do Direito
Contraordenacional acabar por transformar-se no seu próprio fracasso, em função de um progressivo
assoberbamento dos órgãos com competência administrativa sancionatória; em especial, das entidades
administrativas reguladoras. Só depois de identificadas essas particularidades poderá, de seguida,
estabelecer-se regimes jurídicos simultaneamente garantísticos das posições jurídicas dos particulares e do
interesse público.

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5. As garantias administrativas na fase procedimental

Qualquer decisão administrativa sancionadora contende, necessariamente, com direitos fundamentais dos
visados, restringindo-os, de modo mais ou menos intenso. Tal circunstância convoca, a intervenção de
princípios constitucionais como o “princípio do Estado de Direito Democrático”, de onde decorre o “princípio
da legalidade” (ou da “tipicidade” de normas restritivas de direitos fundamentais), na sua vertente de garante
da “segurança jurídica”.
O “princípio da legalidade” enforma todo o Direito Sancionatório Público, sem que para tal seja necessário
reclamar uma aplicação analógica do “princípio da legalidade penal”. Porque a aplicação de uma “sanção
administrativa”, em sentido amplo, implica sempre uma restrição de um direito fundamental; seja ele o direito
de exercício de uma atividade ou profissão, a liberdade de circulação ou o próprio direito de propriedade, que
fica posto em crise, no caso da aplicação de uma mera sanção pecuniária (por exemplo, do tipo “coima”). Ora,
a restrição de um direito fundamental implica sempre a sua prévia, certa e esclarecedora previsão, seja
quando esteja em causa um “direito, liberdade e garantia” (artigo 18.º, nº 2 e 3, da CRP), seja quando esteja
em confronto um “direito social”, pois assim o exige o “princípio do Estado de Direito” (artigo 2.º da CRP).
Assim sendo, independentemente do específico substrato material do “princípio da legalidade penal”, certo é
que nenhuma norma sancionatória pode furtar-se ao estrito respeito do “princípio da legalidade”. De onde
decorre não ser necessário lançar mão daquele princípio mais específico para garantir o vínculo de
previsibilidade a que estão sujeitas todas as normas sancionatórias públicas.
E o mesmo se diga quanto às demais garantias administrativas de que beneficiam os sujeitos passivos
dessas sanções, durante a “fase administrativa” (ou “procedimental”), tais como o direito à participação, o
direito à informação, o direito à audiência prévia ou o direito à fundamentação. É que, desde logo, importa
esclarecer que todos os procedimentos sancionatórios se dividem numa “fase administrativa” (ou
“procedimental”) e numa “fase jurisdicionalizada” (ou “processual”). Durante a primeira, a própria
administração pública figura como sujeito ativo, enquanto na segunda passam a ser os tribunais os órgãos
competentes para dirimir a controvérsia quanto à legalidade da decisão sancionatória tomada. Ora, caso não
fossem as garantias concedidas por normas inseridas no capítulo dedicado ao Direito Constitucional
Administrativo (artigos 266.º e seguintes), essa proteção jurisdicional afigurar-se-ia deveras deficitária.
Desde logo, porque só por força da aplicação de comandos normativos de Direito Administrativo se logra
salvaguardar:
i. As garantias de imparcialidade (artigos 44.º a 51.º do CPA), de modo a impedir que a decisão
sancionatória, enquanto decisão predominantemente dotada de discricionariedade
administrativa, não prossiga fins contrários àqueles que a lei previu;

ii. O direito de participação (artigo 8.º do CPA), nele incluído o poder/dever de colaboração (artigo
7.º do CPA), durante toda a fase procedimental sancionatória;

iii. O direito à informação (artigos 61.º a 64.º do CPA), incluindo o acesso a documentos
administrativos que constem do procedimento (art.65º do CPA e o Regime instituído pela Lei de
Acesso a Documentos Administrativo);

iv. O Direito á não autoincriminação (art.89º/nº2/al.c do CPA);

v. O Direito á audiência prévia (art.100º a 103º do CPA), na fase que antecede a tomada de decisão
administrativa sancionatória;

vi. O Direito á fundamentação (art.124º a 126º do CPA);

vii. E vários outros interesses juridicamente protegidos, designadamente os que acautelam o respeito,
pelos órgãos administrativos, de normas de tramitação procedimental e de competência para a
instrução e a decisão.

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Porém, tende a invocar-se normas constitucionais que apenas visam regular a fase processual dos
procedimentos sancionatórios, procurando estender o seu âmbito de proteção á fase administrativa.
Porventura, tal confusão deriva de uma tentativa de transposição da dualidade inquérito-julgamento, típica
do processo penal, para com ela regular a tramitação dos demais procedimentos sancionatórios não penais.

A dualidade inquérito-julgamento visa acautelar o estrito respeito pelo princípio do acusatório, enquanto
consequência do respeito pelas garantias de independência e de imparcialidade de quem julga. No caso dos
procedimentos sancionatórios não penais, não se justifica uma tal compressão dos poderes administrativos,
visto que o menor grau de interferência e de lesividade das sanções a aplicar se compadece com o exercício
simultâneo de poderes de instrução e poderes de decisão pela administração, ainda que a distribuição do
exercício concreto desses poderes, no seio daquela, tanto pode conduzir á repartição de cada um desses
poderes por órgãos distintos, como pode traduzir-se numa cumulação dos mesmos no mesmo órgão
administrativo.

Por outro lado, a sede própria para controlo da legalidade dos atos de inquérito penal é, precisamente, a
sala de audiências dos tribunais criminais, seja na fase de instrução, seja, mais tarde, na fase de julgamento. É
por isso que se exige uma muralha da China entre quem investiga e quem julga. Nos procedimentos
sancionatórios de tipo administrativo tal não se verificaria, pois quem instrui o procedimento também pode
ser competente para decidir. Sucede, porém, que tal argumento só procede quanto á fase administrativa; e,
ainda assim, sujeita á possibilidade de controlo interadministrativo do respeito pelos princípios gerais que
vinculam a administração pública, em especial o da imparcialidade. Isto porque qualquer eventual ofensa ás
normas procedimentais pode ser, mais tarde, impugnada e apreciada pelos competentes tribunais das normas
reguladoras do processo penal, para o seio do procedimento administrativo sancionatório, acarretaria um
prejuízo dos particulares ou uma diminuição das suas garantias.

Pelo contrário, seria a aplicação mecânica de normas processuais penais, concebidas para a investigação
penal e completamente desfasadas da dinâmica própria do funcionamento interno dos órgãos e serviços
administrativos, á fase administrativa dos procedimentos sancionatórios que faria perigar a boa aplicação do
bloco de normatividade. O completo desconhecimento e afastamento dos sujeitos encarregues da sua
aplicação – titulares de órgãos administrativos, funcionários e agentes – face às normas processuais penais é
que tenderia a incrementar uma aplicação errática das mesmas, correndo-se assim o risco de diminuição das
garantias dos particulares. Cabe, assim, ao Direito Administrativo – e, em particular, à lei procedimental
administrativa – regular a fase administrativa dos procedimentos sancionatórios, ficando para a lei processual
penal uma função residual de regulação subsidiária da respetiva fase processual, quando não haja previsão na
lei processual administrativa que regule determinada questão. Esta minha posição não a existência de normas
expressas que determinem a aplicação subsidiária da lei processual penal à fase processual de certos
procedimentos sancionatórios. Exemplo disso é o “Direito Contraordenacional”, em que a lei geral fixa como
subsidiariamente aplicável a lei processual penal. Refiro-me, pois, em sentido lato, à circunstância de o Direito
Administrativo (substantivo e processual) corresponder ao bloco de normatividade próprio para regular os
procedimentos sancionatórios de tipo administrativo, seja na fase procedimental, seja na fase administrativa.

6. As garantias contenciosas na fase jurisdicional

Não raras vezes, procura-se extrair das garantias de defesa em processo penal a certeza acrescida de que
os sujeitos passivos das sanções públicas não penais não se veem privados de direitos fundamentais tão
essenciais quanto o direito de audiência e o direito ao contraditório (incluindo a proibição da indefesa). A
CRP cura de o esclarecer, sem margem para dúvidas (artigo 32.º, n.º 10, da CRP). Mesmo que tal expressa
previsão constitucional não vigorasse, sempre se extrairia tal proteção das normas encarregues de reger a
impugnação jurisdicional de atos administrativos. Sendo configuráveis como decisões administrativas, as

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decisões sancionatórias já gozariam de uma ampla tutela jurisdicional efetiva, decorrente do n.º 4 do artigo
268.º da CRP.
A proteção constitucional decorrente da aplicação subsidiária das garantias de defesa em processo penal
não as abrange em toda a sua plenitude, antes se cingindo ao direito de audiência e ao direito do contraditório.

Esta conclusão afigura-se particularmente decisiva para a aferição das soluções legislativas acerca da
efetivação do direito ao recurso em processos jurisdicionais de impugnação de decisões administrativas
condenatórias, decorram eles perante os tribunais administrativos ou perante os tribunais judiciais – isto, no
caso das sanções contraordenacionais. Na medida em que o n.º 4 do artigo 268.º da CRP não consagra, de
modo explícito, um direito fundamental ao recurso de decisões proferidas pelos tribunais encarregues de
dirimir litígios jurídico-administrativos, resta aplicar a jurisprudência constitucional consolidada, que segue no
sentido de não decorrer, forçosamente, do princípio da tutela jurisdicional efetiva um direito fundamental
ao recurso, dispondo o legislador de uma ampla margem de decisão quanto ao sentido e aos limites concretos
a que devem obedecer os vários regimes de recurso.
Mas esta constatação não pode legitimar uma interpretação demasiado restritiva do n.º 10 do artigo 32.º
da Constituição, para que se conclua que os particulares apenas gozam de um direito de defesa e de um direito
de audiência durante a fase processual de impugnação de decisões sancionatórias. O modo amplo como a
Constituição consagrou um direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, em sede de processo
administrativo (artigo 268.º/n.º 4), não pode deixar de garantir um leque bem extensível de prerrogativas
processuais às quais o legislador ordinário não pode furtar-se.

Podem destacar-se a possibilidade de instauração de:


i) Ação administrativa comum para reconhecimento de direitos, sem que tenha sequer sido proferida
decisão sancionatória desfavorável [artigo 37.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPTA];

ii) Ação administrativa comum para condenação do órgão administrativo à não emissão de decisão
administrativa lesiva do particular [artigo 37.º, n.º 2, alíneas c), do CPTA];

iii) Ação administrativa especial para impugnação de normas regulamentares que sejam fundamento
de decisão sancionatória adotada ou a adotar (artigos 72.º a 77.º do CPTA);

iv) Procedimentos cautelares com vista a impedir os efeitos lesivos de uma decisão sancionatória
adotada ou a adotar (art.112º a 134º do CPTA).

7. A determinação da jurisdição competente

O legislador ordinário tem operado por conceder aos tribunais judicias a competencia para julgar as
impugnações de decisões administrativas condenatórias, em matéria contraordenacional.
Na prática, esta opção de distribuição de jurisdição, em matéria contraordenacional, tem assentado em
três ordens de razões:
1. Escassez e falta de disseminação territorial dos tribunais administrativos;
2. Maior grau de especialização sobre as matérias substantivas que enformam a situação
sancionatória, pelos tribunais judiciais;
3. Cultura mais garantísticas dos tribunais criminais e tradição jurisprudencial de ponderação acerca
dos direitos fundamentais em processos sancionatórios de natureza penal.

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Nenhuma destas razões mantém a força de outrora:
 Em primeiro lugar, as sucessivas reformas do mapa judiciário têm permitido aumentar o número
de tribunais administrativos, que se encontram, hoje, relativamente disseminados por todo o
território nacional;

 Em segundo lugar, a progressiva especialização dos tribunais administrativos em torno do


contencioso de regulação e supervisão tem-nos aproximado de um conhecimento mais profundo
acerca dos poderes sancionatórios exercidos, cada vez mais, por essas entidades reguladoras;

 Em terceiro lugar, devo ainda salientar que não só os tribunais administrativos estão melhor
preparados para conhecer dos vícios do procedimento sancionatório administrativo, como as
sucessivas reformas do processo administrativo o têm tornado mais garantístico;

 Por último, nem sequer corresponde à verdade que a solução hoje vigente garanta que sejam
sempre os tribunais criminais quem assume essa competência em matéria contraordenacional.

Mas, decisivo será aferir da admissibilidade constitucional da mesma. Apesar da fixação de uma verdadeira
reserva de jurisdição administrativa (art.212º/nº3 da CRP), jurisprudência e doutrina têm vindo a admitir que
a atribuição, episódica e justificada, de parcelas de competência jurisdicional a tribunais não administrativos
não acarreta, necessariamente, a inconstitucionalidade dessas normas atribuidoras de competência. Desde
que essa opção legislativa não redunde num tal esvaziamento do âmbito da jurisdição administrativa, que
culmine numa descaraterização dessa mesma jurisdição.
A fixação material de tribunais situados fora da jurisdição administrativa, para conhecimento de ações de
impugnação de decisões de aplicação de sanções públicas nas penais não preencherá esse desiderato.

