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DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i1.

28340

Memória: Ontologia e Epistemologia Básicas


[Memory: Basic Ontology and Epistemology]

John Lindemann*

Resumo: O presente trabalho extrai uma consequência epistemológica de uma posição


ontológica sobre a memória. A posição ontológica é obtida com base na análise dos
usos ordinários do termo memória visando inferir qual deve ser o seu uso legítimo,
concluindo, em congruência com Stanley Klein, que toda memória é episódica. Dada
tal posição ontológica, deriva-se uma posição epistêmica gerativista, concluindo que a
memória é uma fonte básica de conhecimento análoga à percepção.
Palavras-chave: Memória. Memória episódica. Gerativismo.

Abstract: The present work extract an epistemological consequence of an ontological po-


sition about the memory. The ontological position is obtained on the basis of the analysis
of the ordinary uses of the term memory in order to infer what should be its legitimate
use, concluding, in congruence with Stanley Klein, that all memory is episodic. Given
such an ontological position, a generativism epistemic position is derived, concluding
that memory is a basic source of knowledge analog to the perception.
Keywords: Memory. Episodic memory. Generativism.

Introdução conceitos específicos.


Objetivando um posicionamento em
tal debate, o presente trabalho ignora
A memória tem ocupado uma posição a problemática acerca de conceitos es-
central na produção filosófica contem- pecíficos, como autonoese e confabu-
porânea, sendo objeto de uma série lação, que podem se tornar objeto de
de controvérsias e suscitando o surgi- trabalhos futuros, e se dedica exclu-
mento da filosofia da memória como sivamente ao estabelecimento das no-
um campo de pesquisas distinto (BER- ções ontológicas e epistemológicas mais
NECKER; MICHAELIAN, 2017). Mui- básicas sobre o tema, ainda objeto de
tas posições ontológicas e epistemológi- grande disputa.
cas reivindicam um lugar neste debate, O artigo se divide em duas seções.
que se estende desde os conceitos mais A primeira seção dedica-se à ontolo-
gerais sobre o tema até as nuances de

* Mestre e graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Atualmente realiza pesquisa de doutorado na
mesma instituição. Bolsista da CAPES. E-mail: johnllindemann@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8613-2132.

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gia da memória, obtendo uma posição ria, concluindo que Klein (2015) de-
com base na análise dos usos ordinários fende a melhor tese.
do termo “memória”, concluindo, em Dividida em quatro subseções, a pri-
congruência com Stanley Klein, em seu meira se dedica à análise dos usos ordi-
artigo “What memory is?” (2015), que nários do termo memória, a segunda
toda memória é episódica. A segunda apresenta e defende a tese de Klein
seção dedica-se à epistemologia da me- (2015), segundo a qual toda memória
mória, derivando uma posição epistê- é episódica, a terceira apresenta um po-
mica gerativista da tese ontológica pre- sicionamento acerca de como devemos
viamente defendida, concluindo que a compreender o conteúdo da memória e
memória é uma fonte básica de conhe- a quarta apresenta a análise de estudos
cimento análoga à percepção. empíricos que corroboram a tese defen-
Cabe especificar que, independente dida.
da utilidade dos termos “memória
sensorial” e “memória de curto prazo”
para o estudo de distintas funções cog-
nitivas, este debate se limita apenas à 1.1. Como devemos compreender a
memória de longa duração, compreen- memória
dida aqui como memória stricto sensu.
Prima facie, parece intuitivo supor que
devemos associar o termo “memória”
a qualquer estado mental que se ori-
1. Ontologia da Memória gine de uma experiência passada, mas
tal concepção é errônea, dado que pos-
Compreendendo a ontologia como o sivelmente todo estado mental do mo-
campo de investigações filosóficas que mento presente é condicionado por ex-
trata da realidade e existência das coi- periências passadas.
sas, a principal questão ontológica Tal como o dito de Agostinho de Hi-
acerca da memória é, necessariamente, pona (354-430) em relação ao tempo,
o que é a memória? afirmando saber o que é o tempo apenas
Pode-se encontrar uma vasta taxo- quando não indagado (AGOSTINHO,
nomia acerca dos diferentes tipos de 1964), assim somos em relação à memó-
memória na literatura especializada so- ria, pois usamos o termo de modo na-
bre o tema, assim como muitas ambi- tural em conversações diárias, mas di-
guidades em seus usos. Objetivando ficilmente conseguimos explicar nossa
uma contribuição estritamente filosó- compreensão de tal termo.
fica, esta seção se dedica ao estabeleci- O uso irrefletido em conversa-
mento de uma noção precisa de como ções diárias atribui ao menos qua-
devemos compreender o que é memó- tro significados distintos para o termo

