Você está na página 1de 216

r

rocedimentos dá

iistgnaáia discussão
is à transposição da
PaCTBSBBs: v
■idéjital ao tempo da
uesa e súá absorção

!a )ei&rá; de umá lei colonial, o


âokíndfós, quc^gôrou entre

fdlj^iWõittiftoHtèiin nbjte-do Brasil e

0 ; E J ' aq^ ex^iB ado em uma


‘^teo^c^ya^lpjrigo^r^zoj -mediante a
\ 5l.(i |fí^ S ;d ç n tn in n a le i
j Jos ^ a-úmávtradjção.-de,conquista

pplítiça e cultiuàl dos países europeus,


cm.particular dé Portugal'
i p l g p ' ;
São também discutidos os aspectos
rnóvadârèscohtídosnoDirefono, como
lei que j f íeníou a nova condição
civil dèdíberdade aos índios, concedida

KDU; 031526, ‘
ÍÍ^ g 5 iÍ3 (Q :^ 3 3 ^ '1
Rita Heloísa de Almeida
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Reitor
João C laudio Todorov

Vice-Reitor
E rico P. S. W eidle

E d it o r a U n iv e r s id a d e d e B r a s íl ia

Diretor
A lexandre L im a
O Diretório dos índios
C o n s e l h o E d it o r ia l Um projeto de "civilização” no
Presidente
Brasil do século XVIII
E m anuel A raújo

A lexandre L im a
Á lvaro Tam ayo
Aryon D ali’ Igna R odrigues
D ourim ar N unes de M oura
E m anuel A raújo
E uridice C arvalho de Sardinha F erro
Lúcio B enedito R eno Salom on
M arcel A uguste D ardenne
S ylvia Ficher
Vilma de M endonça F igueiredo
V olnei G arrafa

50
UnB
Direitos exclusivos para esta edição:
EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
SCS Q.02 Bloco C N“ 78 Ed. OK 2“ andar
703000-500 Brasília - DF
Fax: (061)225-5611

Copyright © 1997 by Rita Heloísa de Almeida

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser


armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorização por escrito
da Editora.

Impresso no Brasil

S upervisão editorial
A írton L ugarinho

P reparação de originais
W ilma G onçalves R osas S altarelh

R evisão
J oelita de F reitas A raújo

C apa
C hico R egis

E ditoração eletrônica
M agda H ayata de A zevedo

S upervisão gráfica
E lmano R odrigues P inheiro

ISBN: 85-230-0433-5

Ficha catalográfica elaborada pela


Biblioteca Central da Universidade de Brasília
Dedico este trabalho aos meus pais Márcia e Manoel
A447 Almeida, Ritá Heloísa de e aos meus filhos Fausto e Consfança.’
O Diretório dos índios: um projeto de
civilização no Brasil do século XVIII. /
Rita Heloísa de Almeida. — Brasília :
Editora Universidade de Brasília, 1997.
430 p. : il.
Anteriormente publicado como tese da
autora.
1. Antropologia cultural. 2. História
do Brasil. I. Título.
CDU-39 (81-082)
981.025
— O ra, achas que a habilidade de um pintor fica dim inuída
se, depois de ter pintado o mais belo modelo de homem e dado à
sua pintura todos os caracteres adequados, for incapaz de dem ons­
trar a existência de semelhánte homem?

Platão, A República
Agradecí m en tos

E ste tra b a lh o fo i o rig in alm en te tese d e d o utorado o rien tad a pelo


p ro fesso r Jo ão Pacheco d e O liveira Filho e apresentada em abril d e 1995
ao P ro g ram a de P ós-G raduação em Antropologia Social do M useu N acio­
nal, U niversidade F ederal d o Rio de Janeiro.
Q u ero ag ra d ece r a to d o s o s professores do M u seu N acio n al, p rin­
c ip a lm e n te a a ju d a d a d a p e lo s professores L uís F ern an d o D ias D uarte,
O távio G uilherm e C ardoso A lves Velho e pelo historiador Ronaldo Vainfas,
professor d a U niversidade F ederal Fluminense. Sou grata aos professores
do D ep artam en to d e C iên c ias Sociais da U niversidade de B rasília, em
especial M ariza G om es e S o u za Peirano e Julio C ezar M elatti.
A gradeço o acolhim ento que me dispensaram em L isboa os pesquisa­
dores do C entro de A n tro p o lo g ia Cultural e Social do Instituto d e Investi­
gação C ien tífica e T ropical. D e modo geral, agradeço a todos qu e trabalha­
vam nos arquivos, bibliotecas e museus consultados durante a pesquisa
realizada no Rio de Jan eiro e em Lisboa, entre 1991 e 1992. Em particular,
agradeço a colaboração d e Jo sé Sintra M artinheira, do A rquivo H istórico
U ltram arino.
E sta pesquisa contou com o apoio de bolsas de cursos e d e pesquisa
fo rn e cid a s p elo C o n selh o N acional de D esenvolvim ento C ientífico e
T ecnológico (CN Pq), o au x ílio para redação dado pela Fundação Ford e a
A ssociação N acional de Pós-G raduação e Pesquisa em Ciências Sociais
(A npocs), além d a co n trib u ição da Fundação N acional do ín d io (Funai),
i
que m e concedeu tem po e condições para term iná-la.
S umário

I ntrodução, 1 3

P rimeira P arte
A s I déias

C apítulo 1 - C ivilizar índios foi sempre uma forma de


colonização , 2 5
U ma intenção de incorporação em meio
a leis de escravidão, 2 9
Í ndio : um assunto de E stado, 3 6
O s ESPAÇOS ONDE OCORREM EXPERIÊNCIAS DE CIVILIZAÇÃO, 4 5

C apítulo 2 - C olonizar: o povoamento e a edificação


DE CIDADES, 5 3
N acionalidade e colonialismo, 5 4
C onhecendo um pouco mais a matéria- prima
do V elho M undo, 5 9
E xemplos de transposição, 6 5

C apítulo 3 - 0 governo da conquista,7 5


A s PRIMEIRAS experimentações de vida urbana
em P ortugal, 7 6
R egimentos, alvarás, instruções: as primeiras
constituições brasileiras, 86
L ições de costumes: apontamentos militares e máximas sobre
o bom governo , 9 7

C apítulo 4 - E nsaios, esboços, projetos, 115


O sentido da secularização, 116
A correspondência entre governantes, 1 2 0
Os AUTORES DE PROJETOS, 128
Os PROJETOS, 132

S egunda parte
A s T ransposições Introdução
C apítulo 5 - U m projeto em experimentação: o D iretório
dos índios, 1 4 9
O contexto do D iretório , 1 5 2
O D iretório por ele mesmo , 1 6 5
Este texto apresenta os resultados de meus estudos sobre uma
lei colonial chamada Diretório que se deve observar nas povoações
C apítulo 6 - Q uestionando a realidade das normas, 227
C riação de uma economia extrativista, 227 dos índios do Pará e Maranhão.
F ormação de hábitos de trabalho, 236 A pesquisa começou a delinear-se quando, pela primeira vez, li
As alianças nativas, 249 “O semeador e o ladriihador”, capítulo do livro Raízes do Brasil
(1936/1981), de Sérgio Buarque de Holanda. Nele, o historiador ava­
lia as ações cólonizadoras de portugueses e espanhóis tomando como
T erceira parte
termos referenciais as concepções de espaço social deixadas impres­
As T raduções
sas nas cidades que ambos implantaram na América. Faz, a propósi­
C apítulo 7 - O s primeiros registros, 2 6 1 to, uma bela análise da postura de cada um, levantando questões que
C onhecer a terra , conhecer a gente, 2 6 3 vêm motivando muitas investigações na História e na Sociologia.
A FACE FANTASIOSA DA OBSERVAÇÃO: AMAZONAS, GENTIO DE CORSO, No entanto, como que diante de uma imaginada balança, tende a
Anões, caudados, canibais, 2 7 1
considerá-los termos opostos.
Focos de resistência nas entrelinhas das descrições: Ao espanhol coube um perfil regular. Para Sérgio Buarque de
T o p in a m b á , A j u r ic a b a , C aboquena, 278
Holanda, o traço retilíneo das cidades da América espanhola expri­
Dois CASOS DE TRADUÇÃO E DE AJUSTAMENTO
me a personalidade de um construtor que dirige suas ações a um
de códigos culturais, 284
“fim previsto e eleito” (1981, p. 62).
C apítulo 8 - O s primeiros testemunhos, 2 9 1
Quanto ao colonizador português, Buarque de Holanda desenha
a silhueta de quem prefere agir por “experiências sucessivas, nem
C onclusão , 3 2 1 sempre coordenadas umas às outras, a traçar de antemão um plano
para segui-lo até o fim” (idem, p. 76). Postura que, a seu ver, está
L ista de I lustrações, 3 5 1 impressa na harmonia com que suas cidades se acercam da natureza,
sem intervenções que a contradigam.
F ontes e B ibliografias, 3 5 3 Ao ler esses comentários, veio-me à lembrança um material que I
sugeria a formação de opinião diversa da que, mediante a observa­ #
A pêndice - D iretório que se deve observar nas povoações ção das cidades, conduziu o historiador a conceitualizar certa ausên­
dos índios do P ará e do M aranhão enquanto sua majestade não cia de planejamento nas ações colonizadoras dos portugueses na
mandar o contrário , 3 7 1 América. Esse material é encabeçado pelo mesmo Diretório acima
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 15

-4- um documento jurídico que regulamentou as ações colonizado- nistrativa que dirigia Portugal e empreendimentos coloniais. Con­
ras dirigidas aos índios, entre os anos de 1757 e 1798. tou, inclusive, com a preparação de um ambiente social que fosse
É preciso assinalar que todo documento jurídico que no período sensível às transformações que supunha o ato de restituir a liberdade
colonial se relacionava com os índios do Brasil tem aspecto de lei aos índios.
geral. Esta observação é especialmente apropriada à compreensão Em que pesem as circunstâncias políticas favorecendo essas me­
do Diretório, pois sua aplicação aos índios do Brasil tinba, além de didas — por certo, inovadoras — , teremos oportunidade de verificar
um propósito evangelizador, o objetivo de solucionar grandes pro­ que o Diretório não se constituía uma novidade, em termos de ins­
blemas da defesa territorial e do povoamento, apresentando como trumento jurídico de políticas coloniais. E neste aspecto será aqui
sugestão um plano de secularização no serviço da administração dos considerado o processo colonizador, de onde podemos depreender
índios, o qual, entre outras medidas, visava à substituição dos missio­ seus significados e discursos convincentes, assim como as ambigui­
nários regulares por funcionários civis e militares. dades e também as justificativas para melhor empenho e eficácia. É
Aparentemente, o Diretório suscitava rupturas, mas ao longo preciso saber que o Diretório, regulamentando as condições em que
deste trabalho veremos que esse regimento continua e consolida as se fazia legítima a liberdade dos índios, ainda deu margem à conti­
ações colonizadoras anteriores. Situado em seu próprio tempo e es­ nuidade de certas práticas de escravidão.
paço, o Diretório teve o cunho de carta de orientação da amplitude Esta pesquisa, pelo modo como aqui está sendo reproduzida,
equivalente às Constituições que atualmente regem as nações. Para privilegia as fontes primárias. Em primeiro lugar, porque constitu­
demonstrar o que acima se afirma, listamos sucintamente algumas em material de interpretação polêmica, sugerindo como alternativa
de suas instruções. Pelo Diretório ficava estabelecido o uso exclusi­ de análise abrir neste texto espaços discursivos para que tais fontes
vo da língua portuguesa, estimulava-se o casamento entre índios e falem por si. Segundo, por ser este um procedimento equivalente ào
brancos, assim como um convívio social e comunitário nas novas adotado pelo antropólogo no que tange a fazer análises a partir da
povoações ou nas antigas missões que então se elevavam a vilas. No observação direta do objeto de estudo.
interior destas povoações ficariam seus habitantes, índios e brancos Trabalhar com material histórico, tal como o antropólogo faz
sujeitos às mesmas leis civis que regiam as populações urbanas de em pesquisa de campo, tem seus problemas. No caso da presente
Portugal, os quais contariam, nas administrações locais, com repre­ pesquisa, analisar uma lei escrita em outro tempo, com conceitos
sentações da Justiça e da Fazenda, e gozariam do direito a ocupar amparados em valores e significados bastante diferentes daqueles
cargos públicos. O trabalho agrícola, o comércio e demais ativida­ com que estamos mais familiarizados, levanta o problema da tradu­
des econômicas sugeridas pelo ambiente de cada povoação, o traba­ ção, isto é, como ver e transmitir nossa observação sobre o dado.
lho remunerado, o sistema de tributação são alguns dos aspectos
Traduzir implica o esforço de transportar nossa percepção para
referidos nas instruções que organizam o governo econômico dessas
o tempo em que decorre o acontecimento. Este exercício tem sido
povoações.
realizado nas ciências sociais com resultados fecundos.
Os dados mostram que o Diretório foi um plano de civilização
Exemplo pioneiro de trabalho sociológico sobre material biblio­
dos índios e um programa de colonização. Dirigido inicialmente às
gráfico e documental vem de Florestan Fernandes.1Em seu procedi­
povoações indígenas do norte do Brasil, seria logo aplicado às de­
mais regiões onde já havia trabalho missionário e, ao mesmo tempo,
utilização de índios em atividades econômicas de colonos e gover­ 1 Para esta discussão foi valiosa a leitura dos artigos de Mariza Peirano. Minhas
nos coloniais. observações sobre o objeto da Antropologia começam por esta leitura e toda uma
bibliografia lida nos cursos de História da Antropologia e Indivíduo e Sociedade
O Diretório contou com oportunidades políticas favoráveis. Sua organizados pela professora em 1981 e 1982 para o Programa de Pós-Graduação
autoria está afinada e comprometida com a máquina político-admi-. em Antropologia Social da Universidade de Brasília (Peirano, 1992).
16 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 17

mento analítico, ele percorre os seguintes passos. Primeiro, selecio­ outras áreas sobre os limites das próprias observações de campo como
na autores que apresentam informações sobre os Tupinambá, avali­ recurso para compreensão do objeto de estudo. Explico melhor: cada
ando a importância da contribuição de cada um a partir da análise vez mais estudos no campo da Antropologia e da História tendem a
das condições em que foram colhidas as informações: se tais obser­ considerar relevante as condições em que foram observados os da­
vadores chegaram a conviver intimamente com os índios, se manti­ dos, pelo que informam a respeito do tempo social dos observadores
veram contatos episódicos, ou se os dados provêm de terceiros. A e, fundamentalmente, dos valores que sustentam suas conceitua­
seguir, procede a um inventário das informações, examinando criti­ lizações e formas de registro. Portanto, inventariar registros de for­
camente seu conteúdo etnográfico, mediante a análise da origem e mas habitacionais nativas ou trazidas pelos portugueses e africanos
da qualidade das fontes, bem como o julgamento de critérios de con­ permite-nos mais a rec onstituição da “visão de mundo” dos observa­
sistência, coerência e profundidade medidos por meio do cotejo das dores e menos a dos seus artistas e construtores, objetos de obser­
mesmas observações em todos os autores selecionados (1975, pp. vação e registro. Um inventário que não deixa de ser também um
191-289). levantamento de subsídios ao estudo da gênese de aspectos da atua­
Em outras palavras, Florestan Fernandes transplanta procedi­ lidade, constituídos desde o início da colonização, ou seja, ò concur­
mentos típicos do trabalho de campo antropológico e da pesquisa so de conhecimentos e estratégias trazidos pelos povoadores do Bra­
com amostragens, com o intuito de suprimir as evidentes falhas de sil na composição de soluções hoje assimiladas como cultura.
um estudo de finalidade etnográfica sobre uma sociedade tribal ex­ Repisando as questões suscitadas pela leitura de Florestan
tinta, da qual não se dispõe de registros próprios e sobre a qual há Fernandes, não se poderia dizer que tenha havido de sua parte um
somente registros produzidos por observadores a ela estranhos — descuido consciente ao não confrontar o dado com o contexto social
em certo sentido, seus inimigos ou representações potenciais destes. de sua produção intelectual. Intitulando sua proposta de método de
Tal procedimento, Original e exaustivo, exige riqueza de fontes, interpretação funcionaiista, o sociólogo assume o empenho desta
como, de fato, é o caso de Florestan Fernandes, no estudo dos Escola em fornecer uma visão “totalizadora ou globalizadora” (1975,
Tupinambá. Todavia, seus resultados encaminham muito mais a um p. 277) de seu objeto de estudo, o que não exclui de suas reflexões
inventário de conceitualizações dos europeus sobre os Tupinambá considerar os condicionamentos históricos sobre os autores que re­
que a uma reconstituição etno-histórica deles, o que não invalida os gistram a informação.
resultados analíticos obtidos pelo antropólogo. Apenas ressente-se Ocorre que o amadurecimento dessas questões metodológicas
da falta de um exercício de sociologia sobre a produção intelectual também transcorre em ritmo condicionado pelas experiências de
das fontes. Por quê? campo e pela percepção de seus resultados como causa da escolha
Florestan Fernandes considerou corretamente o registro históri­ de tal ou qual perspectiva. Há um crescente reconhecimento, nas
co do cronista um dado de valor etnográfico, pois obtido mediante a pesquisas sociais recentes, de que é a tomada de perspectiva a esco­
observação e, muitas vezes, a participação do observador no aconte­ lha do ângulo que define o teor das descobertas que serão feitas,
cimento registrado. Mas não previu analiticamente o exame do dado bem como o grau de compreensão do objeto de estudo e a forma de
no contexto histórico em que foi produzido, por meio do qual pode­ transmissão ao público. Cresce a percepção de que os resultados da
ría discernir o pensamento europeu sobre outros povos, as atitudes e pesquisa já estão definidos no momento da adoção do método. Pode­
expectativas ordinárias dos colonizadores em contato com popula­ riamos, então, concordar que os estudos sobre sociedades e culturas
ções nativas e as políticas condicionantes e quase sempre deter­ têm por objeto empreender exercícios de autoconhecimento e reco­
minantes de uma maneira de interpretar o que é assistido e vivenciado. nhecimento de nossas convicções e aspirações, não sendo estas nada
Estas precauções não estão restritas aos estudos históricos, mas mais que sentimentos produzidos no meio social em que vivemos, e
neles incidem, porque resultam da percepção de pesquisadores de que ao final cumprimos o papel de registrar observações de nosso
R ita H elo ísa d e A lm eida O D iretório dos índios 19
18

tempo (e de nossa ordem de valores). Mas, se hoje nos prendemos seja, a de saber como afloram os sentimentos de pertencimento e
ao aspecto frágil que tal constatação imprime às nossas análises, estranhamento no encontro com o Outro (Said, 1990).
vendo (e lamentando) a relatividade de seu peso para o processo M inha perspectiva aproxima-se daquela com que Said trabalha,
cumulativo de conhecimento (nem sempre progressivo e ascendente), quando defino que são os autores dos textos examinados os atores
aó menos nos livramos da atitude de exigir que nossos autores (e da cena que estudo. As fichas de anotação que utilizei a partir da
atores sociais), situados no passado, percebam a realidade ém que leitura do material de arquivos têm aqui o mesmo tratamento analí­
vivem com os olhos de quem os observa duzentos anos depois. tico sugerido por Florestan Fernandes, no que diz respeito a produ­
O trabalho de seleção dos temas, qualificação dos dados e orga­ zir amostras deste discurso pensando em uma composição. Uma per­
nização segundo a ordem da relevância, precisão e confiabilidade da gunta que presidiu toda a fase de pesquisa dos dados foi o que tomar
informação, representa a contribuição de Florestan Fernandes aos como peças da composição, algo correspondente à indagação de
estudos de Antropologia e História. Ele faz justiça ao ofício do Florestan Fernandes, isto é: o que considerar etnográfico.
etnógrafo, no que tange ao empenho de registrar com fidelidade suas O Diretório exprime uma visão de mundo, propõe uma trans­
observações, ou melhor, ele abstrai o empenho e transplanta a ima­ formação social, é o instrumento legal que dirige a execução de um
gem para uma situação em que inexiste a observação direta, fazendo projeto de civilização dos índios articulado ao da colonização. Em
suas as impressões dos autores quinhentistas e seiscentistas. Creio suma, um objeto de intervenção amplo, que abrange a pretensão de
que esta fórmula vem sendo experimentada com intenções e resul­ construir uma nova ordem social. As anotações que fiz procuram
tados diferentes. traçar uma linha em tomo desta abrangência. Selecionei como mate­
O historiador Carlo Ginzburg, ao perscrutar o raciocínio sinuo­ rial documental: a correspondência dos governantes, os relatórios
so de Menocchio, um obscuro moleiro perseguido pela Inquisição de funcionários coloniais, as memórias e outros escritos de cunho
por supor que o mundo tinha sua origem na putrefação, vasculha o oficial que tratam do projeto colonizador. Nestes registros, os índios
processo de julgamento, mas segue adiante reconstituindo a biblio­ são objeto de transformação, e, quando o conhecimento de seu modo
teca de seu personagem, por desejar entender o porquê daquela sua de viver não possui interesse como material estratégico, são rarefei-
declaração (1989: pp. 11-12). Neste caso, o material literário confi­ tas as observações.
gura o universo de valores, idéias e sentimentos que deram sustenta­ Em resumo, é um material que só fornece as falas dos coloniza­
ção a essa explicação sobre a origem do mundo, permitindo a dores e, basicamente, a do governo colonial. Aqui se repete, sem
Ginzburg explorar, por este ato herético, contestador do pensamento ilusões, a viagem de retorno realizada por Edward Said e, especial­
dominante, o difícil caminho, o pouco registrado campo da cultura mente, Bernard Daniel McGrane, em sua proposta de ler a história
popular, da luta de classes, em suma, o pensamento e o cotidiano das das concepções sobre o Outro, formuladas pela civilização ociden­
classes subalternas. Sua intenção foi fazer uma etriografía sobre o tal desde o século XVI até o presente e que lhe dera como rastro a
que não chegou a ser registrado e uma arqueologia do irrevelado, história desta problematização na Antropologia (McGrane, 1976).
procurando saber quais as motivações ideológicas do encobrimento Sem ilusões, porque serão tratadas aqui, principalmente do discurso
social de seus significados. colonizador, a tradição a partir da qual ele se forma e as diferentes
Já o antropólogo Edward W. Said faz uso distinto do material experiências históricas de que o Diretório é exemplo.
literário de sua pesquisa. Assume as implicações sociais sobre a pro­ Assim, à medida que avançavam as anotações e o entendimento
dução literária como a via pela qual se pode visualizar um discurso das questões, foram se definindo aspectos da configuração histórica
europeu sobre o Oriente como a expressão inversa do conjunto de que cerca o Diretório, com temas que começam com o próprio, sua
valores da civilização ocidental. Sua intenção foi fazer uma arqueo­ discussão como política de civilização e incorporação dos índios à
logia das questões mais profundas do relacionamento humano, qual colonização. Abrangendo tudo: os acontecimentos decorrentes do
20 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 21

Tratado de Madri, a expulsão dos jesuítas, a secularização das al­ que desencadeia forças, bem assim seu estudo sobre “modelos de
deias, as reformas institucionais em Portugal e no Brasil. verdade”, que constituem áreas de conhecimento como o Direito.
Esses aspectos que cercam o estudo do Diretório são temas Finalmente, cabe dizer que o conceito de “disciplina” de Foucault
simultâneos que muitas vezes incidem em um mesmo documento, foi-me de grande valia por aproximar-se das interpretações de Elias
negando-se mutuamente, sem permitir mensurações sobre a efeti­ quando este transmite a idéia de processo civilizador como aprimo­
vidade do projeto. Este tipo de material pode confundir o pesquisa­ ramento do controle sobre as emoções. De Richard Morse (1988),
dor, se adotado como procedimento escolher um dado entre outros, foi trazida para este trabalho a idéia sobre os desdobramentos da
usando como medida critérios estranhos ao universo de significados colonização na América, como resultantes de opções culturais cons­
do objeto de estudo. Neste caso, encerra-se a adoção do procedi­ tituídas conceitualmente em tempos remotos da formação das na­
mento de Florestan Fernandes com o recorte do campo do objeto de ções européias.
estudo já bem delimitado e dá-se início a um roteiro de interpretação O material reunido neste trabalho é resultado de minha pesqui­
em que os dados são lançados ao texto, quero dizer, expõem-se os sa nos arquivos do Rio de Janeiro e Lisboa, havendo ainda alguma
discursos e discute-se seu teor. contribuição colhida no Arquivo Público Mineiro e no Arquivo His­
Todavia, a questão não se restringe à definição do procedimen­ tórico de Goiás. No Rio de Janeiro, enquanto participava das ativi­
to de pesquisa. Voltamos ao domínio do objeto de estudo e da pri­ d a d e s do c u rso de dou to rad o previstas pelo Program a de
meira razão anteriormente citada, para justificar uma descrição db Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (1990 a
Diretório, entremeando trechos originais com comentários nossos, 1992), tive a oportunidade de consultar a Biblioteca Nacional, o
procurando, deste modo, partilhar com o leitor a interpretação do Arquivo Nacional, a Mapoteca do Itamarati, o Real Gabinete Portu­
texto. Note-se que, no fundo, todas essas explicações e cautelas ex- guês de Leitura, tendo conhecido bem o acervo do Instituto Histó­
primem uma vontade de manter a postura de observação e registro rico e Geográfico do Brasil. Nos seis meses passados em Lisboa
como linha fronteiriça a separar o pesquisador do objeto. Isto, por­ (1992), trabalhei no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Arquivo
que no uso de documentos que representam a linguagem de uma Histórico Ultramarino, Biblioteca da Ajuda, Biblioteca Nacional,
política, a emergência de contradições não é fato que ieve a descar­ Sociedade de Geografia e Gabinete de Estudos Arqueológicos de
tar um dado por outro eventualmente mais coerente e confiável. De Engenharia Militar.
fato, a contradição entre as informações constitui um dado. Nosso A lista extensa de arquivos indica os rumos da presente pesqui­
objetivo é chegar a uma composição das peças do discurso. Assim, sa. Em cada um desses arquivos, o propósito foi sempre identificar
cada anotação em ficha pode ser vista como uma amostra, na medi­ todo documento que viesse compor a situação que cerca o Diretório.
da em que representa uma leitura de um documento particular, uma É com o sentido de esclarecer a documentação oficial sobre o
carta, uma lei, uma memória, que chama nossa atenção por falar Diretório que virão ao presente trabalho os conceitos que estavam
sobre um e outro tema anteriormente relacionados. sendo elaborados por Morus, Rousseau, Bentham e Locke. Não hou­
Esta maneira de trabalhar os dados é orientada pelos conceitos ve, entretanto, uma preocupação em estudar detidamente o pensa­
de “processo”, “configuração” e “hegemonia” de Norbert Elias, e mento destes filósofos. Como autores próximos ou mesmo con­
naturalmente os de “cultura” e “civilização”, como um material que temporâneos ao Diretório (exceto Morus), seus escritos foram
se forma lenta e espontaneamente nos processos sociais (1990,1993, consultados com o mesmo interesse de quem busca o significado de
1982, 1985). uma palavra no dicionário da época em que estava sendo empregada.
Não se esgotam aí as influências, os empréstimos de perspecti­ Todas as transcrições aqui reproduzidas são fiéis aos documen­
va e as lições dos autores sobre o método de estudar. A leitura de tos consultados. Adotei a atualização ortográfica das palavras, sem
Foucault (1977, 1978, 1982) sobre “poder” como um movimento entretanto modificar a estrutura das frases, a pontuação e, principal-
22 Rita Heloísa de Almeida

mente, o conteúdo. Deste procedimento excluí os nomes de etnias e .