A impugnação das sanções contraordenacionais é cometida ao conhecimento de tribunais situados fora


da jurisdição administrativa. Em contrapartida, as sanções disciplinares públicas, as sanções financeiras e as
sanções administrativas strictu sensu permanecem adstritas á jurisdição administrativa, salvaguardando
assim o núcleo essencial das situações jurídico-administrativas a ela sujeitas.
Independentemente da escolha do legislador da jurisdição competente, certo é que deve manter-se
presente que as decisões sancionatórias (não penais) constituem, invariavelmente, decisões administrativas,
proferidas por órgãos públicos delas encarregues. Daqui decorre que tais decisões sancionatórias podem
enfermar de qualquer um dos vícios típicos dos atos administrativos. Ora, não raras vezes, a escolha dos
tribunais judiciais como jurisdição competente para aferir da sua impugnação contenciosa acarreta consigo
uma nefasta desconsideração, pelo julgador, das especificidades relativas às vinculações de natureza
procedimental administrativa e dos respetivos vícios e desvalores dessas decisões sancionatórias, enquanto
decisões administrativas.
Esta tendência foi, aliás, recentemente acentuada com a criação do Tribunal da Concorrência, Regulação e
Supervisão, que foi concebido como um tribunal especializado, inserido na jurisdição judicial. Sucede, porém,
que, apesar da amplitude do objeto indiciado pela sua designação, as competências daquele circunscrevem-se
ao conhecimento das ações de impugnação de decisões sancionatórias contraordenacionais proferidas por
entidades administrativas dotadas de poderes de regulação e de supervisão. A este propósito, importa,
precisar o que se entende por “revisão e execução das decisões, despachos e demais medidas em processo de
contra-ordenação legalmente suscetíveis de impugnação” (artigo 89.º-B, n.º 1, da LOFTJ). Numa primeira
leitura, dir-se-ia que o preceito autorizaria o conhecimento não só das decisões finais condenatórias, como
igualmente de despachos interlocutórios proferidos no decurso do procedimento administrativo de tipo
sancionatório. Sucede, porém, que tem vindo a entender-se que os atos reais, desde que não dotados de
eficácia externa, não são suscetíveis de impugnação jurisdicional, visto que não traduzem uma posição
definitiva da administração pública. Ora, ainda que se fixe como competente um tribunal situado fora da
jurisdição administrativa, deve entender-se que, no exercício dessa competência jurisdicional, esse tribunal

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não pode senão cingir-se à metodologia própria de aferição da conformidade normativa de decisões
administrativas sancionatórias.

Em suma, a competência material para controlo jurisdicional de “sanções públicas não penais” encontra-se
hoje repartida entre a jurisdição administrativa – que conhece da atividade procedimental não decisória da
administração pública, em matéria sancionatória, e das sanções públicas não contraordenacionais (e,
simultaneamente, não penais) – e a jurisdição judicial – que se cinge ao conhecimento da impugnação de
sanções contraordenacionais.

8. Amplitude e medida da sanção

Outro dos argumentos diferenciadores, assente na suposta maior lesividade das sanções penais (por
comparação a outras sanções públicas), tem vindo igualmente a ficar fortemente abalado. Desde logo porque,
empenhado em garantir o cumprimento escrupuloso dos deveres legais, o legislador tem vindo a prever
sanções públicas não penais cada vez mais intrusivas da esfera jurídica dos particulares. Ao ponto de, não raras
vezes, o próprio quantum das coimas e de outras sanções pecuniárias aplicáveis exceder, em muito, aquele
que corresponderia à substituição de uma pena privativa da liberdade por pena de multa. O grau de lesividade
sobre o património dos particulares afigura-se de tal modo intenso que aquelas sanções públicas não penais
acabam por suplantar as próprias sanções penais. Tal não pode deixar de convocar uma especial exigência de
acautelamento das garantias dos particulares face àquela atuação pública.

O Tribunal Constitucional não tem permanecido indiferente a este fenómeno. Pelo contrário, tem sido
recorrentemente confrontado com o problema do eventual excesso na previsão (e aplicação) de sanções
públicas não penais, seja por violação do “princípio da proporcionalidade” (artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da CRP),
seja mesmo por violação da “reserva de lei parlamentar” (artigo 165.º, n.º 1, alíneas b) e d), da CRP). Desde
logo, começando por esta dimensão competencial ou orgânica, importa notar que a própria fixação de um
regime geral contraordenacional contribui para a limitação da amplitude e da medida concreta das sanções
potencialmente aplicáveis. Com efeito, o limite máximo das coimas aplicáveis fixado pelo artigo 17.º/nº 2, do
Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, não pode deixar de amarrar o legislador governamental. Se é certo
que aquele permanece livre para criar novos tipos de ilícito contraordenacional – pois a CRP apenas reserva
para o legislador parlamentar a matéria relativa ao seu “regime geral” e “respetivo processo” (artigo 165.º,
n.º 1, alínea d), da CRP), não menos certo é que só pode fazê-lo desde que se cinja aos pressupostos fixa- dos
pelo regime geral contraordenacional. Por conseguinte, qualquer decisão legislativa, tomada por decreto-lei
não autorizado, que fixe coimas superiores a 44.891,92 € redunda numa inconstitucionalidade orgânica. De
qualquer modo, desde que não se suscitem problemas de discrepância entre o regime geral e os diversos
regimes criadores de sanções contraordenacionais e desde que não se suscitem problemas de falta de
competência legislativa governamental, a jurisprudência constitucional tem sido particular- mente renitente
em controlar os limites da medida abstrata das sanções a aplicar. Em regra, reconhece uma ampla margem de
liberdade para tomada de decisões legislativas e apenas tende a intervir quando se verifique uma manifesta
violação do princípio da proporcionalidade, em especial no caso de fixação de sanções flagrantemente
excessivas.

O Tribunal Constitucional tem censuradas:


i. A fixação de uma amplitude muito intensa entre o limite mínimo e o limite máximo, pois tal tenderia a
libertar o aplicador (e o julgador) de uma adstrição vinculadora aos critérios de decisão legislativa-
princípio da legalidade (Acórdão n.º 547/2001);

ii. O agravamento dos limites mínimos e máximos em função de uma conduta do interessado à qual não
possa ser imputada um particular desvalor da ação ou uma culpa intensa (Acórdão n.º 313/2013).

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Aliás, o último daqueles acórdãos evidencia uma notória evolução da posição do Tribunal Constitucional, a
propósito da aferição dos limites abstratos das sanções públicas aplicadas, já que aquele não se coibiu de
apreciar se a sua fixação, pelo legislador, acautela o respeito por princípios fundamentais num Estado de
Direito Democrático, como o princípio da culpa ou o princípio da proporcionalidade. Concluiu-se, pela
inconstitucionalidade de uma solução interpretativa que permita o agravamento da sanção a aplicar, quando
não seja imputável ao particular uma conduta censurável que preencha (objetivamente) os pressupostos
desse mesmo agravamento. Esta mudança de orientação jurisprudencial corresponde a uma posição
inquisitiva do preenchimento concreto das exigências de proporcionalidade, que não posso deixar de louvar.
Aliás, esse juízo de ponderação deveria ser formulado em concreto, de modo a evitar quer um acréscimo
automático das coimas aplicáveis a pessoas coletivas, quer uma ausência de diferenciação em função do
volume de negócios, quer ainda de eventuais situações de concurso com outras sanções públicas. Ainda assim,
importa aguardar por mais desenvolvimentos na tramitação daquele processo, visto que, em função da
contradição com o Acórdão n.º 67/2011, o primeiro foi alvo de recurso obrigatório para o Plenário. Cabe,
portanto, esperar pela tomada de posição definitiva do coletivo de juízes sobre esta questão.

9. As normas sancionatórias administrativas em branco

Por razões intimamente ligadas à dificuldade de antecipação da evolução de parâmetros técnicos ou


científicos que necessitem ser integrados nos elementos típicos dos ilícitos (não penais) a sancionar, o
legislador adota, não raras vezes, normas sancionatórias em branco. Através delas, garante-se o respeito pelo
princípio da legalidade, mediante a remissão do concreto conteúdo prescritivo de uma parcela da norma que
prevê a sanção a aplicar (“norma remissiva”) – qualquer seja a sua natureza: contraordenacional, disciplinar,
financeira ou administrativa, em sentido estrito – para uma outra norma integradora (“norma
complementar”), através da qual se fixam os elementos exclusivamente técnicos mencionados na primeira
norma. O recurso a este tipo de normas sancionatórias em branco transporta consigo uma dificuldade
acrescida que resulta da circunstância de a própria norma remissiva poder reenviar o aplicador para normas
provenientes de fontes jurídicas de génese privada. Assim sucede porque, a própria norma complementar
decorre de fontes normativas de génese não estadual, como, por exemplo, os códigos de conduta ou os
padrões técnicos globais, gerados por estruturas de cooperação societária de tipo privado, ou seja, de normas
não diretamente provenientes de atos jurídico-públicos.
As normas sancionatórias em branco suscitariam delicados problemas de compatibilização, pelo menos,
com os seguintes princípios gerais de Direito Sancionatório Público:
a) Princípio do Estado de Direito (na sua vertente de princípio da segurança jurídica);
b) Princípio democrático;
c) Princípio da proibição da indefesa.

Desde logo, é de excluir a aplicação direta do princípio da legalidade penal (artigo 29.º, n.º 1, da CRP) às
normas sancionatórias em branco – desde que excluídas, como será óbvio, as que assumam uma natureza
materialmente penal –, já que aquelas normas não compartilham do especial desvalor ético associado às
condutas criminosas. Daqui não resulta, porém, a subtração das normas sancionatórias em branco (não
penais) ao princípio do Estado de Direito, na sua vertente de proteção da segurança jurídica. Desde logo,
porque tal princípio não pode deixar de conter uma garantia de certeza na orientação e de segurança na
implementação. Ora, no momento em que determinado particular adota determinada conduta, forçoso se
torna que o legislador (democraticamente legitimado) tenha fixado – de modo esclarecedor, inequívoco e
objetivamente cognoscível – quer um comando proibitivo, quer o correspondente comando sancionatório da
conduta proibida. Assim, qualquer norma que implique uma compressão sensível de direitos subjetivos dos
indivíduos (e das pessoas coletivas públicas privadas) deve sempre estrita obediência ao princípio da

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segurança jurídica, que decorre diretamente da ideia de Estado de Direito. No plano do princípio democrático,
poder-se-ia questionar se a força vinculativa e conformadora dessas normas sancionatórias em branco goza
da devida legitimação democrática, sempre que as normas complementares decorram ou de juízos
meramente técnicos, proferidos por entidades privadas a quem a Constituição não concedesse, de modo
direto, o exercício de poder normativo, ou de decisões normativas de tipo infralegislativo, ou seja, de meros
atos regulamentares adotados ao abrigo de poderes administrativos. Estando em causa a restrição de direitos,
liberdades e garantias – a mero título de exemplo, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade
humana, a liberdade de imprensa ou a liberdade de associação – ou, pelo menos, de direitos a eles análogos
– , o direito à propriedade privada e a liberdade de iniciativa privada –, suscita-se o problema da exigência de
reserva de lei para que se proceda à fixação e imposição de uma sanção administrativa sancionatória, qualquer
que seja a sua tipologia.

A ponderação destes valores conflituantes já foi tida em conta pelo Tribunal Constitucional, precisamente
a propósito de uma norma sancionatória em branco, relativa à efetivação da responsabilidade financeira dos
titulares de cargos políticos – a saber, o artigo 65.º/n.º 1, alínea b), da Lei de Organização e Processo do
Tribunal de Contas. Trata-se, de uma norma da subespécie das normas sancionatórias financeiras. Dessa feita,
aquele Tribunal teve oportunidade de fundamentar a autonomização constitucional desta tipologia de
sanções públicas, afastando assim a aplicação direta do regime aplicável às sanções penais (ou até
contraordenacionais). E mais esclareceu que remissão operada por aquela norma para as normas reguladoras
da assunção, autorização ou pagamento de despesas públicas ou compromissos não afetaria, nem afastaria –
naquele caso concreto – a possibilidade (objetiva) de motivação da conduta por parte do sujeito passivo
daquela norma sancionatória em branco, visto que a recorrente era titular de um cargo político autárquico e,
por conseguinte, lidava quotidianamente com as normas relativas a contratação pública, relativas aos limites
pecuniários do “ajuste direto” e do “concurso público”.
Em suma, o Acórdão n.º 635/2011 frisa bem que a previsão de uma norma sancionatória em branco exige
que o conteúdo precetivo mínimo da norma seja fixado pela norma de remissão e que da sua combinação
com a norma complementar resulte uma cognoscibilidade razoável do respetivo conteúdo – condição de
determinabilidade. De onde se pode extrair que uma norma sancionatória em branco desprovida desse
conteúdo precetivo mínimo – designadamente, por não ser exigível ao destinatário conhecer o comando
normativo apenas constante da norma complementar, em função da onerosidade de acesso à fonte onde a
mesma foi consagrada – atenta contra o princípio da segurança jurídica, ficando assim ferido de
inconstitucionalidade. Porém, o mesmo acórdão realça a imprescindibilidade de aferição dos conhecimentos
concretos detidos pelo agente, pois as suas caraterísticas específicas podem indiciar essa possibilidade de
conhecimentos objetivo acerca do conteúdo impositivo da norma sancionatória em branco.