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“memória”: (1) como “o lugar onde se namos nossas memórias é fundamental


armazena o que é lembrando” (“Está para que possamos ter memórias, mas
em minha memória”), (2) como “o tal local não é, ele próprio, sinônimo de
conteúdo que é armazenado” (“Eu memória.
guardo uma memória disso”), (3) como Uma crítica similar se aplica para
“a faculdade do lembrar” (“Use sua a concepção de memória como (2) “o
memória”) e (4) como “o ato mental” conteúdo armazenado”, além disso, a
(“Estou tendo uma memória”). Buscar tradição filosófica ocidental dispõe do
uma concepção filosófica do conceito de termo “traços de memória” para referir-
memória exige que o livremos de tama- se àquilo que de fato armazenamos, ci-
nha anfibologia. tando Descartes (1991, p. 93) como
Dado o conhecimento científico que exemplo:
nos é disponível, concebermos o termo
“memória” como (1) “o lugar onde se Assim, quando a alma quer
armazena o que é lembrando” não pa- lembrar-se de algo, essa von-
rece adequado. Hoje é unânime que o tade faz com que a glândula,
cérebro é o lugar onde estocamos nos- inclinando-se sucessivamente
sas memórias, mas o trabalho de pre- para diversos lados, impila os
cisar o lugar do cérebro que é respon- espíritos para diversos lugares
sável por armazenar nossas memórias do cérebro, até que encontrem
não torna mais precisa a compreensão aquele onde estão os traços [de
de tal termo. Indiferente às controvér- memória] deixados pelo objeto
sias sobre qual é o lugar exato, vamos que queremos lembrar; pois es-
assumir que de fato nossas memórias ses traços não são outra coisa
são armazenadas “de forma distribuída senão os poros do cérebro, por
por toda a extensão das áreas corti- onde os espíritos tomaram an-
cais primárias” (NICOLELIS, 2011, p. teriormente seu curso devido à
40), mas afirmar que toda a extensão presença desse objeto.
das áreas corticais primárias de nosso
cérebro seja um sinônimo de memó-
ria é errôneo, dado que tal definição A citação de Descartes explicita que
implica que não precisamos de experi- o conteúdo armazenado como traços de
ências passadas para termos memória, memória é compreendido como uma
apenas de um conjunto de neurônios e parte fundamental do processo pelo
outras células nervosas, distanciando- qual temos memória, mas não é, ele
se muito da intenção que desejamos ex- próprio, uma memória. Cabe especi-
primir quando usamos o termo. ficar que, embora o termo “traços de
Segue-se que um local onde armaze- memória” ainda seja recorrente, atual-
mente o termo “engrama” é mais apli-

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cado (NICOLELIS, 2011, p. 39). Segue- apenas um tipo de uso da faculdade que
se que devemos compreender engrama nos permite ter pensamentos episódi-
como a forma com a qual algo necessá- cos hipotéticos), a argumentação pela
rio para que tenhamos uma certa me- qual as concepções (1) e (2) foram des-
mória é contido em um local do cére- cartadas não aponta para a falácia da
bro adequado a tal finalidade, mas não circularidade, buscando precisar o pa-
como um sinônimo de memória. pel necessário de algo que corresponda
Por sua vez, conceber a memória a tais concepções para que possamos ter
como (3) “a faculdade do lembrar” sem- memórias e evitar que apenas uma ver-
pre será circular, dado que exige uma são ingênua delas fosse realmente ata-
compreensão prévia do que é lembrar cada.
para que possamos compreender tal fa- Resta analisarmos a concepção de
culdade, não elucidando a compreen- memória como (4) o próprio ato mental,
são do termo “memória”, pelo contrá- isto é, concebermos a memória como
rio, a supondo. Disto não se segue que uma espécie de estado mental que pos-
não tenhamos uma faculdade específica sui certas características específicas que
associada à memória, talvez compreen- o definem enquanto tal e o distinguem
dida como a faculdade que possibilita a de todos os demais atos mentais. Eis
emergência de uma memória em nossa aqui o único candidato legítimo à de-
consciência por meio dos estímulos que finição de memória, mas quais são as
ela gera nos engramas localizados nas características que definem a especifici-
áreas corticais primárias de nosso cére- dade de tal ato mental?
bro. Uma possível resposta é encontrada
Cabe esclarecer que as concepções no trabalho de Klein (2015), que, ne-
ordinárias (1) e (2), tal como apresen- gando explicitamente a concepção or-
tadas, também caem na falácia da cir- dinária (2) e defendendo uma tese em
cularidade, dado que (1) definir o local congruência com a concepção (4), argu-
onde a memória é armazenada supõe menta que a memória não é um con-
uma definição de memória e (2) o con- teúdo, mas uma maneira especial pela
teúdo armazenado é, ele próprio, defi- qual um certo conteúdo é experienci-
nido como sendo a memória, que, por ado, um ato mental cuja principal ca-
sua vez, é definida como o conteúdo racterística consiste em propiciar ao su-
armazenado. Diferente da concepção jeito que experiencia certa relação com
(3), que remete a algo possível e não o seu próprio passado que não pode ser
necessário, dado que talvez não haja obtida por qualquer outro meio.
uma faculdade específica da memória
(por exemplo, Sant’Anna e Michaelian
(2018) argumentam que a memória seja

