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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação

40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba - PR – 04 a 09/09/2017

HATSUNE MIKU:
Um estudo sobre a cultura otaku e o ídolo virtual japonês 1

Beatriz Yumi AOKI2


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP (PUC-SP)

Resumo

Este trabalho tem como objetivo analisar a construção da ídolo virtual Hatsune Miku e,
no contexto japonês, investigar a indistinção entre as vidas online e off-line como marca
dos otaku, fãs japoneses intensamente ligados à cultura pop e à tecnologia, e que têm
como principais objetos de interesse os videogames, os computadores, os desenhos
animados e as histórias em quadrinhos. Nesse sentido, a fundamentação teórica se baseia
na bibliografia referente às noções de real e virtual a partir de Quéau (1995) e à cultura
otaku, conforme as definições de autores como Barral (2000) e Azuma (2009).

Palavras-chave: pop japonês; ídolo virtual; fãs; cultura otaku

1. INTRODUÇÃO
No cenário atual, permeado por dispositivos tecnológicos e pelas comunidades em
rede, surge a figura de Hatsune Miku, a celebridade-personagem que, além de realizar
shows holográficos por todo o Japão, países da Ásia e da América do Norte, se faz
presente na TV, em revistas, em diversas campanhas publicitárias e, em especial, na
internet, onde conta, atualmente, com mais de dois milhões e meio de fãs em sua página
oficial do Facebook3.

1Trabalho apresentado no GP Comunicação, Música e Entretenimento do XVII Encontro dos Grupos de Pesquisa em
Comunicação, evento componente do 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2Mestranda do Curso de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, graduada em Publicidade e Propaganda pela ESPM-
SP, email: beatrizyaoki@gmail.com.

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FACEBOOK. Disponível em < https://facebook.com/HatsuneMikuOfficialPage>. Acesso em dez. 2016.

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Figura 1: A ídolo virtual Hatsune Miku

Fonte: Site oficial Crypton Future Media4

O que a distancia dos demais artistas é o fato de que, apesar de ser produzida por
uma empresa – e, consequentemente, por pessoas –, de sua voz ter procedência humana,
e de contar com a participação dos fãs em sua constituição; Miku não é uma pessoa, e,
sim, uma personagem, um holograma. Ela sequer refere-se a um ser humano. Isso porque,
enquanto nos hologramas das celebridades, como os já realizados com cantores como
Michael Jackson5 ou Elvis Presley6, costuma-se ver uma imagem como pessoa (e
também, uma pessoa como imagem), no caso de Hatsune Miku, trata-se de uma imagem
de animação, dissociada do caráter humano.
Tendo em vista essas considerações, no presente artigo, partimos das concepções
de Quéau (1995) sobre a realidade, os mundos e as imagens virtuais, e levantamos uma
reflexão sobre as práticas dos fãs japoneses, os otaku, e a constituição da ídolo virtual
Hatsune Miku, partindo da hipótese de que a imposição do que é, ou não, real é extrínseca
ao contexto nipônico, uma vez que a ficção é, em diversas circunstâncias, considerada
real, mesmo no âmbito da vida cotidiana.

2. A RELAÇÃO COM O VIRTUAL

4
CRYPTON FUTURE MEDIA. Disponível em < http://www.crypton.co.jp/miku_eng>. Acesso em dez.
2016.
5
BILLBOARD. Disponível em < http://www.billboard.com/articles/events/bbma-2014/6092040/michael-
jackson-hologram-billboard-music-awards>. Acesso em dez. 2016.
6
YOUTUBE. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=c7OFl3TJSUk>. Acesso em dez.
2016.