10. Cumulação de poderes instrutórios e de poderes de decisão sancionatória

Um último indício da autonomia juscientífica do Direito Sancionatório Público (não penal) resulta da
inexistência de uma regra específica que determine a segmentação entre a identidade do órgão encarregue
do exercício de competência instrutória e do exercício de competência decisória. Ao contrário do que sucede
no âmbito do Direito Penal (artigo 32º/º 5, da CRP), não pode dizer-se que vigore, de modo direto, um
princípio do acusatório, nos termos do qual quem investiga o cometimento do ilícito administrativo não pode,
de igual modo, decidir acerca da sua comissão e da sua eventual punição. Sem prejuízo de alguns regimes
excecionais, certo é que, na esmagadora maioria dos casos, cabe ao mesmo e exato órgão investigar e decidir
sobre a sanção a aplicar. Cumulam-se, assim, competência instrutória e competência decisória, ainda que o
exercício desta última possa vir a ser impugnado perante os tribunais. Isto não significa, porém, que a referida
cumulação permita um desrespeito dos direitos e garantias do sujeito privado e, em especial, do princípio da
imparcialidade. Com efeito, qualquer órgão administrativo – encarregue do exercício de poder sancionatório

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público- permanece sempre vinculado ao respeito dos princípios gerais de Direito Constitucional
Administrativo, entre os quais, o referido princípio da imparcialidade (artigo 266º/nº 2, da CRP). Esse tem
sido, aliás, o entendimento do Tribunal Constitucional, que não tem reputado de inconstitucionais normas
jurídicas que permitem essa cumulação de competências instrutórias e decisórias, ainda que de tipo
sancionatório.
Importa frisar que o Direito Sancionatório Público (não penal) implica, invariavelmente, uma cisão entre a
“fase administrativa”, de tramitação procedimental com vista à tomada de decisão sancionatória (ou
absolutória) e a “fase jurisdicional”, em que um tribunal afere dos fundamentos de impugnação daquela
decisão. Daqui resulta não serem convocáveis nem o nº 4 do artigo 20.º, nem tão pouco o n.º 5 do artigo 32.º
da CRP, quando esteja em causa a aferição da legalidade da atuação do órgão administrativo, uma vez que
aqueles comandos constitucionais apenas se aplicam à tramitação processual perante os órgãos jurisdicionais.
Nem sequer por via de um raciocínio analógico se poderia aplicar aqueles preceitos, visto que subsistem outras
normas constitucionais especiais que regem a atuação do órgão competente para a “fase administrativa”. É,
aliás, por isso que a jurisprudência constitucional tem entendido não serem de aplicar diretamente comandos
constitucionais consagradores de direitos e garantias de natureza penal, o princípio da legalidade penal –; isto
é, porque a proteção dos particulares sujeitos ao exercício de outros poderes sancionatórios públicos se
alcança, de modo satisfatório, através da aplicação de outras normas jurídico-administrativas, especiais ou
gerais.

Especificamente sobre a cumulação de competências instrutórias e decisórias, poderia discutir-se se a


aplicação subsidiária das garantias de defesa em processo penal –nº 10 do artigo 32.º da CRP – apenas
abrange a “fase jurisdicional”, de impugnação de sanção pública não penal ou se, pelo contrário, se estenderia
à respetiva “fase administrativa”, de procedimentalização tendente à decisão sancionatória. Estou em crer
que tal preceito deve ser interpretado restritivamente, de modo a circunscrever-se às garantias de audiência
e de defesa perante o competente órgão jurisdicional. Tal resulta, aliás, do emprego da expressão processos
sancionatórios, ao invés de procedimentos sancionatórios. De qualquer modo, mesmo que assim não fosse,
certo é que sempre vigorariam normas especiais reguladoras do procedimento administrativo tendente à
tomada de decisão administrativa sancionatória.

O principal desses mecanismos radica no vício de desvio de poder, que opera como consequência da
violação concreta do princípio da imparcialidade.

Ora, o desvio de poder tanto corresponde a um exercício abusivo de poderes discricionários com vista à
prossecução de “interesses privados”, como pode igualmente traduzir-se numa prossecução de “interesse
públicos” divergentes daqueles que presidiram e fundamentaram a tomada de decisão legislativa que
autorizou o recurso à discricionariedade. Ora, qualquer decisão administrativa sancionatória que condene
determinado sujeito, com o intuito de prosseguir finalidades predominantemente endoburocráticas dos
serviços dependentes do órgão com competência decisória – por exemplo, a mera arrecadação de receita, por
via da aplicação de coimas ou de outras sanções pecuniária –, padece do vício de “desvio de poder”. Torna-se,
portanto, indispensável que o julgador das sanções públicas não penais domine, com destreza, a metodologia
específica do Direito Administrativo, pois só assim pode aferir, em plenitude, da legalidade da decisão
sancionatória.
A abordagem casuística desenvolvida até aqui permite-nos, de modo impressivo, comprovar as
especificidades dos procedimentos sancionatórios públicos (não penais). Nela se antevê, quase em tinta
invisível, essa bissetriz (imperfeita) entre o Direito Penal e o Direito Administrativo. Uma adequada solução
dos dilemas colocados por esta inovadora e crescente metodologia sancionatória – com proteção simultânea
do interesse público e das garantias dos particulares – exige um esforço multidisciplinar que permita uma
síntese reconstrutiva dos parâmetros que balizam o Direito Sancionatório Público.
Se qualquer nova obra carece de ser consolidada sobre a robustez de alicerces já experimentados, certo é
que o traço de génio de um arquiteto atento às inovações do tempo que passa exige-lhe que corra o risco de

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testar novas soluções. Mesmo que o traço que desenha essa bissetriz possa não ser, por ora, tão nítido e
vigoroso quanto ambicionado.

Direito de audição e Direito de defesa em processo de contraordenação:


conteúdo, alcance e conformidade constitucional
Neste estudo procura-se clarificar o conteúdo do direito de audição e defesa na fase organicamente
administrativa do processo de contraordenação (art.50º do RGCO), concretizando desse modo o exato
disposto no art.32º/nº10 da CRP.

❖ Introdução

O presente texto procura determinar o conteúdo imanente ao art.50º do Regime das contraordenações e
coimas e a sua eventual conformidade ou não em relação ao regime previsto nos arts.32º/nº10 e art.267º/nº5
da CRP. Pretende-se saber se em processos de contraordenação autoridade administrativa ao deduzir
acusação tem ou não o dever de individualizar e especificar a prova relacionada com os factos imputados na
peça acusatória, de forma a permitir que o arguido tenha conhecimento por esse ato não só dos factos e das
suas consequências sancionatórias, como contempla o art.50º do RGCO, mas também da concreta prova que
apoia a pretensão sancionatória indiciária da autoridade administrativa.

O art.50º interpretado no sentido de não exigir que a notificação ao arguido da acusação contra si proferida
em processo contra-ordenacional inclua já uma enunciação/identificação dos elementos de prova nos quais
se alicerça o juízo de indiciação dos factos que lhe são ali imputados, é inconstitucional, por violação dos
arts.32º/10 ou 267º/5 da CRP?
O problema diz respeito ao conteúdo necessário da acusação em processo de contraordenação, aos
elementos que devem acompanhar a imputação da contraordenação ao arguido para que este possa exercer
cabalmente o seu direito de defesa perante tal ato e antes da decisão final do processo.

Saber se a identificação e especificação da prova são referências necessárias numa acusação que impute a
alguém a prática de uma contraordenação para efetivar a garantia constitucional do direito de defesa
depende, entre outros aspetos, do enquadramento desse mesmo direito na lógica e na sequência do processo
contraordenacional. A lei não exige tal especificação na peça acusatória e nada resulta do texto constitucional
que imponha ou apoie com um mínimo de clareza e segurança tal solução. O presente texto procura identificar
na tramitação do processo na sua fase organicamente administrativa os momentos essenciais em que o
arguido pode efetivar o seu direito de defesa, de que forma e com que alcance o pode fazer, de modo a
densificar a garantia constitucional acolhida no art.32º/nº10 da CRP e indagar, em suma, da real necessidade
ou não de especificação daa prova na peça acusatória.

I. A estrutura do processo de contraordenação e as garantias de defesa

1. As fases do processo de contraordenação

Os direitos de audição e defesa em processo de contraordenação são garantias processuais, isto é, estão
configurados como situações jurídicas merecedoras de tutela constitucional (art.32º/nº10 da CRP) que se

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traduzem no reconhecimento de meios processuais adequados á proteção de direitos do arguido em
processos relativos á imputação de ilícitos de mera ordenação social.
Trata-se do direito a ser ouvido num certo momento do processo e do direito a defender-se perante atos
processuais específicos, também em certos momentos da tramitação dos autos.
Por um lado, os direitos de audição e defesa estão configurados como direitos do arguido (art.50º) o que
reforça a ideia de que tais garantias se associação a um certo estatuto adquirido necessariamente num certo
momento da tramitação do processo com uma finalidade específica; por outro lado, a exata compreensão das
fases e momentos processuais relevantes na tramitação de um processo de contraordenação constitui uma
condição essencial para avaliar a necessidade e adequação do recurso ao regime legal do processo criminal
enquanto Direito Subsidiário eventualmente aplicável (art.41º/1 do RGCO).

O processo de contraordenação contempla duas grandes fases:


 Uma primeira fase organicamente administrativa;
 Uma segunda fase judicial facultativa.

A fase organicamente administrativa é em regra conduzida por uma autoridade administrativa (art.33º e
34º do RGCO), mas verificado um caso de concurso entre contraordenação e crime a competência para a
promoção do processo relativo á primeira concentra-se nas autoridades judiciárias criminalmente
competentes (art.37º do RGCO). A fase organicamente administrativa comporta em regra três momentos
diferenciados: a notícia da infração até á defesa do arguido, a instrução subsequente e a decisão final do
processo.

Vigorando o princípio da legalidade processual, a promoção do processo de contraordenação é obrigatória


(art.43º do RGCO). A investigação e instrução do processo referidas no art.54º do RGCO não correspondem a
fases processuais, mas sim a atividades materiais e por isso, nº2, são ocasionais e podem ter lugar antes e/ou
depois de imputada a contraordenação ao arguido (Art.50º do RGCO).

A exceção de concentração de competências em caso de concurso de infrações, não vigora no âmbito do


sistema financeiro. No caso específico do mercado de valores mobiliários, resulta da lei (art.360º/1/e) e 408º
do CVM) a competência exclusiva da CMVM para a promoção do processo de contraordenação relativo a
infrações previstas no CVM e legislação complementar. Regime salvaguardado através da consagração
expressa da autonomia substantiva e processual do processo de contraordenação em casos de pluralidade de
infrações pelo mesmo facto (art.420º do CVM). A fase organicamente administrativa do processo de
contraordenação da competência da CMVM é exclusiva e obrigatória, não podendo um processo dessa
natureza ser promovido por outra entidade nem sujeito ao regime de concentração de competências do
art.37º do RGCO.

Fase Judicial

A fase judicial é facultativa e depende de três candições:


• De o arguido impugnar tempestivamente a decisão final do processo de contraordenação proferida
pela autoridade administrativa (art.59º do RGCO);
• De a autoridade administrativa não revogar a decisão proferida (art.62º/2 do RGCO);
• E em sequência de o Ministério Público apresentar os autos do Tribunal Competente (art.62º/nº1
RGCO);

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A falta da primeira implica que a decisão proferida pela autoridade administrativa se tornará definitiva (por
aceitação, passividade ou reação não tempestiva do arguido); a verificação da segunda elimina a decisão
sancionatória da autoridade administrativa sujeita a impugnação judicial, pelo que o processo não poderá
continuar por falta de objeto; e a não verificação da terceira condição corresponderá á ausência de acusação,
pelo que só poderá significar a promoção de um arquivamento dos autos do Ministério Público.

Estas são as duas fases processuais que se encontram reguladas por lei e que têm titulares distintos: na
primeira, o titular da fase processual é a autoridade administrativa com competência legal para o efeito; na
segunda, existem dois titulares em momentos distintos, pois a decisão de apresentação dos autos pelo M.p
ao tribunal de julgamento equivale normativamente á dedução de acusação (uma pretensão sancionatória
pública, assumida por uma autoridade judiciária), sendo aquela entidade a titular deste momento processual
que condiciona a subsequente tramitação dos autos; a partir daí a titularidade da fase processual caberá ao
tribunal de julgamento.

