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UERJ – Faculdade de Direito

Disciplina: Direito Administrativo I


Data da Aula: 15/09/2004 (Quarta-feira)
Professora: Patrícia Baptista
Transcritor: Alexandre Danelon

Poderes da Administração Pública

O regime público é caracterizado por prerrogativas e sujeições, ou seja, é um regime que submete a
Administração Pública a vínculos, sujeições legais e prerrogativas que, normalmente, não são previstos no
regime entre particulares, de direito privado.
Dentro deste tema Poderes da Administração Pública está uma gama enorme de poderes, isto é, regras
de sujeição, a maioria dos quais não tem paralelo nas relações privadas.
Que poderes são esses?
Em primeiro lugar, o poder normativo da Administração Pública (alguns autores o denominam
simplesmente de poder regulamentar), na verdade, discute-se muito sobre a extensão desse Poder Normativo,
ou mesmo Poder Regulamentar. A gente vai tratar do poder hierárquico, que decorre da organização
hierárquica da Administração Pública, do poder disciplinar, que é um derivado direto do poder hierárquico, do
poder de polícia administrativa. E a maioria dos livros fala ainda de poder discricionário e poder vinculado,
mas me parece que, em particular, tem razão a Di Pietro ao afirmar que discricionário e vinculado não são
poderes, são qualidades, características, dos poderes e atividades da Administração. Iremos tratar do tema ao
final, mas concordamos com a Di Pietro de forma que não haja isoladamente um poder vinculado ou
discricionário, mas, sim, são características dos outros poderes.
Bom, outra coisa importante é o fato de todos esses poderes da Administração Pública se enquadrarem
na categoria dos chamados poder-dever, pois não cabe ao administrador público a decisão acerca de se vai,
ou não, exercer o poder que lhe é conferido por lei. Estando diante da hipótese, o exercício do poder é
obrigatório, não há liberdade para deliberar se vai, ou não, exercer o poder que a lei lhe confere. É um poder-
dever, estando a Administração diante da hipótese descrita legalmente, a ela é imposto exercer este poder
conferido por lei. A Administração não pode renunciar ao poder que a lei lhe confere.

Poder Normativo

Alguns autores tratam do tema poder regulamentar. Qual é a diferença? Por que eu falo de poder
normativo da administração e outros falam também de poder regulamentar?
Na verdade, num ou outro nome se esconde uma opção ou interpretação do que diz o texto
constitucional.
O que é o poder regulamentar? O que é regulamentar?
Vamos olhar o artigo 84, IV, CF/88.

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:


IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua
fiel execução;

A Administração Pública edita normas, fato que ninguém pode ignorar que são normas jurídicas, dotadas
de generalidade, abstração e coercibilidade.
Que tipos de norma jurídica a Administração pode editar?
A interpretação que foi mais advogada do texto constitucional de 1988 foi a seguinte: por força do art. 84,
IV, só existe poder normativo da Administração secundário, todo poder normativo da Administração é infralegal,
ou seja, somente pode o Poder Executivo editar normas para a fiel execução das leis ; todo poder normativo da
administração é um poder regulamentar.
Na verdade, não se retirou desse dispositivo sozinho essa conclusão. O artigo 49, V, da CF/88 reporta:

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:


V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de
delegação legislativa;

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Além disso, o artigo 25, I, do ADCT (ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS),
diz o seguinte:

Art. 25. Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este
prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder
Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que
tange a:
I - ação normativa;

A interpretação conjugada dos artigos 84, IV, com 49, V, da CF/88 e artigo 25 do ADCT levou,
praticamente de forma uníssona, a doutrina a afirmar que, depois de publicada a CF/88, só haveria poder
normativo válido da administração em se tratando de regulamentar. Todo poder normativo da Administração
necessariamente é secundário, não havendo poder normativo originário, não é possível que a Administração
crie direito novo, primário, ou seja, a Administração só pode editar normas jurídicas infralegais. Daí, essa
afirmação tranqüila, da maior parte da doutrina, de que após a CF/88 todo poder normativo da Administração tem
natureza regulamentar, não existindo poder normativo autônomo. É, ainda hoje, a posição majoritária da
doutrina, de forma que não se quis dar espaço a Administração para criar direito novo, originário, pois esta é uma
tarefa do Poder Legislativo.
Com o tempo, esta interpretação vem sofrendo alguns temperamentos. Em termos constitucionais
recentes, foi aprovada a E.C. 32/2001 que alterou a redação do artigo 84, VI, CF/88, passando a ter a seguinte
letra:

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:


VI- dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de
despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;
b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;

O que significa isso?