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Para Quéau (1995), as fronteiras entre o real e a ficção se fazem cada vez mais
impalpáveis, e os meios para distinguir os diversos níveis de verdade e das representações
para avaliar sua credibilidade são progressivamente mais difíceis de dominar, à medida
que as técnicas de digitalização e virtualização colocam num mesmo plano toda a
informação, seja qual seu grau de abstração. Dessa forma, as técnicas da simulação
permitem misturar mais estritamente o real e o virtual, e implantam questionamentos
sobre a capacidade de apreensão da realidade.
Os mundos virtuais representam, de acordo com o autor, uma revolução
copernicana. Se antes girávamos ao redor das imagens, hoje, é possível girarmos dentro
delas. Em movimento crescente, penetramos e nos mesclamos às imagens, que passam a
configurar mundos e mudar nossas concepções sobre o que era entendido como realidade
(QUÉAU, 1995).
A realidade é considerada, nesse sentido, algo inefável, que nos resiste e
independe de nós. O virtual, por outro lado, seria o que não nos resiste, e que, fluido, se
molda de acordo com nossa vontade. Diferente da realidade objetiva, os espaços virtuais
permitiriam, assim, a coexistência de múltiplas realidades concorrentes e contraditórias,
se caracterizando como zonas onde as leis da física, por exemplo, deixam de ter curso
legal (QUÉAU, 1995).
De acordo com Quéau (1995), a rede é de natureza explosiva e refratária a
qualquer forma de controle centralizado. Torna-se cada vez mais difícil estabelecer uma
distinção, tanto filosófica quanto prática, entre o mundo e a representação que fazemos
dele. A partir do virtual, seria possível formar uma sociedade simulada, quase tão
complexa quanto as sociedades reais.
Apesar dos mundos virtuais, de certa forma, incentivarem a sensação de
impunidade devido ao anonimato, entende-se que os atores virtuais, por meio de seus
avatares, não são somente entidades simbólicas, mas representam verdadeiros seres
humanos. Em uma rede, podem se estabelecer verdadeiras relações no plano afetivo. O
desenvolvimento das comunidades virtuais pode ultrapassar as barreiras entre as
categorias psicológicas habituais e os tipos de relação que temos com o outro (QUÉAU,
1995).
Para Quéau (1995), ainda, a fascinação pelos mundos virtuais provém não só da
possibilidade de criar novos mundos, mas de, de fato, poder viver nesses mundos. Nas
palavras do autor:

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A fascinação dos mundos virtuais e das imagens sintéticas afeta


sobretudo as jovens gerações. Essa fascinação não é só proveniente do
feito de que um pode criar pequenos mundos, mas também do feito de
que, em certo sentido, se pode viver realmente nesses mundos. Cada
vez mais, poderíamos chegar a desejar contentar-nos com esses
simulacros de realidade, por pouco que o mundo real pareça demasiado
hostil, inóspito, ou por pouco que suas vias de acesso pareçam fora de
nosso alcance. O virtual poderia converter-se, então, em um novo ópio
do povo (QUÉAU, 1995, p. 42)

Esse encantamento pelo virtual, muito presente na contemporaneidade,


caracteriza os otaku que, como definimos no tópico a seguir, são os fãs de tecnologia e
cultura pop japonesa. Barral (2000) considera os otaku uma primeira geração do que ele
denomina como Homo virtuens, um homem virtual e fascinado “pela imagem de si
próprio que lhe é enviada pela tela de sua televisão ou de seu computador” (p. 21), e que
“não tem mais o que fazer com esse real quase sempre angustiante e sempre redundante”
(idem). Ainda de acordo com o autor, verifica-se uma repulsa à ideia de sofrimento. No
âmbito de suas relações sociais, o otaku se recusa a arriscar um relacionamento com o
outro, sentindo-se mais confortável no universo virtual por ele mesmo criado.
Para Azuma (2009), uma característica considerada essencial à cultura otaku seria
a “importância da ficção como modo de ação” (p.26), determinando não somente seus
hobbies e gostos, como também a maneira como se relacionam com as pessoas. Para os
otaku, “o ficcional é levado bem mais a sério do que a realidade social” (p.27). Isso, no
entanto, não significa que eles não saibam distinguir ficção e realidade, mas, sim, que há
uma preferência pela primeira, com a qual se identificam e consideram mais efetiva para
suas relações sociais, facilitando a comunicação com os amigos, por exemplo. Entende-
se, dessa forma, que os otaku se mantêm em suas comunidades não por se negarem à
sociabilidade, mas pela necessidade de criarem valores e padrões alternativos aos da
sociedade atual, com os quais não concordam e consideram disfuncionais.

