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John Lindemann*
* Mestre e graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Atualmente realiza pesquisa de doutorado na
mesma instituição. Bolsista da CAPES. E-mail: johnllindemann@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8613-2132.
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gia da memória, obtendo uma posição ria, concluindo que Klein (2015) de-
com base na análise dos usos ordinários fende a melhor tese.
do termo “memória”, concluindo, em Dividida em quatro subseções, a pri-
congruência com Stanley Klein, em seu meira se dedica à análise dos usos ordi-
artigo “What memory is?” (2015), que nários do termo memória, a segunda
toda memória é episódica. A segunda apresenta e defende a tese de Klein
seção dedica-se à epistemologia da me- (2015), segundo a qual toda memória
mória, derivando uma posição epistê- é episódica, a terceira apresenta um po-
mica gerativista da tese ontológica pre- sicionamento acerca de como devemos
viamente defendida, concluindo que a compreender o conteúdo da memória e
memória é uma fonte básica de conhe- a quarta apresenta a análise de estudos
cimento análoga à percepção. empíricos que corroboram a tese defen-
Cabe especificar que, independente dida.
da utilidade dos termos “memória
sensorial” e “memória de curto prazo”
para o estudo de distintas funções cog-
nitivas, este debate se limita apenas à 1.1. Como devemos compreender a
memória de longa duração, compreen- memória
dida aqui como memória stricto sensu.
Prima facie, parece intuitivo supor que
devemos associar o termo “memória”
a qualquer estado mental que se ori-
1. Ontologia da Memória gine de uma experiência passada, mas
tal concepção é errônea, dado que pos-
Compreendendo a ontologia como o sivelmente todo estado mental do mo-
campo de investigações filosóficas que mento presente é condicionado por ex-
trata da realidade e existência das coi- periências passadas.
sas, a principal questão ontológica Tal como o dito de Agostinho de Hi-
acerca da memória é, necessariamente, pona (354-430) em relação ao tempo,
o que é a memória? afirmando saber o que é o tempo apenas
Pode-se encontrar uma vasta taxo- quando não indagado (AGOSTINHO,
nomia acerca dos diferentes tipos de 1964), assim somos em relação à memó-
memória na literatura especializada so- ria, pois usamos o termo de modo na-
bre o tema, assim como muitas ambi- tural em conversações diárias, mas di-
guidades em seus usos. Objetivando ficilmente conseguimos explicar nossa
uma contribuição estritamente filosó- compreensão de tal termo.
fica, esta seção se dedica ao estabeleci- O uso irrefletido em conversa-
mento de uma noção precisa de como ções diárias atribui ao menos qua-
devemos compreender o que é memó- tro significados distintos para o termo
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cado (NICOLELIS, 2011, p. 39). Segue- apenas um tipo de uso da faculdade que
se que devemos compreender engrama nos permite ter pensamentos episódi-
como a forma com a qual algo necessá- cos hipotéticos), a argumentação pela
rio para que tenhamos uma certa me- qual as concepções (1) e (2) foram des-
mória é contido em um local do cére- cartadas não aponta para a falácia da
bro adequado a tal finalidade, mas não circularidade, buscando precisar o pa-
como um sinônimo de memória. pel necessário de algo que corresponda
Por sua vez, conceber a memória a tais concepções para que possamos ter
como (3) “a faculdade do lembrar” sem- memórias e evitar que apenas uma ver-
pre será circular, dado que exige uma são ingênua delas fosse realmente ata-
compreensão prévia do que é lembrar cada.
para que possamos compreender tal fa- Resta analisarmos a concepção de
culdade, não elucidando a compreen- memória como (4) o próprio ato mental,
são do termo “memória”, pelo contrá- isto é, concebermos a memória como
rio, a supondo. Disto não se segue que uma espécie de estado mental que pos-
não tenhamos uma faculdade específica sui certas características específicas que
associada à memória, talvez compreen- o definem enquanto tal e o distinguem
dida como a faculdade que possibilita a de todos os demais atos mentais. Eis
emergência de uma memória em nossa aqui o único candidato legítimo à de-
consciência por meio dos estímulos que finição de memória, mas quais são as
ela gera nos engramas localizados nas características que definem a especifici-
áreas corticais primárias de nosso cére- dade de tal ato mental?