lugares, cuja grafia está conforme os padrões de escrita da época em
que foi registrado o documento. Nas citações, todos os grifos são
meus, quando não menciono a autoria.
O presente trabalho está dividido em três partes. Na primeira,
procurei identificar aspectos da cultura do colonizador europeu que
estão presentes na organização dos governos implantados na Améri­
ca. Na segunda, a experiência do Diretório é avaliada como exem­ Primeira Parte
plo de transposição cultural, na medida em que se trata de um plano
de civilização de índios e, ao mesmo tempo, de um roteiro de empre­
endimento colonizador. A terceira parte realiza um inventário das
As Id éia s
concepções expressas por brancos sobre eles próprios, os índios e a.
civilização. A intenção é apresentar, no último capítulo, um material
inédito relativo aos índios que foram interrogados pela Inquisição.
Pode-se dizer, sem sombra de dúvida, que estes depoimentos consti­
tuem as primeiras comunicações diretas com o pensamento do índio
do século X V m . Tais depoimentos nos permitirão, inclusive, ava­
liar os efeitos da aplicação do Diretório nos indivíduos.
Capítulo 1

Civilizar índios foi sem pre uma


form a de colonização

Civilização é um “conceito que expressa a consciência que o


Ocidente tem de si mesmo”, define Norbert Elias em O processo
civilizador (1990, p. 23). Representa “um processo ou, pelo menos,
seu resultado”, acrescenta o autor, observando os significados que
pode assumir o conceito em cada sociedade e em cada situação his­
tórica que nele encontra expressão e uso (id, p. 24).
No vocabulário próprio desta pesquisa, constituído pelo que
emana do material colhido nos arquivos, entende-se “civilização”
como uma ação deliberada sobre os índios do Brasil, no sentido de
sua conversão aos valores e comportamentos dos colonizadores por­
tugueses. Poder-se-ia comparar e reconhecer este mesmo sentido nos
procedimentos adotados pelos espanhóis, franceses, ingleses e
holandeses em suas ex p eriências de conquista de povos e
apossamento de novas terras. É mesmo possível aquilatar todas es­
tas experiências de conhecimento de realidades extra-européias,
reduzindo-as a uma só pelo passeio imaginário dos olhos sobre o
globo terrestre, tendo como referência temporal a não menos vaga
noção de meio milênio de descobertas e conquistas.
Mas nem sempre tal conceito esteve claramente associado a uma
intervenção sobre o outro extra-europeu, em nosso caso os índios do
Brasil. Foi mediante o gradativo acúmulo de conhecimentos e prá­
ticas que o conceito de civilização se tomou sinônimo de ação sobre
os índios, entendendo-se no transcurso de meio milênio de contato a
26 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 27

experimentação de vários modelos com distintas doutrinas e estraté­ O exemplo da escritora reforça o argumento de que um conjun­
gias. Somente em nosso século assiste-se à associação do sentido do to de convicções, calcadas em sentimentos de motivação pessoal,
conceito ao exercício de um a política que tem representação política e cultural, é perfeitamente adaptável e transportável a qual­
institucional no Estado e participa em programas de governo como quer contexto. Tal como Luxemburgo, Rushdie reverte a adversi­
tópico específico e articulado às questões da economia e do desenvol­ dade, transportando consigo, em “um pouco mais do que uma mala”,
vimento interno do país. a necessidade afetiva de todo escritor — de estar no mesmo quarto,
Como se pode ver, civilização é um conceito de plena atualida­ com o mesmo material, o mesmo silêncio.
de institucional, que guarda em si uma idéia muito antiga. E para Este é um ponto referencial extremo, que informa a constitui­
começar a sobre ele discorrer, nada mais apropriado que tentar ima­ ção básica da identidade pessoal e as condições mínimas à sua so­
ginar as sensações de quem experimenta o deslocamento do familiar brevivência. É o mesmo referencial que serviu ao viajante Rafael
ao desconhecido e qual bagagem leva consigo. Alguns elementos, Hitlodeu, personagem principal de A Utopia, para definir o que seria
no caso, podem ser extraídos de uma entrevista com Salman Rushdie, um bom presente a ser oferecido aos seus amigos insulares. Relata
o escritor condenado à morte pelo Aiatolá Khomeini por haver su­ esse viajante, pela pena de Thomas Morus, que em sua quarta via­
postamente ferido instituições islâmicas em seus escritos, desde en­ gem à Utopia decidira embarcar com uma pequena biblioteca, “re­
tão vivendo a experiência de estar sempre escondido e obrigado a solvido que estava de só regressar à Europa depois de longo tempo”
freqüentes trocas de esconderijos. Indagado sobre a bagagem que (p. 122). Ao retomar, em lugar de mercadorias, deixaria aos utopianos
carrega consigo, responde-nos o escritor algo profundam ente idéias européias constituídas a partir da matriz greco-romana que
esclarecedor à reflexão sobre o conceito de civilização: está representada nos livros de Platão, Aristóteles, Homero, enfim,
na pequena biblioteca que levara consigo.
Um pouco mais do que uma mala [...] Quando preciso de um É preciso ter em conta que obras como A república, de Platão,
livro, peço a alguém para mo comprar. É uma experiência muito A Utopia, de Thomas Morus, e A cidade do sol, de Thomás Capanella,
frustrante. A biblioteca de um escritor é um pouco como o seu podem ter sido a biblioteca-valor de Karl Marx, George Orwell e
sexto sentido. Às vezes, procura-se esta ou aquela frase, de Diderot Fidel Castro. Cada um, a seu modo, transportou o conceito de “uto­
ou de qualquer outro, e não se tem o livro. Normalmente, tem de
pia” para o quadro das questões urgentes de sua vivência. É curioso
se encontrar o livro logo. E sabe-se onde o encontrar. Mas quan­
do se tem 200 livros que transportamos conosco e que temos de observar que uma obra como A Utopia teve como matéria-prima os
estar sempre a empacotar, uma pessoa deixa de saber de que terra relatos de viajantes sobre mundos extra-europeus. Com certeza, os
é [Público, 23 de outubro de 1992, pp. 4-5]. projetos de construção do novo mundo, da nova Europa na América,
por portugueses, espanhóis, holandeses, franceses e ingleses, inspi­
Há, portanto, uma bagagem essencial à sobrevivência psíquica raram-se nesses livros construídos sobre o imaginário dos viajantes.
de qualquer indivíduo, mesmo vivendo em condições de prolongada As impressões registradas sobre o estranho e o exótico convertem-
adversidade. A mesma questão pode ser entrevista em uma carta de se em valores (ideais europeus) que seriam aplicados àqueles que
Rosa de Luxemburgo (1983), na qual relata a condição de estar den­ foram fonte de inspiração.
tro de uma cela mínima, contendo quase nada a observar, exceto as A este estranho retorno dedico atenção, pensando não só no
rachaduras e manchas da parede. Ela nos mostraria como esta opera­ Diretório como um instrumento jurídico criado para viabilizar a
ção, repetidas vezes, de observar a mesma parede, permitiu-lhe en­ implantação de um projeto de civilização dos índios na Amazônia,
xergar desenhos que tiveram o efeito de atenuar o estado de isola­ mas também em nossas mais recentes utopias, as que desmoronaram
mento em que se encontrava (Carta de 23 de setembro de 1904 - há pouco tempo e as que permanecem como programas (ideais) da
1983, p. 153). humanidade.
O Diretório dos índios 29
28 Rita Heloísa de Almeida

É com esta perspectiva que inicio a discussão sobre a experiên­ Deve-se observar, inclusive, que uma leitura da legislação, atenta
cia de aplicação do Diretório à civilização dos índios do Brasil colo­ somente às determinações conjunturais, pode resultar em meia com­
preensão ou em uma compreensão também conjuntural e conforme
nial.
Com a perspectiva de quem analisa. Daí adotarmos a via dos concei­
O que vem a ser este regimento publicado na segunda metade
tos para um inventário das idéias que formam a base comum de leis
do século XVIII? O Diretório não surgiu do nada. Extensa legisla­
e planos que objetivaram a civilização dos índios, deixando em ní­
ção o precede, como experiência de conceitualização do índio e
vel secundário o exame dessas leituras de ocasião, certamente as
expectativa de sua inclusão ou exclusão do mundo civilizado. Será
que deram vida ao texto formal, suscitando alterações e mesmo a
preciso fazer um sobrevôo nesta legislação, identificando os pontos
substituição de uma legislação em nome de outras.
em torno dos quais foi delineado um plano de civilização no Diretório,
para, em seguida, verificar o que de inovação e de repetição surgiu
nele e na legislação posterior. O conjunto desta legislação tem sido a Uma intenção de incorporação
biblioteca de todo jurista, político ou qualquer pessoa relacionada em meio a leis de escravidão
com a formulação e execução de leis, planos e estratégias de civili­
zação dos índios. Um exame desse material por certo mostrará que Quando lemos a palavra “civilização” nos documentos relati­
todos os procedimentos criados para reduzir impasses e contradições, vos à colonização portuguesa, podemos começar por entender uma
gravitam sempre em torno de uma mesma solução-fim, qual seja, a intenção educadora no sentido de uma transformação. Contendo em
incorporação dos índios, a sua conversão aos valores e modos de si esta intenção, o conceito civilização estará sempre associado a
vida da civilização ocidental. uma ação autoritária. Mas, apesar de esta ação supor uma relação
Antes, porém, cabe uma menção aos problemas metodológicos assimétrica, alimentada por convicções de superioridade, nem sem­
que eventualmente serão encontrados na leitura deste tipo de mate­ pre implicou uma atitude de beligerância e extermínio. Com o pro­
rial. Uma leitura analítica de textos legais é sempre incompleta se pósito de preservação, a longo prazo uma conquista completa estará
destituída de atenção a seu contexto formador. Pelo menos este é o assegurada mediante um processo gradual do qual fazem parte a
caso de leis destinadas a estabelecer normas para situações de po­ guerra justa, a anexação de terras, a escravização dos vencidos e seu
tencial ou efetivo conflito. A melhor via de interpretação deve ser a adestramento por meio da catequese e do trabalho devido ao con­
leitura do texto formal, contemplando as realidades históricas em quistador. O que, em verdade, estamos visualizando são graduações
que foram aplicadas e as possíveis leituras daí resultantes. A tarefa de um processo de aniquilamento da soberania do vencido dentro de
que se impõe é saber discernir o que são e quando ocorrem leituras uma lógica em que seu conquistador tem um propósito de preserva­
de ocasião. Teriam estas leituras um significado contínuo e coeren­ ção física.
te, em se tratando de leis destinadas a nortear as relações de trabalho Planos e políticas de civilização tiveram sempre este mesmo
entre brancos e índios? É claro que não. E a situação colonial e os propósito, diferenciando-se entre si pela forma de agir sobre o índio.
seus desdobramentos na atualidade das relações entre índios, fazen­ Um estudo sobre tais formas também pode ser descrito como o cresci­
deiros, posseiros e outros no meio rural brasileiro bem o demons- mento gradativo da capacidade do branco e de sua civilização, de
tram. Os exemplos historiográficos e etnográficos também atestam entender e permitir atenuações nesse propósito de incorporação e
que a conjuntura dita o argumento do texto formal da lei, mas as convívio.
interpretações de ocasião podem distorcer a intenção dos legislado­ Nessa atitude conservadora, a liberdade dos índios sempre foi
res, ainda que estes tenham sido chamados a organizar (normatizar) artigo resguardado. Em todo o período colonial manteve-se essa inten­
determinadas realidades conforme suas necessidades e exigências. ção, ainda que sob ressalvas que permitiam a escravidão de índios
30 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 31

nos casos ]) dos que estivessem envolvidos em “justa guerra” com A situação histórica em que foi implantado o Diretório consti­
os brancos; 2) daqueles que estivessem impedindo a pregação evan­ tui exemplo. No momento de definição da fronteira entre Portugal e
gélica; 3) dos que fossem surpreendidos presos à corda por outros Espanha na América do Sul, quando programas de colonização fo­
índios para serem vítimas do canibalismo; finalmente, 4) dos que já ram criados para desencadear movimentos artificiais de “nacionali­
se encontravam cativos, em razão de guerras tribais. zação” das terras e índios, o conceito de “vileza”, associado à pala­
As mesmas condições são encontradas figurando como justifi­ vra “negro”, e o seu emprego expressamente proibido no Diretório
cativa para o resgate de escravos da costa de África. A escravidão para referir-se a índios indicam a direção por onde fluiu a legislação
seria, assim, explicada como uma lei em tempo de guerra, podendo a eles relativa.
apresentar-se ilusoriamente como redentora, uma vez que liberta — A expressão “os próprios nacionais” é comumente encontrada
literalmente, resgata — prisioneiros da idolatria e da barbárie, na documentação administrativa relativa aos assuntos coloniais por­
cristianizando-os e convertendo-os em bens de utilidade econômica. tugueses. Ela denota um procedimento colonial pautado pela forma­
Em suma, sob o resguardo destas e outras considerações, formas ção de alianças políticas com populações nativas encontradas nas
manifestas ou indiretas de escravidão foram legitimadas como um “conquistas” portuguesas. Os textos dirigidos ao rei, em que se con­
mal menor, com possibilidades de correção moral a longo prazo.1
sulta ou se requer algo,'são reveladores desta postura, desde cedo
No caso dos índios, em certas ocasiões essas exceções seriam
marcada pela intenção de preservar os índios do Brasil. Veremos,
abolidas em nome da liberdade absoluta, permanencendo, significa­
adiante, que a discussão de casos particulares, locais e circunstan­
tivamente, apenas uma: a que mantém como escravos os que fossem
ciais foi a matéria-prima para elaboração de leis e políticas colo­
“filhos de pretas escravas”.*2 Vê-se, nesta ressalva, como os oriun­
dos do continente africano estariam em todo o período de coloniza­ niais.
Os Manuscritos da Livraria, pertencentes ao Arquivo da Torre
ção portuguesa no Brasil, inclusive durante o Império, inexora­
velmente associados à instituição da escravidão e às condições morais do Tombo, fornecem os primeiros exemplos. Comecemos por um
de “infêmia” e “vileza” nela subjacentes. Já os índios, em determi­ Memorial (ANTT, Manuscritos da Livraria, livro 1116, fls. 593-
nadas circunstâncias, estariam liberados da escravidão e resguar­ 598) em que religiosos capuchos consultam o rei sobre as condições
dados como naturais habitantes do Brasil. em que poderiam servir-se do trabalho escravo exercido pelo índio.
Os casos listados mostram que são os preceitos morais a estabe­
lecerem formas graduais de escravidão. Considerou-se passível de
' Estas justificações, entre outras, foram alinhavadas por Azeredo Coutinho em escravidão o índio já cativo e/ou condenado ao canibalismo. Nestes
texto escrito quando a escravidão já começava a ser combatida. O próprio mo­ dois casos prescrevia-se o cativeiro perpétuo. Já quanto ao índio que
mento crepuscular da instituição imprimiría ao pensamento deste autor um derra­
deiro vigor. O que por muitos séculos foi consensual e consentido pelas socieda­
voluntariamente vendia sua liberdade para satisfação de suas neces­
des da civilização ocidental encontra-se cristalinamente sintetizado na seguinte sidades materiais de sobrevivência, cabia a seu comprador estabelecer
frase do autor: “A liberdade dos homens no estado da sociedade não é nem pode a duração do cativeiro. Constata-se, pois, que o trabalho remune­
ser absoluta, mas, sim, restrita aos limites marcados pelas leis da mesma socieda­ rado e livre pode ter-se originado de circunstâncias concebidas como
de” (1808/1966, p. 239).
forma de servidão voluntária e temporária.
2 A única exceção relativa à liberdade concedida aos índios foi dirigida aos des­ Para os índios aprisionados em guerra, a recomendação obede­
cendentes de pretas escravas. Mas esta exceção também podia ser anulada medi­
ce a uma postura universal nas relações entre os europeus e os nati­
ante o julgamento de cada caso. Ainda voltaremos a esta questão, no quinto capí­
tulo, sessão O contexto do Diretório”. Lei porque V. Majestade há por bem vos encontrados nas terras descobertas:
restituir aos índios do Grão-Pará, e Maranhão a liberdade das suas pessoas,
bens e comércio na forma que nela se declara — 6 de Junho de 1755 (Moreira N o ano d e 1595 passou um a lei na qual dá form a, contra a qual
Neto, 1988, p. 158). não podem os B razis ser cativos; pela qual em favor da fé, e con­
32 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 33

versão da gentílidade do B razil proíba cativarem -se índios ainda governo eclesiástico, no qual sem pre de notável prejuízo haver
que tom ados em guerra ju sta, com o o Im perador C arlos V, e os m uitas cabeças independentes [id, fl. 597].
reis católicos seus sucessores proibiram absolutam ente cativa­
rem -se índios nas Províncias da Conquista de C astela, ainda em O Memorial conclui com recomendações específicas sobre o
caso d e rebelião deles, e tam bém El Rei D om S ebastião em par­
povoamento e a implantação de organizações políticas:
ticular favor da [conquista?] do Japão, proibiu universalmente
semelhantes cativeiros dos naturais daquelas partes [Manuscritos
assim m esm o será mui decente, e ainda necessário que Sua M a­
da Livraria, fl. 596],
jestad e m ande fazer Repúblicas nas povoações que de novo se
Um controle sobre a administração dos índios cativos já se deli­ fundarem conform e a grandeza de cada uma delas, e todas subor­
neava, portanto, desde cedo, como atribuição do Estado. Deste modo, dinadas a um a cabeça [id, fl. 598].
em situações de guerra, os índios cativos da tribo vencida deveríam
ser ordinariamente devolvidos a seus donos, salvo em caso de guer­ O segundo texto apresentado à discussão é o Parecer sobre ín­
ras ordenadas pelo príncipe e nas quais se configuram as condições dios do Brasil, que também se encontra no mesmo volume conhe­
da “justa guerra” e do “resgate dos cativos” que nestas contendas cido por Manuscritos da Livraria. Nele, o consulente indaga ao rei
forem surpreendidos. Os descimentos — isto é, operações de resga­ quanto ao tratamento a dar aos índios que oferecem resistência à
te para fins de escravidão — seriam regulamentados segundo a mes­ colonização portuguesa, formando aliança com outros europeus ou
ma lógica, não resultando os cativos em posse de quem tivesse efe­ colocando-se em atitude de beligerância contra qualquer coloniza­
tuado a operação: dor, embora já tivessem sido contactados e sujeitos a processos de
catequese. Aqui, verifica-se que o propósito de incorporação não
Seria m uita razão e ju s tíç a S u a M ajestade m andasse an u lar a pro­ retroage em função da resistência indígena. A evangelização, assim
visão de que se fala por ser declaradam ente injusta, e contra as como a condição de ser habitante nativo em terras sob domínio portu­
provisões reais. O fundam ento é porque descer algum gentio do guês, resguarda os índios da escravidão,
sertão, ainda que seja por sua vontade em co m panhia d e algum
branco, não dá ao branco título algum para se se rv ir dele, e o ter
p orque se são batizados [os Brazis] é contra o direito expresso,
cativo [id, fl. 597].
se o não são, com o vivem em nossas terras e vieram debaixo da
p alavra de S. M ajestade que seriam livres, devem ser tratados
A preocupação com a preservação da população nativa está com o vassalos [id, fl. 604].
implícita na sugestão de liberar as “índias de resgate” quando asso­
ciadas a “índios forros”, ainda que tivessem sido “de corda”, toma­ O terceiro texto traz a indagação de um governador, Mathias de
das em guerra ou condenadas à morte. O argumento é estratégico em Albuquerque (ANTT, Manuscritos da Livraria, fl. 610), sobre qual
uma situação de organização do governo da conquista: cuídava-se procedimento adotar quanto ao destino dado a índios sublevados e
em não provocar inquietações entre os índios. O cuidado com o aliados a outros europeus em episódios de reconhecida relevância
controle sobre o que acontece no ambiente colonial também está na história colonial do Brasil. Com exceção de apenas uma rebelião
presente no referido Memorial, em que os capuchos solicitam a ocorrida no ambiente dos engenhos do Nordeste, quando índios sa­
vinda de um clérigo. Diz o consulente, concordando com a existên­ quearam e mataram brancos e negros, todos os casos foram julgados
cia de hierarquia, que é necessário a partir da sugestão de comutar a pena capital pela do cativeiro. Em
casos específicos, estes índios rebelados seriam destinados ao servi­
o respeito com poderes bastantes porque desta m an eira se acudi­ ço de moradores, recebendo “soldadas” como pagamento. No texto,
rá a necessidade, e também guardará a devida subordinação no este valor correspondente a um par de roupas dado a cada índio que
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 35
34

prestasse serviço a moradores denuncia a condição servil sobre a e conservar Portugal em igualdade ideológica com os demais países
qual f o r a m definidas tais relações de trabalho remunerado. Todavia, da Europa.
a decisão de preservar rebelados e traidores, eliminando-se somente Em princípio, a sugestão ao rei tinha um caráter abrangente e
os líderes para assinalar com a pena de morte o castigo exemplar, extensivo a povos habitantes de todas as conquistas da Coroa. Para
révelar-se-ia estratégica em tempo de definição da conquista, quan­ tanto, a justificativa geral é cristã:
do disputas entre europeus pela posse de extensões territoriáis rela­
tivas ao Brasil fizeram do índio um potencial aliado a ser também Se ganharão os ânimos de todas aquelas nações [porque] o prin­
conquistado. cipal intento de os conquistar é a conversão, e a salvação de suas
0 quarto exemplo, uma Proposta a S. Majestade sobre a escra- alm as, e ficarão estas duas conquistas nas mãos [?] de S. M ajes­
tade [id, fl. 621],
varía (ANTT, Manuscritos da Livraria, fls. 620-631), abrange todas
as conquistas de Portugal, apresentando ao rei sugestões relativas
aos casos em que poderia haver escravidão. O autor do texto ba- Para o Brasil, a medida teria uma razão política. Ao lembrar
seou-se no conhecimento das distorções que tais leis sofriam quanr perdas populacionais já sofridas ao longo da fralda do mar, em guer­
ras e injustos cativeiros inflingidos aos índios, a medida vinha fazer
do chegavam às conquistas e eram aplicadas pelos povoadores e porta-
justiça em fatos como:
vozes das intenções da Coroa Portuguesa. Ocupa-se, assim, em
resguardar os índios da ilusão que possa representar a servidão
O risco dos pretos da G uiné que andam em grande m ultidão nos
voluntária e temporária:
engenhos [do Brasil] se levantarem por toda aquela costa, com o
já tentaram em algumas partes com grande perigo dos portugue­
Os portugueses persuadiam aos índios que se vendessem, e com o
ses que para se defenderem deles se valeram dos Brazis que são
por sua rudeza não entendiam quanto isto importava, vendiam -se
os muros e, baluartes daquele Estado, segundo dizem os portugue­
assim mesmo por uma roupeta de algodão, e uns calções que de­ ses que lá vivem [id, fl. 629].
pois gastavam em serviço de seus próprios senhores, e quando
depois entendiam o engano, se lhes não era possível fugir, uns
A medida, porém, continuava restrita aos limites da exclusão
morriam de paixão, outros viviam em perpétua desconsolação. O
que se suspeita com muita probabilidade que acontece também dos índios já cativos, a fim de não aumentar os danos políticos que
hoje em outras semelhantes partes, com o de Guiné, C afraria [id, pudessem advir da insatisfação dos colonos.
fl. 621]. Depreendem-se deste argumento as razões conjunturais pelas
quais uma intenção de incorporação à colonização haveria de alter­
Conforme recomenda o autor deste texto, os escravos utilizados nar-se sempre com avanços e retrocessos no atendimento a interes­
em empreendimentos coloniais deveriam ser tão-somente os que as­ ses dissonantes, representados tanto pelos moradores, no anseio de
sim já estivessem definidos nesta condição em suas próprias socieda­ adquirir força de trabalho para seus empreendimentos, quanto pelas
des. Por outro lado, a escravidão poderia ser abolida do Reino em parcelas identificadas com a Igreja e o próprio Estado diretamente
razão dos problemas sociais e econômicos ali existentes e que só se relacionados com a civilização dos índios.3
agravariam se fosse mantida numerosa a população escrava. Entre­
tanto, o aspecto determinante desta preocupação é o contexto histó­ 3 Os textos emitidos pela Igreja têm uma conotação de porta-vozes universais da
rico em que alguns países europeus já haviam adotado tal medida. civilização ocidental. Testemunham uma política de civilização para o mundo
Argumentando-se quão vergonhoso era o comentário de estrangeiros, pagão. O breve do papa Urbano VIII, Commissum Nobis, de 22 de abril de 1639,
refere-se “a todos os índios, tanto aos moradores nas províncias chamadas de
segundo o qual “lhes vendemos a cristandade pelo cativeiro”, a medi­ Paraguai, Brasil e do Rio da Prata, quanto em quaisquer outras regiões e lugares
da teria por fim atender à consciência cristã (no continente europeu)
36 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 37