No mercado de valores mobiliários vigora ainda uma regra especial quanto á dinâmica do processo, pois a
desistência de acusação pelo M.P depende da concordância da CMVM (art.416º/nº6 do CVM), o que significa
o dever de realizar o julgamento sempre que a autoridade administrativa se oponha á não promoção da
acusação pelo M.P.

A existência e a natureza destas duas grandes fases do processo de contraordenação, em que a fase judicial
em regra só existe com a impugnação da decisão administrativa pelo arguido, permitem que o Direito de Mera
Ordenação Social cumpra as suas funções: evitar a criminalização de certos factos, sem os subtrair
completamente a uma disciplina de Direito Público, limitar o dramatismo decorrente do significado ético-
social da imputação jurídico-criminal e, com isso, evitar a saturação dos tribunais com casos que podem ter
uma solução adequada na fase organicamente administrativa do processo, designadamente com diminuição
da litigância judicial através do arquivamento dos autos ou da não impugnação da decisão administrativa que
condene o arguido numa coima pela prática da contraordenação.

Em suma, a fase administrativa dos processos de contraordenação, podendo ser vista como uma fase
preliminar em relação á eventual fase judicial subsequente, tem igualmente um valor político-jurídico
autónomo, pela redução da conflitualidade judicial que consegue promover e por corresponder a uma forma
específica de o Estado concretizar o princípio da separação de poderes.

A lei portuguesa não regula em geral outras fases do processo de contraordenação, permitindo quer uma
relativa simplificação na fase organicamente administrativa, por comparação com o formalismo do processo
criminal, quer a possibilidade de a legislação setorial contemplar soluções específicas neste domínio. O
processo penal colide de forma mais significativas com direitos fundamentais, pode ser padronizado por
referencia a um universo homogéneo de aplicadores do direito (autoridades judiciárias e órgãos de polícia
criminal, legalmente articulados entre si) e ao direito vigente e tem, por tudo isto, uma regulação mais cerrada
e formal; o processo de contraordenação não reveste essa densidade axiológico-jurídica, envolve autoridades
administrativas muito diferenciadas e setores jurídicos autónomos profundamente heterogéneos (sistema
financeiro, regulação ambiental, concorrência, urbanismo), pelo que a menor formalização de fases
processuais se adequa á diversidade descrita.

 Exemplo: A lei das contraordenações não prevê uma fase de inquérito nem contempla por exemplo
um regime de acusação como tal designação. É que a primeira, sendo admissível a partir de um ato
formal que abra que abra uma investigação para esse efeito, pode nem sequer fazer grande sentido
em alguns setores do universo daas contraordenações; e a segunda pode ser funcionalmente

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substituída por outras formas de imputação indiciária ou preliminar (levantamento e comunicação
de um auto ,p.ex), mais adequadas ao setor e ao caso concreto.

O que a lei regula expressamente são aos processuais essenciais para a tramitação dos autos que, pelo seu
conteúdo e significado, permitem identificar momentos anteriores e posteriores aos mesmos e a sua sujeição
a um regime específico:
i. A imputação das infrações ao arguido pela autoridade administrativa;
ii. A defesa deste permanece essa imputação;
iii. A eventual realização de diligências adicionais de prova;
iv. A decisão final da autoridade administrativa;
v. A eventual impugnação judicial desta decisão pelo arguido.

Os dois primeiros momentos podem ser designados como acusação e defesa, na fase organicamente
administrativa do processo de contraordenação. Através deles o arguido é formalmente confrontado com a
hipótese de lhe ser atribuída responsabilidade (sujeição a coima e eventual sanção acessória) pela prática de
uma contraordenação e através da segunda pode apresentar á autoridade administrativa os elementos que
considere relevantes para a sua defesa. Simultaneamente cumpre-se o direito de audição antes de ser
protegida a decisão final, um dos aspetos salvaguardados quer pelo art.32º/nº10 da CRP, quer pelo art.50º
do RGCO.

Pode seguir-se, em terceiro lugar, a realização de diligências adicionais cuja necessidade resulte da
avaliação unilateral da autoridade administrativa ou de solicitação do arguido, sejam em função da junção de
novos meios de prova (documentos) seja em função de prova a produzir (a audição de testemunhas ou de
arguidos).

Posteriormente entra-se na fase decisória em que, tudo ponderado (tem em conta os elementos reunidos
pela autoridade administrativa e os que resultam da participação do arguido no processo), será proferida uma
decisão que na lei (art.58º do RGCO) assume a natureza de decisão condenatória (caso atribua
responsabilidade ao arguido pela contraordenação imputada (isto é, caso aplique coimas ou sanções
acessórias) ou será, em alternativa, um mero arquivamento dos autos (Art.58º do RGCO confirmado pelo
art.54º/nº2).

A decisão condenatória pode assumir uma dupla natureza, consoante a reação do arguido:
 Poderá ser uma decisão final se o arguido não a impugnar, tornando-se definitiva e produzindo os
seus efeitos;
 Ou, diversamente, caso o arguido a impugne judicialmente, transformando-se na base instrutória
que viabiliza a conversão normativa dos autos em acusação, com a sua apresentação pelo M.P ao
Tribunal para a realização do julgamento requerido (art.62º/1 do RGCO). Com esse ato cristaliza-
se o objeto do processo para a aferição de eventuais alterações subsequentes por revelação de
factos diversos durante a audiência.

A lei não contempla a possibilidade de a autoridade administrativa ou o M.P reformularem o conteúdo


material da decisão administrativa, exceto se tal se traduzir numa revogação da decisão de aplicar a coima
(Art.62º/nº2 do RGCO) ou de retirada da acusação (art.65º-A). Deve, contudo, entender-se como possível
quer uma revogação parcial quer uma retirada parcial da acusação em caso de concurso de contraordenações,
pela autonomia dos ilícitos e das sanções em causa que viabilizam decisões igualmente autónomas. As
alterações materiais ao conteúdo da decisão anterior só poderão ocorrer por cia do julgamento subsequente

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(por exemplo, uma modificação no título de imputação subjetiva, de dolo para negligencia ou no sentido
inverso.

Não se pode deixar de notar uma diferença essencial relativamente ao processo criminal:
Uma vez requerida a impugnação judicial, o caso controvertido é sujeito a julgamento num contexto em
que o arguido teve mais possibilidade de influenciar a acusação do que aquilo que acontece no processo
criminal. É que quando o M.P apresenta os autos ao tribunal em processo de contraordenação e essa
apresentação é funcionalmente considerada uma acusação, estamos perante a decisão da autoridade
administrativa, aquela que o arguido pode contestar e influenciar no exercício do direito de defesa (Art.50º
do RGCO), pôde condicionar ou determinar ao requerer e participar em diligencias adicionais de prova e pôde
criticar ao impugnar a decisão final. Uma capacidade de intervenção do arguido com esta extensão não existe
em regra no processo criminal nas fases preliminares.

O arguido em processo de contraordenação acaba na verdade por ver efetivado o seu direito de defesa de
uma forma mais intensa do que no processo criminal, não só pelas razões já referidas-, a capacidade de
influenciar a decisão-acusação de uma forma que não tem paralelo no processo criminal- porque a conversão
normativa da decisão final em mera acusação significa que o arguido vai a julgamento com uma acusação
fundamentada ao nível de uma decisão final.

Também o próprio julgamento a realizar tem as suas particularidades. Também se configura como um
julgamento que pode atribuir mais peso ao conteúdo dos autos vindos de fases processuais anteriores por
comparação com o processo criminal. Desde logo, pela possibilidade de decisão por despacho (art.64º), que
implica o uso pleno na fase judicial da prova constante dos autos que vem na fase administrativa. Mas também
pela possibilidade de tal acontecer em função quer do disposto na lei (art.416º/4 do CVM), quer da decisão
concreta do Tribunal, que pode determinar o âmbito da prova a produzir (art.72º/2 do RGCO) e, portanto, o
uso da prova já contida nos autos. Significa que a fase de julgamento no processo de contraordenação constitui
um momento de jurisdição plena, mas articulado com o conteúdo do processo de contraordenação que vem
da fase administrativa. O que permite inclusivamente soluções que não se equacionam no processo criminal,
como a possibilidade de a decisão judicial em primeira instância se traduzir simplesmente na conformação
total ou parcial da decisão da autoridade administrativa.

Um regime onde avulta a necessidade de articular plenamente a fase organicamente administrativa do


processo de contraordenação e a fase judicial subsequente, numa lógica de eficiência, aproveitamento de
prova e economia processual, com total respeito pelos direitos de defesa do arguido que, finalmente, ainda
poderá recorrer da decisão judicial proferida para o Tribunal da Relação (art.73º e ss do RGCO).

Na fase organicamente administrativa do processo de contraordenação existem pelo menos três


momentos específicos para o arguido exercer o seu direito de defesa:
 O primeiro quando ao ser confrontado com a acusação procura, ao abrigo do art.50º do RGCO,
persuadir a autoridade administrativa das suas razões ou da falta de razão da pretensão
sancionatória pronunciando-se sobre a contraordenação que lhe é imputada;

 O segundo participando na eventual produção de prova que tenha lugar entre o momento da
acusação e o momento da decisão;

 O terceiro impugnando judicialmente a própria decisão da autoridade administrativa (art.59º do


RGCO e art.416º do CVM) requerendo um julgamento que terá como objeto o caso controvertido
e documentado nos autos, agora enriquecido com os elementos constantes da sua impugnação e
aqueles juntos pela autoridade administrativa (art.416º/2 do CVM).

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O arguido tem ainda o direito a intervir no processo decisório subsequente, já na fase judicial,
designadamente participando presencialmente e através de mandatário na audiência de julgamento,
exercendo o contraditório sobre a produção de prova e, relativamente ás decisões controvertidas, recorrendo
ao final da decisão judicial proferida para uma instância superior.
Cada um destes momentos de defesa do arguido tem uma natureza específica e uma razão de ser, em
função da tramitação do processo e da sequência do mesmo. A autonomia recíproca implica que uns não
inutilizem os outros e que o conteúdo da defesa em causa se adeque á lei e ao ato praticado á luz das diversas
hipóteses de intervenção que a lei vai facultando ao arguido.

2. Autonomia do processo de contraordenação e aplicação subsidiária do processo


penal

O Direito de Mera Ordenação Social foi criado com diversas finalidade: por um lado, oferecer um regime
que permitisse reorganizar a intervenção sancionatória do Estado em domínios em que a ameaça de sanção
induzisse um reforço da disciplina substantiva criada para setores socio-económicos com relevância pública,
sem recorrer para o efeito ao Direito Penal; por outro lado, permitir uma descriminalização adequada e
prudente em alguns setores de atividade, reforçando desse modo o alcance efetivo do princípio da
intervenção mínima sem prescindir de uma regulação sancionatória de Direito Público. O que supunha, dois
outros aspetos: os ilícitos em causa seriam qualitativamente distintos do ilícito penal, designadamente por
não tutelarem bens jurídicos ou, pelo menos, tutelaram bens jurídicos distintos daqueles que mereciam
proteção jurídico-penal; e a forma de efetivar a intervenção sancionatória seria mais simples e sem as
conotações ético-sociais associadas á sujeição de um arguido a um processo criminal.
A separação entre a fase administrativa e a fase judicial visava também garantir uma parte deste programa.

O processo de contraordenação tem sujeitos específicos, regras próprias, uma tramitação singular e
garantias adequadas á sua natureza e finalidades que, em caso algum, devem ser adulteradas com uma
perniciosa confusão com processo penal.
A solução legal vigente neste domínio garante inclusivamente tal separação, pois a aplicação do regime do
processo criminal ao processo de contraordenação como direito subsidiário nunca é autónoma. De acordo
com o art.41º do RGCO, a invocação do direito processual penal, como Direito subsidiário tem de revestir três
características: ser necessária, adequada e, quando aplicável, ser eventualmente adaptada.