3. O HOMO VIRTUENS

Otaku (お宅) é um termo da língua japonesa que, em sentido literal, significa sua

casa, utilizado, geralmente, em linguagem de tratamento, quando se tem o objetivo de

demonstrar respeito ou distanciamento. A leitura do ideograma 宅 designa casa,

habitação. O primeiro caractere (お) indica uma forma de tratamento formal.

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Essa expressão foi adotada para designar os adeptos de uma subcultura7


emergente nos anos 1970 (AZUMA, 2009), justamente por abranger em seu significado
suas duas principais características: (a) o desejo pelo distanciamento de outras pessoas; e
(b) a busca por enclausuramento em seus espaços próprios (suas casas, quartos, espaços),
“preferindo à companhia dos humanos, que não fazem esforço algum para compreendê-
los, o grupo mais confiável dos personagens de histórias em quadrinhos, de desenhos
animados ou das inacessíveis vedetes da telinha” (BARRAL, 2000, p. 22).
Entende-se que a cultura otaku, apesar de muito associada a uma cultura jovem,
compreende como principais adeptos a geração de japoneses nascida no final dos anos
1950 e começo dos anos 1960 – ou seja, não mais jovens ou adolescentes em época de
faculdade ou recém-formados, mas adultos em posições de responsabilidade. Nesse
sentido, trata-se de uma subcultura já enraizada na sociedade japonesa (AZUMA, 2009).
A cultura jovem que surgiu no país desde a década de 1960 foi identificada como
disseminadora do individualismo, interpretado como forma de imaturidade e
infantilidade, e corrompido e originado da ausência de uma figura política paterna sólida
na democracia pós-guerra, ao mesmo tempo em que era excessivamente mimada pelos
pais (DOI, 1971 apud KINSELLA, 1998).
Nesse cenário, destaca-se também a expansão dos mangás [as histórias em
quadrinhos japonesas] de produto voltado ao público infantil a principal meio de massa,
justamente devido ao interesse de estudantes universitários em ler os quadrinhos ao invés
dos livros clássicos, como forma de demonstrar a “aversão ao sistema universitário, aos
adultos e ao sistema como um todo” (KINSELLA, 1998, p. 292). Ainda de acordo com a
autora, “desde esse período, as características de introspecção, imaturidade, escapismo, e
resistência a entrar na sociedade japonesa têm sido muito equiparados à juventude, à
cultura jovem e ao mangá” (idem).
Já em 1985, surge a partir da mídia um novo termo utilizado para descrever essa
mesma juventude sem as preocupações e dificuldades enfrentadas logo após a guerra. Os
jovens, então, passam a ser chamados de shinjirui, “um termo que implicava que o
comportamento das pessoas jovens era tão diferente das gerações anteriores que eles
poderiam até ser descritos como uma ‘nova raça’ humana” (KINSELLA, 1998, p. 292),
caracterizados pelos interesses cada vez mais particulares e restritos, e não só resistentes

7
No Japão, a palavra subcultura adquire mais o sentido de um segmento pequeno do mercado ou
determinada cultura de fãs, diferente do entendimento dos estudos culturais anglo-americanos, que leva o
significado de uma cultura de oposição (STEINBERG, 2010)