índio: um assunto de Estado ou lida no contexto das relações de trabalho. Isto porque todas as
leis gravitam em tomo da questão sobre quem exerce o controle e a
Uma clara e contínua intenção de incorporar nativos à coloniza­ administração dos índios, no que de fundamental riqueza represen­
ção pode ser vista como a política que, desde o início, definiu a taram durante a colonização, ou seja, como população e força de
relação dos portugueses com òs índios no Brasil. Analisando-se os trabalho.
principais textos legais, desde aqueles promulgados nos primeiros Uma das mais antigas é a Lei de 26 de julho de 1596, que asse­
anos de colonização até os mais recentes, pode-se afirmar que as gura a liberdade dos índios e atribui tutoria aos padres missionários
questões suscitadas pelo índio foram sempre consideradas assunto da Companhia de Jesus (em Beozzo, 1983). Está claro que ainda não
de Estado. Tal afirmação parece elementar, mas é a partir dela que se se trata propriamente de um exercício de tutela. Legislando desde
torna possível uma nova abordagem da história da legislação relati­
cedo em torno de questões prementes, como a do povoamento e o
va aos índios.
trabalho feito pelo índio nos empreendimentos coloniais, os alvarás,
O enunciado é simples. Missionários de ordens regulares, páro­
os regimentos, as cartas régias produzidos sob esta determinação
cos, procuradores-gerais, procuradores de aldeias, tesoureiros, clé­
haveríam de definir um representante civilizado para exercer muito
rigos, diretores de aldeias, diretores-gerais, inspetores, chefes de
mais uma função de gerência do que uma tutoria, na moderna acepção
postos, sertanistas, enfim todas estas representações tutelares, só es­
do termo. No ambiente colonial em que transcorria o ano de 1596,
tiveram à frente de trabalhos de atração, civilização, catequese e
ao missionário cabia apenas dirigir os descimentos e fiscalizar as
assistência aos índios mediante concessão do Estado. As priorida­
normas de repartição dos índios entre os moradores, o Estado e eles
des e as exclusividades dadas a uma e outra destas representações
próprios, missionários, observando o cumprimento de um turno de
tutelares e o trabalho em conjunto ou desenvolvido apenas pelo Es­
dois meses e o pagamento de salários pelos serviços prestados.
tado é que deram tonalidades diferentes à história da tutela como
Na referida lei é criada a figura tutelar do “procurador do gen­
instituição.
tio”, que deveria servir a cada aldeia ao longo de três anos. Seria um
Mais do que tonalidades, estas diferentes representações tutela­
serviço pago pelo Estado e estaria vinculado aos governadores, não
res indicam a configuração de distintos modelos de intervenção na
estando, no entanto, evidenciadas no texto a forma como deveria ser
vida indígena, gerados no bojo de exigências e de necessidades dita­
feita a escolha destes procuradores nem as qualidades requeridas
das por realidades históricas específicas e, naturalmente, pelo ama­
para o preenchimento do cargo. Já as funções de “juiz de aldeia”
durecimento da questão, o conhecimento cada vez maior da nature­
za do índio e de suas expectativas frente à sociedade que o tutora. estão claramente definidas. O destaque dado à exigência de que fos­
se sempre uma pessoa de origem portuguesa demonstra a importân­
Estamos encaminhando a discussão para a afirmação de que a
história da legislação indígena do período colonial pode ser escrita cia desta função no acompanhamento e julgamento de demandas
entre índios e moradores.
No século seguinte, em dois regimentos missionários consecu­
nas índias Ocidentais e Meridionais” como estando livres de quaisquer formas de tivos, vêem-se as mesmas condições presidirem à elaboração dos
sujeição. Para tanto, ordena “a todas e quaisquer pessoas, tanto seculares quanto
artigos em torno de quem seria o administrador do índio. Aliás, es­
eclesiásticas de qualquer estado, grau, condição e dignidade, ainda que sejam
dignos de especial nota e menção, e a quaisquer regulares de qualquer ordem, tes regimentos parecem haver sido rascunhados seguidas vezes pe­
congregação, companhia, religião, e institutos mendicantes, e não-mendicantes, los jesuítas, em cartas escritas do Brasil para Portugal. De maneira
ou monacais que daqui em diante não cativem, vendam, comprem, troquem, dêem, geral, os missionários eram os informantes de que a Coroa Portu­
apartem de suas mulheres e filhos, privem de seus bens, levem ou passem para guesa dispunha em suas “conquistas”. Eram as testemunhas ocu­
outros lugares, ou de outro qualquer modo privem de liberdade ou retenham em
servidão aos sobreditos índios...” (Beozzo, 1983, pp. 103-105). lares das situações de disputa, guerra e escravização envolvendo
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 39
38

índios e moradores portugueses. A administração desses conflitos defensores tudo são índios, e tudo é dos índios', e se os índios
— seu govemo a longa distância — seria viabilizada por legislação andarem divertidos [entretidos] nos interesses dos governadores,
e não dependerem somente dos religiosos nem eles os terão para
formulada a partir das opiniões emitidas por esses poucos observa­
as ditas missões, nem estão doutrinados como convém para elas
dores da vida colonial que sabiam ler e escrever. Embora esses mis­
nem lhes obedecerão nem lhes serão fiéis, se nem fará nada. Pelo
sionários estivessem comprometidos com a manutenção do regime contrário, só dizer-se aos índios do sertão que não hão de ser
de trabalho escravo e dele necessitassem em seus próprios empreen­ su jeitos aos governadores, bastará para que todos se desçam com
dimentos coloniais, estavam, em sua maioria, francamente conven­ grande facilidade, e se venham fazer cristãos, porque só a fam a e
cidos de que tinham uma missão civilizadora a cumprir. o mêdo do trabalho e opressão em que os trazem os que gover­
As linhas mestras da política seguida por Portugal até o Diretório
estão expressas de modo claro nas cartas de Antônio Vieira, escritas
i nam, e o que os detém nos seus m atos, com o cada dia no-lo m an­
dam dizer, e é co isa tão notória, com o digna de se lhe pôr rem é­
f dio [1654/1912, pp. 104-105].
três décadas antes da elaboração dos regimentos das missões. Há um
longo trecho que vale transcrever por inteiro, para; melhor acompa­
nhar-se a linha de seu raciocínio. Para os leitores conhecedores da Duas idéias podem desde já ser anotadas. A primeira, a de um
literatura relacionada com a Amazônia, este trecho deverá soar um Brasil amazônico, distinto das milenares civilizações do Oriente, que
tanto familiar, pois encontra-se trabalhado em outros textos analíti­ requeria estratégias de conquista apropriadas ao seu ambiente e à
cos mais recentes como sendo a realidade histórica que definiu po­ sua população. Em verdade, tratava-se de vestir com roupagens no­
líticas e leis destinadas a todo o Brasil, do decorrer do século XVII vas uma muito antiga forma de proceder, e aqui já apresentada, quan­
até a metade do século XVIII. Impressiona o fato de estar sempre o do nos referimos à idéia de que a conquista da terra se faria por
ambiente amazônico a instigar estudos e a inspirar leis e arrojados intermédio da aliança com o nativo dominado. Vieira é mais claro
planos de ocupação que acabam por estender-se a realidades regio­ — repetimos: “Tudo são índios, e tudo é dos índios” (id, p.105).
nais bastante distintas no restante do país. Complexas condições am­ A segunda idéia refere-se ao jogo de forças sociais que envolve
bientais, somadas a uma realidade indígena numerosa, foram os obs­ a disputa entre missionários e moradores pelo controle da adminis­
táculos e, ao mesmo tempo, os alicerces com os quais políticos, tração sobre os índios. Denunciando injustiças e apresentando su­
legisladores, empreendedores da Amazônia formularam planos de gestões, este texto ajuda a decidir em favor das ordens regulares.
ocupação e os colocaram em prática. Voltemos às prim eiras linhas desta carta em que Vieira,
Em 6 de abril de 1654, Vieira terminava uma carta ao rei com a pincelando uma série de injustiças cometidas contra os índios no
seguinte advertência: Brasil, faz as seguintes recomendações que seriam observadas nos
regimentos de 1680 e 1686, inclusive na legilação dos séculos se­
M as qualquer que seja a religião a que vossa m ajestade enco­ guintes:
mendar a conversão deste estado, se eja e os índios não estiverem 1. Os governadores e capitães-mores deveriam ser destituídos da
independentes dos que governarem , vossa m ajestade pode estar jurisdição sobre os índios, salvo em ocasiões de guerra, quando es­
mui certo que nunca a conversão irá por diante nem nela se farão tes estariam obrigados a um serviço considerado em prol do bem
os empregos que a grandeza da conquista promete, porque estas
público.
terras não são como as d a índia ou Japão, onde os religiosos vão
2. Em tempos de paz, em vez de governadores deveria haver
de cidade em cidade; mas tudo são brenhas sem cam inho, cheias
“procuradores-gerais” em cada capitania para administrar, com cer­
de mil perigos, e rios de dificultosíssim a navegação, pelos quais
os missionários não hão de ir nadando, senão em canoas, e essas
ta independência, em relação aos poderes locais, as questões perti­
muitas e bem armadas, por causa dos bárbaros e estas canoas, e os nentes aos índios (id, p. 93, parágrafo II). Nas aldeias, os índios
mantimentos para elas, e os remeiros, e os guias, e os principais deveriam ser governados por missionários, que estariam incumbidos
40 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 41

de fazer o controle anual de seus movimentos no referente à presta­ Vieira quanto à presença de um secular eleito pelo povo, o qual,
ção de serviços externos. A organização dessas aldeias seria continua­ juntamente com o religioso prelado, decidiría sobre a difícil questão
mente examinada, estudando-se a conveniência de sua ampliação, da repartição da mão-de-obra indígena entre os muitos colonos e
redução ou remoção para locais mais apropriados à “doutrina” e ao representantes do Estado (“...que o religioso seja o olheiro do secu­
que chamou de “serviço da república” (p. 95, parágrafo V). lar, e o secular do religioso, e em um esteja seguro o zelo, e em outro
3. O tempo gasto em “jornadas dos sertões” deveria estar re­ a conveniência” — id, p. 102).
gularmente estabelecido em concordância com os interesses fami­ 6. As aldeias deveriam ter, em número estável, o que chamou de
liares e pessoais dos índios. A sugestão de Vieira é que o turno de “gente de serviço” e, um menor número, os “oficiais de guerra”.
trabalho realizado fora das aldeias fosse aumentado para quatro Estes cargos (“meirinhos”, “principais”, “capitães-de-guerra” e "sar-
meses, repartíndo-se a população total em duas partes, de modo a gentos-mores”) deveriam ser preenchidos por índios, mas a reco­
evitar-se o que exprimiu como “desserviços de Deus”, ou seja, a mendação de Vieira é de que tais funções militares fossem se extin­
ausência prolongada dos índios de suas casas, o abandono das ativi­ guindo gradativam ente, passando os índios a exercer cargos
dades econômicas domésticas e o despovoamento (id, p. 95, pará­ relacionados com a produção econômica. Mesmo assim, um gover­
grafo VI). Todo pagamento aos índios, seja em retribuição a servi­ no indígena estaria sendo esboçado nessa data prematura, uma vez
ços executados para os moradores, seja aquele destinado a “obras que as eleições desses oficiais deveriam ser decididas entre os pró­
públicas de Sua Majestade”, deveria ser depositado previamente — prios “principais”, com o parecer dos religiosos (id, pp. 100-101,
operação para a qual havería uma “arca com duas chaves em cada parágrafos XVII e XVIII).
aldeia”, cujo controle ficaria a cargo do missionário e do “principal” As normas do Regimento de primeiro de abril de 1680 (em
indígena (id, p. 95, parágrafo VII). Beozzo, 1983, pp. 107-111), referentes à repartição e às condições
4. O estabelecimento de feiras quinzenais para venda de “frutos da de trabalho, reproduzem quase sem alteração as recomendações de
lavoura” constituía o momento privilegiado de contato entre mora­ Vieira constantes na mencionada carta. No regimento de 1680, os ín­
dores de povoações e índios de aldeias missionadas. O procurador dios ficam liberados da escravidão, inclusive os prisioneiros de gue­
dos índios (ou a pessoa a quem ele cometesse a tarefa) presidiria rra. Uma medida que reforçaria esta intenção seria a ampliação do
essas operações de comutação (id, p. 96, parágrafo VIII). tráfico de escravos africanos. Outras medidas chegam a superar seu
5. As entradas no sertão em busca de índios deveriam ser pensamento já inovador, dado o anúncio de uma disposição maior
intermediadas por eclesiásticos, que teriam, a partir daí, o compro­ — a de permitir a formação de governos constituídos pelos próprios
misso de administrá-los em suas aldeias (id, parágrafo IX). Aos ín­ índios aldeados. Esses exemplos de governo nativo receberíam es­
dios “descidos”, seria concedido um prazo para acostumarem-se à
paço político maior um século depois, na vigência do “Diretório dos
nova situação, durante o qual seriam “doutrinados” e “domestica­
índios”. A condição de que fossem aldeias de índios cristãos as que
dos” para o serviço aos moradores (id, parágrafo XI). Aos missioná­
estariam autorizadas a formar governos autônomos com seus pró­
rios que presidissem as “entradas ao sertão” caberia julgar, com as­
prios párocos e “principais”, sem outro capitão ou administrador
sistência do cabo, os casos em que se poderíam resgatar “índios de
imposto de fora, é sinal de reconhecimento de trabalhos de civiliza­
corda”. O “prelado da religião” e o “procurador-geral” procederíam
ção e catequese já consolidados e integrados aos processos de povoa­
à repartição destes resgates entre os moradores (id, p. 98, parágrafo
mento. Analisaremos, aqui, as razões concretas — nada quiméricas
XIII). Essas “jornadas ao sertão” seriam constituídas por compan­
— para a secularização dessas aldeias missionadas, mediante sua
hias de soldados e missionários (p. 99, parágrafo XIV). Um dado
elevação à categoria de “lugares” e “vilas”, em atenção à dinâmica
que contraria a já cristalizada noção de que as administrações dos
de seus desdobramentos como fontes irradiadoras da colonização.
índios por regulares foram sempre excludentes é a sugestão feita por
42 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 43

Estratégias de catequese a serem amplamente utilizadas no sé­ qüência, os valores dos salários e dos gêneros produzidos e vendi­
culo XIX são ensaiadas no regimento de 1680, como, por exemplo, dos pelos índios passam a ser rigorosamente regulamentados por
considerar inconveniente o deslocamento dos índios dé seus ambien­ comissões que representavam equítativamente— pelo menos no texto
tes e habitações tradicionais, daí resultando a fixação de missões da lei — os interesses dos moradores, do Estado e dos missionários.
onde eles já se encontrassem. O propósito era a transformação O Regimento de 1686 é uma lei que já incorpora experiência e
gradativa dessas habitações em missões, para que os padres, resi­ conhecimentos sobre o ambiente amazônico. O tempo de serviço
dindo entre os índios, fossem ensinando-lhes a doutrina e o cultivo cresce nas aldeias do Pará para seis meses, e, nas do Maranhão, para
de produtos que pudessem ser permutados com os comerciantes que quatro. As atividades devem ser organizadas de tal modo que uma
passavam pelos rios. Atribuindo à Companhia de Jesus o trabalho parte da população indígena permaneça na aldeia e as outras duas
de catequese dos índios do rio Amazonas, assim como de outros estejam ao dispor das solicitações externas. Decide-se como idade-
situados em lugares ainda mais distantes, esse regimento imprime limite para o trabalho a faixa de treze anos. As condições do traba­
um cunho colonizador aos trabalhos missionários e já demonstra lho doméstico de mulheres índias — as chamadas farinheiras
uma preocupação em adequá-los ao ambiente amazônico. Este exem­ recebem regulamentação em termos do salário correspondente ao
plo de catequese itinerante, conforme veremos adiante, conviría ser tempo transcorrido (id, p. 119).
repetido pelos dominicanos no século XIX, em circunstâncias seme­ Outro aspecto a mostrar a importância da mão-de-obra indígena
lhantes, na região dos rios Araguaia e Tocantins, onde o comércio nos empreendimentos amazônicos esta presente nestas especifica­
fluvial e a comunicação com os índios ribeirinhos seriam nova- ções contidas nas normas a que os descimentos estariam sujeitos.
mente os obstáculos e, ao mesmo tempo, os alicerces do domínio da Sublinhando a atribuição exclusiva de missionários, os descimentos
região. revestem-se de conotações positivas, não mais resgates para fins de
O Regimento das Missões de I a de dezembro de 1686 (id, pp. escravidão — pois o regimento de 1680 já tentava abolir esta ima­
114-120) espelha, mais que o precedente, uma realidade de disputas gem __e, sim, como empreendimentos com finalidades de povoa­
acirradas pelo controle dos índios. Apresentam-se, assim, aspectos mento.4 O objetivo da catequese, portanto, já leva em conta circuns­
ambíguos como lei que procurou atender simultaneamente a interes­ tâncias ditadas pela opção dos índios de continuarem em suas próprias
ses conflitantes de moradores e jesuítas. De um lado, cresce o poder regiões de origem. O que não impede, contudo, de entender tal conve­
dos padres da Companhia de Jesus e os de Santo Antônio, que pas­ niência em favor do avanço gradual da colonização propiciado pelo
sam a ter o governo não só espiritual, mas também político e tempo­ trabalho missionário.
ral, das aldeias de sua administração. Este fato aumentou o controle
dos missionários regulares sobre o trânsito de índios destinados a
prestar serviço aos moradores, assim como veio tomar mais difícil o 4 Em certa medida, um alvará sobre resgates, datado de 28 de abril de 1688, joga
acesso destes últimos às aldeias missionadas. De outro, os morado­ fora todos os esforços até então alcançados pelos regimentos de 1680 e 1686, no
res passam a ter voz po meio de duas pessoas eleitas pela Câmara sentido da preservação dos índios por meio de sua incorporação aos empreendi­
mentos coloniais segundo as mesmas leis que regem os direitos de trabalhadores
que, juntamente com o governador (ou o capitão maior), o superior livres. Legislando sobre casos específicos em que se podia fazer resgates de ín­
das missões e dos párocos das aldeias, passam a decidir sobre a repar­ dios, este alvará traz de volta a escravidão, tão-somente. Entretanto, uma política
tição dos índios. As especificações quanto ao regime de trabalho de civilização de índios articulada a pianos de colonização já estava claramente
crescem em rigor e minúcia. A complexidade das relações de traba­ esboçada e sendo colocada em prática pelos missionários a par destas permissões
de escravização e do gradual extermínio que implicava (“Traslado de outro Alvará
lho pede normas reguladoras de situações eminentemente passíveis
de Sua Majestade, que Deus guarde, sobre os resgate” em Beozzo, op. cit., pp.
de resultar em escravizações, rebeliões, fugas e mortes. Em conse- 122-125).
44 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 45

Finalmente, a recomendação dirigida aos missionários para que Quanto aos descimentos em sua nova feição, o missionário que os
estudassem os casos de ampliação, redução e remoção de aldeias presidisse assumia o compromisso de dar seguimento ao processo
compreende o que pode ser considerado o primeiro ensaio dé povoa­ por ele desencadeado. Ele seria o administrador dos índios nas al­
mento que marcou definitivamente a atual configuração dos antigos deias que se formassem após estas operações.
municípios brasileiros. Estabelecendo como limite mínimo o núme­ Reflexões antecedem ações: a formação, o tamanho, a localiza­
ro de cento e cinquenta habitantes, o regimento de 1686 recomenda­ ção das aldeias são assuntos estudados; considera-se a adequação
va aos missionários proceder a reuniões ou separações de aldeias, já dos terrenos ao cultivo e à habitação coletiva, pois ambos deveríam
revelando preocupações de cunho urbanizador ao sugerir que as crescer na proporção das populações; reconhecem-se etnias e dife­
mesmas se ajuntassem em freguesias, nos distritos onde os missio­ renças intrínsecas a cada uma delas. O controle da população indí­
nários fixavam suas residências (id, p. 120). gena, aldeada por meio de mapeamentos, assim como a operacio-
Nenhum artigo desconsidera as “diferenças entre nações” nem nalização do novo conceito de descimento refletem uma maneira de
as inconveniências culturais resultantes desses agrupamentos arti­ equacionar problemas atinentes a índios, em favor de programas e
ficiais e desses deslocamentos espaciais, mas pode-se entrever e movimentos espontâneos de povoamento. Estamos entrando no ter­
imaginar o quanto deixariam de ser compreendidos os grupos indí­ ceiro ponto a abordar sobre o conceito de civilização pertinente ao
genas intrinsecamente organizados em torno de pequeno número nosso material de pesquisa.
de pessoas.
Veremos nos regimentos dos setecentos, e mais ainda em evi­
dência na legislação posterior, que a gradual disposição em liberar Os espaços onde ocorrem
os índios de toda sujeição, com a eliminação das ressalvas que permi­ experiências de civilização
tiam à escravidão, era sustentada por uma transformação nos signi­
ficados do conceito “civilização” para os que formulavam leis e em É a partir dos regimentos das missões, principalmente na gestão
seu nome agiam. Esta transformação conceituai, conquanto tivesse do Diretório, que se verifica d surgimento de um conceito de civili­
como propósito a universalização de ideais da civilização ocidental, zação cada vez mais associado a uma ação a realizar-se em espaços
também anunciava, entre os indivíduos (os colonizadores), uma dis­ planejados. Nestes, os índios são instruídos na religião cristã, apren­
posição interna para o convívio com as diferenças étnicas e cultu­ dem ofícios, integram atividades econômicas e estabelecem formas
rais. Assim, em lugar de serem adotadas formas de extermínio ime­ de convívio por meio do comércio, do trabalho e do casamento com
diato ou ao longo de uma vida sob condições de escravidão, o índio os brancos. Nestes espaços, chamados, conforme a cada época, “mis­
passa a ser visto como um povoador. Além de força de trabalho, são”, “povoação”, “aldeamento”, ou “posto indígena”, transcorre uma
representa número, população. mesma ação que coetaneamente seria compreendida como sendo uma
Em termos descritivos e no horizonte das preocupações de fun­ obra religiosa, uma empresa colonial, um serviço assistencial.
cionários da administração colonial e dos colonos portugueses resi­ Comecemos por examinar a concepção deste espaço no Diretório
dentes no Brasil, civilizar e povoar formavam uma unidade de pen­ (1757). Este regimento abre parágrafos específicos sobre a organi­
samento em torno de ações interligadas. zação do que também poderiamos chamar de laboratórios de apren­
Como vimos anteriormente, a catequese itinerante respondia a dizados e vivências próprios da cultura do colonizador. O parágrafo
objetivos de expansão e conhecimento de novas terras, mas também 12 contempla o aspecto interno, recomendando a fabricação de ca­
fixava e implantava as condições para daí irradiar ou atrair movi­ sas, para os índios, semelhantes às dos brancos. Ali, as linhas da
mentos povoadores (“que as aldeias se dilatem pelos Sertões”, reco­ arquitetura delineiam o comportamento que se espera incutir nos
mendava, profetizando, o texto do Regimento de 1686 — id, p. 120). índios mediante a separação diferencial dos interiores. No parágrafo
46 Ritá Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 47