A necessidade de invocação do Direito subsidiário pressupõe em primeiro lugar a existência de uma


questão jurídica carente de solução que não se encontra no DMOS. Essa necessidade não existe, contudo
quando o regime geral ou setorial contempla uma solução para a matéria em causa, nem quando a omissão
de regulação é intencional, correspondendo, portanto, a uma decisão legislativa que não pode ser adulterada
por via da aplicação do regime do processo criminal. Exemplo, no primeiro caso, o regime que contempla os
requisitos da decisão a decisão condenatória em processo de contraordenação que, ao ter uma regulação
própria no art.58º do RGCO, impede a invocação do regime da sentença penal, previsto no art.374º do CPP.
Noutros casos, a omissão de uma certa matéria corresponde uma decisão legislativa e, por isso, não é
necessário e seria mesmo inadequada a invocação do processo criminal, como acontece por exemplo com o
facto de o processo de contraordenação não contemplar as figuras do lesado e do assistente. Num exemplo
mais discutível, pode equacionar-se o problema das nulidades: não raras vezes a prática judiciária enquadra a
preterição de exigências processuais no regime das nulidades previsto em normas gerais e especiais do CPP.
Mas a aplicação deste regime ao processo de contraordenação na sua fase organicamente administrativa é
tudo menos linear: por um lado, as situações previstas são em regra específicas do processo penal, tendo sido
pensadas exclusivamente para tais casos; por outro, vale neste domínio um rigoroso princípio da legalidade
(Art.118º/1 do CPP) que obsta á adulteração das previsões legais na matéria; e, finalmente olvida-se que o

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RGCO é anterior ao CPP e não contempla em caso algum a figura da nulidade enquanto vício dos atos
processuais, mas sim e apenas a violação de lei como fundamento da impugnação judicial do ato em causa.
Se for necessário convocar uma solução do processo criminal ela tem ainda de revelar-se adequada ao
processo de contraordenação, como resulta imediatamente da ressalva inicial do citado art.41º. A falta de
necessidade do recurso ao direito subsidiário induz muitas vezes e por excesso uma inadequação das soluções
do processo criminal, embora a exigência possa ter um valor autónomo. Assim, p.ex, certos regimes do
processo penal relativos ao processo de valoração da prova e de decisão são contrários á natureza e
organização da fase organicamente administrativa do processo de contraordenação, pondo mesmo em causa
a estrutura axiológica do processo. A função que a estrutura acusatória assume no processo penal é
conseguida no processo de contraordenação com a cisão entre a fase administrativa e a fase judicial, em
especial com a garantia de um julgamento, não podendo em caso algum ser exigida para aquela sob
julgamento, não podendo em caso algum ser exigida para quela sob pena de adulteração da mesma.

Finalmente, se for aplicada uma norma por via do direito subsidiário a mesma pode ter de ser adaptada ao
processo de contraordenação, como aconteceu por exemplo no caso da aplicação do art.150º do CPC á
impugnação da decisão condenatória que aplique coima ou sanção acessória, em que a referência ao envio
das peças processuais á secretaria judicial teve de ser substituída pela referência á autoridade administrativa.
A adaptação da solução não é, contudo, um critério autónomo de invocação do Direito Subsidiário, mas
apenas um crivo da sua aplicação se a mesma for legítima. A necessidade e a adequação constituem os
critérios privilegiados de recurso ao sistema penal ou processual penal e a adaptação é uma regra de
conformação das soluções dessa natureza, mas não legitima por si o recurso ás mesmas.

A remissão para o Direito Penal e Processual Penal enquanto regimes subsidiários do Direito de Mera
Ordenação Social (art.32º e 41º do RGCO) tem ainda um outro significado: a inaplicabilidade para o efeito do
Direito Administrativo. Estamos perante direito sancionatório público não penal, que segue um regime próprio
e é completado, nos termos referidos, sempre pelo Direito Penal e Processual Penal, e em caso algum pelo
Direito Administrativo. Por isso as garantias dos visados estão incluídas num domínio para-penal e não no
âmbito das garantias dos administrados, como resulta no plano sistemático da inclusão destas matérias no
art.32º da CRP e não no Título IX relativo á Administração Pública.

Este enquadramento do problema tem uma consequência particularmente significativa, a existência de um


regime próprio do DMOS quanto á imputação das contraordenações e ao respetivo direito de defesa do
arguido antes de ser proferida a decisão final do processo afasta, por desnecessidade e inadequação, a
aplicabilidade do regime de acusação em processo penal, previsto no art.283º do CPP. O conteúdo, o regime
e os efeitos da acusação em processo de contraordenação retiram-se do art.50º do RGCO e não de regulação
legal da acusação do M.P contempla no art.283º do CPP que, constitui a forma normal de introduzir o facto
em juízo num processo penal de estrutura acusatória. Tal não acontece na fase organicamente administrativa
do processo de contraordenação em que o essencial, consiste em confrontar o arguido com a prática de
contrardenação e dar-lhe oportunidade de defesa antes de ser proferida a decisão final do processo. Decisão
final que (art.64º/1 do RGCO) será por seu turno uma decisão-acusação (caso o arguido impugne
judicialmente), para usar uma expressão da doutrina acolhida pela jurisprudência.

3. Estatuto do arguido e direitos da defesa em processo de contraordenação

A contraposição entre a fórmula usada no art.32º/nº1 da CRP quanto ao processo penal e a referência
mais específica do nº10 do mesmo artigo evidencia uma diferenciação qualitativa e quantitativa entre o
processo criminal e o processo contraordenação.
Essa diferenciação pode aliás assumir relevância quer em aspetos substantivos, quer em aspetos
processuais. Por exemplo, Maria Palma e Paulo Otero já defenderam, com argumentos interessantes, que o
princípio da legalidade no DMOS não tem necessariamente de ser entendido com toda a extensão e rigorosas

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implicações que assume na determinação da tipicidade criminal. No plano processual, a diferenciação é ainda
relevante na compreensão do conjunto de direitos que se podem incluir nas respetivas garantias
constitucionais.

O que pode ser concretamente incluído o âmbito dos direitos de audição e de defesa?

 O direito de audição é uma manifestação primária do direito de defesa e consiste em dar ao visado
a oportunidade de ser ouvido antes de ser proferida em dar ao visado a oportunidade de ser ouvido
antes de ser proferida a decisão do caso, o que implica a criação de um momento de oportunidade
processual para o efeito;

 O direito de defesa constitui uma manifestação da dinâmica da eventual atribuição de


responsabilidade e, por isso, pressupõe a imputação de uma contraordenação e a possibilidade de
se pronunciar ou mesmo contrariar apresentando as suas razões ou objeções se o pretender fazer.

Para permitir a realização simultânea do direito de audição poder ter sentido útil, o direito de defesa tem
de poder ser exercido antes da decisão final de aplicação de coima. Deste ponto de vista o direito de audição
é já uma garantia de defesa.

Uma primeira aproximação ao seu conteúdo em processo de contraordenação pode partir do elenco
traçado para o efeito no Assento do STJ nº1/2001 que compreendeu essa garantia a partir de um acervo de
três direitos processuais distintos: i. a possibilidade de o arguido se pronunciar sobre a imputação da
contraordenação que o visa; ii. o direito a ter defensor e iii. o direito a impugnar as decisões da autoridade
administrativa (sejam as decisões interlocutórias, art.55º do RGCO, seja a decisão de aplicação de coima,
art.59º).

A inclusão do direito a defensor no acervo das garantias de defesa (art.53º RGCO) justifica-se, pois, de
apesar de não ser obrigatória a sua constituição na fase organicamente administrativa do processo de
contraordenação, a efetividade e a qualidade da defesa podem exigir um acompanhamento técnico
especializado. O direito a constituir mandatário, a fazer-se acompanhar pelo mesmo e a intervir no processo
através de um defensor será assim, nesta perspetiva, uma dimensão irrenunciável das garantias de defesa do
arguido.
Um acervo mais completo, encontra-se, por exemplo, no estudo de Faria Costa, em Pedro Caeiro e Miguel
Lemos que invocando várias soluções legais referem, o direito a ser informado das ordens e decisões tomadas
pela autoridade administrativa (art.46º/nº1), o direito a ser notificado sobre a admissibilidade, prazo e forma
de impugnação das decisões tomadas (art.46º/nº2), o direito a apresentar prova e a requerer a produção de
prova, o direito a ter defensor (art.53º) e o direito a impugnar judicialmente a decisão de aplicação de coima,
seguido do direito a recorrer da decisão judicial para o tribunal superior (art.59º e 73º RGCO). Paulo
Albuquerque configura o estatuto do arguido a partir de um acervo de nove direitos: processo equitativo,
processo judicial público, decisão do processo em tempo razoável, decisão pelo tribunal legalmente
competente, presunção de inocência, direito a se autodefender ou a ser assistido por advogado, direito de
participar na produção de prova em audiência e direito a intérprete.
Se quisermos sistematizar, a natureza destes diversos direitos podemos afirmar que contemplam o direito
á legalidade do processo, o direito de audição, o direito a conhecer ás decisões que lhe dizem respeito, o
direito a requerer produção de prova, o direito a defensor e o direito de impugnação judicial.

A forma de efetivar estes direitos está prescrita na lei através de soluções ou normas gerais, sob pena de
violação do princípio da legalidade. É que este representa não só uma garantia para a arguido, mas também

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um crivo de atuação para as autoridades aplicadoras do Direito que, deste modo, podem orientar pela lei a
conduta devida conduzindo corretamente o processo. Esta é a forma normal e adequada de garantir, num
Estado de Direito, a previsibilidade das decisões para todos os sujeitos processuais e, deste modo, preservar
o núcleo essencial do princípio da confiança.

Exemplo: o direito á informação é regulado quanto á forma, momento e conteúdo pelos arts 46º,50º e 58º
do RGCO e, de uma forma geral, em tudo o resto, pelo direito de acesso ao processo designadamente nos
termos do disposto no art.90º do CPP. Um direito de acesso necessariamente mais amplo após a imputação
da contraordenação, pois com a acusação quebra-se o segredo interno, mesmo que o processo continue em
segredo externo (art.371º/nº2/a) do CP). Noutro exemplo, é discutível a extensão do direito á produção de
prova pelo arguido na fase organicamente administrativa do procedimento, pois a doutrina e a jurisprudência
reconhecem que a autoridade administrativa não está obrigada a realizar necessariamente todas as diligências
requeridas, podendo tal manifestação do contraditório ser remetida para a fase de impugnação judicial, com
inegáveis vantagens no plano da celeridade e da economia processual. Assim, cabe em última instancia ao
titular do processo decidir a relevância e necessidade da prova a produzir, o que não inutiliza as garantias de
defesa perante a possibilidade de impugnar a decisão final requerendo um julgamento específico para esse
efeito. Em suma, o direito a requerer e produzir e produzir prova na fase administrativa do processo não
corresponde ao direito a requerer uma investigação autónoma e paralela, numa fase que será meramente
preliminar em caso de continuação do processo para a fase judicial.

O processo de contraordenação é, pela sua organização, finalidades, intervenientes e tramitação, uma


modalidade autónoma de procedimento de direito público sancionatório não penal que, para preservar a sua
singularidade legal e autonomia dogmática, não pode ser adulterada: nem pela sujeição acrítica a regimes do
processo penal, nem pela construção de soluções ou regimes estranhos ou contrários ás soluções legais
adotadas.
Ademais a extensão dos direitos do arguido em processo de contraordenação também não constituem
fundamento legítimo para adulteração é muito pormenorizado e completo a este respeito.

4. Conclusões parciais

Em primeiro lugar, a organização do processo de contraordenação numa fase organicamente


administrativa obrigatória seguida de uma fase judicial facultativa permite ao arguido uma capacidade de
intervenção processual antes do julgamento mais intensa e suscetível de influenciar a apreciação jurisdicional
dos factos do que aquilo que acontece nas fases preliminares do processo penal (inquérito e instrução). Isto
porque o arguido em processo de contraordenação tem poderes para conhecer a totalidade do processo, para
contestar a imputação da contraordenação, para requerer a realização de diligencias de prova e para
converter através de impugnação judicial uma decisão final fundamentada, que pôde influenciar com todas
as questões suscitadas numa mera acusação, se os autos forem apresentados pelo Ministério Público ao
Tribunal.

Em segundo lugar, a construção das soluções para os problemas de tramitação suscitados no processo de
contraordenação deve fundar-se na legislação setorial existente (enquanto lei especial) e no Regime Geral
aplicável e, por via de cláusula de aplicabilidade do Direito subsidiário prevista no art.41º do RGCO, esse
quadro legislativo pode ser completado com o regime aplicável ao processo criminal.

Esta conexão está sujeita a três tipos de limites:


• Ás próprias condições de invocação do direito subsidiário que se podem resumir á necessidade,
adequação e adaptabilidade das soluções legais complementares;

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• Essa mesma operação está sujeita a uma ponderação de equilíbrio sistemático interno, isto é, a
necessidade de invocação do direito subsidiário não pode subverter a sequência de atos do próprio
processo de contraordenação, designadamente a diferença entre a imputação anterior á defesa e
decisão final do processo;

• Qualquer construção interpretativa de regimes deve ter em conta um equilíbrio sistemática


externo, pois resulta inequivocamente do confronto entre o art.32º/nº10 da CRP , com o disposto
nos restantes números do mesmo artigo que o legislador pretendeu acolher garantias específicas
para o processo de contraordenação sem que tal implicasse todas as garantias de processo
criminal, o que a acontecer implicaria a criação de um desequilíbrio contrário ao que é pressuposto
e exigido pela axiologia constitucional.

Em terceiro lugar, os direitos do arguido em processo de contraordenações, a lei contempla além do


disposto no art.50º um conjunto articulado de direitos de intervenção processual que incluem o direito a ser
informado das ordens e decisões tomadas pela autoridade administrativa (Art.46º/1 do RGCO), o direito a ser
notificado sobre a admissibilidade, prazo e forma de impugnação das decisões tomadas (art.46º/nº2 do
RGCO), o direito a apresentar e a requerer a produção de prova, o direito a ter defensor (art.53º do RGCO), o
direito a impugnar algumas decisões interlocutórias (art.55º RGCO), o direito de consulta do processo, que
pode ser exercido pessoalmente ou através de defensor (art.90º do RGCO), o direito a impugnar judicialmente
a decisão de aplicação de coima, requerendo para o efeito a submissão do caso a julgamento, com todos os
direitos de participação na audiência legalmente previstos para a fase judicial do processo, e finalmente, o
direito a recorrer da decisão judicial para o tribunal superior (art.59º e 73º do RGCO).