Significa que, primariamente, as normas que disciplinem o funcionamento e a organização da
Administração Pública podem ser reguladas por decreto primário, originário.
Existe uma figura em que a doutrina fala, do chamado regulamento de organização. Na verdade, a
doutrina indica que há os chamados decretos de execução ou regulamentares, que nada mais são do que os
decretos e regulamentos para a fiel execução da lei; esses a gente já viu têm amplo amparo constitucional, pois
cabe a Administração Pública editar os atos necessários ao fiel cumprimento da lei.
E os regulamentos de organização?
Seriam estes a referência do art. 84, VI, um tipo de norma expedida pela administração acerca da
organização e do funcionamento da Administração Pública.
Há quem, lendo essa norma, diga que pelo menos esse tipo de poder normativo autônomo a
administração pública, hoje, tem. Dispor sobre a sua organização e funcionamento, desde que não implique
aumento de despesa; matéria interna corporis da Administração, que a interessa diretamente, que o legislador
constituinte derivado retirou da reserva da lei, incluindo-a no âmbito da competência normativa da Administração.
Na verdade, essa operação decorrente da E.C. 32/2001 veio a reeditar o que já havia no texto
constitucional de 1969 e foi restringida pelo de 1988. Só que, na prática, verificou-se que nunca havia uma lei em
sentido estrito que disciplinasse acerca da organização da administração pública. Era sempre por medida
provisória e as administrações que não dispunham de medida provisória continuavam tratando da matéria na
forma de decreto, pois essa não é matéria legislativa.
Então, pelo menos no que se refere à matéria de organização, haveria esse poder normativo
“autônomo” por conta da alteração do texto constitucional pela E.C. 32/2001 . Mas a questão não pára por aí.
Na verdade, a Administração Pública é muito grande, atua em muitos setores, regula e disciplina muitas
atividades, editando muitas normas. A quantidade de normas editada pela administração pública é gigantesca.
Ela cita ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que editou normas acerca da limpeza e
manutenção de ar condicionado, regulando, primariamente, essa matéria técnica, onde as normas são de
natureza essencialmente técnica e não é matéria de lei, mas cria obrigações, que é muito freqüente. É muito
comum a gente encontrar ato normativo da Administração, não necessariamente dependente ou
subordinado à lei, que desse, mais ou menos, o contorno da matéria a ser regulada.

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Ela cita o exemplo de uma Lei Estadual que transfere ao Executivo o poder de regular a concessão de
serviços de transporte sem qualquer artigo, na lei, que discipline a matéria. Ela questiona a constitucionalidade
de leis dessa natureza, que aparecem com muita freqüência, onde ocorre uma abdicação do poder de legislar
por parte do Legislativo, que deveria criar os contornos a partir dos quais o Executivo irá efetuar a regulação.
Simplesmente o Legislativo abdica dessa obrigação de criar o contorno da lei.
Nos deparamos cotidianamente com atos normativos expedidos pela administração que regulam os mais
diversos campos da atividade humana, sem que a gente encontre um quadro legal originário a partir do qual
àqueles atos possam ser considerados atos regulamentares. E aí?
Existe um livro chamado “O Direito Posto e o Direito Pressuposto”, do Ministro Eros Roberto Grau do
STF, onde se discorre acerca do poder normativo originário da Administração Pública e tem uma frase bastante
curiosa citando que a maior parte da doutrina e da jurisprudência brasileira continuam nas nuvens, naquela
afirmativa de que não há poder normativo autônomo da administração, fechando os olhos para a realidade que é
a imensa normatividade editada pela administração pública e a incapacidade do Poder Legislativo de dar conta
das demandas normativas da sociedade moderna, pois há, cada vez mais, campos de matéria estritamente
técnica, fora do campo de conhecimento dos parlamentares. Por isso, o Ministro Eros Grau do STF, na
contramão do que a doutrina majoritária afirma, admite e aceita a existência de poder normativo autônomo da
administração pública quando não se tratar de matéria que o próprio legislador constituinte tenha reservado
diretamente à esfera legal, ou seja, não haver reserva legal sobre a matéria, reserva de lei formal.
A normatividade autônoma da administração, quando se admite, não pode refletir em campos que
importem em restrição de direitos subjetivos dos particulares, ou seja, não haveria espaço para o poder
normativo autônomo na imposição ou limitação de direitos subjetivos dos particulares; o direito é assegurado
legalmente, constitucionalmente, então, não é possível que a normatividade autônoma da administração
disponha sobre essas matérias. E tem um exemplo que é eloqüente no reconhecimento da existência do poder
normativo autônomo, sendo citado como a primeira brecha do ponto de vista da jurisprudência pelo
reconhecimento do poder normativo autônomo e vocês devem ter ouvido falar, ao estudar a Jurisdição
Constitucional, que não cabe ADIN contra ato normativo de natureza regulamentar, por exemplo, decreto,
porque, segundo o STF, trata-se de uma questão de legalidade e não de constitucionalidade, ou seja, se o ato
normativo é infralegal, secundário, ou ele está de acordo com a lei e o problema de constitucionalidade é da lei,
ou ele não está de acordo com a lei e o problema é de legalidade, não de constitucionalidade. Essa é a
jurisprudência assentada do STF. Entretanto, foi ajuizada uma ADIN 2317/DF contra a Resolução 2277/96 do
Conselho Monetário Nacional, ou seja, ato normativo da Administração Pública, e qual deveria ter sido a decisão
do STF? Não conheço da ação, julgo extinto o processo, pois não cabe controle de constitucionalidade de ato
normativo secundário. Mas não foi esta a decisão do STF. A ementa diz: “ato normativo que, ao regular do
controle do Banco Central do Brasil sobre as entidades do Sistema Financeiro Nacional, não veda o exercício de
profissão nem impede o desenvolvimento de atividade econômica, não havendo falar igualmente em
contrariedade ao mencionado princípio constitucional”. O que foi que o STF julgou? Julgou a constitucionalidade,
o mérito da resolução. O que se conclui? O STF reconheceu que essa resolução do BCB tem um caráter de ato
normativo autônomo nesse campo técnico específico. São poucos os casos, mas se reconhece a existência de
um poder normativo autônomo, se caminha para isso.
Há também quem advogue que as agências reguladoras com sede constitucional, ANP (Agência
nacional do Petróleo) e ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações), teriam poder normativo autônomo
nas áreas que lhes cabe regular. Todas as outras agências reguladoras são disciplinadas por lei.
Já foi até discutido se as normas editadas pelas agências reguladoras no campo que lhes cabe, teriam o
poder de revogar a legislação até então vigente; seria um caso de revogação de lei por ato normativo do Poder
Executivo. Eu acho que não se chega a tanto, pois existe um texto constitucional que prevê que o poder
normativo da administração autônomo, a Constituição Francesa de 1958, que promoveu uma deslegalização no
campo de algumas matérias. Esse termo deslegalização andou meio na moda principalmente por conta dessa
questão das agências, se haveria uma deslegalização ao se transferir do âmbito do Poder Legislativo para o do
poder normativo da Administração algumas matérias. A Constituição Francesa de 1958 fez isso e o Conselho
Constitucional Francês entendeu que não poderia a norma do Poder executivo revogar lei e esse poder
normativo autônomo que a Constituição Francesa dá ao Executivo foi bastante moldado, restrito, pela atuação do
Conselho Constitucional, estabelecendo qual era a possibilidade desse poder normativo autônomo. Essa é uma
discussão da França, Europa e EUA com muito mais veemência, pois, lá, o campo dessa normatividade é muito
mais amplo que a produção legislativa, ou seja, os atos normativos das agências americanas afetam muito mais
a vida da população do que propriamente as leis.