74, são apresentadas as providências relativas à secularização das missionadas e povoações. Em geral, repete-se a fórmula, no que tan­
aldeias missionadas e a sua constituição em povoações organizadas ge a transformar esses espaços em pontos de contato para estabele­
à imitação dos modelos de administração de cidades e municípios cimento de contratos de trabalho, para o comércio e o convívio so­
trazidos pelos colonizadores portugueses. É recomendada a edificação cial com as populações não-indígenas, que já proliferavam e se
de estabelecimentos de comércio, cadeias públicas e casas para re­ tomavam diversa e numericamente superiores em suas imediações.
sidência dos índios. O parágrafo 75 dispõe sobre o esvaziamento Destaca-se o fato de os descimentos se tomarem cada vez mais dis­
das povoações e sugere equacionar-se o problema, examinando-lhe tantes da concepção original de operações de resgate de escravos.
as causas mediante mapeamento da população indígena ausente. Nesta Carta Régia, verifica-se que o conceito de descimento se abran­
Os parágrafos seguintes indicam a mesma preocupação em estudar da, numa ação que objetiva “convidar aqueles índios que ainda
condições de dar seguimento a povoações ou missões já começadas. estão embrenhados no interior da capitania a vir viver entre os ho­
O propósito será sempre o reagrupamento destes aglomerados in­ mens” (em Moreira Neto, 1988). Denominando de “sistema” o con­
dígenas, a fim de torná-los mais populosos. Daí não se cogitar a junto do conhecimento e das experiências acumuladas em termos de
manutenção de aspectos físicos que recordem habitações indígenas contato inicial com índios arredios, a Carta Régia de 1798 anuncia
tradicionais. O limite populacional mínimo de cento e cinquenta ha­ um outro procedimento, que tem “por princípio não o conquistá-los
bitantes ainda constitui o referencial para estes estudos e planos de e sujeitá-los, mas prepará-los para admitir comunicação e trato com
urbanização. os outros homens” (id, p. 227).
O que nos parece um amadurecimento, e que surge lentamente, Estas idéias estão amparadas na decisão de liberar os índios de
só revelando-se nas entrelinhas da legislação, é a disposição em ate­ toda sujeição, inclusive, e principalmente, dos próprios diretores das
nuar este sempre crescente — e irreversível— propósito de transfor­ povoações (como o próprio título indica, esta é mais uma lei de eman­
mar as povoações indígenas em futuras vilas e cidades. No parágra­ cipação). Assim, fica permitido a qualquer um que for ao sertão esta­
fo 77, os critérios que entram em pauta nos estudos de organização belecer contato com índios, podendo até mesmo trazê-los para as
espacial de povoações indígenas são: “a distinção das nações; a diver­ regiões civilizadas, sob a condição de que fossem educados e instru­
sidade dos costumes, que há entre elas; e a oposição, ou concórdia, ídos por aqueles que os persuadiram a deixar suas habitações de
em que vivem”. origem.
Além desses estudos, duas outras medidas seriam adotadas para “Comunicações”, “comércio” e “trato” com índios por meio da
refrear a tendência ao despovoamento imanente à maioria das povo­ educação passam a ser atribuições de qualquer representante da civi­
ações construídas sob o impulso de movimentos artificiais de agru­ lização. Eclesiásticos, comboieiros e moradores (colonos) têm a per­
pamento de populações indígenas. Uma delas era, ainda, a utilização missão régia para empreender, cada um a seu modo, essa tarefa que
dos “descimentos”, cuja função seria manter constante a população antes cabia a representantes tutelares instituídos (religiosos regula­
das aldeias, provendo-as de índios. A segunda medida foi permitir a res e funcionários seculares) (id, p. 228). A condição era a de que
introdução de brancos nas povoações indígenas, concedendo-lhes fosse respeitada a liberdade que esta mesma lei tentara revalidar ao
terras e outros favores, com vistas a uma duradoura permanência abolir os poderes de diretores, mas que, paradoxalmente, outorgou a
entre os índios. qualquer um o uso desses mesmos poderes. Não há como não apre­
A Carta Régia de 12 de maio de 1798 visou abolir o Diretório, ender de tais deliberações um sentido de enfraquecimento da tutela
para eliminar os efeitos abusivos do controle, pelos diretores de al­ estatal, ou melhor, uma indefinição de sua representação imediata
deias, dos rendimentos auferidos com o trabalho dos índios. Embora junto aos índios, no que concerne à tarefa do tutor, de intervir sobre
negasse o Diretório, esta lei não apresentava soluções novas para as sua natureza e bagagem cultural. O momento era de crise e denegação,
formas conhecidas de convívio social de índios e brancos em aldeias mas essa lei não representava a solução.
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 49
48

A crise na definição da administração tutelar, que se entrevê nas Estes e muitos outros dados podem aqui ser listados para
decisões contidas na Carta Régia de 1798, só deverá ganhar soluções visualização das novas configurações conceituais que se formavam.
novas no Decreto nB426, de 24 de julho de 1845 (id, pp.169-178). O descimento, repetimos, desfigura-se como operação de resgate e
Trata-se de documento de grande importância na história da le­ desaparece do vocabulário do legislador, mas permanece como idéia
gislação indígena, por apresentar claros sinais de amadurecimento, ou intenção de estabelecer contatos com todos os índios que ainda
no que diz respeito a aspectos já contemplados e ainda não resolvi­ se encontravam arredios e, conseqüentemente, habitando terras de
dos em leis anteriores. É, sobretudo, um regulamento voltado para o desconhecida riqueza potencial. Todavia, a utilização do índio como
objetivo de organizar a administração tutelar, estabelecendo funções força de trabalho vai perdendo a conotação de condição indispensá­
e definindo atribuições. Consolida-se o diretor de aldeia como figu­ vel a qualquer empreendimento econômico e povoador, pelo menos
ra tutelar presente nas situações de contato direto com os índios e na onde sua representação numérica é menos expressiva. Chega, por­
intermediação que exerce entre a aldeia e a sociedade abrangente, tanto, ao fim a consideração utilitária que foi responsável pelo seu
prevendo-se, para tanto, uma já bem ordenada estrutura de apoio, ingresso quase sempre compulsório nos processos de colonização
presidida pelo diretor-geral dos índios. Ficam, assim, sanadas as con­ do Brasil. Permite-se, assim, aos índios, destituídos de utilidade eco­
tradições políticas emanadas da vinculação e da subordinação fun­ nômica como força de trabalho, reintegrarem-se à sua natureza an­
cional dos diretores de aldeias aos governadores e capitães-gerais, cestral, ou melhor, a eles é oferecida a possibilidade de retorno à sua
conforme estabelecido durante a vigência do Diretório e, de forma soberana condição de serem o que são. Estamos diante de uma visão
embrionária, nos regimentos das missões. A tarefa de civilização romântica que deverá informar e influenciar profundamente a legis­
dos índios integra as ações e programas do Estado, mas já dispõe de lação não só no sentido da preservação da etnia, como também da
representação institucional própria e soberana em suas deliberações. recuperação da bagagem cultural que a sustenta. Mais do que uma
À fórmula repete-se no trato das questões referentes à “comuni­ visão romântica, é um conjunto de valores que orienta políticos e
cação” dos índios com as populações não-indígenas no interior das legisladores na formação de um Brasil politicamente independente.
próprias aldeias. Pelo que se depreende dos artigos dedicados à orga­ O retorno do índio à própria natureza — que então se refletia na
nização espacial, o aspecto das aldeias cada vez mais se aproxima nova legislação indigenista — fazia parte de um movimento maior
do de qualquer povoação brasileira de origem não necessariamente de formação da bagagem de valores nacionais, da qual o índio an­
indígena. O referencial ainda é o de uma povoação europeizada. Há cestral é parte integrante. Estamos em meados do século XIX.
igrejas, oficinas, cadeias públicas. Dá-se livre acesso a visitantes Estes são claros sinais de uma nova dissociação de idéias e ações
que queiram negociar com índios ou estabelecer entre eles formas que compreendem os conceitos civilização e colonização. A legisla­
de convívio mais permanentes. Por certo, a consolidação desses ção do século XX incorpora-os completamente como idéias separa­
aspectos, apenas germinados nas experiências de convívio anterior, das, que, no entanto, devem ser pensadas como uma unidade. O De­
contribuiu para a emergência de problemas fundiários até então iné­ creto nB9.214, de 15 de dezembro de 1911, traz, no título, a dissociação.
ditos e que chegam ao nosso século como efetivas ameaças à sobre­ É um “Regulamento do Serviço de Proteção aos índios e Localização
vivência física e cultural dos índios contemporâneos. Em verdade, de Trabalhadores Nacionais” (em Brasil. Leis e decretos, pp. 112-
de lá para cá, o que se vê é a delimitação desses espaços ao restrito 129).
local onde os índios residem e se mantêm como comunidades étnica No artigo Ia do citado decreto fixam-se as diretrizes do órgão:
e culturalmente distintas. Prova cabal é a introdução, nessa lei, de prestar assistência aos índios e estabecer centros agrícolas em áreas
artigos específicos destinados ao equacionamento de problemas por eles não habitadas. O que fora uma contradição trabalhada como
fundiários em terras ocupadas por índios, principalmente o parágra­ complemento (= um obstáculo e um alicerce do povoamento) está
fo 14 do artigo 2, que recomenda a demarcação. agora claramente delimitado: é uma reserva. Literalmente, reserva-
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 51
50

se um espaço para a preservação dos índios, em meio a um processo O Decreto nQ736, de 6 de abril de 1936, internaliza a dissociação,
abrangente de ocupação de territórios e desenvolvimento econômico absorvendo a contradição que esta supõe ao eleger como objetivo do
vindo de todas as direções e acionado por populações não-indígenas órgão tutor a “nacionalização do silvícola”, contribuindo, assim, para
cada vez mais numerosas. De um movimento centrífugo a um mo­ a “nacionalização das fronteiras ou o desenvolvimento e policia­
vimento centrípeto, essas primeiras fontes de irradiação ao povoa­ mento dos sertões habitados por índios” (em Brasil. Leis e decretos,
mento que foram as missões e povoações indígenas são agora reser­ p. 148). Em termos visuais, chega-se ao limite final (a fronteira),
vas de índios remanescentes. onde se encerra o processo de incorporação dos índios à sociedade
0 sentido de tutela, já plenamente desenvolvido, vem ao encon­ nacional (id, p. 152).
tro dessas situações já consolidadas, dando forma à tarefa de prote­ No mesmo decreto, visualiza-se o reconhecimento da irreversi-
ger, velar, fiscalizar o interesse e os direitos dos índios. bilídade e da gradação progressiva, inerentes ao processo de incor­
0 respeito às soberanias étnicas está plenamente assegurado no poração dos índios, nas ações administrativas do órgão tutor, defini­
capítulo I, artigo 4°, que legisla sobre a manutenção da “organização das em tomo de duas situações de contato: a) “postos de atração,
interna das diversas tribos, sua independência, seus hábitos e instir vigilância e pacificação”; b) “postos de assistência, nacionalização
tuições, não intervindo para alterá-los senão com brandura e consul­ e educação” (id, p. 157). .
tando sempre a vontade dos respectivos chefes” (id, p. 113). Assistimos ao refinamento dessas considerações em tomo de
Mas a intenção de intervir na vida dos índios, no sentido da um procedimento gradual e sempre progressivo sendo incorporado
adoção de hábitos e valores da civilização ocidental, ainda.persiste à Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973, no que se refere às defi­
como atribuição do novo órgão tutor. Veja-se que o artigo 15 do nições dos conceitos de “índio”, “comunidade” e situações de con­
Capítulo V prevê o estabelecimento de escolas para “o ensino pri­ tato com a “sociedade nacional” (1975, pp. 5-16). “Proteger”, “fis­
mário, aulas de música, oficinas, máquinas e utensílios agrícolas des­ calizar”, “respeitar” e, fundamentalmente, assegurar a vontade
tinados a beneficiar os produtos das culturas e campos apropriados à individual e coletiva são indicativos de uma tendência à suavização
aprendizagem agrícola” (id, p. 116). Contudo, essa intervenção de­ da tutela.
via manter-se nos limites da adoção de métodos brandos e jamais Pergunta-se, então, qual a possibilidade de indivíduos estarem
coativos, tal qual delineado pela primeira vez no Diretório como a em condições efetivas de fazer escolhas ao final de processos
face tolerante do colonizador— experiência que pode ser vista como avassaladores como o da catequese e civilização dos índios. A Lei
ensaio da tutela exercida pelo Estado. na 6.001, de 1973, já permite e regulamenta a situação pessoal de o
0 fio condutor dessa lei não foi a definição ou o estabelecimen­ índio poder optar por permanecer ou não na condição de tutelado
(id, p. 7). Um termo final que talvez encerre uma ironia — para os
to de um modelo de proceder com índios distinto dos anteriores.
índios, é claro.
Este se constituirá nas leis seguintes do Serviço de Proteção aos
Passa-se, agora, ao exame do processo que abrange a civiliza­
índios (1911-1967) e da Fundação Nacional do índio (atual institui­
ção dos índios, a saber: as idéias organizadoras da colonização, prin­
ção) como uma tradição indigenista que incorpora o já largo conhe­
cipalmente as que direcionaram ações mais duradouras de fixação
cimento de convívio com o índio. O propósito desta presente lei foi
de núcleos formadores de cidades.
criar condições para distinguir terras sob a posse de índios ou desti­
nadas a povoações indígenas de terrenos considerados devolutos e
que poderíam ser concedidos ao então Ministério da Agricultura
para criação de centros agrícolas e assentamento de trabalhadores
nacionais.
Capítulo 2

Colonizar: o povoam ento e


a edificação de cidades

Na linguagem corrente de nosso material de pesquisa, coloniza­


ção também encerra uma ação transformadora. Compreende a cria­
ção de economias, a formação de núcleos povoadores e a instalação
de aparelhos jurídicos, políticos e administrativos de sustentação a
esses empreendimentos. Em suma, colonização compreende toda a
ação que foi colocada em prática pelos portugueses para assegurar a
posse e a expansão das terras do Brasil, desde sua descoberta até a
emancipação política.
Delimita-se assim um conceito de múltipla significação, cujo
entendimento sociológico é tão abrangente quanto sugere a diversi­
dade de contextos, épocas e finalidades com que vem sendo apli­
cado. Excluem-se de nosso vocabulário os sentidos e as finalidades
que supõem o mesmo conceito, hoje amplamente empregado por
órgãos estatais para denotar diretrizes de programas e políticas agrá­
rias. E escapa de nosso campo de investigação o uso do conceito
associado a políticas e práticas de assentamento de imigrantes estran­
geiros que esteve em voga, do período que vai da abolição da escra­
vatura até o início de nosso século, como expressão da solução lar­
gamente empregada pelo Estado para equacionar os problemas de
mão-de-obra no meio rural do Sul e Sudeste brasileiro. Há também
exemplos que nos remetem a processos desencadeados direta ou indi­
retamente pela construção de Brasília, no centro do país, em 1960.
Sob novas designações, “uma interiorização”, ou definidos mediante
54 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 55

f
expressões como “a marcha para o oeste”, tais processos são carac­ soldados, produtores e funcionários administrativos, em quantidade
terísticos de uma colonização interna. suficiente para garantir o funcionamento de um governo sobre a.con-
Esses exemplos conjunturais bastam para assinalar qúe, embo­ quista: um governo da conquista.
ra atendam a fins específicos de cada época, têm sempre uma mes­ Ao contrário do que se faria no Brasil, que representava extenso
ma idéia de intervenção deliberadamente projetada e exercida pelo território a ser preparado para a produção mercantil, as conquistas
Estado. Todos os casos em que o conceito é empregado têm como portuguesas na África e Ásia aconteceram sobre agrupamentos urba­
sinônimo comum designar um movimento que não se constitui natu­ nos e populações com níveis de complexidade e refinamento, em
ral e espontaneamente das condições existentes é, sim, do resultado suas organizações socioculturais, compatíveis com os da Europa
de ações dirigidas a fins programados. Parece-nos, inclusive, que os medieval.
apelos emocionais que embasam essas ações recebem um trata­ Novamente vem à tona a metáfora da mala do viajante que traz
mento ideológico comum a todos e são como que a força que impul­ consigo uma bagagem mínima de referenciais com os quais preten­
siona e dá seguimentos mais naturais ao que no início é artificial. de reconstruir no novo mundo o velho mundo ou reafirmar seu pre­
Por tratar-se de um conceito sociológico constituído a partir da domínio, começando por formar um governo da conquista.
experiência de quem primeiro promoveu o que entendemos por co­ Exemplos visuais dessas experiências de governo em terras
lonização, melhor voltarmo-nos ao que pensavam os colonizadores conquistadas são as cidades portuguesas fortificadas, tomadas de
portugueses sobre a matéria, começando por reconhecer o conteúdo povos vencidos, adaptadas, ou inteiramente construídas. Elas ates­
ideológico que impulsionou os descobrimentos. tam, em suas linhas arquitetônicas, soluções de convívio de múl­
tiplas e distintas culturas, com a resultante absorção e adaptação aos
padrões europeus das experiências urbanísticas dos povos con­
Nacionalidade e colonialismo quistados.
Um relance de olhos nas plantas das fortificações confirma a
Considerações econômicas bem sabemos que existem e proce­ asserção. Como exemplo, cite-se a planta de Malaca, que figura na
dem de fundo histórico real. Todavia, insiste-se na ação fundamen­ coleção de iconografias reunidas por Luís Silveira (1955) (figura 1).
tal de povoar, que permitia dar seguimento a conquistas. Por que Malaca foi fundada em 1402 por um príncipe sumatrense e desco­
povoar terras estranhas, se parte do próprio solo português continuava berta pelos portugueses em 1509, sendo conquistada por Afonso de
desabitada e inculta? As indicações quantitativas relativas ao século Albuquerque em 1511 e definitivamente perdida para os holandeses
XVI são imprecisas, rarefeitas, embora historiadores como Caio Pra­ em 1641, passando ao domínio inglês em 1824. Estas repetidas in­
do Junior assegurem que Portugal, como qualquer país europeu, não cursões, consagradas com tentativas de fixação ainda no alvorecer
estava em condições de colonizar outras terras com seu próprio povo de ações efetivamente colonizadoras, só podem ser explicadas pela
(1970, p. 16). O propósito inicial nem teria sido o povoamento, mas posição privilegiada da cidade diante do mundo: o estreito de Malaca
assinalar o ato da conquista estabelecendo as comunicações e o co­ é passagem de densa navegação a ügar a Europa e a índia ao Extre­
mércio com as populações nativas. Ainda que as primeiras ações se mo Oriente e à Austrália. O que visualizamos tanto no desenho de
restringissem ao reconhecimento do potencial mercantil, supõe-se, Malaca quanto em sua legenda é uma Europa intramuros em minia­
como bem demonstrou o mesmo historiador, que explorar terras, esco­ tura. Representa a implantação de um modelo de habitação fortificada,
lher locais de assentamento, construir feitorias (estabelecimentos contendo as soluções de vida urbana adaptada aos costumes da reli­
fortificados para fins comerciais e defensivos) já constituíam ações gião católica e ao exercício de um aparelho político-admínistrativo
que apropriadamente poderíam ser chamadas de colonizadoras (id, comumente encontrado nas cidades européias. Nela vive uma popu­
p. 16). Tais ações demandavam uma população de construtores, lação diversificada e diferencialmente distribuída em cargos e fun-
56 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 57

ções que não se restringem a finalidades militares. Para além dos é Portugal uma nação mas não uma nacionalidade, isto é, existe
esquemas defensivos, a legenda revela-nos um cotidiano de uma ci­ pela vontade enérgica dos grandes chefes, de um escol de direção,
dade completa, pela indicação das seguintes localidades: Fortaleza, sem que tenha unidade de raça ou fronteiras naturais... (id, p. 15).
Igreja Matriz, Câmara, Misericórdia, Hospital de Pobres, Hospital
Real, Colégio da Companhia de Jesus e vários conventos. Daí Antônio Sérgio proceder metodologicamente, reconstituindo
Voltaremos outras vezes às plantas. No momento, importa cap­ a história de Portugal, passo a passo, com a biografia dos reis, fidal­
tar a força que impulsiona esses transplantes culturais que ora ve­ gos e navegantes que se notabilizaram na conquista de territórios.
mos em superfície plana. Como animar projetos de engenharia mili­ Os reis personificam essas conquistas territoriais, que começam, no
tar, dando-lhes relevo, profundidade, espessura, vida? Vem de continente, com a luta dos ancestrais contra outros povos invasores,
Antônio Sérgio a tentativa de sua reanimação. Desta vez o exemplo prolongando-se intemamente em disputas pelo poder que haveríam
vem das praças do Norte da África, significativamente denominadas de dividir os portugueses entre representantes de uma aristocracia
os “Algarves de além-mar”, por certo — conscientemente, talvez — rural mais associada aos interesses de Castela e os que, identifica­
para deixar gravadas nesta expressão as primeiras experiências por­ dos com os projetos de expansão de uma burguesia comercial, deci­
tuguesas extracontinentais em Arzila, Tânger, Alcácer, Ceuta, Safim diram por uma vocação marítima para Portugal associada a uma
e Azamor. “missão histórica” colonizadora por excelência (id, p. 33). Um movi­
A vida nestas praças africanas era muito difícil e agitada, nutna mento expansivo de norte a sul ao encontro dessa missão a realizar-
guerra incessante de raids rápidos, com rapinas infindáveis de se para além do Algarve — a extremidade sul de Portugal — , dei­
parte a parte. Estavam as povoações rodeadas de muralhas e de xando inconclusa a colonização interna, revela-nos a outra face deste
fossos, que constituíam, por via de regra, o lim ite do dom ínio dos destino histórico.
Portugueses. Os sítios elevados, em torno, serviam de postos de Um processo milenar de construção do território de Portugal,
observação. Quando os m oradores saíam ao cam po — para pes­ desenvolvido pari passu com o da formação da nacionalidade dos
car, caçar, buscar lenha, etc. — , nunca avançavam até tão longe
portugueses, é visto nos mapas antigos e modernos. Neles é possível
que os não pudessem avistar da praça, por m eio de tiros de
acompanhar com os olhos um movimento territorial que começa no
bombarda. Trocavam-se lançadas com o inim igo, e morreram
assim, em escaramuças estéreis, guerreiros dignos de maiores
norte, com a formação das bases do poder, e que segue, contínuo,
batalhas [1989, p. 52 — grifo do autor], adquirindo terras e adesão política, até a extremidade sul, para daí
desdobrar-se em descobertas e conquistas, tal como o pontilhado de
Antônio Sérgio prossegue mostrando que, além da implemen rotas marítimas dos antigos mapas. Dilatar-se, espalhar-se mediante
tação de uma escola de arquitetura e engenharia militar, a experiên­ o estabelecimento de feitorias e colônias, reafirmando-se como um
cia portuguesa no Norte da África foi como um campo de treina­ povo entre outros povos e terras estranhas nos quatro cantos do mundo
mento militar para “jovens fidalgos portugueses fazer a sua iniciação em que se fizeram presentes, integra-se, assim, à trajetória de cons­
nas lides da guerra e ser armados cavaleiros” (id, p. 53).
tituição da identidade nacional portuguesa (fig. 2).
Esta observação sinaliza o propósito de suas argumentações.
Semelhantes trajetos de expansão territorial fazem parte da bio­
Aliás, em seu Breve interpretação da história de Portugal, todas as
grafia de povos conquistadores que constituíram reinos, reunindo
informações históricas alinham-se na direção de uma mesma idéia
em tomo de si tribos e territórios anexados, ou avançaram mais, or-
de nacionalidade constituída na experiência (bélica, exploratória,
ganizando-se em grandes impérios. Os pontos culminantes de aqui­
comercial) de expansão territorial e subsequente dominação sobre
sição de riqueza em terras e gentes parecem coincidir com os da
terras e povos. Sua inspiração inicial é o historiador Oliveira Martins
(1845-1894), para quem consolidação da identidade coletiva dos indivíduos que atendem a
58 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 59

uma mesma comunhão de idéias e sentimentos. Isto é válido para Conhecendo um pouco mais a
grupos, comunidades e nações (Mauss, 1972). matéria-prima do Velho Mundo
Que pensam de si os “povos históricos” que se constituíram a
partir de movimentos de expansão territorial e ascensão política e Essa continuidade pontilhada (fig. 2), que bem verificamos ser
que com o passar dos tempos não submergiram em outros povos, o desenho do movimento espacial de expansão territorial portugue­
nem se extinguiram, mas permanecem, muitas vezes, tirando sua sa, é semelhante e comparável ao que o antropólogo Renato Rosaldo
continuidade justamente do reverenciamentò nostálgico a esse observou entre os indígenas Ilongot, habitantes de uma região situa­
passado? da no arquipélago das Filipinas. São os próprios Ilongot a transmi­
A indagação é sugerida pela leitura de Norbert Elias (1985), tirem a compreensão de sua história como uma seqüência de eventos
quando trata da “embriaguez hegemônica” como o efeito dos senti­ ligados entre si e associados às suas concepções e práticas culturais.
mentos de filiação a um povo que teve um destino associado à gran­ Daí resultam duas imagens no tempo: uma, correspondente ao mo­
deza. Estes povos, mostra-nos Norbert Elias, em momentos culmi­ vimento espacial e temporal de pessoas que seguem uma mesma
nantes de seus trajetos históricos, nutrem-se da crença de que a luta, trilha e, outra, descrevendo os movimentos alternados de concen­
e a dominação sobre outros povos são uma missão, não importando tração e dispersão associados às demais outras noções nativas de
muito se de ordem divina, histórica ou natural. Como exemplo, cita casualidade e ordem social (Rosaldo, 1980, pp. 54-60).
a guerra entre árabes e cruzados pela predominância das religiões Estas concepções de tempo entrevistas no pensamento dos
que seguiam; em datas mais recentes, o fato de os franceses e ingle­ Ilongot são universais. A compreensão histórica de cada indivíduo,
ses se terem portado como porta-vozes da civilização diante de po­ ou de cada coletividade, é sempre resultado do exercício reflexivo
vos de outros continentes; por último, o que apropriadamente cha­ que articula acontecimentos a uma noção abstrata de processo, só
mou de “tendências missionárias” da União Soviética e dos Estados inteligível sob a ótica dos conceitos próprios de cada cultura e socie­
Unidos perante as demais nações, ambos engajados em uma mesma dade. São concepções que condicionam a leitura ao passado e a sua
luta pela hegemonia no mundo (1985, p. 45). ligação com o presente e o futuro, sendo, em consequência, consti­
Indago agora sobre a percepção desta “embriaguez hegemônica”, tuintes da qualidade de distinção e ulterior identificação para quem
por parte dos descendentes de povos históricos, pensando, com as partilha. Mas o que parece indistinguir e encerrar-se em um princí­
Norbert Elias, que o movimento consciente de identificação dos pio universal é a noção de processo cumulativo de conhecimento e
indivíduos com a própria história não é essencialmente crítico ou autoconhecimento visualmente descrito como um caminho trilhado
autocrítico, pois opera sobretudo em função de sentimentos de filiação por indivíduos e coletividades.
a essa história e às idéias que esta transmite, ligando certo passado É o que temos lido e percebido desde o início deste trabalho:
triunfante ao mito de fundação da nacionalidade. São esses povos
biografias e processos gerais entrecruzam-se na história de Portu­
contemporâneos a própria cristalização de mitos sociais e a garan­
gal. O que nos parece importante reconhecer é que esta compreen­
tia de manutenção de seus significados como os novos personagens.
são histórica não resulta de uma maneira particular de ver e organizar
A percepção crítica dessa filiação e de suas implicações dilui-se ou
dados de um historiador português, mas é o próprio registro
ziguezagueia entre considerações subjetivas e racionais, principal­
(etnográfico) de uma concepção cultural que liga biografias pessoais
mente nas avaliações prospectivas e naquelas do presente em que o
à história de Portugal, projetos de vida pessoal a projetos para a
passado serve como justificação.
nação, personalidades a nacionalidade. É hora de passarmos a essas
concepções culturais que encadeiam experiências pessoais a pro­
cessos globais, tomando possível pensar em uma continuidade de
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 61
60