II. O conteúdo da acusação e o exercício do direito de defesa

1. Imputação de factos na fase administrativa do processo de contraordenação

Uma das caraterísticas da fase organicamente administrativa do processo de contraordenação reside no


facto de o seu Regime Geral não contemplar a necessidade de uma acusação formal como único meio de
imputar uma contraordenação ao agente.
A omissão de um regime formal para dedução de acusação constitui uma manifestação de abertura e
adaptabilidade do processo de contraordenação a um universo muito heterogénea de setores, de atividades
e de infrações. E, por isso mesmo, pode acontecer que algumas situações exijam uma peça formal escrita e
outras não, podendo bastar-se com o levantamento de um auto, a informação prestada na audição do visado
ou a comunicação de um relatório inspetivo que identifique as contraordenações praticadas e permita ao
arguido pronunciar-se sobre as mesmas.
Aliás, o legislador português optou por regular expressamente não a imputação da infração em si mesma,
mas antes a audição do arguido sobre tal imputação, no art.50º desse diploma. E com isso permitiu que a
imputação ocorresse de formas diversas desde que não pusesse em causa do direito do visado a pronunciar-
se sobre tal ato. A dedução formal de acusação em processo de contraordenação é, em regra, meramente
facultativa e em caso algum tem de seguir o regime previsto no CPP para o efeito. Trata-se de um caso atrás
em que a omissão do legislativa, a respeitar pelo intérprete e pelo aplicador do Direito, e não uma lacuna.

O mercado de valores mobiliários, foi mantido o sistema aberto de imputação do facto decorrente do
Regime Geral: o Código dos Valores Mobiliários não sentiu a necessidade de contemplar uma acusação formal
como único meio de imputação de contraordenações, embora a mesma seja referida a propósito do processo
sumaríssimo (art.414º/1 do CVM). De qualquer modo, a proposta sancionatória desta forma especial de
processo tem um conteúdo específico que abrange a descrição sumária dos factos imputados, a menção das

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disposições legais violadas e termina com a admoestação ou a indicação da coima concretamente aplicada
(art.414º/nº3 do CVM). Ou seja, trata-se de uma possível decisão final e não de um ato necessariamente
intermédio e precário como acontece com uma acusação.
Noutros casos, o legislador optou por regular autonomamente o conteúdo do ato acusatório, como
aconteceu por exemplo em setores tão diversos quanto a circulação rodoviária, as relações tributárias ou na
atividade bancária (Art.175º do Código da Estrada, art.70º do Regime Geral das Infrações Tributárias ou
art.219º do Regime Geral das Instituições de Crédito).

Nem na versão do Regime Geral de 1982, nem nas alterações posteriores, nem em nenhuma da legislação
setorial referida, a imputação das contraordenações para efeito do direito de audição e defesa exigem a
identificação, especificação ou comunicação dos meios de prova que sustentam tal pretensão de atribuição
de responsabilidade.
O art.50º do RGCO na sua formulação inicial proibia a aplicação de uma coima sem antes se ter assegurado
ao arguido a possibilidade de se pronunciar sobre o caso; e na versão posterior a 1995 passou a referir-se ao
prazo e á possibilidade de o arguido se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imputada e sobre a
sanção ou sanções em que incorre.
O Código da Estrada exige que ao arguido sejam notificados os factos constitutivos da infração, a legislação
infringida e a que sanciona os factos, as sanções aplicáveis, os prazos de defesa, a possibilidade de pagamento
voluntário e as consequências da sua omissão (art.175º/1/a) e e) do CE).
O Regime Geral das Infrações Tributárias exige a notificação do facto ou dos factos apurados no processo
de contraordenação, da punição que incorre, do prazo de defesa (incluindo a possibilidade de junção de
elementos probatórios) e da possibilidade de pagamento antecipado ou voluntário da coima (art.70º/nº1);
em complemento, o art72º do RGIT relativo aos meios de prova determina a sua junção ao processo, mas na
dispõe sobre a sua comunicação direta ao arguido.
Finalmente, o Regime Geral das Instituições de Crédito regula o conteúdo da acusação, assim designada,
dispondo que o conteúdo da acusação, assim designada, dispondo que serão indicados o infrator, os factos
que lhe são imputados e as respetivas circunstancias de tempo e lugar, bem como a lei que os proíbe e pune
(art.219º/2) exigindo a identificação das provas obtidas apenas na decisão final que aplique uma sanção
(art.222º).

Em conclusão, nem a legislação mais antiga nem a mais recente exigem a comunicação ao arguido dos
meios de prova em que se funda a pretensão acusatória da autoridade administrativa no processo de
contraordenação. Tal exigência é apenas parcialmente referida a propósito da fundamentação da decisão final
e nunca da imputação preliminar da contraordenação para efeitos de audição e defesa do arguido.

2. O conteúdo da acusação em processo criminal

A dicotomia que se verifica entre o conteúdo da imputação preliminar para efeitos de exercício do direito
de defesa e o conteúdo da decisão de atribuição de responsabilidade é igualmente acolhida no âmbito do
processo penal.
A imputação indiciária de responsabilidade, caraterística das fases preliminares do processo, encontra-se
regulada na acusação (art.283º/nº3), no requerimento de abertura de instrução (art.287º/nº2) e na
pronúncia (art.308º/2 todos do CPP). Em todos os casos, as referências a meios de prova reportam-se a prova
a produzir em audiência e não á prova já obtida, á sua especificação ou á sua valoração.
Essencial na organização do código para efeitos de acusação é a descrição dos factos, as suas circunstâncias
e o respetivo enquadramento legal. Acusação que, não exige qualquer apreciação da prova, matéria que a
doutrina considera estranha á hipótese acusatória que inclui apenas a identificação do acusado, os factos que
se lhe imputam, os elementos normativos do facto punível e os preceitos penais aplicáveis, incluindo as
eventuais consequências jurídicas especiais.

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A lei processual penal só exige a identificação da prova obtida quando a pretensão acusatória é
acompanhada de uma proposta concreta de sanção que, sendo aceite pelo tribunal e não rejeitada pelo
arguido, corresponderá ao conteúdo de uma decisão definitiva de atribuição de responsabilidade, como
acontece com o requerimento sancionatório do processo sumaríssimo (arts.392º e 394º/1 do CPP). Mas neste
caso estamos perante uma proposta de decisão potencialmente final, que tem de ser fundamentada que,
sendo recusada, se converterá funcionalmente em acusação. Por isso mesmo qualquer comparação com o
processo de contraordenação só se poderá estabelecer coma decisão-acusação proferida no final do processo
pela autoridade administrativa (art.58º do RGCO) e não com a imputação preliminar da contraordenação para
exercício do direito de defesa do visado (art.50º do RGCO).
Um dever de enunciar, especificar e valorar a prova dos factos imputados que podem geral
responsabilidade só está previsto no regime da sentença penal, previsto no art.374º/2 do CPP. Pode afirmar-
se que um dever de enunciar a prova só está previsto no CPP para aquelas decisões que, por serem finais e
produzirem efeitos sobre o arguido, devem ser a esse nível fundamentadas também ao nível da prova. A mera
imputação preliminar feita numa acusação antes e para efeitos do exercício do direito de defesa não o exige,
nem na acusação nem sequer na pronúncia (art.283º e 308º do CPP).
A dicotomia entre as exigências para imputar antes de decidir e as exigências da decisão sobre a
responsabilidade do arguido (equilíbrio sistemático interno) se verifica integralmente no processo penal
português.
Significa isto que em processo penal o Ministério Público ao deduzir acusação tem de identificar a proba a
produzir, a examinar e a valorar em audiência, mas não tem o dever de alicerçar os factos narrados e
imputados ao arguido na prova constante dos autos. Não é sequer necessário em processo penal estabelecer
uma relação de especificação, entre a prova produzida ou a produzir a cada um dos factos que consta da
acusação. O que bem se compreende, pois, o ónus de acusar pertence ao M.P e mais não é do que uma
pretensão sancionatória a comprova ou a infirmar em audiência de julgamento, em função de prova que aí se
realize. Se a prova a produzir for insuficiente ou contrariada isso será favorável ao arguido. Qualquer outro
controlo material sobre a prova indiciária em processo penal violaria o princípio da acusação e seria, por isso,
inadmissível.
Assim, se em processo penal o arguido pretender aceder e avaliar a prova que integra os autos deve exercer
o direito de consulta do processo (art.90º do CPP) e o contraditório respetivo no momento processual que se
lhe afigurar mais adequado. Trata-se de um direito da defesa cujo exercício é sujeito á sua avaliação a que
corresponde, para o titular do processo, apenas o dever de facultar o acesso ao mesmo quando a lei não o
impeça.

Se tivermos em conta, por um lado, o princípio da legalidade em processo de contraordenação (art.43º do


RGCO) e, por outro, o equilíbrio sistemático interno (entre imputar antes de decidir e o dever de fundamentar
a decisão que atribua responsabilidade teremos apontada uma linha de resposta ao problema colocado: a
imputação da contraordenação ao arguido (para efeitos de audição e defesa deste antes da decisão final do
processo) não exige que lhe seja comunicada pela autoridade administrativa qualquer enunciação,
especificação ou valoração da prova constante dos autos. Se tal prova não existir, se for insuficiente ou se for
erroneamente valorada tal ficará evidenciado na fundamentação da decisão final e caberá ao arguido, se assim
o entender, apontar esses aspetos na sua impugnação.
A presente conclusão e ainda reforçada pela necessidade de respeitar um equilíbrio sistemático externo,
isto é, a necessária diferenciação entre as garantias do processo de contraordenação e o acervo de garantias
do processo criminal que, em caso algum, pode ser subvertida e muito menos invertida exigindo-se para a
tramitação do processo de contraordenação requisitos não previstos na lei e nem sequer exigidos para a
acusação criminal.

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3. Conteúdo e alcance da solução consagrado no art.50º do RGCO: a história
legislativa e a concretização doutrinária

A atual redação do art.50º do RGCO visou reforçar os direitos e garantias dos arguidos em processo de
contraordenação, como se declarou expressamente no preambulo do D.L nº244/95 de 14 de Set.
Assim, a autorização legislativa que esteve na base da reforma de 1995 previa que o Governo deveria
clarificar a consagração dos direitos constitucionais de audiência e de defesa do arguido, afirmando-se depois,
no preambulo do citado D.L nº 244/95 de 14 de Set, que com o novo texto legal se procedia a uma explicitação
mais rigorosa dos direitos fundamentais de audiência e defesa do arguido. Portanto de um ponto de vista
histórico, a intervenção do legislador no art.50º do RGCO foi aquela considerada necessária e suficiente para
clarificar e explicitar de forma mais rigorosa as garantias constitucionais de audição e defesa em processo de
contraordenação.
Estando o legislador, através das intervenções citadas, a concretizar as garantias constitucionais de audição
e defesa em processos sancionatórios incorporadas na CRP em 1989 e pretendendo ademais, fazê-lo de forma
clara e rigorosa, é dificilmente aceitável, á luz da história do preceito, que se pretenda agora afirmar a vigência
de algo que nunca foi equacionado, identificação e especificação das provas na acusação, que não tem
correspondência nos enunciados legais e que não foi considerado necessário para a acusação, mas apenas
para a decisão final do processo.
Mais incompreensível ainda é que tal suposta omissão possa fundamentar um juízo de
inconstitucionalidade relativamente a uma norma que nunca contemplou tal possibilidade. Quando, por outro
lado e ao mesmo tempo, o avanço entre nós na extensão das garantias do arguido em processos
sancionatórios não tem sequer paralelo no plano do Direito comparado. Uma tal pretensão é, em suma, por
todas as razões, isenta de fundamento e de rigor hermenêutico quer no plano da história legislativa, quer no
plano da história constitucional.

Se nada na história legislativa do art.50º do RGCO aponta no sentido de alguma vez ter sido equacionada
a necessidade de a autoridade administrativa confrontar o arguido na acusação com a identificação e
especificação da prova contida nos autos relativa á prática de contraordenação, a concretização doutrinária e
jurisprudencial do regime legal confirma plenamente a bondade de tal entendimento.
Na verdade, a totalidade da doutrina e da jurisprudência que se tem pronunciado sobre o assunto
considera, por um lado, que a audição do arguido não obedece a um formalismo específico, podendo ser oral
ou escrita, feita presencialmente ou por qualquer outro meio, revelando-se no entanto insuficiente a mera
tentativa de notificação do visado numa morada incorreta; e, por outro, que o mesmo deve ser confrontado
com os factos, o enquadramento legal e as sanções podendo acrescentar-se ainda, por tal estar
expressamente previsto na lei, o prazo de resposta fixado pela autoridade administrativa para o efeito. Estes
são os elementos essenciais a comunicar formalmente pela autoridade administrativa ao arguido.