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à entrada na sociedade como adultos, mas também alheios a qualquer questão que não
dissesse respeito a seus hobbies.
O otaku surge, então, como uma nova versão do conceito envelhecido e
generalizado de juventude. Para Kinsella (1998) “os otaku representam os novos
japoneses, que não tinham quaisquer vestígios remanescentes de consciência social e
eram, ao invés disso, preocupados com seus passatempos pessoais” (p. 314).
A partir dos anos 1990, a percepção da figura do otaku e de seus produtos
culturais, como animês, vídeos e jogos de computador japoneses começam a obter
reconhecimento internacional, bem como a força desses campos de consumo e cultura. A
nacionalidade japonesa passa a ser afirmada e reconhecida como atrativo nas animações
e jogos, que ganham cada vez mais popularidade.
Desde o lançamento do filme de animação Akira, em 1988, e, posteriormente, de
Ghost in the Shell, em 1995, a qualidade das produções começa a ter reconhecimento
mundial (IWABUCHI, 2002). A indústria de jogos para computador também se
encontrava dominada por três empresas japonesas: Nintendo, Sega e Sony, com jogos
como Super Mario Brothers, Sonic e Pokémon. Em junho do ano 2000, o jogo de
Pokémon alcançou a marca de 65 milhões de cópias vendidas, sendo 22 milhões fora do
Japão, com seu desenho animado sendo transmitido a 51 países (HATAKEYAMA;
KUBO, 2000 apud IWABUCHI, 2002).
Dessa forma, nos anos 2000, com o crescimento da popularidade da cultura pop
japonesa, o próprio impacto da cultura otaku ultrapassa as fronteiras do país e passa a ter
um alcance global: os otaku começam a ser reconhecidos tanto como ultraconsumidores,
quanto como força criativa na indústria de conteúdo, sendo incorporados à marca cool
Japan8. Em 2005, o instituto de pesquisa Nomura (Nomura Research Institute) estimou
que 1.72 milhões de otaku gastavam, por ano, aproximadamente 411 bilhões de ienes
(cerca de 3,5 bilhões de dólares) com seus hobbies9, sendo considerados, dessa forma,
“consumidores entusiastas” (GALBRAITH, 2010, p. 218).

8
O Ministério da Economia, Comércio e Indústria Japonesa instituiu o Gabinete de Promoção das
Indústrias Criativas, nomeada oficialmente de Cool Japan, relacionado ao termo cool cunhado por
McGray (2002) que fazia referência à ascensão da cultura japonesa, “tanto no que se refere às suas formas
de expressões contemporâneas – moda, música pop (j-pop), animes, games – exportadas para o mundo
inteiro, quanto de sua faceta mais tradicional, representada pelos quimonos, pelo sumô e culinária, entre
outras expressões culturais mais antigas” (ALBUQUERQUE; CORTEZ, 2015, p. 258)
9
NOMURA RESEARCH INSTITUTE. Disponível em
<https://www.nri.com/global/news/2005/051006.html>. Acesso em dez. 2016.

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Em linhas gerais, o termo otaku “se refere àqueles que se envolvem nas formas de
subculturas fortemente ligadas a animês10, videogames, computadores, ficção científica,
filmes de efeitos especiais, bonecos de animês, e por aí em diante” (AZUMA, 2009, p.
3). Tendo sua figura fortemente ligada à fascinação pela cultura de massa (IVY, 2010),
entende-se que o estereótipo do otaku se relaciona a:
uma intensa intimidade com os objetos de fãs massivamente mediados;
um julgamento altamente desenvolvido sobre minúcias de animação;
um modo solitário de ser, ainda que acompanhado por absorções na
sociabilidade virtual (com formas de convocação e movimento que
evidenciam novos modos de comunicação) (p. 4)

De acordo com Azuma (2009), entendemos o otaku como consideravelmente


sociável em seu próprio modo de interação – ou seja, “engajado em diversos modos de
comunicação, como chats online e fóruns, bem como em convenções e ‘encontros off-
line’ na vida real” (p. 92). Entretanto, essa sociabilidade se sustenta não por necessidade,
mas pelo interesse em determinados tipos de informação – “sua comunicação com o outro
consiste, em grande parte, em trocas de informação” (p. 93).
Sobre a relação do otaku com a tecnologia, observa-se que, desde o início dos
anos 1980 – “época na qual as comunidades online eram a única forma de
correspondência computadorizada disponível” (AZUMA, 2009, p. 4) –, até os dias atuais,
as bases da cultura de internet no Japão foram constituídas pelos otaku. Segundo Ito
(2012), muitas das características principais presentes na era digital e em rede na qual
vivemos – como a descentralização das formas de produção e a mídia participativa – já
eram evidentes nos primórdios da cultura otaku.
Para Azuma (2009), uma de suas principais características seria a criação de
trabalhos derivados, diferentes dos originais, que surgem a partir dos distintos modos de
leitura de conteúdo. Esses trabalhos derivados seriam, segundo o autor, “releituras e
reproduções de mangás, animês e jogos, vendidos em forma de fanzines (revistas
alternativas produzidas por fãs), fan games (jogos produzidos por fãs), fan figures
(bonecos produzidos por fãs), e similares” (p. 25), expostos e vendidos pela internet,
pequenas ou grandes exibições e feiras como o Comic Market. A produção de conteúdo,