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1.2. Memória é memória episódica tradução nossa):

Klein (2015) não nega que processos O termo autonoético têm sido
não experienciais contribuem para a usado para se referir a esse tipo
memória, tal como a formação e ma- especial de consciência que nos
nutenção de engramas, mas deixa claro permite estar cientes do tempo
que, apesar da sua contribuição, cujo subjetivo em que os eventos
caráter necessário já foi mencionado aconteceram. A consciência au-
na presente investigação, eles não são tonoética é necessária para a
a memória, que é definida como uma memória. Sem consciência au-
espécie de estado mental com caracte- tonoética, sem viagem mental
rísticas distintas. no tempo.
“Mais especificamente, a memória é
um modo especial de experienciar – um Sob os parâmetros de tal definição,
modo que fornece ao sujeito uma rela- segue-se que a autonoese é uma parte
ção fenomênica com o seu próprio pas- constitutiva da fenomenologia da me-
sado que não pode ser concedida por es- mória.
tados mentais não-memoriais” (KLEIN, Cabe esclarecer que existe uma am-
2015, p. 4, tradução nossa). pla gama de espécies de memória cata-
Para Klein (2015, p. 6), duas caracte- logadas na literatura especializada, com
rísticas interdependentes definem um destaque para as memórias procedu-
certo estado mental como memória: o ral, semântica e episódica como as mais
estado mental deve conectar-se causal- comumente aceitas. Entretanto, entre
mente com uma experiência que o in- tantas variedades, Klein (2015) define,
divíduo viveu no passado e, além disso, tal como suposto na continuidade deste
o estado mental deve ser acompanhado trabalho, que memória é apenas o que
da sensação de estar revivendo tal ex- se compreende como memória episó-
periência em uma espécie de viagem dica.
mental para o passado. A memória procedural refere-se às
O indivíduo que experiencia uma habilidades adquiridas mediante re-
memória não deve concluir que o seu petição, mas qual é a razão pela qual
estado mental é relativo ao passado deveríamos considerar uma certa ha-
como resultado de uma inferência, pois bilidade como memória e não apenas
a sensação de o estar revivendo em uma como um conhecimento técnico? Pen-
espécie de viagem mental no tempo semos na habilidade de realizar acordes
deve ser dada diretamente à sua cons- na guitarra como um caso de memória
ciência. Tal sensação é chamada de au- procedural: dado que cada acorde re-
tonoética. Segundo Tulving (2002, p. 2, alizado visa a ação presente desejada

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pelo guitarrista ao invés de orientar-se Klein (2015, p. 9) argumenta que não


para uma lembrança em seu passado, perdemos nada e ganhamos em preci-
nenhuma razão nos autoriza a compre- são conceitual se substituirmos a pala-
ender todas as vezes em que um gui- vra “memória” por “conhecimento” ou
tarrista faz acordes como o uso de sua “crença” em todos os casos possíveis.
memória ao invés do uso de seu conhe- Por sua vez, a chamada memória epi-
cimento técnico. sódica é aquela na qual realizamos uma
A memória semântica refere-se aos viagem mental ao passado e, em certo
conhecimentos baseados em conceitos. sentido, revivemos a experiência feno-
Segue um exemplo trivial: por vezes es- mênica de um evento autobiográfico,
quecemos qual é a palavra correta para sendo claramente orientada para o pas-
descrever algo e nos esforçamos para sado. Diferente dos dois tipos de me-
lembrar qual seja –até que ela ocorre mória previamente analisados, a me-
(ou não) em nossa mente. Mas qual é mória episódica se caracteriza como um
a diferença específica entre saber uma modo especial de experiência consci-
palavra e lembrar de uma palavra? Tal ente que é diretamente conectado ao
como a memória procedural, o “ato de passado, tal como defende Klein (2015),
lembrança” descrito no exemplo é vol- argumentando que, entre todas as es-
tado para uma finalidade no momento pécies de memória catalogadas, a cha-
presente ou futuro, isto é, usar a pala- mada memória episódica esgota todos
vra, não se caracterizando como um es- os usos legítimos do termo memória.
tado mental autonoético. Embora use-
mos a palavra “lembrar” para os casos
em que temos dificuldades para encon-
trar a palavra adequada que desejamos, 1.3. O conteúdo da memória
nenhuma razão nos autoriza a associar
tais eventos a falhas em nossa memória Apesar da defesa de que a memória
ao invés de falhas no processamento de não é um conteúdo armazenado, mas o
nosso conhecimento linguístico. ato mental pelo qual o experienciamos,
A argumentação contida nos pará- também assumimos que a presença de
grafos anteriores mostra que a memó- um conteúdo armazenado que possa ser
ria procedural e semântica são tipos experienciado ou ao menos condicionar
de memória que confundem-se, res- o conteúdo que é experienciado tam-
pectivamente, com o conhecimento téc- bém é uma condição sine qua non da
nico e com o conhecimento semântico, memória, portanto, segue-se necessário
fazendo com que o termo “memória” que explicitemos algumas especificida-
possa ser permutável com o termo des acerca de tal conteúdo.
“conhecimento”, sendo inútil. De fato, É sabido que temos lembranças fal-
sas, confabulações que não correspon-