O conteúdo do ato de imputação que se deve realizar para garantir o direito de audiência e defesa do
arguido e processo de contraordenação corresponde na doutrina àquele foi claramente enunciado pelo TC,
no Acórdão nº442/2003, de 7 de Out:
“Esse direito de audiência prévia concretizando-se mediante a transmissão ao arguido, pela autoridade
administrativa, dos factos que lhe são imputados e da qualificação jurídica contraordenacional que deles é
extraída, e a abertura da possibilidade de sobre esses dados do arguido emitir uma declaração
processualmente contrária ou simplesmente não coincidente com a versão dos factos apresentados pela
autoridade administrativa, ou diversa quanto á respetiva moldura sancionatória, acompanhada da faculdade
de efetivação da prova correspondente.”

Na formulação mais sintética acolhida recentemente pelo Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da
República: “O regime geral das contraordenações não especifica uma forma através da qual a audição deva

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ser efetuada: o que exige é que ao arguido seja dado conhecimento da factualidade que lhe é imputada e da
respetiva qualificação jurídica.”

O próprio STJ teve ocasião de se pronunciar recentemente sobre o problema, no âmbito de um recurso
em matéria de contencioso eleitoral, tendo inequivocamente concluído o seguinte: “Para o cumprimento do
art.50º do D.L 433/82, de 27-10, exige-se que, antes de qualquer sanção, a autoridade administrativa dê ao
arguido a possibilidade de se pronunciar sobre a contraordenação imputada sobre a sanção ou sanções ou lhe
correspondam, e não sobre os meios de prova, que são instrumentais da futura decisão”.

Concluindo: da acusação devem constar os factos, a lei violada com as sanções aplicáveis e o prazo para
apresentar a defesa. De resto é este no essencial o entendimento que domina igualmente na doutrina alemã
exigindo-se que a autoridade administrativa comunique ao visado a contraordenação que lhe é imputada, ou
seja, como se refere os factos que constituem contraordenação e as normas legais aplicáveis que cominam as
sanções.

O entendimento que vai no sentido de não se exigir que a autoridade administrativa comunique para além
dos factos, do enquadramento legal, das sanções e do prazo de defesa, a prova constante dos autos
relacionando-a com os factos descritos é aquele que se impõe, também, por uma dupla razão de legalidade:
é que nem tal exigência resulta do art.50º, nem decorre do art.32º da CRP.

Os trabalhos de revisão constitucional de 1989 evidenciam, sem qualquer margem para dúvida, que a
hipótese de o direito de audição e defesa do arguido em processo de contraordenação incluir o direito a ser
notificado da prova obtida e da sua relevância para os factos em causa nunca foi sequer equacionada pelos
parlamentares em nenhuma das versões que o preceito teve, nem em nenhum dos debates sobre o tema. E
ainda evitar a adulteração do processo de contraordenação por via de soluções vagas, imprecisas ou que
correspondessem a importações injustificadas de regimes do processo penal.
Tudo ponderado, só se pode concluir que tal exigência não pode ser formulada pelo intérprete pois, entre
outras razões já aduzidas, tal equivaleria á criação do Direito manifestamente contra legem.
Tanto mais que tal construção redundaria na exigência de uma forma específica de atuação para as
autoridades administrativas, que estariam desses modo sujeitas na condução dos processos a uma regra de
conduta sem base legal cuja violação ditaria a invalidade do ato praticado, sendo tal desvalor igualmente
construído sem qualquer fundamento legal expresso. Qualquer norma de conduta processual para o aplicador
do direito, em especial na hipótese de a sua violação ser sancionada com alguma invalidade, tem de ser
expressa- não pode ser construída ad hoc, sem base legal e contra a história legislativa, por tal se revelar uma
criação inadmissível de direito. A liberdade hermenêutica não autoriza tais procedimentos nem legitima tais
soluções.

4. O equilíbrio sistemático interno e externo no processo de contraordenação

Uma última linha de argumentação torna evidente o âmbito material dos elementos que a autoridade
administrativa deve comunicar formalmente ao arguido na imputação preliminar dum ilícito de mera
ordenação social: o confronto entre o conteúdo da contraordenação imputada para o efeito do direito de
defesa (art.50º do RGCO) e o conteúdo da decisão final a proferir pela autoridade administrativa (art.58º do
RGCO).

O equilíbrio sistemático interno garante a coerência e harmonia dos diversos atos que desenvolvem o
processo; o equilíbrio sistemático externo preserva a identidade e autonomia do DMOS, evitando a subversão
do seu regime pela importação das garantias do processo penal ou, o que se revela mais grave, pela criação
de garantias mais intensas para o processo de contraordenação do que aquelas que vigoram no processo
criminal.

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Aplicados estes critérios ao caso em apreço, os mesmos significam, em primeiro lugar , que o RGCO exige
apenas e expressamente para a decisão final do processo (art.58º do RGCO) não pode ser convertido em
exigência da acusação para efeitos da defesa do arguido (art.50º), em segundo lugar, não se pode exigir mais
para a acusação em processo de contraordenação (art.50º) do que aquilo que se exige para a acusação ou
pronúncia em processo criminal (art.283º e 308º do CPP).

Pela invocação do primeiro critério reforça-se a ideia de que o despacho recorrido na interpretação
normativa que fez do art.50º é imune a qualquer censura jurídico-constitucional.

A necessidade de respeitar a diferença entre imputar indiciariamente antes de decidir e decidir de forma
fundamentada depois de ouvir o arguido foi exemplarmente enunciada no caso em apreço pelo T. de pequena
instancia criminal quando afirma que a exigência de participação do arguido no processo não impõe que se
transponha para a dita notificação todos os elementos que devem estar contidos na decisão final. Assim é, na
verdade, entre outras razões porque na decisão final a autoridade administrativa tem de ponderar não apenas
a prova obtida antes da acusação, mas também a prova produzida ou junta aos autos depois da mesma. E
também por isso só na decisão final é que deve haver lugar á especificação do juízo da prova.

O segundo critério, garante a identidade e autonomia do processo de contraordenação, dentro do espírito


da lei e da revisão constitucional de 1989. No caso concreto, não só a acusação em processo de
contraordenação não pode ser mais exigente do que em processo criminal (art.283º do CPP), como o próprio
regime da decisão previsto no art.58º do RGCO tem autonomia em relação ao regime da sentença penal
contemplado no art.374º do CPP, não podendo por isso aquele ser subvertido com uma aplicação deste
preceito contrária ao próprio art.41º do RGCO. Como tem sido reconhecido pela jurisprudência e pela
doutrina em tempos recentes.

5. Conformidade do art.50º do RGCO com as exigências constitucionais

Perante os diversos elementos que se foram resumindo, é de alguma forma possível afirmar a
desconformidade do disposto no art.50º do RGCO/nº10 e art.267º/nº5 da CRP?
O regime do art.50º do RGCO, tal como está previsto na lei e como foi interpretado pelo TPIC na decisão
que motivou o recurso ao TC, é perfeitamente conforme ás normas e princípios constitucionais que
contemplam as garantias do arguido em processo de contraordenação.
O problema começou a ser formulado perante duas normas constitucionais distintas, o art.32º/10 e o
art.267º/5 da CRP. O primeiro garante os direitos de audição e de defesa em processo de contraordenação
ou noutros processos sancionatórios de Direito Público; e o segundo contempla a existência de legislação
especial sobre o processamento da atividade administrativa, que garanta a racionalização dos meios usados e
a participação dos cidadãos nas decisões e deliberações que lhe digam respeito.
No caso em apreço, o art.267º/5 da CRP não é aplicável, por desnecessidade e, em particular, por
inadequação jurídica.
Trata-se de um preceito inaplicável por desnecessidade porque o regime de participação do cidadão nos
processos administrativos que lhes digam respeito é materialmente consumido pelas garantias de audição e
defesa em processo de contraordenação, que o esgotam plenamente em termos de conteúdo processual útil.
A inadequação jurídica decorre, por seu turno, do facto de o art.32º/10 da CRP contemplar garantias
especiais para o arguido em processo de contraordenação que, numa relação lógica entre as normas
constitucionais, sempre afastaria um preceito mais geral (art.267º). Mas a inadequação é ainda jurídico-
material, pois a inserção sistemática do art.32º/nº10 nas garantias do arguido foi realizada com
intencionalidade sistemática, isto é, como forma de sublinhar que estamos perante garantias em processo de
direito público sancionatório e não perante um problema da relação jurídico-administrativa. O que se confirma
pelo regime do direito subsidiário, que é sempre o do Direito Penal e Processual Penal (art.32º e 41º do RGCO)

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e não o Direito Administrativo. O que é ainda corrente com o facto de a relação intra-processual não se
estabelecer neste caso entre um cidadão e a Administração, mas sim entre um cidadão que é arguido num
processo contraordenacional e uma pretensão sancionatória assumida por uma autoridade administrativa,
sujeita depois a eventual controlo jurisdicional.
A coerência do sistema jurídico exige que neste domínio se evite o cruzamento de garantias de natureza
diversa que seriam fonte de incerteza jurídica e ineficiência processual. A doutrina e a jurisprudência
portuguesa têm reconhecido isto mesmo, como atrás se documentou. De qualquer modo, a análise do
problema á luz do art.32º/nº10 da CRP, consome o sentido material e processualmente útil da garantia
contemplada no art.267º/5 do mesmo diploma, pelo que o problema perde alguma relevância prática.

Assim o art.50º do RGCO é completamente conforme ao disposto no art.32º/10, por três ordens de razão:
a) Pelo conteúdo histórico-legal das garantias de defesa em processo de contraordenação;
O juízo de inconstitucionalidade implica a comprovação da contrariedade de uma norma em relação a
normas ou princípios constitucionais (art.277º/1 da CRP). Assim para o art.50º do RGCO ser contrário ao
disposto no art.32º/10, seria necessário considerar que o direito de audição e de defesa do arguido incluiria
de forma implícita o direito a conhecer a prova do processo através de um dever autónomo da administração
de identificar e especificar a prova dos factos na acusação. Ou seja, seria necessário realizar uma operação
interpretativa que permitisse incluir tal garantia para o arguido e o correlativo dever para a autoridade
administrativa na esfera de tutela jurídico-constitucional contemplada no preceito citado.
Acontece que tal suposição não é de todo aceitável, pois a letra na norma em causa, a história da inclusão
dessa garantia no art.32º, os limites e os cuidados que a revisão constitucional de 1989 teve na adoção de tal
solução e, por fim, a forma como o legislador a concretizou depois na redação do art.50º do RGCO
demonstram que nunca tal hipótese esteve associada á consagração do direito de defesa do arguido; e muito
menos enquanto dever ou regra de conduta para a autoridade administrativa titular do processo, sob
cominação da invalidade do mesmo. Nem sequer taos exigências encontram apoio na configuração do direito
de defesa perante uma acusação em processo criminal, na economia do citado art.32º da CRP. Em suma, uma
hipótese normativa que é estranha ao círculo histórico, semântico e teleológico de uma norma constitucional
não pode fundar um juízo de valor negativo sobre a suposta desconformidade de uma norma
infraconstitucional.
Este entendimento condiciona qualquer juízo de valor sobre o regime do art.50º do RGCO á luz do disposto
no art.32º/10 da CRP, pois aquele preceito não pode ser contrário a um conteúdo que nunca esteve nem está
incluído na esfera de proteção jurídica da norma constitucional que serve de referência ao juízo de eventual
inconstitucionalidade.

b) Pela configuração constitucional dessas garantias, que se reporta ao processo e não apenas a
atos específicos;
A constituição exige que os processos de contraordenação garantam o direito de audição e defesa do
arguido. Os direitos de defesa do arguido são vários, todos com base legal expressa como se demonstrou, e
os direitos decorrentes do art.50º são uma parte deles. Quando o art.32º/10 da CRP, consagra as garantias
de defesa as mesmas não têm de resultar todas do art.50º do RGCO e não têm todas de estar associadas aos
mesmos atos processuais: podem decorrer de vários regimes citados, incluindo o direito de acesso ao processo
e das iniciativas da própria defesa. Só assim se consegue respeitar as formulações legais e atingir um equilíbrio
entre os vários interesses em jogo.
Ora, o arguido terá sempre acesso aos elementos de prova relevantes através do regime da decisão final
do processo, contido no art.58º do RGCO. Assim, mesmo que se entenda que o arguidp tem direito á
especificação da prova em processo de contraordenação tal não teria de resultar necessariamente do regime
do art.50º, podendo perfeitamente decorrer do regime de acesso ao processo e do dever de fundamentar a

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decisão final. E, nesse exato sentido, o processo de contraordenação garante plenamente o acesso do arguido
á prova que consta dos autos. Pretender incluir exigências não escritas e á margem da lei no regime do art.50º
subverter a regulação legal do processo de contraordenação, o regime da condução do processo, o equilíbrio
sistemático interno entre acusar antes de decidir e decidir depois de ouvir o arguido e significa ainda adulterar
a própria configuração da garantia constitucional acolhida no art.32º/10 da CRP.
Em suma, na configuração da garantia constitucional é o processo de contraordenação que tem de garantir
o direito de audição e de defesa e não um certo ato específico do processo que o deve fazer integralmente.
Elo que, também deste ponto de vista, a solução normativa concretamente aplicada pelo TPCI na decisão em
causa é isenta de qualquer censura jurídico-constitucional, não só porque a norma foi aplicada de uma forma
que não contradiz a garantia do art.32º/10 da CRP, como, noutra perspetiva, assumiu uma interpretação
perfeitamente conforme ás exigências constitucionalmente expressas no art.32º/10 para os processos de
contraordenação.

c) Pela inadmissibilidade e desnecessidade de associar o acesso á prova dos autos a um dever


específico da autoridade administrativa com a cominação de uma invalidade sem base legal.
O processo de contraordenação garante o acesso á prova existente nos autos: antes da dedução de
acusação através de requerimento apresentado pelo arguido e a decidir pelo titular do processo; e um acesso
pleno depois da dedução de acusação, já que a partir daí cessa necessariamente o segredo de justiça interno
que vigore. Assim, mesmo que se entenda que o direito de defesa implica o direito de acesso á prova contida
nos autos, o direito de acesso ao processo pelo arguido e pelo seu mandatário e o dever de identificar a prova
na decisão final decisão essa que o arguido pode aceitar ou impugnar, convertendo neste caso a decisão em
mera acusação anterior ao julgamento requerido garantem plenamente tal objetivo da defesa em processo
de contraordenação.
A conclusão portanto é linear: o art.50º do RGCO, tal como foi aplicado pelo TPIC na decisão que motivou
o recurso de constitucionalidade, não põe em causa a nenhum título a garantia constitucional de audição e
defesa do arguido em processo de contraordenação e o atual regime do processo de contraordenação e o
atual regime do processo de contraordenação assegura de forma plena e eficaz a realização de tais valores
constitucionais.