bro. Uma possível resposta é encontrada
Cabe esclarecer que as concepções no trabalho de Klein (2015), que, ne-
ordinárias (1) e (2), tal como apresen- gando explicitamente a concepção or-
tadas, também caem na falácia da cir- dinária (2) e defendendo uma tese em
cularidade, dado que (1) definir o local congruência com a concepção (4), argu-
onde a memória é armazenada supõe menta que a memória não é um con-
uma definição de memória e (2) o con- teúdo, mas uma maneira especial pela
teúdo armazenado é, ele próprio, defi- qual um certo conteúdo é experienci-
nido como sendo a memória, que, por ado, um ato mental cuja principal ca-
sua vez, é definida como o conteúdo racterística consiste em propiciar ao su-
armazenado. Diferente da concepção jeito que experiencia certa relação com
(3), que remete a algo possível e não o seu próprio passado que não pode ser
necessário, dado que talvez não haja obtida por qualquer outro meio.
uma faculdade específica da memória
(por exemplo, Sant’Anna e Michaelian
(2018) argumentam que a memória seja
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Klein (2015) não nega que processos O termo autonoético têm sido
não experienciais contribuem para a usado para se referir a esse tipo
memória, tal como a formação e ma- especial de consciência que nos
nutenção de engramas, mas deixa claro permite estar cientes do tempo
que, apesar da sua contribuição, cujo subjetivo em que os eventos
caráter necessário já foi mencionado aconteceram. A consciência au-
na presente investigação, eles não são tonoética é necessária para a
a memória, que é definida como uma memória. Sem consciência au-
espécie de estado mental com caracte- tonoética, sem viagem mental
rísticas distintas. no tempo.
“Mais especificamente, a memória é
um modo especial de experienciar – um Sob os parâmetros de tal definição,
modo que fornece ao sujeito uma rela- segue-se que a autonoese é uma parte
ção fenomênica com o seu próprio pas- constitutiva da fenomenologia da me-
sado que não pode ser concedida por es- mória.
tados mentais não-memoriais” (KLEIN, Cabe esclarecer que existe uma am-
2015, p. 4, tradução nossa). pla gama de espécies de memória cata-
Para Klein (2015, p. 6), duas caracte- logadas na literatura especializada, com
rísticas interdependentes definem um destaque para as memórias procedu-
certo estado mental como memória: o ral, semântica e episódica como as mais
estado mental deve conectar-se causal- comumente aceitas. Entretanto, entre
mente com uma experiência que o in- tantas variedades, Klein (2015) define,
divíduo viveu no passado e, além disso, tal como suposto na continuidade deste
o estado mental deve ser acompanhado trabalho, que memória é apenas o que
da sensação de estar revivendo tal ex- se compreende como memória episó-
periência em uma espécie de viagem dica.
mental para o passado. A memória procedural refere-se às
O indivíduo que experiencia uma habilidades adquiridas mediante re-
memória não deve concluir que o seu petição, mas qual é a razão pela qual
estado mental é relativo ao passado deveríamos considerar uma certa ha-
como resultado de uma inferência, pois bilidade como memória e não apenas
a sensação de o estar revivendo em uma como um conhecimento técnico? Pen-
espécie de viagem mental no tempo semos na habilidade de realizar acordes
deve ser dada diretamente à sua cons- na guitarra como um caso de memória
ciência. Tal sensação é chamada de au- procedural: dado que cada acorde re-
tonoética. Segundo Tulving (2002, p. 2, alizado visa a ação presente desejada
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dem a nada que tenha sido o caso em mas sempre novas representações, di-
nosso passado, mas quando realmente ferentes entre si e construídas a cada
estamos tendo uma memória autên- novo ato de memória, fazendo com que
tica, isto é, quando temos a experiência um número possivelmente infinito de
mental de reviver um evento factual de diferentes representações sejam forço-
nosso passado, então é necessário que samente associadas a um único evento
o conteúdo lembrado seja uma repre- passado.