10
“Animê significa animação em japonês. É a forma contraída pela qual os japoneses escrevem as palavras
a palavra animação em inglês (animation), da qual deriva a versão de sotaque nipônico animeeshon. Assim,
para os japoneses, todo e qualquer desenho animado é um animê. Fora do Japão, contudo, esta palavra tem
outro significado. No exterior, convencionou-se chamar de animê especificamente os desenhos animados
produzidos no Japão ou com o conjunto de características específicas que os japoneses desenvolveram
nessa área” (SATO, 2007, p. 31)

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derivada ou não de narrativas ou personagens já existentes, leva o nome de dōjinshi (同人

誌), publicações (tanto de impressos quanto CDs, DVDs e demais produtos)


independentes feitas por indivíduos ou grupos amadores.
Dessa forma, na cultura otaku, os fãs são vistos como “prosumers, que produzem,
modificam, personalizam mídia em diversos modos para produzir mash-ups11, remixes12,
entre outros” (BLACK, 2006, p. 216). Em especial no caso de Hatsune Miku, a produção
toma proporções fundamentais em sua construção, à medida que os próprios fãs são os
autores das músicas e da maioria do conteúdo relacionado.
O ídolo virtual, nesse cenário, “claramente une a obsessão do otaku por tecnologia
informática, tecnologia de animação, robótica ou outros tipos de corpos artificiais, além
do tipo de feminilidade representado pelo ídolo vivo” (BLACK, 2006, p. 216). Ainda de
acordo com Black (2006), “o ídolo virtual, uma celebridade da mídia criada pelo
computador, é uma figura representativa de um meio cultural em que os arranjos de dados
parecem intercambiáveis com a materialidade física”13.

4. QUEM É HATSUNE MIKU?


Hatsune Miku foi criada pela Crypton Future Media em 2007, inicialmente como
personagem para ilustrar a embalagem de um software de sintetização de voz japonês
chamado Vocaloid14. Hoje, é possível encontrá-la em diferentes plataformas: na TV; na
mídia impressa; nos outdoors dispostos na rua, em trens e ônibus; em diversas campanhas
publicitárias; e, em especial, na internet, onde seus fãs compartilham vídeos, músicas e
criações próprias, essenciais para a sua construção. Além disso, a ídolo virtual faz-se
presente também no mundo físico por meio dos shows ao vivo, nos quais seu holograma
é projetado sobre um palco. Em 2009, realizou seu primeiro show ao vivo para um público
de 25 mil pessoas no Animelo Summer Live, festival de música voltadas para desenhos
animados, realizado na cidade de Saitama, no Japão15.

11
Mistura de duas ou mais canções já existentes. Tradução livre.
12
Música modificada. Tradução livre.
13
THE FIBRECULTURE JOURNAL. Disponível em < http://nine.fibreculturejournal.org/fcj-054-
digital-bodies-and-disembodied-voices-virtual-idols-and-the-virtualised-body/>. Acesso em dez. 2016.
14
“Vocaloid é um software sintetizador de voz que permite que uma biblioteca de gravações genéricas
seja convertida em palavras e combinada a notas musicais da escolha do usuário, produzindo um novo
desempenho vocal em resposta à manipulação da interface do usuário” (BLACK, 2012, p. 222). Tradução
livre.
15
ANIME NEWS NETWORK. Disponível em < http://www.animenewsnetwork.com/news/2009-08-
23/hatsune-miku-virtual-idol-performs-live-before-25000>. Acesso em dez. 2016.