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dem a nada que tenha sido o caso em mas sempre novas representações, di-
nosso passado, mas quando realmente ferentes entre si e construídas a cada
estamos tendo uma memória autên- novo ato de memória, fazendo com que
tica, isto é, quando temos a experiência um número possivelmente infinito de
mental de reviver um evento factual de diferentes representações sejam forço-
nosso passado, então é necessário que samente associadas a um único evento
o conteúdo lembrado seja uma repre- passado.
sentação adequada do evento de nosso A defesa de uma conexão causal entre
passado com o qual a memória mantém uma memória e o seu respectivo evento
um certo vínculo. passado é obviamente compatível com
Em relação ao funcionamento do a posição arquivista, segundo a qual o
nosso poder mental de experienciar me- próprio conteúdo arquivado estabelece
mórias adequadas ao nosso passado fac- tal conexão.
tual, podemos dividir as posições filo- Por outro lado, a defesa de tal co-
sóficas em dois grandes grupos. De um nexão causal não é tão facilmente as-
lado, os filósofos que chamaremos de sociável à posição construtivista, dado
arquivistas defendem que a memória é que ela dispensa a necessidade de tal
um instrumento passivo de reprodução vínculo na medida em que não implica
de representações adquiridas no pas- que o conteúdo da memória tenha sido
sado, de outro, os filósofos que cha- preservado, podendo ser satisfeita nos
maremos de construtivistas defendem casos em que uma representação ade-
que a memória é um instrumento ativo quada à representação do passado te-
e preciso de construção de representa- nha sido construída sem tal vínculo
ções relativas ao passado, isto é, todo o causal, como defende Squires (1969),
conteúdo da memória é construído no embora a posição construtivista tam-
momento em que lembramos (ROBINS, bém possa ser compatível com uma teo-
2016). ria causal na medida em que se defenda
Da perspectiva arquivista o conteúdo a possibilidade de que o vínculo cau-
da memória simplesmente preserva a sal seja mantido por um engrama que
representação que o gerou, mas da pers- apenas orienta a construção da repre-
pectiva construtivista parece que há sentação experienciada como memória,
sempre algum grau de inadequação en- não sendo seu único determinante.
tre o conteúdo da memória e sua res- Na esteira do trabalho de Klein
pectiva experiência passada, dado que (2015), defendemos que o conteúdo de
as representações experienciadas como uma memória deve conectar-se causal-
a memória de um mesmo evento não mente com uma experiência vivida no
são reproduções exatas da representa- passado. A concepção mais clássica
ção do passado ao qual se vinculam, de uma teoria causal da memória re-

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mete ao trabalho de Martin e Deutscher há um aspecto construtivista em sua