sentação adequada do evento de nosso A defesa de uma conexão causal entre
passado com o qual a memória mantém uma memória e o seu respectivo evento
um certo vínculo. passado é obviamente compatível com
Em relação ao funcionamento do a posição arquivista, segundo a qual o
nosso poder mental de experienciar me- próprio conteúdo arquivado estabelece
mórias adequadas ao nosso passado fac- tal conexão.
tual, podemos dividir as posições filo- Por outro lado, a defesa de tal co-
sóficas em dois grandes grupos. De um nexão causal não é tão facilmente as-
lado, os filósofos que chamaremos de sociável à posição construtivista, dado
arquivistas defendem que a memória é que ela dispensa a necessidade de tal
um instrumento passivo de reprodução vínculo na medida em que não implica
de representações adquiridas no pas- que o conteúdo da memória tenha sido
sado, de outro, os filósofos que cha- preservado, podendo ser satisfeita nos
maremos de construtivistas defendem casos em que uma representação ade-
que a memória é um instrumento ativo quada à representação do passado te-
e preciso de construção de representa- nha sido construída sem tal vínculo
ções relativas ao passado, isto é, todo o causal, como defende Squires (1969),
conteúdo da memória é construído no embora a posição construtivista tam-
momento em que lembramos (ROBINS, bém possa ser compatível com uma teo-
2016). ria causal na medida em que se defenda
Da perspectiva arquivista o conteúdo a possibilidade de que o vínculo cau-
da memória simplesmente preserva a sal seja mantido por um engrama que
representação que o gerou, mas da pers- apenas orienta a construção da repre-
pectiva construtivista parece que há sentação experienciada como memória,
sempre algum grau de inadequação en- não sendo seu único determinante.
tre o conteúdo da memória e sua res- Na esteira do trabalho de Klein
pectiva experiência passada, dado que (2015), defendemos que o conteúdo de
as representações experienciadas como uma memória deve conectar-se causal-
a memória de um mesmo evento não mente com uma experiência vivida no
são reproduções exatas da representa- passado. A concepção mais clássica
ção do passado ao qual se vinculam, de uma teoria causal da memória re-
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ração, diferente da memória, podemos aquisição, então tal estado mental deve
assumir que a introspecção seja a facul- ser caracterizado como uma memória,
dade responsável, dado que crenças são compreendida como a experiência sub-
comumente citadas como introspectá- jetiva de reexperienciar um evento do
veis (SCHWITZGEBEL, 2016). próprio passado. Dado que a afirmação
Cabe lembrar que não nos compro- de uma crença também pode ser uma
metemos com a existência de uma fa- parte constitutiva da nossa experiência
culdade específica para a memória, as- de um evento, segue-se que experien-
sumindo a plausibilidade de que a me- ciar a reafirmação de uma crença tam-
mória seja apenas um uso da facul- bém pode ser uma das partes que com-
dade que nos permite ter pensamen- põem nossas memórias, mas o estado
tos episódicos hipotéticos, tal como de- mental constituído exclusivamente pela
fendem Sant’Anna e Michaelian (2018), reafirmação de uma crença é apenas
ou mesmo que experienciemos nossas isso, um estado mental de reafirmação
memórias por meio da mesma facul- de crença, não uma memória.