Portugal entre outros povos e terras. Nada mais fundamental que É o sanitarista quem traça o plano da cidade:
começar pela maneira como organizam o espaço social e recons-
troem-no em outras terras. Se as ruas e as praças forem cobertas primeiramente de cascalho,
greda, carvão em pó, pedras de cantaria, e tão grandes que pos­
sam resistir por muitos anos à agitação dos animais e ao peso dos
Só as nações civilizadas fundaram cidades, não só para se utiliza­
canos e canetas, impedirão quase todas as exalações da terra, darão
rem pela sociedade mas também para se defenderem das injúrias
êxito as águas e se conservarão secas, e podem-se limpar mais
do tempo e dos inimigos [1756, p. 72],
facilmente [id, p. 77],
É o que escreve Ribeiro Sanches no Tratado de conservação da
Mas é o educador quem dita as normas do bom convívio social:
saúde (1756). O texto é pioneiro em idéias para uma política social.
Glorifica e, ao mesmo tempo, reconhece os graves problemas causa­ Havería em cada cidade, vila, ou lugar, lei inviolável que cada
dos por um tipo de vida urbana caracterizado, principalmente, por morador tivesse limpa cada dia pela manhã a fronteira da sua
uma incompatibilidade com a natureza, um esforço ainda frustrante casa, com tanto rigor, que nenhuma sorte de estado, nem ainda
de dominar os recursos naturais e criar defesas contra a casualidade eclesiástico ficaria isento desta obrigação [ib\.
das catástrofes e epidemias. Atendia, assim, receptivamente, ao pen­
samento por mudanças que circulava nos ambientes esclarecidos das A disposição e a organização das cidades dentro de rede muni­
cortes e academias européias e que passava a adentrar gabinetes cipal e a exigência de elaboração antecedendo a construção encer­
ministeriais, sob a forma de propostas de modernização de todos os ram o propósito de implantar cidades adequadas a um modelo de
setores da sociedade. administração pública e política marcado pela forte presença do Es­
A cidade de Sanches nasce da escolha criteriosa de sítios sadios tado na gerência de todos os setores da sociedade. E nada mais dis­
“voltados para o oriente”, “adonde as águas sejam vivas e corren­ ciplinar e fiscalizador que a geometria. A cidade de Sanches é um
tes”, “com entrada para muitas embarcações e carros”, “nem úmido convite ao seu reverenciamento:
nem árido”, “com ventos permitindo plena ventilação” (1756, p. 54).
Quando as razões de Estado prevaleciam contrariando a esco­ Poderá ser muitas vezes obrigado pela irregularidade do terreno
lha correta, ainda assim, recomenda Sanches, deviam ser observa­ a fabricar as ruas, e as praças de forma diferente daquela que
dos o regime dos ventos, a distância razoável das grandes águas, as referíamos: mas todas as dificuldades se devem vencer para que
possibilidades de uso agrícola do solo, etc. Ele prossegue, sugerindo as ruas que atravessarem os vales, ou lugares baixos da cidade,
que as ruas deveríam ser largas e diretas, terminando em praças co­ sejam mais largas do que aquelas plantadas nos lugares levanta­
dos: todos os obstáculos devem dissolver-se para que as ruas e
bertas por calçadas, as casas de pedra e cal, os telhados resistentes e
as praças sejam cobertas de boas, e firmes calçadas, como todos
os aquedutos e alfarozes preparados para dar saída às águas (1756, os lugares públicos: que as águas da chuva, como as que serviram
p. 73). aos habitantes, tenham curso livre, e rápido por canais e cloacas
Da escolha do assentamento urbano ao risco programado das [id, p. 76).
ruas, edifícios e praças, o que se revela em Sanches, além de um
médico sanitarista atento às questões da saúde social, é uma aguda Estamos no ano de 1756. O terremoto ocorrido em Lisboa em
sensibilidade em relação aos problemas do convívio social. Para 1755, fazendo vir abaixo parte significativa de seus edifícios, toma­
Sanches, os edifícios deveríam ser fabricados não só com “majesta­ ra possível substituir antigas concepções por novas propostas de
de e grandeza proporcionada à povoação”, mas também de acordo experiência urbana, onde a geometria não seria apenas um esforço
com as “conveniências necessárias dos cidadãos” (id, p. 76).
62 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 63

estético e, sim, uma solução racional previamente estudada para aten­ culturais de todos os povos que estiveram na Península Ibérica. Dois
der a problemas sociais de grandes coletividades.1 pontos são comuns no nascimento dessas cidades: primeiro, a ori­
As condições adversas impostas pela natureza teriam, por con­ gem celta, romana ou muçulmana, ou simultaneamente todas — em
seguinte, permitido a Portugal essa rara oportunidade de reconstruir certos casos, como alicerces (Évora), em outros, como monumentos
sua capital a partir de concepções e procedimentos com base nos à margem dos aglomerados urbanos que vieram perdurar (Miróbriga
quais também nasce o Diretório dos índios como um plano edifi­ em relação a Santiago do Cacem); segundo, a consolidação da con­
cador das cidades brasileiras. Estamos compreendendo a reconstru­ quista portuguesa (a Reconquista) pela via militar e a sua continui­
ção que teve eco em todos os setores da sociedade como uma dispo­ dade pela presença religiosa. Os castelos e conventos são, assim,
sição interna a mudanças da qual a cidade planificada é a visualização presenças emblemáticas quase constantes em toda a paisagem urba­
do resultado . •' na de Portugal. Ao pé destes monumentos cresceram aglomerações
Entretanto, Portugal e sua experiência marítima não começam que hoje permanecem como vilas e cidades.
sob o abalo de um terremoto. Portugal antigo não renasceu nos sete­ As antigas Notícias das cidades e vilas de Espanha e de Portu­
centos, na geométrica Baixa Pombalina de Lisboa reconstruída após gal (BNL, cod. 788) assinalam como índice de urbanidade a presen­
o terremoto, mas continua vivo onde sempre esteve, na forma das ça de fábricas, ermidas, conventos, praças, aquedutos, colégios, hos­
mas estreitas e curvas que passam junto ao casario surgido nas ime­ pitais, casas de misericórdia, castelos, palácios, fortalezas, torres e
diações do Castelo de São de Jorge, como também permanece res­ muros. Nessas primeiras análises corográficas, o referencial ime­
guardado no ambiente doméstico absorvido em costumes, como o diato não são as pessoas, os aglomerados de casas, mas as grandes
de vedar o ar externo mantendo fresco e escurecido seu interior. Há edificações e fortificações, principalmente muros, seguindo-se
nestes pequenos gestos o testemunho da confluência de muitas cul­ naturalmente a qualidade e a quantidade de alimentos disponíveis.
turas ainda operantes. A urbanização seria o resultado da estratégia de ocupação, conquis­
Lisboa, Santiago do Cacem, Évora, como quase todas as cida­ ta e controle de território. Em primeiro lugar, as garantias militares
des portuguesas, trazem impressas em sua arquitetura as marcas de permanência. E veremos repetir-se esta mesma estratégia de con­
quista e colonização interna nos empreendimentos marítimos.
Além do aspecto defensivo— evidentemente, sua maior justifi­
cação —, seu caráter monumental conferia qualidades de urbani­
1 Exemplos europeus anteriores e contemporâneos à reconstrução de Lisboa são
significativos de um esforço geral e comum de planejamento e modernização das dade. Um outro texto, bastante curioso, posto que em nosso tempo
cidades. Londres, em 1666, após um grande incêndio, e Paris, a partir de 1680, correspondería aos guias turísticos, focaliza as Maravilhas e antigui­
experimentaram essa oportunidade de reorganizar o espaço urbano, tendo a gran­ dades da cidade de Roma (BNL, Cod. 11.158) em 1789. A monu-
de praça do Renascimento como solução para novos ordenamentos contando com mentalidade — e, neste caso, a suntuosidade — é confirmada como
populações cada vez mais numerosas (Sennett, 1989, pp. 74-78). A mesma con­
cepção presidiu a construção da “plaza mayor” de Madri, uma criação pioneira
dado de urbanização. São destacados os palácios, as praças, os
do urbanista Juan Gómez de Mora, datada de 1619. São Petersburgo 6 exemplo obeliscos e os arcos de uma cidade que representou a realização
de cidade totalmente “concebida e imposta”, um projeto de arquitetos e enge­ máxima do ideal europeu de urbanização. Porém, o aspecto estético
nheiros vindos da Inglaterra, França, Holanda e Itália que intencionava tornar é precedido por finalidades de fixação. Em uma Europa predomi­
esta cidade russa “uma janela para a Europa”(Berman, 1988, p. 171). Na Améri­
nantemente rural, esses grandes edifícios foram pontos iniciais do
ca Latina, algumas cidades beneficiam-se destas reformas urbanas. O Rio de Ja­
neiro, sob a administração de Gomes Freire de Andrade (1751), recebe prédios povoamento e subseqüente urbanização. Nem é preciso estender-se
públicos, parques, o aqueduto, iluminação, obras de saneamento e calçamento. para além de Portugal e pecar por imprecisão histórica. Um texto
O mesmo veio a ocorrer com a Cidade do México, e Lima, após o terremoto de descritivo Em que se dá notícia da cidade de Lisboa (BNL, cod.
1746, foi totalmente reconstruída e modernizada (Morse, 1962, pp. 44-46). 11.202), datado em 1785, apresenta uma lista de conventos cujos
64 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 65

nomes são ainda hoje relembrados nos atuais espaços urbanos das privado e público e na ampliação valorativa deste último, represen­
ruas, calçadas e praças da cidade. E talvez possamos considerá-los tada pela rua que se dirige à praça onde estão situados o mercado, a
pontos de partida de espaços paroquiais. São eles, para citar alguns, igrejá, as principais atividades citadinas (Carvalho, 1989, pp. 10-19).
o Convento de Nossa Senhora da Boa Hora, o Colégio de Santo Algumas dessas tradições remanescem, como monumentos sem
Antão, o Convento de São Pedro de Alcântara, o Convento de Santa funcionalidade no presente. Outras continuam vivas e encontram-se
Apolônia, o Convento do Rato, etc. reunidas compondo as soluções de vida urbana de hoje. Certos no­
Aproximando-se um pouco mais desses modos de organizar mes atuais de espaços urbanos apenas indicam a operacionalidade
espaços urbanos, vemos confluir tradições às vezes contraditórias e de estratificações que já não têm mais sentido social. São diferencia­
exclusivas entre si. A junção dessas tradições na arquitetura, no ções que procedem de situações de forte segregação social e étnica,
comportamento, nos costumes, nas convicções e perspectivas indi­ marcando em ruas e guetos a diferenciação de categorias profissio­
viduais e coletivas surpreende em Portugal, sugerindo-nos questões nais, classes sociais e etnias minoritárias. Hoje, estes nomes, que
para pensarm os nossos próprios acertos e desacertos com a lembram a existência, no passado, de mourarias e judiarias, ou que
pluralidade de realidades histórico-culturais existentes no Brasil.2 remetem ao cotidiano das atividades econômicas de uma cidade, tes­
Anotamos as informações principalmente dos estudos de Sér­ temunham a transposição de concepções culturais para o espaço fí­
gio de Carvalho, sintetizados em Cidades medievais portuguesas sico das cidades — tal qual os fósseis impressos na superfície dos
(1989). minerais, nos permitindo entrever a dinâmica dos seres vivos de
Da tradição pré-muçulmana, vemos realizar-se, entre os habitan­ outrora, representam a escrita da pré-história. Ora, é esse traçado
tes de castros, a primeira experiência de aglomeração social. A plan­ urbano, mantido ou refeito, continuamente, a cada época e sob impe­
ta originária dos antigos acampamentos militares dos romanos irá rativos de convicções conjunturais e de princípios estruturais, que
influir na regularidade do traçado das ruas de certos espaços citadi- vemos instalar-se nas colônias.
nos, como os de Lisboa, por exemplo. Dos muçulmanos, vemos per­
sistir as soluções de vida urbana em ambientes de elevada tempera­
tura e a repartição do espaço a partir de objetivos defensivos e Exemplos de transposição
religiosos. Resultam como marcas dessa tradição as ruas estreitas,
que fogem ao sol quente, das cidades ibero-muçulmanas e princi­ Parece-nos possível pensar esta bagagem de mais de dois mil
palmente hispano-muçulmanas. O princípio defensivo imanente na anos de esboços e experiências urbanísticas como a que orienta as
construção da alcáçova como recinto reservado aos governantes, por instruções e planos de urbanização da Amazônia e demais cidades
dificultar o acesso aos invasores e oferecer uma saída independente do Brasil. Entretanto, será preciso balizar nossas comparações e trans­
a seus ocupantes, foi incorporado ao conhecimento geral de enge­ posições do exemplo português (e europeu), tendo em conta três
nharia militar. Por último, o que parece fundamental em Portugal — questões que deveriam ser rediscutidas.
e familiar ao Brasil — é a configuração do espaço interno, em con­ Antes de mais nada, é tempo de desarticularmos a idéia de que o
cordância com as concepções islâmicas de casa como local de reco­ geométrico é índice exclusivo do pensamento planejador. A caracte­
lhimento e prática religiosa. A tradição cristã irá desenvolver con­ rística das ruas, em novelos que convergem para o centro onde se
cepções quase que inversas à precedente, na definição dos espaços situam as principais atividades citadinas, imprime qualidades ilusó­
rias de improviso no que está impregnado de significado social e
fundamentação histórica. Tal formato urbanístico parece provir de
2 Roberto DaMatta (1987) dedica-se a essas questões, vistas a partir do contexto propósitos defensivos (pode ter crescido intramuros) e visa a uma
cultural brasileiro. plena funcionalidade administrativa, política, comercial, bem como
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 67
66

ao convívio, em um mesmo espaço, de diferentes categorias profis­ foram, num crescimento natural e progressivo, avizinhando-se de
sionais, classes sociais e etnias. tal modo que hoje transmitem a impressão de que tal continuidade
Ademais, é preciso reconhecer que o movimento de expansão urbana tenha sempre existido.
territorial, acompanhado da ação urbanizadora, não é linear como É inevitável identificar esta concepção de expansão territorial
idealmente se apresenta à nossa percepção visual. Isto se constata presente nas estratégias de ocupação de largas extensões territoriais,
particularmente no caso de países de larga temporalidade e diferen­ percorridas pelos rios brasileiros. Toda uma legislação foi elaborada
tes experiências civilizacionais. O caminho na direção norte-sul que para tomar real a transformação de habitações indígenas em “mis­
vimos delinear-se como movimento visual da história da expansão sões”, e estas em “lugares”, “vilas” e cidades portuguesas. Não há
territorial de Portugal é sobretudo um recurso “nativo” ou cultural como comparar uma cultura milenar com outra por ela formada se­
de compreensão histórica. Um bom começo para o entendimento e a não como até aqui fizemos. Esboçamos o modelo e sua imitação
contextualização desta questão é o mapeamento das incursões estran­ (que não é uma réplica), ou melhor, entrevemos este modelo imanente
geiras, assinalando suas experiências colonizadoras e os movimentos nas cidades ribeirinhas do Vale do São Francisco e do Amazonas.
nativos de reconquista e fixação. Na Amazônia, especialmente, a substituição de nomes indíge­
Mas nem sempre se sucederam guerras e reconstruções comò nas pelos de cidades portuguesas reflete vivamente esses exercícios
fatos cronologicamente bem localizados e definidos. Santiago do de transposição. O batismo de localidades com os nomes das cida­
Cacem parece-nos ser um caso. A presença de um castelo militar, des de origem de seus povoadores permite-nos, a partir do novo
relembrando permanentemente o fato da reconquista de uma cidade mapeamento dos topônimos que daí resultou, especular quando, como
ainda hoje de acentuada influência muçulmana e que tem em e de onde procediam as levas migratórias de Portugal para a Amazô­
Miróbrigá, nas adjacências, um exemplo de cidade romana por in­ nia desde o início da ocupação, o século XVII (figura 37).
teiro, confirma a natureza cumulativa, coextensiva, complementar
Em terceiro lugar, é preciso questionar a casualidade como fa­
das ações hum anas, embora possam estas conjunturalm ente
tor explicativo da escolha de terrenos elevados para assentamento
manifestar-se oponentes, competitivas e mutuamente movidas por
das cidades brasileiras de origem colonial. Ao observar a harmonia
objetivos hegemônicos. com que as cidades coloniais de origem portuguesa se ajustam ao
De qualquer forma, um olhar sobre mapas atuais e antigos for­
terreno acidentado onde são implantadas, Sérgio Buarque de Holanda
talece a suposição inicial de que estes movimentos de expansão
pensou nestas construções como um dado de ausência de planeja­
territorial e colonização interna muitas vezes coincidem com os ca­
mento (1981, p. 76). Observemos está escolha de outro ângulo, ou
minhos fluviais e vias comerciais. Afirma-nos Sérgio Carvalho que
seja, como um gesto cultural fundado em um antigo princípio de
Santarém foi edificada para servir de ponto de apoio à navegação
utilização dos recursos naturais para fins defensivos. A estratégia de
pelo Tejo até Lisboa e que Évora, situada a meio caminho entre a
construção de cidades e fortalezas em terrenos elevados responde a
região portuguesa do Alentejo e a Espanha, desde sempre assistiu à
objetivos táticos — melhor visibilidade, obstáculos a invasões e con­
movimentação de pessoas e cargas (1989, p. 24). Hoje as rodovias e
dições de ataque.
ferrovias continuam a repetir estes velhos caminhos e estratégias de
A cartografia e a iconografia, tal como os manuscritos, além de
ocupação.
Esta mesma visão linear da ação urbanizadora pode ser obser­ seu valor de prova histórica, comunicam explicações que, com o
vada no eixo viário que margeia a faixa litorânea de Lisboa a Cascais, passar dos tempos, se não são esquecidas, perdem ou sofrem altera­
pontuando distintas e numerosas localidades urbanas. Há algum tem­ ções em seus significados. Os mapas e plantas aquareladas transmi­
po, distantes entre si, com mais ou menos autonomia política e econô­ tem o pensamento do conquistador, são a sua linguagem “gráfica”
mica em relação a Lisboa, essas localidades (vilas, centros piscatórios) — expressão adotada por Norbert Elias ao fazer uso de plantas de
68 Rita Heloísa de Almeida
O Diretório dos índios 69

castelos como acesso à organização social das cortes européias (1969/


conexão entre África Oriental e Ásia, constituindo-se a rota comercial
1982, p. 62). pelo oceano Índico.
O mapa das rotas marítimas é muito mais a expressão menor de
Essa visão global é permitida ao se folhear as iconografias reu­
um espírito de aventura do que da ação prudente e calculista de al­
nidas por Luís Silveira em Ensaio de iconografia das cidades portu­
guém que age passo a passo, ano a ano, fazendo descobertas e
guesas no Ultramar. Segundo Luís Silveira, no correr dos empreen­
acumulando conhecimentos para empreender novos avanços. Lan­ dimentos ultramarinos portugueses que começam no século XV, as
çar os olhos pelo continente africano, começando por Marrocos, se­
formas de ocupação na África limitaram-se à construção de feitorias
guindo as ilhas de Açores e da Madeira, a África Ocidental e sua
situadas entre o desembocar de caminhos vindos do interior e os
face oriental, até chegar à Ásia Próxima e Extrema (Oriente Médio e pontos de escala de navegação marítima (a colonização propria­
Extremo Oriente), permite-nos realizar, imaginativamente, esta via­ mente dita só teria início no século XIX, após a emancipação políti­
gem, pensando cada região não só como base naval, mas, sobretudo, ca do Brasil). Já as cidades e fortalezas portuguesas construídas no
como lição de estratégias de ocupação. Oriente Próximo e no Extremo Oriente foram constituídas ao lado
Na literatura portuguesa que trata dos descobrimentos e da co­ ou sobre cidades nativas já existentes e conquistadas, sendo estas
lonização há nítidas distinções entre empreendimentos exploratórios, sensivelmente modificadas e até hoje marcadamente identificadas
de finalidade comercial, mas quase sempre bélicos, extrativos e por seu aspecto mesclado, nem português nem asiático, mas algo
temporários, e aqueles que visam a uma fixação de caráter perma­ definido por Luís Silveira como “luso-índíco”.
nente. Acentuando um e outro — pouco importa— , o mais coerente Este parece ser também o caso das cidades do norte africano.
é afirmar que cada procedimento obedece a uma ordem tática de Ali, nas chamadas “praças fortes”, ou “cidades de fronteira”, como
identificação, exploração do ambiente e só então ocupação. Seja qual convém referir-se à primeira experiência ultramarina portuguesa, a
for a maneira como os portugueses (e aqui podemos generalizar, tradição urbana das cidades do sul do Tejo misturou-se às experiên­
incluindo outros europeus) marcavam sua presença nos espaços con­ cias já existentes, formando um tipo muito peculiar, de tal maneira
quistados, o ato mais simples de instalar-se comercialmente entre mesclado que, no entender de Silveira, é difícil distinguir, nas cida­
produtores e consumidores desencadeava uma série de ações cujo des ibéricas meridionais e nas marroquinas, o que cada uma repas­
esforço não se faria menor que a organização dos centros produtores sou à outra (Silveira, 1955, p. 10).
e da frota comercial para transporte dos produtos; o aparelhamento Os comentários precedentes servem-nos à contextualização do
da rota de navegação com estações bem espaçadas para abasteci­ exemplo brasileiro. Questionávamos a casualidade na escolha de
mento de víveres, lenha, água e fornecimento de pessoal às naus; a terrenos acidentados para o assentamento de cidades de origem colo­
garantia militar da plena circulação dessas embarcações, etc. nial. Pois temos a aprender com os exemplos de cidades portuguesas
(Bittencourt 1944, p. 26). construídas no Marrocos, no Oriente Próximo e no Extremo Orien­
Ter em vista essa montagem estrutural da situação precedente é te. Vimos que nestas regiões as cidades portuguesas são resultado
pensar também que as regiões sob domínio português foram prepa­ do convívio de povos com tradições urbanísticas bem definidas e
radas e articuladas entre si para compor um mesmo e complexo sis­ igualmente fortes. Creio que aqui convém a expressão conquista,
tema comercial, no qual cada parte deveria atuar como peça ajusta­ posto serem espaços urbanos de antiga ocupação por povos que ofe­
da, com funções definidas e posição de interdependência em relação reciam resistência ou lutavam pela reconquista, quando não intervi-
às demais. Veremos, assim, funcionar a interdependência entre a nham outros povos de outras regiões (inclusive europeus) com a
África Ocidental, Marrocos, ilhas adjacentes (Açores, Madeira) e mesma pretensão. A cidade edificada neste contexto é cercada por
Brasil, formando o que se chamou “mundo português atlântico”, e a muros ou desenvolve-se no interior de fortalezas e deverá resultar
da assimilação tática de conhecimentos e procedimentos de ambos
Rita Heloísa de Almeida ( O Diretório dos índios 71
70