(1966), que consideram três cláusulas evocação, dada a inadequação da repre-
necessárias para que um estado men- sentação da idade dos pais.
tal seja associado à memória, resumi- Assim, em congruência com a teo-
das em linhas gerais como se segue: Um ria de Klein (2015), em uma leitura si-
estado mental deve ser associado à me- milar à sugerida por Michaelian e Ro-
mória se e somente se ele (1) fornece bins (2018) ao o interpretarem, defen-
uma informação precisa ou quase pre- demos que há uma conexão causal entre
cisa ao sujeito, (2) tal informação tenha memória e eventos passados garantida
sido adquirida de maneira adequada pelo conteúdo armazenado nos engra-
em algum evento no passado do pró- mas, mas tal conteúdo é passível de al-
prio sujeito e (3) que tal evento passado terações enquanto está armazenado ou
desempenhe um papel operacional na no momento de sua evocação, inclusive
produção do estado mental presente Mahr e Csibra (2018) apontam evidên-
associado à memória. Segundo os au- cias científicas que sugerem que a aqui-
tores, cada uma dessas três clausulas é sição de uma nova crença pode alterar
necessária e, tomadas em conjunto, são o conteúdo armazenado nos engramas.
suficientes para associarmos um certo Segue-se que o vínculo causal garan-
estado mental à memória. tido pelo conteúdo armazenado faz com
Percebe-se que da defesa de uma co- que nossas memórias autênticas sejam
nexão causal aos moldes de Martin e adequadas à representação do evento
Deutscher (1966) não se segue que o passado ao qual se vinculam, mas, dado
conteúdo experienciado em uma me- o aspecto construtivista em sua cons-
mória seja uma representação idêntica tituição, elas também são inexatas em
à sua representação originária, não im- suas minúcias.
plicando a defesa de uma posição ar-
quivista.
É comum que lembremos de certos
eventos factuais de nosso passado com 1.4 Análise de estudos empíricos
pequenas alterações, por exemplo, a
memória do dia em que nossos pais Henry Gustav Molaison (1926-2008),
nos levaram ao cinema pela primeira conhecido em vida como H.M. para
vez, sendo uma memória precisa de tal proteger sua privacidade, é o paciente
evento exceto pelo fato de que lembra- que mais contribuiu na história dos es-
mos de nossos pais idosos, como são tudos sobre a memória. Ele apresentava
hoje, e não jovens, como eram na oca- severas crises de epilepsia até 1953,
sião. Em certo sentido arquivamos o quando foi feita a remoção bilateral do
conteúdo de tal memória, mas também hipocampo, da amígdala e de parte de
seu córtex temporal em uma operação

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experimental. As crises de epilepsia com sucesso pela vacina Salk,


ficaram sob controle e, embora ainda H.M. acabou respondendo com
fosse capaz de experienciar suas me- “pólio” , apesar da vacina ter
mórias anteriores à cirurgia, ele perdeu sido inventada dois anos depois
a capacidade de rememorar qualquer de sua operação. (SKOTKO et
evento posterior. al, 2008, tradução nossa)
Se aceitarmos que H.M. perdeu a ca-
pacidade de adquirir algo necessário
Independente da possibilidade de
para que possa experienciar memórias
que todo conhecimento proposicional
relativas aos eventos posteriores à sua
precise de uma âncora que o relacione
cirurgia, segue-se que devemos descar-
com alguma memória episódica, desta-
tar a memória procedural como uma
camos a capacidade do paciente H.M.
memória stricto sensu, dado as novas
de adquirir novas palavras em seu vo-
habilidades motoras adquiridas pelo
cabulário e conhecer novas proposições
paciente H.M., mesmo não lembrando
relativas a fatos posteriores à sua ci-
dos eventos nos quais as tenha adqui-
rurgia, de tal modo que a memória se-
rido (SQUIRE, 2009).
mântica também deve ser descartada
Curiosamente, o paciente H.M. gos-
como memória stricto sensu, pois seria
tava de palavras cruzadas, o que exige
descabido assumir que um homem que
uma ampla gama de faculdades cogni-
acorda todos os dias acreditando que
tivas e possibilitou observações sobre
está no dia subsequente à sua operação
sua capacidade de adquirir um novo
tenha memórias adquiridas em dias que
vocabulário. Conhecer novas palavras
não lembra ter vivido.
não é o único indício de que H.M. man-
Segue-se que, em congruência com
teve habilidades associadas à chamada
Klein (2015), o paciente H.M. de fato
memória semântica, pois ele também
perdeu a capacidade de experienciar
expressava conhecimentos relativos a
memórias posteriores à sua cirurgia,
fatos posteriores à sua cirurgia:
pois toda memória é episódica.

Nestes testes, o H.M. demons-


trou que foi capaz de adquirir 2. Epistemologia da Memória
novas informações semânticas
no pós-operatório quando con- Compreendendo epistemologia como o
seguiu ancorar as representa- campo de investigações filosóficas que
ções mentais estabelecidas no trata da natureza do conhecimento hu-
pré-operatório. Por exemplo, mano e das relações entre o sujeito e
quando perguntado sobre qual o objeto do conhecimento, a questão
doença da infância foi tratada que tem orientado os principais debates