dade pela qual voltamos a afirmar nos-
sas crenças, sem assumirmos, com isso,
que reafirmar uma crença seja uma me-
mória. 2.2. Fontes de Conhecimento
Apesar de concedermos muitas si-
milaridades entre as chamadas memó- Segundo Audi (2002), compreende-se
rias proposicionais e o uso restrito que “fontes de conhecimento” como as ope-
reivindicamos para o termo memória rações responsáveis pelo exercício de
como memória episódica, defendemos entendimento que produz uma crença
que a memória é um tipo específico que constitui conhecimento, por exem-
de estado mental cuja fenomenologia plo, a experiência empírica de um fenô-
é discriminada por sua propriedade au- meno sob uma certa perspectiva que
tonoética, que nos permite estar cien- desvenda sua causação –até então des-
tes do tempo subjetivo relativo ao con- conhecida. Fontes de conhecimento
teúdo experienciado, sendo uma pro- também são amplamente consideradas
priedade fenomênica não conjugada como fontes de justificação, isto é, as
com o estado mental pelo qual volta- mesmas operações consideradas aptas
mos a entreter uma crença em nossa à aquisição de conhecimento são fon-
consciência. tes adequadas à legitimação do conhe-
Caso o estado mental no qual entre- cimento.
temos novamente uma crença também Fontes de conhecimento (ou justifica-
seja acompanhado por uma sensação ção) dividem-se em duas categorias: bá-
autonoética relativa ao momento de sua sicas e não básicas (AUDI, 2002). Uma
fonte é considerada básica quando pode
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fesa de uma tese epistemológica gera- Seria absurdo supor que todas as
tivista, embora associável à tese gera- crenças que podemos formar acerca de
tivista de Lackey (2007), nossa posi- um evento são de fato formadas no mo-
ção é mais restrita, em coerência com mento em que o experienciamos, logo,
nossa posição ontológica, sendo aná- podemos ter a memória de um evento
loga apenas ao exemplo do “Motorista que possibilita a formação de novas
sobrecarregado” (orverloaded driver, no crenças sobre ele.
original. Cf. LACKEY, 2007, p. 217- Por exemplo: ao visitar sua mãe, o su-
218, tradução nossa) e não se ade- jeito S percebe que ela mudou os móveis
quando aos outros exemplos apresen- da casa de lugar, mas foi uma visita rá-
tados por Lackey. pida e S não forma nenhuma crença es-
Dada a defesa prévia de que toda me- pecífica sobre isso. Dias depois, S lem-
mória é episódica, segue-se que a me- bra da visita e fica curioso sobre o novo
mória é epistemicamente neutra, pois posicionamento dos móveis, aos quais
apenas proposições podem ser verda- não havia dado atenção devido à sua
deiras ou falsas e o conteúdo de uma pressa e aos outros assuntos importan-
memória, mesmo quando parcialmente tes que ocupavam sua mente naquele
constituído pela experiência subjetiva momento. Esforçando-se para lembrar
de voltar a entreter uma proposição do novo posicionamento, S tem a me-
crida durante o evento lembrado, não mória M, isto é, S viaja mentalmente
é, tomado em sua totalidade, propo- para o evento passado relativo à visita e
sicional. Uma memória parcialmente “revive” a experiência de ver um televi-
constituída pela experiência de entre- sor sobre a geladeira. Com base em M,
ter uma proposição previamente crida S crê que P, isto é, S crê que há uma te-
não é autêntica em virtude de qualquer levisão sobre a geladeira na casa de sua
critério veritativo relativo à proposição, mãe. A memória M é epistemicamente
mas sim pelo fato de que entreter nova- neutra acerca de qualquer fato relativo
mente tal crença, independente do seu ao evento passado que a originou, em-
valor de verdade, constitui uma parte bora constitua um estado mental ade-
adequada à experiência subjetiva de re- quado à experiência subjetiva de estar
viver o evento lembrado. revivendo tal evento. Mesmo sem que
Embora não seja verdadeira ou falsa, M mantenha qualquer vínculo epistê-
toda memória mantém uma conexão mico com sua experiência originária do
causal com o evento passado ao qual se passado, o processo pelo qual S crê que
relaciona, constituindo um estado men- P a partir de M é confiável, dado que a
tal adequado à experiência subjetiva de memória M é apta a justificar a raciona-
reviver um certo evento do próprio pas- lidade da crença de que P. Segue-se que
sado. S sabe que P tendo a memória M como
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sua única fonte de formação e justifica- ções sensíveis originárias, tal conteúdo
ção. é epistemicamente neutro e, no que diz
Sob tal perspectiva, a memória respeito ao status epistêmico das cren-
deixa de ser análoga ao testemunho ças, não nos interessa qualquer rela-
e passa a ser análoga à percepção, ção que as fontes mantenham entre si
caracterizando-se como uma fonte bá- acerca de seus conteúdos, apenas a re-
sica de conhecimento. lação de confiabilidade da operação a
Poder-se-ia objetar que embora a partir da qual uma fonte é apta à for-
nova crença tenha sido baseada na me- mação e justificação de crenças.