Conclusões finais

1. O Direito de Mera Ordenação Social é direito sancionatório público não penal que cumpre funções
estaduais relevantes quanto á boa organização, funcionamento e disciplina de vários setores
socioeconómicos.
2. O regime jurídico aplicável á tramitação dos processos consiste numa articulação entre a legislação setorial
e o RGCO, completada a título subsidiário pelo Direito Penal e Processual Penal, mas não do Direito
Administrativo.
3. O DMOS tem autonomia substantiva, sancionatória e processual, acolhida na lei, construída na doutrina e
reconhecida na Constituição, pela diferenciação quantitativa e qualitativa daquele ramo de direito
relativamente ao Direito Penal e Processual Penal.
4. O processo de contraordenação contempla duas grandes fases, uma primeira organicamente
administrativa, que é em regra obrigatória, e uma segunda fase judicial, que é facultativa.
5. Na fase organicamente administrativa do processo de contraordenação identifica-se um eventual ilícito
de mera ordenação social, imputa-se o mesmo ao vidado na sequência disso, recebe-se a sua defesa e, se
for o caso, realizam-se diligencias adicionais de prova. Só após isto pode ser proferida uma decisão final
que, genericamente, pode ser uma decisão de arquivamento ou de aplicação de coima (e eventual sanção
acessória).

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6. O arguido pode aceitar a decisão, nada fazendo, ou pode impugná-la requerendo a realização de um
julgamento por um Tribunal judicial. O ato de impugnação da decisão implica o envio dos autos ao M.P
que os deverá apresentar a juízo, valendo tal ato como acusação. O conteúdo factual, o enquadramento
jurídico e a prova relevante serão os constantes dos autos que vêm da fase organicamente administrativa
do processo e o que for eventualmente produzido em audiência, no âmbito do objeto do processo, se não
houver lugar a decisão por despacho.
7. A lei portuguesa contempla vários direitos do arguido logo na fase organicamente administrativa do
processo. Para além do disposto no art.50º do RGCO, prevê-se um conjunto articulado de direitos de
intervenção processual que incluem o direito a ser informado das ordens e decisões tomadas pela
autoridade administrativa (art.46º/1 do RGCO), o direito a ser notificado sobre a admissibilidade, prazo e
forma de impugnação das decisões tomadas (art.46º/2), o direito a apresentar e a requerer a produção
de prova , o direito a ter defensor (art.53º), o direito a impugnar algumas decisões interlocutórias
(art.55º), o direito de consulta do processo, que pode ser exercido pessoalmente ou através do defensor
(art.90º), o direito a impugnar judicialmente a decisão de aplicação de coima, requerendo para o efeito a
submissão do caso a julgamento, com todos os direitos de participação na audiência legalmente previstos
para a fase judicial do processo, e, finalmente o direito a recorrer da decisão judicial para o tribunal
superior (art.59º e 73º do RGCO).
8. A regulamentação legal do processo de contraordenação em Portugal garante aos arguidos um extenso
leque de direitos de defesa e de efetiva participação no processo.
9. Todos estes direitos têm configuração legal, de forma a garantir a ordenada tramitação dos autos e a
previsibilidade dos atos processuais.
10. De acordo com a lei vigente, a doutrina dominante e a jurisprudência do STJ e do TC, antes de ser aplicada
qualquer coima ao arguido a autoridade administrativa tem de o informar sobre a contraordenação que
lhe é imputada, o que contempla a descrição dos factos, a lei aplicável e o prazo que tem para apresentar
a sua defesa, ao abrigo do art.50º do RGCO.
11. No âmbito desta audição preliminar á decisão final do processo, realizada nos termos e para os efeitos do
art.50º do RGCO, a autoridade administrativa que conduz o processo não tem de forma alguma o dever
de identificar e especificar a prova dos factos constante dos autos, comunicando-a formalmente ao
arguido.
12. Por maioria de razão, não pode ser associado qualquer desvalor a tal ato processual pela omissão de alo
que a lei não exige, a doutrina e a jurisprudência não reconhecem e a CRP não impõe.
13. A inexistência do dever de identificar e especificar a prova na acusação para efeito da audição e defesa do
arguido, ao abrigo do art.50º, tem apoio em considerações relevantes de legalidade processual, em
argumentos sistemáticos, na arquitetura jurídico-constitucional do processo de contraordenação e na
história do art.50º e do art.32º/10º da CRP.
14. O processo de contraordenação é conduzido de acordo com princípio de legalidade processual (art.43º)
que significa um dever de promoção do processo cujos atos e fases processuais se enquadram na lei
vigente. A legalidade processual visa proteger o arguido, orientar o titular do processo na sua condução e
garantir a previsibilidade da tramitação para todos os intervenientes no mesmo.
15. Não podem por isso ser criadas regras de conduta para os intervenientes no processo que não decorram
da lei (legalidade dos atos processuais) e não pode a omissão de tais condutas não previstas na lei dar
origem a quaisquer invalidades processuais (tipicidade das invalidades dos atos processuais).
16. O entendimento oposto seria fonte de grave incerteza jurídica e corresponderia á inadmissível criação de
direito contra legem.
17. A necessária articulação entre os diversos atos do processo de contraordenação, e entre este e o regime
do processo criminal permite formular uma dupla regra hermenêutica: as soluções extraídas da lei por
equilíbrio sistemático interno e o equilíbrio sistemático externo do processo de contraordenação.
18. Pelo primeiro garante-se a coerência e harmonia dos diversos atos que desenvolvem o processo; através
do segundo preserva-se a identidade e autonomia do DMOS, evitando a subversão do seu regime pela
importação das garantias do processo penal ou, o que se revela mais grave, pela criação de garantias mais
intensas para o processo de contraordenação do que aquelas que vigoram no processo criminal.

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19. Aplicados estes critérios ao caso que constitui objeto do presente estudo, os mesmo significam o seguinte:
20. Em primeiro lugar, aquilo que o RGCO exige apenas e expressamente para a decisão final do processo
(art.58º do RGCO)- a identificação da prova- não pode ser convertido em exigência da acusação para
efeitos da defesa do arguido (art.50).
21. Em segundo lugar, não se pode exigir mais para a acusação em processo de contraordenação (art.50º) do
que aquilo que se exige para a acusação em processo criminal (Art.283º e 308º do CPP).
22. Pela aplicação do primeiro critério, equilíbrio sistemático interno, reforça-se a ideia de que o despacho do
TPCI referido no início, na interpretação normativa que fez do art.50º é imune a qualquer censura jurídico-
constitucional.
23. O segundo critério, equilíbrio sistemático externo, garante a identidade e autonomia do processo de
contraordenação, dentro do espírito da lei e da revisão constitucional de 1989.
24. A lei não exige na acusação criminal (art.283º do CPP) nem na pronúncia (art.308º do CPP) a identificação
e especificação autónoma da prova que fundamenta os factos imputados, mas sim e apenas a prova a
produzir, examinar e valorar em audiência de julgamento.
25. Tais elementos de prova só são exigíveis, no fundo, quando se trata de uma forma geral de fundamentar
uma decisão que pode ser definitiva e que, por isso, não se coloca no plano meramente indiciário.
26. Significa isto que não só a acusação em processo de contraordenação não pode ser mais exigente do que
em processo criminal, como o próprio regime da decisão previsto no art.58º tem autonomia em relação
ao regime da sentença penal contemplado no art.374º do CPP, não podendo por isso ser subvertido com
uma aplicação deste preceito contrária ao próprio art.41º do RGCO.
27. A história constitucional do art.32º/10 da CRP e a evolução legislativa do art.50º confirmam e legitimam
os resultados obtidos por via da aplicação das regras hermenêuticas enunciadas.
28. A inclusão do nº8 (atual nº10) na revisão constitucional de 1989 doi rodeada dos maiores cuidados, sendo
o preceito sucessivamente reformulado para evitar ambiguidades perigosas e fórmulas vagas que seriam
prejudiciais para o sistema como um todo. E, em particular, pretendeu-se sublinhar que o processo de
contraordenação, tendo de respeitar garantias básicas de audiência e de defesa do arguido, não poderia
integrar todas as garantias do processo criminal.
29. Esses cuidados subsistiram na intervenção do legislador ordinário que ao reformular em 1995 o art.50º o
fez assumidamente, de forma clara e rigorosa.
30. Nem a comissão de revisão constitucional de 1989, nem na intervenção subsequente do legislador foi
alguma vez referido ou esteve alguma vez em causa exigir que a autoridade administrativa identificasse e
especificasse a prova dos factos na acusação para efeito de garantia de defesa do arguido.
31. A criação de um dever de autoridade administrativa identificar e especificar a prova dos factos na peça
acusatória não tem qualquer apoio no art.32º/10 da CRP, sendo mesmo contrariada pela letra, pela
história e pela teleologia da norma constitucional.
32. Uma exigência dessa natureza também não é formulada pela doutrina e pela jurisprudência português,
nem pela doutrina alemã que se pronuncia sobre a matéria.
33. Nesta matéria existe um amplo consenso no sentido de o arguido ter de ser confrontado com os factos, o
enquadramento jurídico, incluindo eventuais sanções) e o prazo de defesa.
34. A legislação setorial posterior á reforma de 1955, designadamente o Código da Estrada, o RGIT, Regime
Geral das instituições de Crédito, regularam de forma específica o conteúdo da acusação em processo de
contraordenação e em caso algum o legislador exigiu a identificação e especificação da prova que
fundamenta a imputação da contraordenação ao arguido.
35. Em alguns casos, a lei exige apenas a indicação adicional da possibilidade de pagamento voluntário da
coima mínima, quando o setor em causa e a legislação vigente o admite.
36. Esta compreensão das coisas não põe em causa os direitos de defesa do arguido, pois este tem sempre
direito de acesso ao processo de forma plena após dedução de acusação, mesmo que continue a vigorar
o segredo de justiça externo, e terá ainda acesso á identificação da prova que conste da fundamentação
da decisão final, que pode converter em mera acusação através da impugnação judicial.
37. Aliás, como a impugnação judicial da decisão final do processo de contraordenação tem a potencialidade
de converter normativamente para alguns efeitos aquela decisão numa acusação (art.62º/1) isso significa

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que, ponderados todos os direitos processuais do arguido, este tem em processo de contraordenação uma
maior capacidade de influenciar as decisões administrativas, anteriores ao julgamento do que aquilo que
acontece no próprio processo criminal.
38. Em suma, por todas estas razões, isoladamente e em conjunto, não se pode exigir que a autoridade
administrativa ao imputar os factos ao arguido no processo de contraordenação, para garantir o seu
direito de audição e defesa, art.50º, deva identificar e especificar a prova dos factos.
39. E muito menos se pode considerar tal omissão como normativamente contrária a um conteúdo que nunca
esteve contido no art.32º/10 da CRP.
40. A autoridade administrativa apenas tem, para aquele efeito, de identificar os factos, fazer o
enquadramento jurídico, incluindo a enunciação de eventuais sanções e informar o arguido do prazo que
tem para apresentar a sua defesa. Mais do que isto a lei só exige, no art.58º, para a decisão final do
processo pela autoridade administrativa.

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