os lados, conquistados e conquistadores. Vejamos alguns exemplos todas as condições para a reprodução da vida urbana: não só praças,
iconográficos. igrejas, pelouros, casas, como também, e principalmente, áreas de
A cidade de Tzafím (ou Safim, Saffi, Safi ou Sofim), situada no cultivo representados por estes terrenos internos aos agrupamentos
Norte da África, foi tomada e transformada em entreposto pelos por­ de casas (destacados, no original, pela cor verde). Já Chavl (Chaul),
tugueses em 1502 e abandonada em 1542. A escolha do terreno onde cidade e porto da índia, inicialmente uma conquista portuguesa, de­
se encontra Tzafím parece-nos presidida pelo critério da utilização pois um domínio inglês (o que parece ser a trajetória comum de
dos recursos naturais, de modo a garantir uma visão ampla sobre o muitas dessas cidades fortificadas) (figura 8), é exemplo de povoa­
mar — por ser, sobretudo, um porto do Marrocos — e a proteção mento que ultrapassa as muralhas da fortaleza. Novamente visua­
interna por meio dos muros construídos sobre elevações (figura 3). lizam-se as áreas de cultivo nas adjacências das casas. Negapa tam
Talvez o desenho em perspectiva nos induza a uma impressão des­ (ou Negapatão) parece protegida por muralhas naturais e cercada
proporcional com respeito à proteção interna da cidade, a qual seria pelo próprio rio que a circunda (figura 9). E, São Tomé, índia (figura
assegurada pela escolha prévia de um terreno elevado e pela 10) , permanece densa nos limites da fortaleza. Seus edifícios deno­
edificação de muros acompanhando suas ondulações. Citemos, po: tam a especialização de funções que superam os objetivos militares.
rém, outro exemplo que não deixa margem a dúvidas. O penúltimo exemplo chama a atenção sobre a origem de meios
É Mascate (figura 4), situada na antiga Arábia. O exemplo defensivos, como a paliçada que vemos presente em Manora (figura
iconográfico revela tanto como a utilização de recursos naturais pára 11) , na índia, e que comumente se relacionam, no Brasil, com as
fins defensivos como para a reprodução da vida urbana dentro des­ habitações originais construídas pelos índios de língua tupi (figura
sas fortificações. Observe-se, no desenho de Mascate, as duas cons­ 12) . A questão é saber se o que se encontra registrado já não seria
truções colocadas frente a frente, formando um corredor de vigilân­ resultado da assimilação de estratégias trazidas pelos portugueses,
cia da entrada e saída de navios. Este princípio deve ter influído na apreendidas no convívio com povos asiáticos. Ou talvez fosse o caso
escolha de terrenos como o do Rio de Janeiro, cidade que se estende de conjecturar a possibilidade de tais habitações indígenas terem
sobre a baía, protegida por dois fortes colocados frente a frente, como sido os primeiros espaços organizados pelos colonizadores para a
que fechando uma porta às invasões e extravios (figura 5). O dese­ civilização dos índios (figura 13). -
nho de Mascate também permite dimensionar a importância de que A serra de Aserim (ou Asserim, Assarí, ou Açarim) é o último
se revestem os rios do interior do continente. Além de servirem como exemplo que em evidentes desproporções demonstra como a esco­
vias intermediárias entre o mar e a terra, para melhor controle da lha de terrenos elevados tinha o deliberado propósito de garantir a
entrada de navios, representam eles os primeiros caminhos para explo­ defesa da povoação (figura 14). Veremos repetirem-se os mesmos
rações internas ao continente. Madã (figura 6) e, principalmente, elementos determinantes da localização de Goa, na índia (figura 15),
Damão (figura 7) também servem à visualização da influência dos e de Salvador, no Brasil (figura 16). Somos levados a refletir acerca
rios de longo curso na determinação dos terrenos para construção de do início histórico de Lisboa sobre o morro onde foi edificado o
fortalezas. Castelo de São Jorge e, em certa medida, do Porto, cidade do Norte
Contemplar a representação iconográfica de Damão também de Portugal encravada sobre os barrancos elevados do rio Douro,
sugere pensar em uma espécie de estratificação do tempo da fortale­ como modelos referenciais das experiências urbanizadoras nas colô­
za. Damão pode ter-se desenvolvido a partir de uma fortaleza ini­ nias. Considere-se, igualmente, a contingência da falta de material
cial, sendo englobada posteriormente por outros muros guardados adequado para a construção de fortalezas e a urgência em preparar
por novos bastiões. Olhando para dentro e entre seus muros, supo­ a defesa contra a resistência nativa e as possíveis incursões euro­
mos poder refazer a movimentação cotidiana dessas povoações. euro­ péias como fatores que ditaram a escolha deliberada de sítios de
péias plantadas no Oriente e que deveriam oferecer, intemamente,
72 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 73

difícil acesso e, ao mesmo tempo, de ampla visibilidade para seus destinadas a uma população não só de soldados, como também de
ocupantes.3 comerciantes, produtores, funcionários administrativos e respecti­
Seria preciso empreender uma arqueologia dessas fortificações, vas famílias. As plantas aqui vistas refletem um mesmo esforço de
a partir do conhecimento do trajeto particular de cada uma, da esco­ transplantar para essas fortalezas as mesmas condições de vida ur­
la de engenharia que as orienta e do concurso de influências nativas, bana das cidades do continente europeu.
resultando em soluções adaptadas a cada situação histórica e meio Neste sentido, compreende-se por que, no estabelecimento de
ambiente. A escolha dos exemplos iconográficos e um tratamento feitorias ou no propósito de fincar bases para uma colonização du­
despido de contextualização histórico-cultural deverám-se, além da radoura, concorrem os mesmos esforços de implantação de um
exigíiidade de tempo, ao objetivo de estudar os planos arquitetôni­ modelo elementar (porém, complexo) de reprodução da vida social.
cos e proceder á um inventário de estratégias e princípios organiza­ Vimos Malaca, e agora Cochim (figura 17) — cidades situadas em
cionais. pontos distintos do esquema colonial português — espelharem a
Assim, repassando as imagens aqui apresentadas, vimos que ordem social de Lisboa. É a intenção de prolongar-se, prosseguir o
todas as experiências ocorrem no litoral, em pontos estratégicos vol­ caminho, ampliar estas povoações, transplantando este modelo
tados para a implantação de bases navais, o que definia o formato de intramuros para além das muralhas das fortalezas, que vem deman­
construções civis fortificadas. Por certo (embora faltem elementos dar uma outra série de esforços que começam pelo doutrinamento
histórico-contextuais a confirmar), não são conquistas que servem a da população nativa, substituindo, desta forma, a atitude defensiva e
finalidades estritamente militares, ou particularmente navais. Têm ofensiva pela missionária.
sempre um fundamento na potencialidade comercial local ou no que A consideração dessas povoações que crescem dentro de muros
representa como ponto de escala que a ele conduz. É a própria razão faz recordar as situações na própria Lisboa medieval, em que a se­
da conquista o estabelecimento de entrepostos. Explica-se, pois, ô gregação social e étnica promoveu repartições internas. Segundo
desenvolvimento de povoações visualmente diversificadas, posto que Sérgio Carvalho, as mourarias e judiarias das cidades portuguesas
constituíam um mundo completo à parte. Abertos durante o dia e
proibidos à habitação por pessoas de fora da comunidade étnica,
5 A escolha de terrenos elevados para construção de cidades fortificadas pode estar
estes guetos continham todas as condições de núcleos urbanos auto-
associada às primeiras experiências urbanísticas realizadas pelos antigos gregos.
As cidades gregas tinham a acrópole como proteção, uma espécie de “cidadela”
suficientes com “mecanismos de auto-regulação, desde corpos admi­
encravada sobre rochedos e protegida por muralhas que guardavam os edifícios nistrativos e religiosos, até locais de culto, hospitais, escolas e cemi­
sagrados. A acrópole funcionava, assim, como santuário e, ao mesmo tempo, térios” (Carvalho, 1989, p. 41). Além de estabelecimentos comerciais,
fortaleza (Lello, p. 28). Reaimente, os colonizadores europeus devem ter tido alguns destes guetos contavam com tribunal próprio, cemitérios e
como referência espacial imediata a acrópole. Os castelos e fortalezas construídos autoridades supremas escolhidas mediante processos de eleição
no próprio continente são exemplos. Mas, pensemos observando a questão de
outro ângulo. Do Livro das cidades (1582), Luís Silveira anotou o seguinte tre­
entre membros da comunidade. Indicativo das tendências pro­
cho a respeito da serra de Asserim : “Entre as terras de Bacain [Bombaim] e fissionais destas comunidades étnicas é a sua localização: as judia­
Damão de um campo raso, estava assentada a serra de Açarim, que é o mais alto rias ficavam próximas aos centros das cidades e as mourarias nas
e forte lugar pela natureza [...] porque além de sua altura ser um extremo grau, é áreas vizinhas das atividades agrícolas. Interessante é o fato de que
toda cercada em roda de pedra viva sem se poder por modo algum subir a ela estes guetos em nada se diferenciavam das demais localidades urba­
mais que por uma só parte, em que a estrada muito trabalhosa, e que com facili­
nas, exceto pelo mecanismo de auto-identificação e de identificação
dade se pode defender” (apud Silveira, 1955, pp. 343-344). Asserim (fig. 14),
um povoado cristão a meio caminho de Damão e Bombaim, ambas situadas na pelos outros como pertencendo a comunidades distintas, além da
índia, em região cultural tão antiga quanto a Grécia, mostra como é difícil iden­ existência de portais que se fechavam à noite (1989, p. 43).
tificar a procedência cultural destes recursos colonizadores trazidos pelos portu­ Alterando-se somente os lados da segregação, parece que o
gueses para o Brasil. bairro cristão em M arrakesch, conforme comentado por Luís
74 Rita Heloísa de Almeida

Silveira, segue o mesmo princípio. A indistinção física também é


destacada— inclusive é dado de assimilação de culturas em uma sq.
Não creio que a indistinção física seja um dado de assimilação
nos atuais bairros de imigrantes europeus que ainda hoje existem
como espaços étnicos delimitados nas grandes cidades da América.4
Além da distinção física lembrando traços arquiteturais típicos do Capítulo 3
país de origem, estes espaços constituem-se com a deliberada inten­
ção de fixar diferenças ou deixá-las manifestarem-se abertamente
sob a proteção de barreiras imaginárias entre o mundo familiar e o
exterior. São transposições necessárias, tomando possível realizar
O govern o da conquista
experiências de outro modo emocionalmente inviáveis.
Os exemplos são de toda ordem. Penso, aqui, no antigo alber­
gue onde se hospedavam os índios que vinham a Brasília tratar de
assuntos de ordem pessoal e comunitária com o órgão responsável -
Até o momento, dois temas estiveram inter-relacionados na dis­
pela sua tutela. Ali, informalmente ou por processos calculados que
cussão: a civilização dos índios, vista como um pensamento alterna­
desconheço, o espaço dos dormitórios e locais públicos refletia as
tivo ao da exclusão, e a abrangência cultural, implícita no ato de
diferenciações que os hóspedes-índios faziam entre si como proce­
colonizar. A posição até aqui enfatizada foi a de que a civilização
dentes de etnias distintas. Uma redoma é ritualmente mantida inque-
brantável a cada domingo, em que brasileiros se encontram para um dos índios participava da colonização como tópico de um programa
almoço com comidas típicas em ambientes estrangeiros. A Folia do maior. Vimos que esta postura de inclusão direcionou as ações dos
Divino, em Pianaltina, relembra o itinerário dos cavaleiros por fa­ colonizadores no sentido da conservação física dos índios e de sua
zendas que já não existem mais, em razão de o espaço estar ocupado incoiporação econômica aos processos sociais daí desencadeados.
pela cidade de Brasília. O trajeto simbólico dos foliões atuais ritualiza Agora o enfoque é o governo da conquista. O que, em síntese, com­
um retorno a uma extinta organização social e espacial da região e preendeu esse entrelaçamento de ações — governar terras e popula­
que tem forte relação com os sentimentos de identidade dos planal- ções nativas. O que se passava a partir do descobrimento e conquista
tinenses. A intervenção em habitações indígenas pelos missionários da terra.
e, depois, funcionários da Coroa Portuguesa, realizada com a inten­ Adiante serão transcritos textos correspondentes a essa época da
ção de promover a transformação destas localidades em cidades colonização. Neles, “nossos” temas são a ordem do dia de seus auto­
portuguesas e seus habitantes em “vassalos do rei”, é o exemplo de res, a vivência imediata de opinar, influenciar e mesmo intervir nos
transposição que contemplamos no estudo de o Diretório dos índios. acontecimentos em que participam como agentes contemporâneos.
Antes, porém, de voltarmos as vistas a essas fontes, será preciso
4 A propósito, Richard Morse comenta o fortalecimento de vínculos consangüí- destacar o pensamento de dois historiadores. Primeiro, Raimundo
neos e de amizade em contextos urbanos, tomando como referência os estudos de Faoro (1976), pelo entendimento que detém das diferenças culturais
Michael Banton sobre a cidade de Freetown, Sierra Leone, no continente africa­ e econômicas nascidas da colonização. Recorrendo a Hegel, ele obser­
no. Banton observaria, nas palavras de Morse, que 3/4 da população desta cidade
eram constituídos por tribos. Os efeitos desta mistura de culturas africana e oci­
va que o papel do Estado foi quase ausente na experiência de cons­
dental havería de produzir uma “nova forma cultural” que é “exteriorraente eu­ trução social da América inglesa, e fortemente presente na formação
ropéia”, embora retenha um “conteúdo latente de significação tribal” (Banton, da América portuguesa (1976, pp. 121-122). Seguindo esta perspec­
West African city: a study o f tribal life in Freetown, Londres, 1957 apud Morse, tiva, ele mostra que na experiência lusa a presença sempre vigilante,
1962, p. 59). Ainda voltaremos a esta questão no sétimo capítulo deste trabalho.
ainda que pouco atuante e distante, da Coroa portuguesa sobre os
O D iretório dos índios 77
76 Rita Heloísa de Almeida

conquistas que deram à Europa a preeminência política que chega


empreendimentos coloniais é prova de que nem Portugal e menos
ainda o Brasil conheceram estruturas associadas ao conceito de feu­ aos nossos dias. Em ri Utopia, livro escrito nos moldes deri repúbli­
dalismo europeu. Preocupa-se Faoro em contestar a presença dessas ca de Platão, ele problematiza questões da organização e convívio
estruturas em Portugal, mostrando que sua especificidade histórica humano em meio urbano. Mediante o relato de Rafael Hitlodçu (via­
foi justamente a de ter-se formado nação a partir de uma base políti­ jante português que descobre e vive muitos anos na ilha da Utopia),
ca centralizada na figura do rei, realidade esta muito diversa da frag­ Thomas Morus discorre sobre experiências organizacionais imagi­
mentação que propiciam as organizações feudais. Assim, em vez de nárias, por meio das quais coloca em questão as instituições euro­
adotar a perspectiva que entende a colonização do Brasil como um péias de sua época.
retomo a métodos interpretados como de base feudal feita por uma ri Utopia é uma ficção de alcance universal, que superou as
aristocracia agrária com plena autonomia política em relação ao po­ barreiras históricas e culturais de sua criação. Não se deve esquecer,
der central, ele prefere considerar o mercado europeu fator definidor contudo, que foi escrita a partir do horizonte de conhecimentos e
das políticas econômicas para as colônias americanas, tendo estas, experiências do autor. Traz, pois, aspectos conservadores, resultan­
no caso português, sido comandadas pelo Estado (id, pp. 109-110). tes do transplante acrítico, pelo autor, de instituições e valores de
Postura que permite entender os rumos econômicos de cada colônia sua própria sociedade para O que iria compor sua imaginada ilha.
como decorrentes da posição que os respectivos países colonizadores Exemplo maior é a noção de escravidão como instituição educativa.
detinham no mercado europeu (id, pp. 121-122). Ao mesmo tempo, a obra apresenta idéias inovadoras, enriquecidas
Richard Morse está atento a essas mesmas questões suscitadas pelo conhecimento, então recente, de diferentes povos, culturas e
pela investigação das experiências dos colonizadores europeus e seus organizações sociais encontradas pelo europeu em suas explorações
distintos resultados, hoje consolidados no que chama de “Anglo- fora do continente. A concepção de melhor mundo que Thomas
América” e ‘‘Ibero-America”. Más, em vez de evitar a interpretação Morus imagina poder existir entre esses povos e que a Europa de­
que concorda com a efetividade do transplante de instituições para a veria imitar tem a colonização como política de redistribuição de
form ação das colônias, ele propõe que estas m esm as sejam
populações.
investigadas ao tempo de sua formação e real existência no conti­
Este problema é apresentado em um trecho no qual Rafael
nente europeu, pois aí surgem as “opções culturais” que hão de expli­
Hitlodeu conta as condições em que era definida a necessidade de
car os distintos perfis e rumos de cada uma das Américas (1988,
planejar a redistribuição territorial das populações, optando pela re­
pp. 22-23).
dução, onde houvesse excedente, ou pelo povoamento, nos casos de
É este procedimento que persigo, embora o peso que Morse atri­
bui à comparação tenha sido por mim minimizado, em nome de um terras “desertas” e “incultas”.
intento maior, o de, primeiro, conhecer o material que informa as O livro é uma ficção — já o dissemos —, mas apresenta um
idéias, os métodos, as experiências, enfim, a cultura trazida pelo material de estreita semelhança com documentos que tratam da rea­
português para a constituição de uma sociedade no Brasil. lidade colonial e do pensamento predominante nas políticas de colo­
nização. Rafael Hitlodeu refere-se à “guerra justa” como conceito
destituído de razões religiosas. No caso, “guerra justa” é uma inter­
As primeiras experimentações venção com uso da violência, a fim de atender às necessidades econô­
de vida urbana em Portugal micas da ordem do povoamento e do cultivo de terrenos inexplo­
rados. A guerra se faria justa aos que resistissem a este intento que
Thomas Morus escreveu A Utopia ao longo de uma vida trans­ se pretendia defender como sendo o melhor. O conceito de “mãe-pá­
corrida entre os anos de 1480 e 1535. Seu pensamento é representa­ tria” reforça esta convicção, assinalando a primazia dos interesses
tivo de uma época marcada pelo arranque de descobrimentos e
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 79
78

colonizadores quando se tratava de controlar os movimentos migra­ formais, repetidas a cada conquista com a fundação da povoação
tórios, tendo em vista o equilíbrio populacional do país de origem formalizada por uma carta régia ou alvará, pela implantação do
(pp. 89-91). pelourinho*2 e de alguns poucos edifícios públicos, foram sempre
Embora A Utopia questione as instituições e costumes euro­ oriundos da convicção de estar-se oferecendo um modelo de melhor
peus então vigentes, os conceitos Com os quais Morus trabalha estão mundo, tal qual os utopianos acreditavam estar fazendo. Esta con­
impregnados da prática de colonizar que estava em curso. O livro vicção, sustentada por uma bagagem de idéias e sentimentos singu­
foi publicado pela primeira vez em 1516. Tal fato permite-nos asso­ lares da cultura do colonizador, tornaria realizável a missão de cons­
ciar a idealização da ilha com os primeiros impactos causados no truir um novo mundo.
imaginário europeu pelo descobrimento da América — inclusive, a A questão que emerge é saber qual o desdobramento que viria a
nacionalidade portuguesa do viajante sugere-nos, como fonte de ins­ seguir ao ato solene do batismo do lugar e da população nativa. Como
piração, o próprio Brasil. um modelo estranho ao ambiente — e, naturalmente, à cultura e ao
Esses conceitos trabalhados por Morus pré-existiam ou foram entendimento da população nativa — persistia e tornava-se realida­
criados pela força das novas experiências. Eles viriam a incidir so­ de palpável, com núcleos de povoamento transformados em aldeias
bre textos aplicados a realidades particulares, como as leis coloniais e vilas? Como uma representação mínima de colonizadores iria
destinadas aos índios do Brasil (já examinadas, no primeiro capí­ dominar populações inteiras cie uma colônia maior que seu país de
tulo). O fato de essas idéias aparecerem em textos do alcance públi­ origem? Estou pensando na organização do governo sobre terras
co de A Utopia por si demonstra que a ação de colonizar, muito além conquistadas.
de uma política de redistribuição de populações, foi, sobretudo, uma No caso de Portugal, estas questões encontram respostas na
convicção européia. experiência de povoamento do próprio país. Os problemas e as solu­
A propósito, retorno ao que indagava no segundo capítulo,1 a ções imaginadas para o povoamento de regiões que não recebiam
respeito de como Portugal teria equacionado o problema contando afluxo espontâneo de populações tiveram o estímulo de políticas
com uma população insuficiente para o povoamento do Brasil. Es­ especiais. É o caso dos “coutos de homiziados”, ou seja, lugares que
tou pensando que o conteúdo e a força propulsora dessas cerimônias tiveram o povoamento estimulado pela decisão do poder central de
perdoar foragidos da Justiça que para lá afluíssem. Estes “asilos de

1Há muito que estudar quando nos deparamos com a dificuldade de tirar conclu­ transformação social no meio rural com a conversão das áreas de agricultura
sões definitivas a respeito dos movimentos demográficos na Europa ao tempo em campos de pastagem e a desestabilização da oferta de serviços (id, p. 104).
das explorações marítimas. No segundo capítulo é comentada a insuficiência de Em Portugal, as disparidades de renda também cresceram com os lucros do
populações para colonizar o novo mundo, tomando como referência os estudos Oriente. A nobreza burocrática e a da terra, os capitalistas e os comerciantes
de Caio Prado Júnior. Há que analisar de uma outra perspectiva, quando Faoro contrastavam minoritários e enriquecidos com um povo numeroso e cada vez
traz os estudos de Braudel e Godinho, mostrando que o contrário ocorreu. Uma mais miserável (id., pp. 103-114).
expansão demográfica na Europa fez emergir, em meados do século XV, o pro­
blema social de uma população que cresceu acima das possibilidades de seu re­ 2 Além de símbolos de Justiça, os "pelourinhos” eram locais de execução pública
crutamento econômico. O resultado inquieta proprietários rurais e habitantes das de punição a transgressores. Geralmente colocado nos centros, o pelourinho foi
cidades, anunciando o surgimento de “uma horda de vagabundos, mendigos e presença indispensável nas povoações de Portugal e do Brasil. Grafia próxima,
bandidos que vagueiam sem emprego nos campos e nas vilas” (Faoro, 1976, p. são os “pelouros”, esferas de cera onde o juiz depositava os nomes dos candida­
103). Nesse caso, o excesso populacional foi o motor de sua redistribuição tos às eleições camarárias (Carvalho, 1989, pp. 92-93). Com esses nomes e signi­
territorial. Confirma-se assim, o que Thomas Morus escrevia sobre uma ilha ima­ ficados e sob o regime das Ordenações Filipinas (1603-1823), chega ao Brasil ó
ginária e seus planos de redistribuição populacional e territorial com os olhos mesmo procedimento para eleição de vereadores. Eram os chamados “vereado­
voltados para a realidade da Inglaterra de sua época, ou seja, enfrentando a res de pelouro” (Mourão, 1916, p. 308).
80 Rita Heloísa de Almeida
O Diretório dos índios 81

criminosos”, “colônias penais”, nos termos usuais no Brasil, foram


demais, abrangendo a totalidade do território e da população que
a origem, ou a motivação, do surgimento de muitas das atuais cida­
comanda (Faoro, 1976, p. 28). Trata-se de princípio organizativo
des portuguesas. Portimão, Sesimbra, Vila Nova de Milfontes são
que está na base da constituição da monarquia portuguesa e na orga­
alguns dos exemplos. Segundo o historiador Sérgio Carvalho, nem
nização dos empreendimentos marítimos e colonizadores.
todas essas cidades nasceram como “coutos de homiziados”. Origi­
Historiadores dividem-se quanto à ênfase dada à patrimoniali­
nalmente podem ter sido áreas de produção e de relativa aglomera­
dade no processo de formação do Estado e no ingresso de Portugal
ção social que, por razões econômicas, comerciais, ou por interesse
na modernidade. A ausência de ênfase em uns produziu um discurso
logístico e estratégico, tornaram-se objeto de políticas de incentivo
histórico que transmite a idéia de certa omissão da Coroa portuguesa
ao povoamento (1989, pp. 23-24).
nos empreendimentos colonizadores. Ao contrário, porém, a ênfase
Parece natural conectar essa noção familiar à história da consti­
sobre a noção de patrimonialidade traz à cena histórica um Estado
tuição do território português com as políticas de povoamento das
monárquico empresarial e gerenciador de todas as ações coloniza-
colônias, havendo que repensar a significação sociológica do degra­
doras. Mais do que um princípio organizacional peculiar à experiên­
dado (“degredado”) que veio predominar nas colônias portuguesas,
cia de administração portuguesa, com reflexos sobre a política colo­
em particular nos primórdios da colonização do Brasil e que chega
nial no Brasil, a patrimonialidade parece ser sobretudo um dado
aos dias atuais com uma conotação negativa.3
cultural. Vejamos o que pensa a este respeito o historiador portu­
A segunda noção é a de patrimonialidade. Compreende um
guês Manuel Dias (1989), ao discorrer sobre as bases da formação
modelo de Estado, um regime — a monarquia — e, fundamental­
do sistema de capitanias no Brasil.
mente, constitui uma noção de propriedade do rei que se sobrepõe às
Ésse historiador transmite a noção de um esquema constituído
ainda no processo de formação da monarquia portuguesa e que seria
repetidamente aplicado, em seus princípios básicos, nos empreendi­
3 É o que pensa Marcos Mendonça, ao oferecer dados para o questionamento da mentos seguintes, os marítimos, também fundamentais para Portu­
categoria "degradado”. E!e relaciona as seguintes leis: Carta de Couto e Homi- gal. Em um primeiro momento (séculos XII e XIII), a noção de um
zio, de 1° de março de i 536, referente à Capitania de S.Tomé, e o Alvará de 6 de
maio do mesmo ano. A primeira lei atingia “todo aquele que, por uma razão inimigo comum, construída pela presença de invasores sobre o terri­
qualquer que não fosse heresia, traição, sodomia ou crime de moeda falsa, esti­ tório de Portugal, fez emergir e robustecer o sentimento de um nós-
vesse homiziado em São Tomé”, podendo, então, passar para o Brasil. A segunda portugueses, com um só rosto, refletido na figura central do rei.
lei estabelecia a mesma pena de degredo aos “moços vadios de Lisboa que andas­ Embasado nesta noção, afirma Manuel Dias que Portugal vive a expe­
sem na Ribeira a furtar bolsas e a cometer outros delitos” (Mendonça, 1972,
p.13). Vale observar que essa política de povoamento não ocorre somente em
riência de ter organizado o “primeiro Estado moderno do Ocidente
áreas de domínio português, mas também nas colônias da Inglaterra e França. O europeu” (1980, p. 7). Isto é, após a reconquista dos territórios aos
sucessor do índio julgado incapaz de suportar o trabalho excessivo nas lavouras mouros, a colonização interna seria efetuada sob a autoridade do rei,
foi, inicialmente, o “branco pobre”. “Servos sem contrato”, fugindo às restrições que reparte as terras entre a nobreza, o alto clero, as ordens religio­
das severas leis agrárias no continente europeu, ou estando à procura de indepen­
sas e militares, daí surgindo os senhorios rurais e também os primei­
dência econômica e liberdade de expressão ideológica, foram a força de trabalho
estável na ausência inicial do negro. Os “sentenciados” também constituíram ros concelhos, base da organização das cidades portuguesas.
uma fonte segura e contínua de trabalhadores brancos. As leis inglesas reconhe­ Segundo o historiador, a mesma concepção patrimonial foi ado­
ciam como crimes capitais delitos como: “punguear alguém em importância su­ tada no Brasil, tendo como exemplo concreto a observar a experiên­
perior a um xelim; furtar uma loja no valor de cinco xelins; roubar um cavalo ou cia de implantação do regime das capitanias nas ilhas do Atlântico,
ovelha; caçar coelhos ilicitamente na propriedade de um cavalheiro”, etc. O cas­
tigo que substituía a pena de morte era a deportação para as colônias (Williams,
com o rei outorgando terras a capitães donatários e estes aos colo­
1975, pp. 13-16). nos, sem, todavia, perder o controle e a soberania sobre seu patrimônio
(id, p. 20).
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 83
82