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epistemológicos acerca da memória é se mos voltar a entreter uma proposição


ela constitui ou não uma fonte básica em nossa consciência se ela não é uma
de conhecimento. memória?
Enquanto defensores do preserva- Embora a experiência mental de en-
tismo defendem que a memória não treter uma proposição previamente co-
pode gerar conhecimentos novos, de- nhecida possa estar em conexão causal
fensores do gerativismo argumentam com o momento passado de sua aquisi-
que ela pode, mas quase todos partem ção, tal experiência não inclui uma via-
de premissas comprometidas com po- gem mental para o passado, não sendo
sições ontológicas sobre a memória ra- acompanhada de autonoese, portanto
dicalmente distintas da que defende- não sendo, em nossa definição, uma
mos neste trabalho e da qual extraímos memória.
nossa posição epistêmica. Tal como sugere Klein (2015), deve-
Dividido em três subseções, a pri- mos deixar de considerar a memória
meira se dedica ao esclarecimento de proposicional como uma memória e as-
possíveis questões acerca da noção sumir que seja apenas uma crença. Mas
de memória proposicional, a segunda se não é uma memória, como a armaze-
apresenta os pormenores da noção epis- namos?
têmica de fontes de conhecimento e a Todo conteúdo que pode ser experi-
terceira apresenta uma nova teoria ge- enciado em uma memória foi previa-
rativista da memória. mente armazenado, mas tais conteúdos
também não são, eles próprios, memó-
rias. Da mesma forma, podemos assu-
mir que nossas crenças também sejam
2.1. Memória proposicional armazenadas, inclusive sendo armaze-
nadas da mesma forma com a qual ar-
Algumas de nossas intuições básicas so- mazenamos o conteúdo de nossas me-
bre como costumamos compreender a mórias, isto é, através de engramas, sem
memória são contrariadas ao assumir- assumirmos, com isso, que crenças se-
mos, na esteira de Klein (2015), que a jam memórias.
chamada memória episódica esgota to- Mas se não é através da faculdade da
dos os usos legítimos do termo memó- memória, como podemos lembrar de
ria, de tal modo que alguns esclareci- nossas crenças?
mentos devem ser feitos. Sob nossa perspectiva, nós não lem-
A chamada memória proposicional é bramos de nossas crenças, apenas vol-
possivelmente o caso mais problemá- tamos a entretê-las ou afirmá-las em
tico, considerada uma subespécie de nossa consciência. A respeito de qual
memória semântica e definida como a faculdade é responsável por essa ope-
memória de proposições. Como pode-

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ração, diferente da memória, podemos aquisição, então tal estado mental deve
assumir que a introspecção seja a facul- ser caracterizado como uma memória,
dade responsável, dado que crenças são compreendida como a experiência sub-
comumente citadas como introspectá- jetiva de reexperienciar um evento do
veis (SCHWITZGEBEL, 2016). próprio passado. Dado que a afirmação
Cabe lembrar que não nos compro- de uma crença também pode ser uma
metemos com a existência de uma fa- parte constitutiva da nossa experiência
culdade específica para a memória, as- de um evento, segue-se que experien-
sumindo a plausibilidade de que a me- ciar a reafirmação de uma crença tam-
mória seja apenas um uso da facul- bém pode ser uma das partes que com-
dade que nos permite ter pensamen- põem nossas memórias, mas o estado
tos episódicos hipotéticos, tal como de- mental constituído exclusivamente pela
fendem Sant’Anna e Michaelian (2018), reafirmação de uma crença é apenas
ou mesmo que experienciemos nossas isso, um estado mental de reafirmação
memórias por meio da mesma facul- de crença, não uma memória.
dade pela qual voltamos a afirmar nos-
sas crenças, sem assumirmos, com isso,
que reafirmar uma crença seja uma me-
mória. 2.2. Fontes de Conhecimento
Apesar de concedermos muitas si-
milaridades entre as chamadas memó- Segundo Audi (2002), compreende-se
rias proposicionais e o uso restrito que “fontes de conhecimento” como as ope-
reivindicamos para o termo memória rações responsáveis pelo exercício de
como memória episódica, defendemos entendimento que produz uma crença
que a memória é um tipo específico que constitui conhecimento, por exem-
de estado mental cuja fenomenologia plo, a experiência empírica de um fenô-
é discriminada por sua propriedade au- meno sob uma certa perspectiva que
tonoética, que nos permite estar cien- desvenda sua causação –até então des-
tes do tempo subjetivo relativo ao con- conhecida. Fontes de conhecimento
teúdo experienciado, sendo uma pro- também são amplamente consideradas
priedade fenomênica não conjugada como fontes de justificação, isto é, as
com o estado mental pelo qual volta- mesmas operações consideradas aptas
mos a entreter uma crença em nossa à aquisição de conhecimento são fon-
consciência. tes adequadas à legitimação do conhe-
Caso o estado mental no qual entre- cimento.
temos novamente uma crença também Fontes de conhecimento (ou justifica-
seja acompanhado por uma sensação ção) dividem-se em duas categorias: bá-
autonoética relativa ao momento de sua sicas e não básicas (AUDI, 2002). Uma
fonte é considerada básica quando pode