mória, a memória, por sua vez, foi ba- Assumindo que os dados brutos dos
seada na percepção, de tal modo que sentidos são o conteúdo da percepção,
a fonte básica da nova crença continua cabe especificar que tal conteúdo tam-
sendo a percepção. bém é epistemicamente neutro. O que
Dado que o caráter epistêmico de faz com que a percepção seja uma fonte
toda crença advém apenas da confi- básica de conhecimento é o fato de que
abilidade do processo pelo qual uma os processos nos quais ela atua na for-
certa fonte atua em sua justificação, mação de crenças são confiáveis. Tal
nosso exemplo demonstra que a me- como a percepção, independente da
mória pode ser a única fonte atuante origem do conteúdo epistemicamente
no processo pelo qual uma crença é neutro das memórias, o processo pelo
produzida e justificada, pois a percep- qual a memória atua como a fonte ex-
ção do evento era inacessível para S no clusiva para formação e justificação de
processo de produção e justificação da novas crenças é confiável, portanto de-
crença de que P, no qual apenas a me- vemos compreender a memória como
mória M atuou. uma fonte básica de conhecimento.
A despeito de que toda memória de-
penda de uma forte conexão causal com
a percepção do evento que a origina
e ao qual ela deve adequar-se, lem- Considerações Finais
bremos que o conteúdo experienciado
em uma memória também é em parte O presente trabalho se dedicou ao es-
construído e mutável, não sendo ape- tabelecimento de posições ontológicas e
nas uma reprodução exata da experiên- epistemológicas básicas sobre a memó-
cia perceptiva original e sim uma ex- ria.
periência mental distinta. Mesmo que Partindo da análise dos usos ordiná-
o conteúdo experienciado nas memó- rios do termo memória, concluímos que
rias fosse sempre idêntico ao conteúdo devemos compreender toda memória
experienciado por meio de suas percep- como episódica, tal como defendido por
Klein (2015), isto é, causalmente conec-
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tada com um certo evento do próprio gico básico, a continuação lógica deste
passado e caracterizada como a experi- trabalho consiste em explorar as con-
ência subjetiva de o reviver com sensa- sequências de tais teses em controvér-
ção autonoética. sias específicas da filosofia da memória,
Supondo tal posição ontológica, con- tal como o conceito de confabulação, a
cluímos que a memória é uma fonte bá- saber, um tipo específico de experiên-
sica de conhecimento, análoga à per- cia mental semelhante à memória, mas
cepção, dado que seu conteúdo é episte- cujo estado mental não está em conexão
micamente neutro e apto a gerar o sta- causal com qualquer experiência que o
tus epistêmico positivo de novas cren- indivíduo tenha vivido no passado, o
ças. que fomenta uma série de problemas à
Dado o estabelecimento de tal po- nossa posição epistêmica e serão objetos
sicionamento ontológico e epistemoló- do próximo trabalho.
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