A primeira experiência do gênero, no Brasil, deu-se com o maior, em que o controle pelo Estado se firmava pela rígida burocra­
arrendamento de terras ao cristão-novo Femão de Noronha. O con­ cia e mediante a implantação de estruturas locais sem autonomia.
trato celebrado recomendava ao concessionário descobrir “300 lé­ No Brasil, e sob tal situação de dependência administrativa a
guas em diante”, construir fortaleza e, a partir do segundo ano, pa­ Portugal, toda a experiência de administração municipal realizada
gar à Coroa uma quantia percentual prevíamente combinada sobre o no período colonial foi tão-somente uma transposição de institui­
montante do comércio da ilha que herdaria seu nome (pp. 20-21). ções, sem propiciar inovações, como a de fazer surgir uma comuni­
Exemplos similares voltam a repetir-se nessa primeira fase de cação interna à colônia que fosse alternativa à do eixo unilateral de
colonização, consagrando um procedimento que viabilizaria o reco­ cada capitania (ou núcleo colonizador) com o poder central. Este é o
nhecimento territorial de toda a costa brasileira, a entrada paulatina pensamento de Carvalho Mourão (1916), em estudo que realiza so­
no interior e a possibilidade da adoção de lucrativas atividades de bre a evolução dos municípios brasileiros. Para este autor, estudar
exploração comercial das terras do Brasil. Os núcleos de povoação os municípios brasileiros corresponde a debruçar-se na legislação
aí surgidos, bem como sua administração, constituem-se nos limites portuguesa sobre administração dos concelhos (1916, p. 302).
de uma realidade Fixada pelo modelo de concessão de terras que Uma bibliografia específica trata da legislação relativa às
caracteriza o regime das capitanias. Por este esquema, o Estado as­ administrações das cidades portuguesas. Como referência, citemos
segurou os monopólios régios, instalou um sistema de tributação e os trabalhos de Carvalho Mourão e, em particular, de Sérgio Carva­
pôde comandar a distância todas as ações econômicas, cuidando dè lho, para quem a origem dos municípios portugueses está centrada
evitar o crescimento de poderes locais independentes, mediante o nos forais e não na ordem municipal dos antigos romanos.
apoio de uma nobreza burocratizadà e politicamente orientada para Basicamente, os concelhos eram organizações de natureza polí-
representar o pensamento unitário da colonização, espelhado este tico-jurídica e administrativa, integradas por “homens-bons”, sob a
no rei (Faoro, 1976, p. 119). presidência de juizes. Os “homens bons” representavam a elite local
Esta é uma boa razão para que muitos historiadores entendam de proprietários rurais, “cavaleiros-vilãos”, escudeiros, além de
as colônias como transposições das administrações européias. Tal mercadores, também chamados “mesteirais”.
afirmação é coerente com realidades históricas, tanto as que Os concelhos eram regidos por cartas de forais, documentos de
correspondem às cidades anglo-americanas, que desde cedo conhe­ natureza contratual pelo qual o senhor de terras e os moradores de
ceram e desenvolveram estruturas administrativas moldadas no sen­ povoações vizinhas estabeleciam entre si um conjunto de direitos e
tido de se tornarem cada vez mais autônomas, quanto no que se refe­ deveres recíprocos. Na maioria das vezes, porém, quem concedia os
re às cidades ibero-americanas nascidas da concepção de postos forais era o próprio rei.
avançados (feitorias, empórios). O modelo da metrópole comparece Os forais representam a primeira formalização de uma expe­
em ambas, assim como os interesses mercantilistas. Entretanto, como riência de vida urbana ordenada. Como constituíam a principal legis­
vimos antes, são os desdobramentos da relação metrópole/colônia/ lação — às vezes, a única —, apresentavam-se demasiadamente mi­
mercado europeu que iriam traçar destinos diferentes para as nações nuciosos no trato de questões diversas, como os direitos das pessoas,
nascidas sob a condição de colônias. as relações entre si, as garantias, os privilégios, as imunidades e tam­
As cidades de origem colonial da América espelham as expec­ bém as sanções, as punições e os impostos.
tativas e os procedimentos econômicos adotados pelos colonizado­ Os forais eram documentos particulares a cada povoação, daí
res. No caso das ibero-americanas, por serem centros de atividades diversificarem-se no atendimento às conjunturas locais e às neces­
prioritárias para as economias de Portugal e Espanha, foram organi­ sidades e atividades específicas de seus moradores aos quais se
zadas para funcionar como peças menores inseridas em um sistema dirigiam, havendo exemplos de cartas referentes a povoações com
R ita H eloísa d e A lm eida O D ire tó rio d o s índ io s 85

características predominantemente aristocráticas e outras destina­ por Ordenações Afonsinas. Pouca alteração trouxeram as Ordena­
das a serviçais, a militares, a pessoas voltadas às atividades rurais, ções Manuelinas, mas foi sob seu regime que se instalaram as primei­
etc (1989, pp. 80-82). ras povoações brasileiras. A importância das Ordenações Filipinas,
Como os forais são detalhados e particularizados no atendimen­ aplicadas ao Brasil, reside na ênfase sobre as funções administrati­
to a realidades locais, constituem rica fonte de investigação do coti­ vas da câmara (ou vereação), mais do que nas atribuições judiciá­
diano medieval das cidades portuguesas. Mais do que reconstituição rias. Com as Ordenações Filipinas, inaugura-se uma espécie de re­
do dia-a-dia dessas povoações, os forais falam de toda uma socieda­ presentação das municipalidades junto às cortes, o que, na verdade,
de, dadas as categorias sobre as quais legisla, relativamente a direi­ teria muito pouca ressonância no quadro colonial, reconhecidamen­
tos e deveres individuais e coletivos. Mas a tendência geral foi o te adverso à formação espontânea de poderes locais que de fato vies­
desaparecimento ou enfraquecimento dos forais como conjunto de sem a influir sobre as decisões do poder central, estabelecido em
conhecimentos ordenadores da vida social e ao mesmo tempo Portugal (1916, p. 309).
reveladores de cosmovisões locais. Em seu lugar, as leis gerais iriam Carvalho Mourão prossegue sua análise até o período imperial,
gradativamente impor uma nova ordem social. São elas as Orde­ mostrando a crescente subordinação dos municípios ao poder cen­
nações Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e Filipinas (1603 até tral e chamando a atenção para o que considera aspecto negativo e
1823). paradoxal, qual seja, uma política administrativa de tratamento uni­
Num primeiro momento, sob o prestígio dos “homens bons”, forme a um vasto território de múltiplas realidades locais (id, p. 316).
foram organizados os concelhos, a partir da figura central do O paradoxo é parcial, se considerarmos que naquelas datas o Brasil
“alcalde”,4 seguida de magistrados jurisdicionais, oficiais subalter­ já deveria estar sendo tratado como múltiplas realidades locais, entre­
nos, enfim, o corpo de funcionários do concelho de cada povoação tanto perfeitamente coerentes com uma política patrimonial funda­
(Mourão, 1916, pp. 305-306). da na intervenção do Estado em todas as atividades coloniais. A pró­
Esta forma original dos concelhos evolui para as “vereações”. pria condição colonial reforça a subordinação, sobrepondo a relação
Trata-se de momento político crucial da vida dos municípios portu­ poder central/municípios à relação metrópole/colônia.
gueses, em que os historiadores são unânimes em observar uma per­ É preciso reconhecer, todavia, que a condição colonial não expli­
da do sentido de democracia insinuado nas primeiras assembléias, ca inteiramente a subaltemidade dos municípios brasileiros em rela­
feitas ao ar livre, espaços abertos informais, quando o povo partici­ ção ao poder central. Mais uma vez verificamos que o Brasil se apre­
pava das deliberações e, inclusive, das eleições. No contexto das senta como um reflexo de transformações institucionais havidas em
“vereações”, os “homens bons” perdem prestígio, mas não saem de Portugal na mesma época, e até antes. Ali a perda de autonomia dos
cena. Continuam ainda decidindo, ao delegarem poderes a quem poderes municipais reagia ao crescimento do Estado monárquico
executaria funções que antes lhes eram exclusivas. Outras mudan­ como representação política primeira, sobreposta às demais. Prova
ças ocorrem: os “alvasis” ou “alcaldes” são substituídos pelos juizes disto é o surgimento de categorias sociais como a do “provedor”, a
ordinários, surgindo os provedores como juizes, por delegação do do “juiz de fora” e a do “alcaide”, que são funcionários nomeados
rei (id, p. 307). pelo rei para o exercício de funções de vigilância sobre os conce­
Essa estrutura de “vereações” foi montada sob a promulgação do lhos. Como bem observa Sérgio Carvalho, por meio destas catego­
que se contituiu no primeiro esforço de unificação das leis, conhecido rias “o rei instala-se junto dos municípios” (1989, p. 100).
Essa tendência começa com a criação das vereações. A esse
tempo, a perda de autonomia local, do sentido democrático dos pro­
4 Também chamados “alvasis”, ou juizes. Observar a diferença: alcalde, funcioná­ cessos de escolhas e deliberações, não decorria da existência de uma
rio do Concelho, alcaide, funcionário do rei.
elite, que tinha o comando do concelho e, também, da continuidade
86 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 87

dessa mesma elite, cada vez mais associada ao Estado, ao rei, em legislação colonial, expressa em regimentos, alvarás, cartas régias,
detrimento das aristocracias locais. Esta situação histórica não é instruções, provisões, decretos, resoluções, avisos, etc., e em textos
exclusiva nem definitiva. Explica-nos Sérgio Carvalho que os con­ discursivos nos quais a matéria é a colonização.
celhos portugueses sempre estiveram no fogo cruzado entre o poder Retomemos ao estudo da legislação portuguesa, desta vez a que
central e a nobreza local. Daí o surgimento das ordenações, primei­ abrange as ações colonizadoras.
ros corpos de leis gerais impostas aos forais, enfraquecendo-os, Apesar da diversidade de formas jurídicas e das especificidades
tirando-lhes a regalia de representarem cartas de povoações. histórico-contextuais a que se destina, a legislação colonial dispõe
de rico material, confirmando o aspecto uniforme com que foram
delineados os propósitos da colonização. Devido a seu aspecto for­
Regimentos, alvarás, instruções: mal de deliberações que antecedem à realidade social, além de
as primeiras constituições brasileiras serem criações ideais direcionadas a objetivos de conquista, as leis
são exemplos cristalinos do pensamento do colonizador. Melhor
Ausência de autonomia local, forte poder central. Após essa
dizendo, são seu espírito, no que tange a algo essencial, completo e
breve incursão aos primórdios da organização dos municípios brasi­
direcional. Por esta via, entendemos possível o manuseio comparativo
leiros, poder-se-ia concluir que o modelo patrimonial monárquico
de regimentos escritos em épocas distintas e destinados a lugares e
produziu e foi mantido pela eficácia de um pensamento unitário so­
autoridades específicas.
bre a colonização.
E possível refletir sobre tais regimentos pelo aspecto que
Todavia, a impressão que causam as leituras tradicionais relati­
essencíalmente os define. Por exemplo, o Discurso preliminar da
vas à colonização do Brasil é justamente inversa à que se entrevê
compilação sistemática das leis extravagantes de Portugal (1806)
como traços de uma política unitária. Ou seja, por essas leituras,
define como constituições os regimentos, as pragmáticas e os esta­
obtém-se uma visão da Coroa portuguesa, algo distante e omissa, se
tutos. Todos têm o formato e a autoridade de cartas de lei, ou alvarás.
comparada ao grupo de empreendedores particulares que, sem dúvi­
É a matéria nele contida que determina a classe em que se situa (se
da, conduziu a colonização. De igual modo, assimila-se a idéia de
estatuto, pragmática ou regimento). Os regimentos são cartas de leis
uma burocracia intrincada, uma legislação volumosa, que somam
(ou alvarás) em que se estabelecem as obrigações de tribunais, ma­
responsabilidades pela geração de políticas dissonantes, em nada
gistrados ou oficiais, ao passo que os estatutos são dirigidos a
unitárias ou coerentes entre si.
Por certo, essas impressões fundamentam-se em situações his­ corporações e as pragmáticas são destinadas às reformas sobre abu­
tóricas concretas. Entretanto, a proposta, aqui, é trazer ao texto ou­ sos. O autor do Discurso preliminar, Vicente José Ferreira Cardozo
tros aspectos que não apenas contraditam aquela interpretação, como da Costa, não se posiciona rigorosamente em relação a essas concei-
informam, reforçam o que venho insistindo em compor como um tualizações. A seu ver, elas servem à classificação e, principalmente,
modelo de govemo que comparece de diversas formas, desenhando à consideração desses documentos como leis portuguesas.
concepções institucionais sobre o espaço urbano de Cochim (índia) O Discurso preliminar parece ter sido elaborado com o objeti­
(figura 17); que se instala em Malaca, intramuros (figura 1), e que vo de servir como instrumento de trabalho para legisladores e estu­
está imanente nas instruções e normas contidas em regimentos que diosos do direito português. Mais do que uma intenção de coligir,
orientaram funcionários portugueses sobre como proceder no govemo revela em seus comentários uma necessidade de acercar-se do con­
das colônias. Vê-se tal modelo embutido em situações históricas, junto das chamadas “leis extravagantes”, isto é, a legislação extraor­
como a da implementação das capitanias brasileiras; em empreen­ dinária surgida fora do corpo de leis em vigor e que, avulsa, atendia
dimentos colonizadores, como a demarcação das fronteiras; na demandas específicas por mudanças.
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 89
88

A seguir essas orientações do Discurso, poderiamos considerar relações com os índios, considerou-se a possibilidade de estabelecer
constituições as instruções dirigidas aos funcionários que iriam go­ alianças ou, pelo menos, conter ataques inimigos, levando-se em conta
vernar as colônias. Apesar de seu caráter provisório e delimitado o conhecimento prévio de rivalidades e de amizades entre as etnias
por diretrizes e normas destinadas a situações específicas, nelas se existentes na região.
detém o pensamento unitário da colonização. Os primeiros regimen­ Salvador nasceu da cerca que fez Francisco Pereira Coutinho e
tos entregues aos donatários das capitanias expressam fielmente esta da povoação mantida por vassalos portugueses e índios pacificados
natureza, em especial por instruir sobre os passos seguintes à con­ (dentre os portugueses, o legendário Caramuru, além de jesuítas
quista. chefiados pelo Padre Nóbrega). Entretanto, há uma recomendação
O Regimento de Tomé de Sousa, datado de 17 de dezembro de explícita, instruindo a escolha criteriosa de terreno adequado para
1548, serve como primeiro exemplo. Investido do propósito de lan­ uma nova povoação e fortaleza:
çar as bases do governo-geral do Brasil na baía de Todos os Santos,
este regimento, que Marcos Mendonça considera a primeira consti­ Sou inform ado que o lugar em que ora está a dita cerca não é
tuição brasileira (1972, p. 31), é um modelo de implantação de um conveniente para se aí fazer e assentar a fortaleza e povoação (...]
ordeno que se faça (...) em outra parte mais para dentro da dita
governo em terras conquistadas. Apresenta o aspecto genérico de
Bahia [...] em sítio sadio e de bons ares, e que tenha abastança de
textos normativos, com finalidades de colonização e, ao mesmo tem­
água e porto, em que bem possam am arrar os navios e vararem-se
po, a singularidade de conter instruções voltadas para uma realidade quando cumprir, porque todas estas qualidades ou as mais delas
social com recorte espacial e temporal específico. que puderem ser, cum pre que tenha a dita fortaleza e povoação;
O Regimento de Tomé de Sousa é um exemplo de sensibilidade por assim ter assentado que dela se favoreça e proveja todas as
às contingências e singularidades da situação para a qual foi elabo­ terras do Brasil (em M endonça, 1972, p. 38).
rado. Em sua essência, é um roteiro que orienta procedimentos após
a conquista (e, simbolicamente, retrata a situação universal de cons­ Uma política de colonização emana das instruções sobre a con­
trução ou reconstrução sobre o território vencido). cessão de sesmarias, o estabelecimento do dízimo e a normatização
Começa por instruir sobre a tomada de posse da base já rigorosa de uma série de direitos e deveres que concessionários de­
construída pelos portugueses antecessores. A posse da cerca, o esta­ veríam seguir quanto ao uso dessas terras. Ver-se-á que cada esforço
belecimento de comunicações com vassalos portugueses e índios de colonizar reflete, em microcosmo, o esforço maior de fortificar
pacíficos ali habitantes, os reparos e reforços sobre as construções as construções, principalmente quando o empreendimento se res­
existentes e a preparação para o provimento futuro de mantimentos tringia a implantar uma atividade produtiva de finalidade comercial.
são as primeiras providências. O segundo passo já traduz um avanço Ou seja, todo centro de produção é também um foco de povoamento
da conquista para além deste núcleo básico então formado. O conta­ e uma fortificação.
to com capitães de outras capitanias para reunir auxílios é, sobre­
tudo, um ato de confirmação da autoridade do governo-geral do As águas das ribeiras que estiverem dentro do dito termo em que
houver disposição para se poderem fazer engenhos de açúcares,
Brasil, que ali se instalava para comandar os demais núcleos povoa-
ou de outras quaisquer cousas, dareis d e sesmarias livremente,
dores encontrados isolados e dispersos ao longo da costa. sem foro algum; e as que derdes para engenho de açúcares, lhes
O reconhecimento das “nações” indígenas (expressão coetânea dareis aquela terra que para isso for necessária, e as ditas pessoas
a toda a documentação colonial) insere-se no mesmo conjunto de se obrigarão a fazer, cada um em sua terra, uma torre ou casa
providências políticas cujo objetivo era reforçar a autoridade do forte, da feição e grandura que lhes declarardes nas cartas, e será
governo-geral que estava sendo instalado na Bahia. No tocante às a que vos parecer, segundo o lugar em que estiverem, a que abas-
90 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 91

tarão para segurança do dito. engenho, e povoadores de seu limite. Aspectos afirmativos do controle do Estado sobre o patrimônio
E assim se obrigarão de povoarem e aproveitarem as ditas terras representado por terras e populações indígenas revelam-se na regu­
e águas, sem as poderem vender, nem trespassar a outras pessoas,
lamentação do trânsito pelo interior do Brasil (a “terra firme aden­
por tem po de três anos. E nas ditas cartas de sesmarias, que lhes
tro”), na exigência de licença de autoridades para construção de na­
assim passardes, se trasladará este capítulo [id, pp. 39-40].
vios e na proibição de fazer guerras e escravidão aos índios, vistos
Os índios são reconhecidos pelos seus nomes ou regiões de ori­ estes, basicamente pelo aspecto patrimonial, na condição de habi­
gem e descritos pela circunstância fundamental de estarem ofere­ tantes nativos das terras pertencentes ao rei.
cendo amizade ou resistência bélica ao colonizador. O estabeleci­ Um século depois, em 18 de novembro de 1668, é elaborado um
mento de um estado de direito para o govemo dos índios segue os regimento destinado a instruir Manuel Lobo sobre o povoamento da
princípios ordenadores de um estado de guerra ou da consolidação “Repartição Sul”, compreendida esta entre o rio da Prata, Buenos
da conquista. índios pacíficos e propensos a assimilar processos de Aires e Montevidéu. Ou seja, região, tempo e interesses bastante
cristianização passam a ser atraídos para viverem junto ou próximo distintos que singularizam este diploma legal em relação ao da Bahia.
aos portugueses. Note-se, porém, que a estratificação étnica entre Contudo, as instruções nele contidas têm as mesmas finalidades pre­
colonizadores, índios cristianizados e outros ainda em estado hostil ' sentes no Regimento de Tomé de Sousa, podendo, pois, ambos ser
e arredio deverá manifestar-se impressa sobre o espaço físico da comparados e deles destacadas as diretrizes que particularizam um e
povoação que então nascia. Ao referir-se aos meninos índios sobre outro como roteiros de organização de govemo sobre terras con­
os quais depositava confiança de uma eficaz conversão, o documen­ quistadas.
to instrui para que fossem separados, “tirados da conversação dos A primeira particularidade a observar é o aparecimento do ter­
gentios” e colocados na “povoação dos portugueses” (id, p. 51). Para mo “colônia”. Seu emprego não comparece com frequência nos docu­
os índios “alevantados”, prescrevia-se a guerra punitiva e o castigo mentos da política colonial do período transcorrido entre a metade
exemplar aos líderes. do século XVD e o século XVIII. “Colônia” aparece com significa­
Um sistema de concessão de privilégios é também adotado no do similar ao de nossos dias, denotando, no caso, uma região com
ajuizamento de ações consideradas meritórias entre os colonos por­ limites física e ideologicamente bem definidos, que será objeto de
tugueses. O perdão sobre certos crimes e a reinserção destes transgre­ intervenção externa.
ssores no modelo de sociedade transplantado para a colônia foram
Contemplar mapas da região, antigos e novos, não deixa dúvi­
um recurso predominante e empregado pelos colonizadores, a exem­
das de que foi a posição estratégica de Sacramento — a “Repartição
plo das políticas de povoamento experimentadas no próprio país
Sul”, hoje porção do Uruguai — que definiu a linha de argumenta­
(os “coutos de homiziados”).
ção e o principal objetivo desse regimento, qual seja, povoar terras,
reclamadas por Portugal, que se achavam ermas e na mira dos inte­
Se alguns degradados que forem por as ditas partes do Brasil, m e
servirem lá em navios da A rm ada ou na terra, em qualquer outra resses de Espanha. Este é o aspecto geopolítico. Historicamente, o
cousa do meu serviço, [...] hei por bem que vós os encarregueis regimento antecede o acirramento da disputa pela posse de Sacra­
dos ditos ofícios [...] A s pessoas que nos ditos navios da Armada, mento, que haveria de envolver jesuítas, espanhóis e portugueses
ou na terra, em qualquer outra cousa de guerra, servirem de m a­ numa luta que culminou na expulsão daqueles missionários do Bra­
neira que vos pareça que merecem ser feitos cavaleiros, hei por sil e de Portugal e na secularização das instituições de ensino por
bem que os façais, e lhes passei provisão de com o os assim fizestes, eles dirigidas. No tocante às terras da “Repartição Sul”, a disputa é
e da causa por que o merecera” [id, p. 50].
resolvida mediante acordo celebrado no Tratado de Madri, em 1750,
92 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 93