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produzir ou justificar o conhecimento da origem do conhecimento dos concei-


sem que dependa de outras operações, tos que devem ser associados ao objeto
isto é, o processo pelo qual uma crença e sua característica, não podemos negar
é formada ou justificada a partir de uma a produção original do conhecimento
fonte básica é considerado confiável e da relação que eles mantêm entre si.
produz legitimação epistêmica por si No que se refere à memória, certas
só, por exemplo, saber que uma deter- analogias com o testemunho são óbvias.
minada parede é azul devido à experi- Prima facie, tal como o testemunho, pa-
ência visual. Uma fonte é considerada rece que o processo pelo qual formamos
não básica quando ela depende direta- crenças a partir da memória não de-
mente de outras operações para a pro- tém autonomia epistêmica per si, de tal
dução ou justificação do conhecimento, modo que uma crença formada a partir
por exemplo, conhecer algo devido ao da memória precisa ser justificada por
testemunho de alguém, dado que o co- outra fonte.
nhecimento transmitido pelo testemu-
nho necessitou de outra fonte de co-
nhecimento para que pudesse ter sido
originalmente produzido e justificado. 2.3. Memória como fonte básica
Considerar uma fonte como básica
significa assumir que ela possui uma Muitos epistemólogos, como McGrath
certa autonomia epistêmica para pro- (2007), compreendem que a memó-
duzir ou legitimar o conhecimento. ria não é uma fonte básica de conhe-
Pode-se argumentar que alguém só cimento ou justificação, possuindo o
pode conhecer que uma parede é azul mesmo status do testemunho, de tal
pela experiência graças ao uso dos con- modo que a memória e o testemunho
ceitos de parede e de azul que já possui, são fontes pelas quais um certo agente
concluindo que a experiência empírica pode entreter uma crença em sua cons-
não é uma fonte básica porque depende ciência, mas a memória e o testemunho
de outra operação intelectual para pro- não garantem, por si só, a racionalidade
duzir conhecimento. Embora o conhe- de tal crença -que necessita de uma evi-
cimento perceptivo aparente depender dência oriunda de outra fonte para que
de uma operação intelectual relativa ao se torne um objeto de conhecimento.
conhecimento linguístico prévio, o fato Por outro lado, alguns epistemólogos
é que a experiência empírica em ques- defendem o gerativismo, como Lackey
tão produziu e fundamentou de modo (2007) e Fernández (2016), assumindo
autônomo o conhecimento de que um que a memória é uma fonte básica e
certo objeto (parede) possuí uma certa pode gerar o status epistêmico de cren-
característica (ser azul). Independente ças.
Nesta seção argumentamos em de-

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fesa de uma tese epistemológica gera- Seria absurdo supor que todas as
tivista, embora associável à tese gera- crenças que podemos formar acerca de
tivista de Lackey (2007), nossa posi- um evento são de fato formadas no mo-
ção é mais restrita, em coerência com mento em que o experienciamos, logo,
nossa posição ontológica, sendo aná- podemos ter a memória de um evento
loga apenas ao exemplo do “Motorista que possibilita a formação de novas
sobrecarregado” (orverloaded driver, no crenças sobre ele.
original. Cf. LACKEY, 2007, p. 217- Por exemplo: ao visitar sua mãe, o su-
218, tradução nossa) e não se ade- jeito S percebe que ela mudou os móveis
quando aos outros exemplos apresen- da casa de lugar, mas foi uma visita rá-
tados por Lackey. pida e S não forma nenhuma crença es-
Dada a defesa prévia de que toda me- pecífica sobre isso. Dias depois, S lem-
mória é episódica, segue-se que a me- bra da visita e fica curioso sobre o novo
mória é epistemicamente neutra, pois posicionamento dos móveis, aos quais
apenas proposições podem ser verda- não havia dado atenção devido à sua
deiras ou falsas e o conteúdo de uma pressa e aos outros assuntos importan-
memória, mesmo quando parcialmente tes que ocupavam sua mente naquele
constituído pela experiência subjetiva momento. Esforçando-se para lembrar
de voltar a entreter uma proposição do novo posicionamento, S tem a me-
crida durante o evento lembrado, não mória M, isto é, S viaja mentalmente
é, tomado em sua totalidade, propo- para o evento passado relativo à visita e
sicional. Uma memória parcialmente “revive” a experiência de ver um televi-
constituída pela experiência de entre- sor sobre a geladeira. Com base em M,
ter uma proposição previamente crida S crê que P, isto é, S crê que há uma te-
não é autêntica em virtude de qualquer levisão sobre a geladeira na casa de sua
critério veritativo relativo à proposição, mãe. A memória M é epistemicamente
mas sim pelo fato de que entreter nova- neutra acerca de qualquer fato relativo
mente tal crença, independente do seu ao evento passado que a originou, em-
valor de verdade, constitui uma parte bora constitua um estado mental ade-
adequada à experiência subjetiva de re- quado à experiência subjetiva de estar
viver o evento lembrado. revivendo tal evento. Mesmo sem que
Embora não seja verdadeira ou falsa, M mantenha qualquer vínculo epistê-
toda memória mantém uma conexão mico com sua experiência originária do
causal com o evento passado ao qual se passado, o processo pelo qual S crê que
relaciona, constituindo um estado men- P a partir de M é confiável, dado que a
tal adequado à experiência subjetiva de memória M é apta a justificar a raciona-
reviver um certo evento do próprio pas- lidade da crença de que P. Segue-se que
sado. S sabe que P tendo a memória M como