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Em 2011, Hatsune Miku estreou uma campanha de lançamento do novo Toyota


Corolla (“o carro oficial de Hatsune Miku”)16 nos Estados Unidos, que incluía hotsite
personalizado, aplicativo para celular, um show na Anime Expo de Los Angeles e uma
série de vídeos comerciais (LE, 2014).
A partir de então, as redes se ampliaram rapidamente. Já em 2013, a pizzaria
Domino’s do Japão realizou uma campanha colaborativa com a personagem, lançando
um aplicativo que permitia que os fãs tirassem fotos de Hatsune Miku em suas casas,
segurando um cortador de pizza. Ademais, as caixas de pizza eram impressas com designs
diferenciados, e, com a utilização do modo de realidade aumentada do aplicativo, os
usuários poderiam posicionar a câmera do celular na caixa para que ela se tornasse um
palco para a realização de um show17. Seguindo a mesma técnica da realidade aumentada,
o jogo Hatsune Miku Diva Project f, para o console Playstation Vita, possibilita que Miku
seja projetada na sala onde se encontram os usuários, e posicionada da maneira como
preferirem para tirar fotos, sendo possível ainda a realização de shows em miniatura
(WICOFF, 2013).
Em 2016, Hatsune Miku realizou sua maior turnê até o momento18, passando pelos
três países da América do Norte (Estados Unidos, Canadá e México). Em adição aos
concertos, foram realizados, em algumas cidades, festas, festivais de filmes de curta
duração (produzidos pelos fãs e premiados) e workshops de desenho, além de terem sido
disponibilizados para compra produtos temáticos e pacotes VIPs, que incluem vantagens
no horário de entrada aos shows e produtos exclusivos. Em suas turnês, já esteve presente
em diversas cidades do Japão, países da Ásia, como China e Cingapura, e teve algumas
passagens pelos Estados Unidos.
Em especial no caso de Miku, os fãs têm papel fundamental e ativo pois, além do
consumo, grande parte da produção de conteúdo da personagem é feita por eles, seja por
meio das músicas produzidas através do software Vocaloid, seja pelos vídeos e jogos
concebidos pelo público (BLACK, 2012). É disponibilizada uma plataforma oficial

gerenciada pela empresa, a Piapro (ピアプロ)19, na qual os usuários podem compartilhar

16
YOUTUBE. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=E15PE7iGT0U>. Acesso em dez.
2016.
17
YOUTUBE. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=gW2D_Votd2Y>. Acesso em dez.
2016.
18
HATSUNE MIKU EXPO 2016 NORTH AMERICA. Disponível em
<http://org.mikuexpo.com/na2016/#liveshow>. Acesso em dez. 2016.
19
SITE OFICIAL PIAPRO. Disponível em <http://piapro.jp/>. Acesso em dez. 2016.

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suas criações, como músicas, composições e ilustrações, além de possuir uma licença
adaptada que permite que os fãs se utilizem dos personagens em seus trabalhos criativos
sem fins comerciais, e com restrição a conteúdos violentos ou de teor sexual20.
Apesar da produção de conteúdo se caracterizar como uma marca da cultura otaku,
verifica-se que, no caso de Hatsune Miku, essa construção coletiva se evidencia: a
identidade da cantora virtual é construída pelos fãs21 e sua personagem e personalidade
são maleáveis22, suas criações são, também, muito valorizadas. De acordo com o site
oficial da empresa, há mais de 100 mil músicas lançadas em seu nome, 170 mil vídeos no
YouTube e um milhão de ilustrações23 - sendo esse conteúdo, quase em sua totalidade,
produzido pelos fãs. É possível redesenhá-la, criar letras de músicas que falem sobre suas
origens e personalidade, produzir histórias e coreografias. A partir de Black (2012),
depreendemos que “um ídolo que só existe na forma digital, a qual o fã pode possuir e
manipular, mantém a promessa de uma relação mais íntima do que seria possível com um
ídolo real” (p. 220).
Wicoff (2013) constata que toda a produção de Hatsune Miku, como entidade não-
humana, a aproxima de existir e fazer parte do mundo humano. Essa aproximação da
ídolo virtual ao mundo físico nos remete ao contexto atual – e, em especial, o japonês –,
permeado pela tecnologia, no qual as delimitações existentes entre o real e o virtual já
não parecem tão rígidas. Ainda de acordo com o autor, surge uma disparidade entre as
visões culturais do que seria a realidade. No contexto japonês, o fato de Hatsune Miku
ser, ou não, real, não é considerado, por seus fãs, relevante.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na sociedade japonesa, verifica-se que o fato de Hatsune Miku ser, ou não, real,
não é questionado ou, sequer, colocado em evidência, a “sua existência não é
questionada” (WICOFF, 2013, p. 2). Nesse sentido, as fronteiras entre o real e o virtual
tornam-se cada vez mais frágeis. No Japão, a própria possibilidade de um relacionamento
virtual entre um ser humano e um personagem, não é totalmente rejeitada. Em 2009, um