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Então, esse problema do poder normativo autônomo da administração é uma questão bastante atual.
Lembro que a gente não tem como fugir de invocar a nossa amiga, a pirâmide de Kelsen, para se dar conta do
seguinte: a gente tem a Constituição e, logo abaixo, as leis e, abaixo destas, uma quantidade enorme e das mais
variadas naturezas e graus, entre os quais os decretos ou regulamentos que são atos normativos infralegais
imediatamente abaixo das leis, os decretos editados pelo Executivo para regulamentar as leis. Mas a
normatividade da Administração Pública não acaba aí. Além dos decretos, que são todos atos editados pelo
Chefe do Executivo, podendo ser, ou não, normativos, existem as resoluções que são atos normativos da
Administração ainda de um grau hierárquico inferior, por exemplo, os atos praticados pelos Secretários de
Estado, podendo, também, ser resolução normativa, ou não. Há portarias, que também regulam uma enorme
quantidade de atos, por exemplo em matéria de medicamentos, onde o SUS tem uma lei e, abaixo desta, quase
tudo que disciplina os medicamentos são portarias, atos normativos ainda mais inferiores.
Na verdade, conforme você vai descendo na escala, a generalidade do ato também vai se restringindo,
delimitando-se o âmbito dos alcançados por aquele ato normativo.
Enfim, sobre poder regulamentar e normativo é o que eu queria falar.
Entretanto, é bom deixar bem claro que decreto-lei não está nesse contexto, é um “fantasma” que
sobrevive e assim como a medida provisória não são considerados atos normativos da Administração
Pública, pois a constituição anterior, bem como a atual, dizem que o decreto-lei e a medida provisória têm força
de lei, ou seja, o decreto lei (constituição anterior) e a medida provisória (constituição atual) são leis . Então, não
coloquem decreto-lei e medida provisória dentro do poder normativo da administração. Tem muito decreto-lei que
sobrevive, pois foi recepcionado pela CF/88 como lei. Há, ainda, um decreto, bastante curioso, 20910/32, que
regula a prescrição qüinqüenal, ato editado pelo poder executivo que está em vigor, mas que veio
sucessivamente sendo recepcionado como lei, de modo que é um decreto, formalmente falando, mas
materialmente é uma lei. Devemos tomar esse cuidado, pois decretos muito antigos que sobrevivem, o fazem
sob força de lei, pois historicamente, em algumas matérias, era possível que o Poder Executivo tratasse por meio
do decreto de matéria que, atualmente, é objeto de lei e vem sendo recepcionado como lei.

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