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sua única fonte de formação e justifica- ções sensíveis originárias, tal conteúdo
ção. é epistemicamente neutro e, no que diz
Sob tal perspectiva, a memória respeito ao status epistêmico das cren-
deixa de ser análoga ao testemunho ças, não nos interessa qualquer rela-
e passa a ser análoga à percepção, ção que as fontes mantenham entre si
caracterizando-se como uma fonte bá- acerca de seus conteúdos, apenas a re-
sica de conhecimento. lação de confiabilidade da operação a
Poder-se-ia objetar que embora a partir da qual uma fonte é apta à for-
nova crença tenha sido baseada na me- mação e justificação de crenças.
mória, a memória, por sua vez, foi ba- Assumindo que os dados brutos dos
seada na percepção, de tal modo que sentidos são o conteúdo da percepção,
a fonte básica da nova crença continua cabe especificar que tal conteúdo tam-
sendo a percepção. bém é epistemicamente neutro. O que
Dado que o caráter epistêmico de faz com que a percepção seja uma fonte
toda crença advém apenas da confi- básica de conhecimento é o fato de que
abilidade do processo pelo qual uma os processos nos quais ela atua na for-
certa fonte atua em sua justificação, mação de crenças são confiáveis. Tal
nosso exemplo demonstra que a me- como a percepção, independente da
mória pode ser a única fonte atuante origem do conteúdo epistemicamente
no processo pelo qual uma crença é neutro das memórias, o processo pelo
produzida e justificada, pois a percep- qual a memória atua como a fonte ex-
ção do evento era inacessível para S no clusiva para formação e justificação de
processo de produção e justificação da novas crenças é confiável, portanto de-
crença de que P, no qual apenas a me- vemos compreender a memória como
mória M atuou. uma fonte básica de conhecimento.
A despeito de que toda memória de-
penda de uma forte conexão causal com
a percepção do evento que a origina
e ao qual ela deve adequar-se, lem- Considerações Finais
bremos que o conteúdo experienciado
em uma memória também é em parte O presente trabalho se dedicou ao es-
construído e mutável, não sendo ape- tabelecimento de posições ontológicas e
nas uma reprodução exata da experiên- epistemológicas básicas sobre a memó-
cia perceptiva original e sim uma ex- ria.
periência mental distinta. Mesmo que Partindo da análise dos usos ordiná-
o conteúdo experienciado nas memó- rios do termo memória, concluímos que
rias fosse sempre idêntico ao conteúdo devemos compreender toda memória
experienciado por meio de suas percep- como episódica, tal como defendido por
Klein (2015), isto é, causalmente conec-

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tada com um certo evento do próprio gico básico, a continuação lógica deste
passado e caracterizada como a experi- trabalho consiste em explorar as con-
ência subjetiva de o reviver com sensa- sequências de tais teses em controvér-
ção autonoética. sias específicas da filosofia da memória,
Supondo tal posição ontológica, con- tal como o conceito de confabulação, a
cluímos que a memória é uma fonte bá- saber, um tipo específico de experiên-
sica de conhecimento, análoga à per- cia mental semelhante à memória, mas
cepção, dado que seu conteúdo é episte- cujo estado mental não está em conexão
micamente neutro e apto a gerar o sta- causal com qualquer experiência que o
tus epistêmico positivo de novas cren- indivíduo tenha vivido no passado, o
ças. que fomenta uma série de problemas à
Dado o estabelecimento de tal po- nossa posição epistêmica e serão objetos
sicionamento ontológico e epistemoló- do próximo trabalho.

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Recebido / Received: 24/11/2019


Aprovado / Approved: 27/01/2020
Publicado / Published: 20/09/2020

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