20
CREATIVE COMMONS. Disponível em < http://creativecommons.org/licenses/by-nc/3.0/legalcode>.
Acesso em dez. 2016.
21
YOUTUBE. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=FrezB5X3Mdg>. Acesso em dez.
2016.
22
YOUTUBE. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=2-nJABvZlO8>. Acesso em dez.
2016.
23
CRYPTON FUTURE MEDIA. Disponível em < http://www.crypton.co.jp/miku_eng>. Acesso em dez.
2016.

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jovem protagonizou a primeira cerimônia pública de casamento entre um humano e uma


personagem de videogame24.
De acordo com Kinsella (1998), desde a década de 1960, com o surgimento dos
primeiros otaku, a resistência em ingressar na sociedade japonesa como adultos e as
tendências à introspecção e ao escapismo já caracterizavam a juventude japonesa.
Conforme afirmam Barral (2000) e Azuma (2009), o otaku sente-se mais confortável no
universo virtual criado por ele próprio, voltando-se para padrões alternativos aos da
sociedade vigente. Para Quéau (1995), torna-se cada vez mais presente o desejo e
preferência pelos “simulacros de realidade” (p. 42), considerando ser, em comparação, o
mundo real hostil ou formado por realizações fora de nosso alcance.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Livros

AZUMA, Hiroki. Otaku: Japan’s database animals. Minneapolis: University of Minnesota Press,
2009.

BARRAL, Étienne. Otaku: Os filhos do virtual. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000.

ITO, Mizuko; OKABE, Daisuke; TSUJI, Izumi. Fandom Unbound: Otaku Culture in a
Connected World. London: Yale University Press, 2012.

IWABUCHI, Koichi. Recentering Globalization: Popular Culture and Japanese


Transnationalism. Durham: Duke University Press, 2002.

GALBRAITH, Patrick W.; KARLIN, Jason G (eds.). Idols and celebrity in japanese media
culture. New York: Palgrave Macmillan, 2012.

PEREIRA DE SÁ, Simone; CARREIRO, Rodrigo; FERRAZ, Rogerio (orgs.). Cultura pop.
Salvador: EDUFBA; Brasília: Compós, 2015.

QUÉAU, Philippe. Lo virtual: virtudes y vértigos. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1995.

Artigos
BLACK, Daniel. Digital Bodies and Disembodied Voices: Virtual Idols and the Virtualised Body.
The Fibreculture Journal, n. 9, 2006. Disponível em < http://nine.fibreculturejournal.org/fcj-
054-digital-bodies-and-disembodied-voices-virtual-idols-and-the-virtualised-body/>. Acesso em
dez. 2016.

IVY, Marilyn. The Art of Cute Little Things: Nara Yoshimoto’s Parapolitics. In: LUNNING,
Frenchy (ed.). Mechademia: Fanthropologies, v.5. Minneapolis: University of Minnesota Press,
2010.

24
G1. Disponível em < http://g1.globo.com/Noticias/Games/0,,MUL1392691-9666,00-
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