pelo qual fica cedida aos portugueses a região de Sete Povos das domínio” confirma o aspecto patrimonial que, em última instância,
Missões, permanecendo Sacramento em mãos dos espanhóis. O ter­ define sua posse primária pela Coroa portuguesa.5
mo “colônia” comparece, portanto, nesse regimento transmitindo
claramente a idéia de um plano que visa à implantação de um gover­ E porque a minha tenção é somente conservar as terras do domí­
no político, militar e civil em um espaço ainda em disputa. Este regi­ nio desta Coroa tereis entendido que estas fortificações e povoa­
ções que se fizerem hão de ser só para as conservar, e que nunca
mento contém as instruções básicas para sua execução.
os Castelhanos entendam que o fim de se fazerem é para cobrir
A primeira instrução trata do reconhecimento da região e de seu com ércio com eles..., e que o gentio daquele Sertão que estiver
potencial econômico. No caso, os comentários giram em torno da em meu dominio se reduza a fé de Cristo, para o que lhe fareis
descoberta das minas de “Parnaguá” e da conveniência de escolher todo o bom agasalho [id, p. 30].
um terreno, nas proximidades, para o assentamento de uma fortifi­
cação. Segue-se a discussão sobre a escolha do terreno adequado, A noção de patrimonialidade também comparece nesse regi­
em que concorrem critérios que mais uma vez vêm confirmar um mento como fundamento e justificação do controle do Estado e, ao
intento de construir uma representação de Portugal no interior de mesmo tempo, estilo de administração. São definidos os limites de
fortificações desse tipo. Na simplicidade desses empreendimentos duas capitanias concedidas ao Visconde de Asseca e a João Correa
que foram os da ocupação de terras antes inexploradas pelos euro­ de Sá, ficando reservado o “interior da terra”, pertencente à Coroa,
peus, o que se impunha fazer era a “humanização”, entendida como ao assentamento dos “casais” — expressão desta época, em diante
a “civilização” dos habitantes e terras, nelas criando as condições muito empregada para o imigrante europeu que vinha acompanhado
ideais para a reprodução de uma vida social segundo os padrões eu­ de sua família.
ropeus. Na procura do terreno, sobressaem essas condições. A des­ O caráter duradouro do povoamento implícito no regimento é
definido em contraposição a finalidades estritamente comerciais. Este
crição a seguir refaz em palavras o que se encontra desenhado nas
dado prova formar-se, na consciência dos formuladores de política e
iconografias de fortalezas construídas na índia, conforme analisado
leis, uma clara distinção entre emprendimentos com propósitos
no segundo capítulo:
feitoriais e empreendimentos duradouros próprios ao que se deno­
mina “colonização”. Observe-se, inclusive, a ênfase em motivações
O sítio mais conveniente, mais seguro, e de m aior consideração ideológicas, fazendo com que sentimentos nacionais, relativos a
era a Ilha de S.Gabriel que fica defronte de Buenos-Ayres, e mais Portugal e contrapostos aos de Espanha, também atuassem como
avante pelo rio acim a de M ontevidéo p o r se r o d e m elhor barreiras e fronteiras na defesa da soberania sobre essas terras con­
siguidoiro, fundo, com água, lenha, sítio sadio ao desem barcar quistadas. Já se mencionou antes que, em verdade, ao tempo desse
dos navios, e resguardo dos tempos, e dentro da dem arcação, e
regimento, as terras da “Repartição Sul” estavam em plena definição.
senhorio desta Coroa, na dita ilha disporeis logo a fortificação
que se houver de fazer para segurança da em barcações [em M en­
donça, 1989, p. 30], s “Realengo” quer dizer real, régio, como também público, sem dono. Faoro le­
vantou os seguintes termos correlatos: requengos, regalengos, regoengos,
regeengos. Ele explica que por estes termos compreendia-se o patrimônio rural
As instruções sobre as povoações têm a particularidade de con­ pertencente à Casa Real e formado a partir da Reconquista dos territórios aos
tar com o incentivo da própria Coroa ao afluxo espontâneo de mouros (Faoro, op. cit., p. 4). Eram bens cuja consideração sobre seu domínio
povoadores para o interior das terras relativas à nova colônia. A con­ público (da coletividade) ou privado (pessoal do rei) se misturava, dependendo
da circunstância e de sua destinação. Daí encontrar-se atualmente termo similar
sideração jurídica dessas terras como “realengos sem terem outro denotando algo de domínio público (Ferreira, 1975).
94 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 95

Note-se, nesse ínterim, o aparecimento das primeiras observa­ No trecho que se segue é possível dimensionar a razão e o con­
ções positivas a respeito dos índios, calcadas pela expectativa de sua texto em que se dá o perdão régio aos criminosos:
utilidade futura para a civilização. Como se verificará, esse regi­
mento harmoniza-se com a legislação referente aos índios, da mes­ U sareis da Provisão que vos mandei passar sobre o perdão que
ma época— o Regimento das Missões, de 1686: podeis conceder aos homiziados pelos crimes de que não tiverem
parte acompanhado-vos, para que por esta form a vos possais va­
E porque poderá suceder que este gentio se queira aldeiar junto ler d e toda a gente que vos quiser acompanhar [id, p. 34].
das nossas povoações, quando assim seja vós lhes-destinareis sí­
tio em que se façam sua aldeia, e onde o principal os governe, e Marcos Mendonça define esse regimento como a “origem de
sejam administrados no temporal por ele, e no espiritual pelo padre quase todas as questões diplomáticas e militares havidas desde en­
que lhe nomeardes para seu pároco, e a terra em que lhe fizerdes tão entre as Cortes de Espanha e de Portugal, na América do Sul e
esta aldeia lhe dareis para eles, e seus sucessores naquela quanti­
um pouco na Península Ibérica” (1989, p. 35). Creio poder acrescen­
dade q u e vos parecer suficiente para usarem da sua lavoura, e
terem de que se sustentem [id, p. 31].
tar que sua importância reflete a situação a que se destina e que é
semelhante e tem o mesmo peso histórico da que Tomé de Sousa
O mesmo tratamento dado no Regimento de Tomé de Sousa à protagoniza ao ser investido da função de instalar na Bahia o gover-
questão da oferta de amizade e comércio aos índios que não quises­ no-geral do Brasil. O que ocorrerá em Colônia do Sacramento é o
sem aldear-se volta a ser recomendado. Quanto aos que são conside­ mesmo: estabelecer a conquista, reafirmando-a mediante a instalação
rados índios “rebelados”, a instrução era a de seguir as leis do Reino de um governo.
respeitantes à natureza de cada crime. Estavam em vigor leis tornan­ Na leitura desse diploma legal é possível apreciar a magnitude
do eqüitativas as condições dos índios à dos “vassalos” portugueses, de um programa que começa pelo estudo do potencial da nova colô­
o que implicava direitos ao trabalho remunerado, à representação nia, conduz as delicadas questões da diplomacia e instrui passo a
política, além da escolha de viver próximo (ou não) da civilização. passo a formação de um governo civil. Magnitude somente compa­
Incentivos ao povoamento, bem como ao afluxo espontâneo de po­ rável à da abrangência de poderes e responsabilidades atribuídas a
pulações nacionais vindas do continente europeu, estão previstos um só governante. Vejamos alguns trechos relativos:
neste trecho. O modelo de administração das povoações segue, pois,
o de Portugal, no que diz respeito à formação dos governos locais. E porque convém reprim ir os excessos daqueles que os com ete­
rem, ou sejam portugueses ou gentios. Hei por bem que tenhais
toda a jurisdição e poder no civil e crim e até pena de morte.
E sucedendo que meus vassalos residentes no Brasil queiram pas­
H ei por bem que tenhais todo o poder e jurisdição para pro­
sar a essas partes a povoar achando-se em número capaz de for­
vares todos os ofícios que vagarem de justiça, guerra e fazenda.
mar vila, os podereis situar onde a erejam, e se fará dando-lhe demar­
E sobretudo o que nesta instrução vos ordeno, confio tereis
cação e terreno bastante repartindo-lhe terras, com o vos parecer,
em todas as matérias assim do eclesiástico, como da conservação
e serão neste caso obrigados a fazer igreja, casa da câmara, cadeia
do gentio, administração da justiça, fazenda e guerra, e mais cousas
e pelourinho, e lhe poureis o nome do santo a que m aior devoção
tocantes ao bom governo desta nova colônia, tal procedim ento
tiverdes, e em seus papéis públicos, usarão das armas reais, for­
com o é confiança que faço d e vossa pessoa, encarregando-vos
mando-lhe governo civil e político, com o é costume nas vilas
deste negócio tão importante [id, pp. 33-35].
deste reino, nomeando-lhes oficiais de ju stiça para o bom gover­
no, e eles por eleição dos maiores votos farão os juizes vereadores
e procurador que houverem de servir cada ano, com assistência Aqui fica evidente a transposição de condições germinadas
do ouvidor e auditor geral que vai em vossa companhia [id, p. 33], ainda nos primórdios da nacionalidade, como justificativa para a
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 97
96

eficácia da realização desses empreendimentos, ainda que sob as Ao final desta mesma instrução, verifica-se que, antecedendo
complicadas condições do desconhecimento da região, da resistên­ essas preocupações com a fidelidade dos pares ou a afinidade ideo­
cia bélica dos índios, da concorrência com os espanhóis. O regimen­ lógica (política, religiosa) dos funcionários coloniais, já se fonnava
to destinado a D. Manuel Lobo, um fidalgo, tal como Tomé de Sousa, a idéia de um projeto que superava a provisoriedade das missões e
conferia, nas devidas proporções, o poder de representar o rei. serviços no Brasil e preparava um novo modelo de administração de
Tais funções estão plenamente desenvolvidas nos regimentos e caráter duradouro.
instruções do século XVIII. Aliás, três aspectos sobressaem da lei­
tura da legislação dessa época, em especial a que remete às questões
da demarcação das fronteiras hispano e luso-americanas. Em pri­ Lições de costumes: apontamentos militares
meiro lugar, consolida-se o diálogo entre poder central (o Estado e máximas sobre o bom governo
português, a ordem administrativa em Lisboa) e poderes coloniais,
representados pelos vice-reis, governadores, ouvidores, comissários O século XVHI, no Brasil, foi o século da expansão territorial e
da demarcação, etc. Parece claro que a eficácia da transmissão das dos esforços de permanência nos limites conquistados.
intenções régias do Estado português está garantida por este trata­ Um tema constante nas instruções trazidas pelos portugueses
mento personalizado a questões políticas, por esta bipolaridade qua­
que vinham representar o governo colonial e provisório no Brasil,
se sempre fundada em laços de fidelidade e paridade com represen­
nesse período, é o que diz respeito ao contínuo provimento de popu­
tantes da nobreza portuguesa. O segundo ponto é a consideração
lações que tais empreendimentos colonizadores requeriam. Já se
desta representação, no âmbito colonial, como um serviço do Estado,
constatou como a experiência particular de constituição territorial
missão de funcionários no estrangeiro, de grande amplitude, inclu­
dos portugueses reanimou, pela criação do Sistema de Capitanias no
indo desde funções puramente políticas (governadores, ouvidores),
Brasil, formas contratuais de exploração da terra, em que concorrem
ou com o caráter de vigilância ideológica (inquisidores visitadores),
até as que cumprem estudar a terra e os habitantes (desenhistas, obrigações e pagamento de tributos à Coroa portuguesa (experiên­
engenheiros, geógrafos). O terceiro aspecto a observar é o cresci­ cia de Femão de Noronha). E também como noções de perdão a
mento da vigilância, a preocupação com a afinidade ideológica des­ transgressões traduziam, em termos culturais, uma política de povoa­
ses representantes coloniais com as posturas políticas emanadas do mento. Até o momento, nossa preocupação foi com o conteúdo das
poder central. É frequente deparar com recomendações como esta, transposições, as concepções que sustentam e instruem as ações
dirigida a João Alvares de Gusmão, em 11 de abril de 1750: colonizadoras. A partir de agora, será focalizado o ambiente ao qual
se aplicaram essas experiências e esses modelos de construção de
A falta que temos de sujeitos que se hajam aplicado fundamen­ mundo.
talmente aos ditos estudos obriga a mandá-los procurar em ou­ Em bibliotecas e arquivos históricos encontra-se rico acervo de
tros países; e como nos não convém espanhóis, franceses, e ho­ textos que, se não informam diretamente os assuntos que se busca,
landeses, nem tampouco ingleses, salvo se forem católicos, deve ao menos os conformam, compondo, em um mesmo fundo espacial
fazer-se diligência por achar estes sujeitos de outras; nações, e e temporal, os valores, as normas e os conhecimentos acumulados
principalmente da italiana, e ainda nesta será bem não admitir, em experiências sociais.
senão em caso de necessidade napolitanos, sicilianos e parmezanos
Esses textos formam a biblioteca-valor de suas respectivas épo­
pela dependência que presentemente têm de Espanha. Os alemães,
e suíços também seriam a propósito, achando-se da religião ca­ cas. Se não foram lidos diretamente por quem criava leis e políticas,
tólica, porque se forem protestantes, ou calvinistas só deverão seguramente servem como exemplos dó que se ouvia, dizia, ensina­
aceitar-se, se não se descobrirem outros igualmente capazes de va como fazer, repetir, tornar noima e lei.
nossa religião (1989, p. 274).
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 99
98

Os textos que ora apresento à discussão exprimem minha in­ numérica dos conquistadores e a necessidade de resguardar o coman­
tenção, pelo uso que fazem da avaliação retrospectiva, que busca do da ofensiva (o govemo da conquista) fazem da lição militar um
ântecedências, reconhece falhas e cria soluções que vêm a ser a soma princípio básico de organização. É oportuno lembrar o exemplo das
de experiências similares, no passado julgadas de efeito positivo. fortalezas ou cidades fortificadas construídas pelos portugueses na
Seu aspecto inovador, que se expressa muito mais em reformas que índia nos séculos XV e XVI, para que não se deixe de destacar que
propriamente em mudanças, reside na postura disposta a revisões. a figura militar de “fortaleza-móvel”, criada no século XVU3, é ape­
O tom abrangente com que se desenvolvem as reflexões de seus au­ nas um recurso que recupera e adapta experiências anteriores às
tores confirma a condição de textos-valores, prenúncios de uma nova questões da colonização, pautadas pela insuficiência de populações
época, servindo bem à contextualização de como o problema do povo­ para cobrir extensas áreas.
amento foi equacionado, articulando-o ao da civilização dos índios. Visto desta perspectiva militar, é possível entender todo
empreendimento colonial como que concretizando os objetivos da
“fortaleza-móvel”, porque nele incidem as mesmas concepções cul­
Sobre os meios (ofensivos e defensivos) turais orientadoras da formação de um govemo, do seu funciona­
de reconhecimento do outro mento por meio de leis e da constituição de um espaço social pró­
prio ao da sociedade natal de seus construtores.
O primeiro texto figura no catálogo da Biblioteca Nacional de
Os exemplos de “fortaleza-móvel” são muitos, aparecendo
Lisboa sob o título: Apontamentos de estratégia militar. Desperta
principalmente nas situações liminares em que está em pauta a defi­
particular curiosidade, pois contém lições dirigidas a novos solda­
nição das fronteiras que separam os domínios territoriais luso e
dos servindo no Brasil. É um manuscrito do fim do século XVIII (há
hispano-americanos. Como exemplo, as expedições para fins de
duas datas: 1798 e 1799), com três estampas e respectivas explica­
exploração, defesa e demarcação das fronteiras da região Norte do
ções. A primeira, composta por Antônio José da Silva, em 1798, é
Brasil. Relações, mapas, listagens diversas a respeito destas expedi­
particularmente ilustrativa, pois aplicada a situações em que “um
ções, e que podem ser encontradas no Arquivo Histórico Ultrama­
corpo de infantaria é atacado em torno por outro em número supe­ rino, permitem uma visualização do princípio organizacional que
rior”. Representa uma figura militar de “fortaleza-móvel” (figura constitui a “fortaleza-móvel”.
18), no qual pelotões se dispõem desenhando três quadrados sobre­
O Mapa das Canoas e de todas as pessoas nelas embarcadas
postos, que têm o efeito de formar flexas em frente a cada face dos
(AHU, cx. 5, doc. 7) em 22 de junho de 1782 com destino à demar­
quadrados. No centro de todos os quadrados, resguardam-se duas
cação na fronteira do rio Negro espelha as mesmas noções de hierar­
companhias graduadas. Conforme o texto explicativo, a intenção é
quia e disciplina que formam a base dos govemos fixos. Em primei­
assegurar o ataque contínuo, mantendo-se na retarguada uma coluna
ro lugar, salta à vista a diferenciação física, espacialmente delineada,
graduada que só se expõe ao “imaginado inimigo” na ofensiva final.
entre brancos e índios. Para os brancos são destinadas as funções
A segunda estampa instrui situações em que se deve resguardar o
diretivas com finalidades militares, pertinentes à defesa e ao reco­
interior, onde ficam as munições, os cirurgiões, os doentes, o cape­
nhecimento territorial (tenente-coronel, alferes de infantaria, astrô­
lão e o tambor-mor. A terceira estampa constitui exemplo de deslo­
nomo), além de outras menores, que dizem respeito à manutenção
camento progressivo sobre o inimigo ou alvo a que se destina, sem,
física da expedição como um todo (ajudante de cirurgia, capelão,
contudo, resguardar o centro. furriel, aspeçadas, soldados, servos). Os índios estão distribuídos de
Fiquemos com a figura militar da “fortaleza-móvel”, pois neste
maneira mais ou menos uniforme, destacando-se o “principal”,
exemplo concorrem todas as condições que servem a uma compara­
fundamentalmente um intermediário. Segue-se o “prático”, um co­
ção com os procedimentos colonizadores, nos quais a inferioridade
nhecedor da região, e por este motivo, também pode atuar como
100 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 101

piloto. Por fim, os remeiros — estes, em grande número. Entre os padeiro, lacaios, escravos, músicos, rapazes escravos do serviço da
serviçais, há brancos e índios, classificados como agregados, escra­ copa, escravos para água e lenha, escravo “lavandeiro”.
vos e servos. Alguns exercem dupla função: o ajudante de cirurgia é Cada repartição, nessas expedições, contava com os profissio­
também escrivão da Fazenda; o soldado faz as vezes do enfermeiro; nais da demarcação já referidos, além de marinheiros e remeiros.
oficiais de carpinteiro, ferreiro, armeiro, alfaiate, sapateiro, calafate Para uma breve noção do material que seguia junto a essas expedi­
e serrador são soldados da tropa ou das “equipações das canoas” ; o ções, anotei: a batería de cobres (pertencente à cozinha e à copa);
servo branco atua como cozinheiro da “partida” (expedição), en­ dois navios carregados de víveres; a cada capelão, um altar portátil à
quanto o servo índio foi classificado como o “moço da copa”. romana com alfaias e prata; aos cirurgiões, ferros da sua arte e boti-
Em outro mapa do mesmo ano e expedição, são expressivas a ca bem provida; aos botânicos e físicos, tudo o que compunha seu
distribuição e à especificação das funções das canoas. Neste contex­ laboratório; aos astrônomos e geógrafos, estojo matemático de la­
to evidentemente condicionado pela natureza móvel do empreendi­ tão; estojo matemático de prata aos comissários; para todos, papel,
mento, as canoas representam espaços administrativos. A propósito, lápis, tinta, pincéis, além dos instrumentos de medição e dos equipa­
observem o bote de armazém, o bote da cozinha, a primeira igarité mentos de montaria. Ou seja, uma relação de especializações e de
de montaria, a primeira igarité das ordens, a segunda igarité da,s material que ainda hoje impressiona, pela complexidade de sua orga­
ordens, entre outras (figura 38). nização e pela dificuldade que reconhecidamente oferecia, e conti­
Outro exemplo é uma Relação de todas as Pessoas empregadas nua a oferecer, o ambiente amazônico.
na Real Demarcação da parte do norte (AHU, cx. 4, doc.l) no ano Nesses mapas, como no geral da documentação do Arquivo His­
de 1754. Essa Relação traz novos detalhamentos. Conhece-se um tórico Ultramarino sobre populações na Amazônia, está ausente ou
número cada vez maior de especializações ligadas ao estudo da re­ é inexpressiva a referência à presença de escravos africanos. O dado
gião (astrônomos, engenheiros, cosmógrafos, botânicos, físicos, é sintomático: além de anunciar, desde já, no texto sob análise, a
médicos-cirurgiões, matemáticos) e de ofícios básicos associados à participação quase exclusiva dos índios nos empreendimentos colo­
continuidade física dessas expedições (mestre armeiro, mestre ser­ niais da Amazônia, explica o porquê de políticas relativas a assuntos
ralheiro, mestre alfaiate, mestre sapateiro, mestre curtidor, etc). indígenas terem aíi sua primeira experiência. Referimo-nos aos regi­
Na estruturação das expedições, constata-se o desenhar de hie­ mentos missionários do seiscentos, ao Diretório dos índios, à Carta
rarquias familiares. Internamente, organizavam-se sob a forma de Régia de 1792 — todas estas leis inspiram-se e são pela primeira vez
repartições, sob o comando de comissários que geralmente proce­ implantadas no ambiente amazônico.
diam de famílias nobres e já detinham elevadas funções no meio
militar ou eram premiados com promoções e méritos, justamente
Populações marginais na mira
por estarem cumprindo missões político-diplomáticas, tal como a
dos interesses da colonização
demarcação na América. Vale lembrar, aqui, também, o fato de que
as incursões portuguesas no norte da África, no século XV e início O segundo texto traz como tema central a organização de go­
do XVI, foram interpretadas pelo historiador Sérgio Antônio como vernos sob uma base fixa. Em certo sentido, pode-se dizer que é um
uma escola de guerra, para os jovens fidalgos formarem-se cava­ texto sem inovações, que resgata a milenar oralidade de máximas
leiros (1989, p. 53). sobre o bem govemar, para discutir problemas da colonização con­
Sob o comando desses comissários, seguia um grupo de pes­ temporâneos ao autor. Além disso, tem o cunho universalizante de
soas com diversas funções e cujo número era proporcional às gradua­ quem escreve observando o amplo campo de atuação do coloniza­
ções de seus comissários, ou seja, secretário, mordomo, pajem, dor português que a esse tempo abrangia índia, África, Brasil e ilhas
“gentilome”, copeiro, ajudante de câmara, cozinheiro, pasteleiro, do Atlântico Norte.
102 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 103

No Inventário dos Manuscritos da Biblioteca da Ajuda (1946), teria o sentido da regeneração ou correção social viabilizada pelo
esse texto figura sob o título Máximas, propostas a S. Maj. para perdão régio referido neste mesmo texto.6
melhor govemo do Brasil. O organizador do inventário informa que Seguindo-se sua linha de. argum entação, a m edida, que
o texto foi assinado, em Lisboa, a 4 de janeiro de 1780, possivel­ comprovadamente havia beneficiado os condenados, deveria tomar-
mente pelo mesmo D. Rodrigo José de Meneses, que foi governador se prática da administração colonial.
da Capitania de Minas Gerais. Acrescendo mais do que esclarecendo Sua sugestão reza que o rei ampliasse a todos os vice-reis e
dúvidas, vemos o autor deste texto se definir, nos dois últimos pará­ governadores
grafos, por um propósito muito mais discursivo e crítico do que deli­
berativo ou tendente a instruir deliberações. Neste caso, coloca-se, a faculdade régia de perdoar a pena de morte logo que o réu tive­
em pauta, a validade, o peso, a qualidade, a consideração, enfim, sse a seu favor a terceira parte dos votos do congresso [fl. 1-V].
que se deve dar a textos como este, os quais — sabe-se de antemão,
ou supõe-se com alguma margem de certeza — não tiveram partici­ Entre as transgressões passíveis de punição corretiva por meio
pação direta na geração de acontecimentos que passaram à História. da preservação da vida do indivíduo e de uma destinação social tal
Na linguagem arquivística, são aqueles que não tiveram encaminha- , como a entrevista nos presídios de Caconda, etc, citam-se as exce­
mento formal, não se tornaram lei, mas que reconhecidamente infor­ ções sentenciadas com pena de morte. Observe-se, todavia, que a
mam, conformam valores, inquietações, projetos individuais e cole­ causa ideológica é ponto comum aos casos julgados como passíveis
tivos, pois, como se verá, esse texto representa uma postura política. de punição fatal:
O autor principia demonstrando ciência da organização dos
governos monárquicos e da regularidade dos povos, sob o comando Com exceção porém de ficarem com toda a sua força e vigor as
penas estabelecidas e as arbitrárias para os profanadores dos tem­
de leis estabelecidas e mandadas exercer por soberanos. Observa,
plos, e dos vasos sagrados, para os régulos, para os chefes de
porém, que o degredo em “Benguela, Caconda, Angola, Cabo Verde
qualquer levantamento; para os cabeças e sócios de uma conjura-
e índia" produziu o efeito de recuperar socialmente indivíduos con­
denados à morte. Em seus termos, esses degredados tomavam-se
6 Fizemos referência aos sentenciados como a força de trabalho mais freqüente nas
“cheios de honra, esforço e prudência” e vinham incorporar-se às
colônias da Inglateira e da França. Este recurso alternativo à escravidão foi re­
tropas dos mesmos “presídios”, ao comércio e a toda atividade do corrente em todo o empreendimento colonizador. D. Rodrigo, suposto autor das
interesse do “continente” (Portugal). E argumentava: Máximas p a ra m elhor governo d o Brasil, escreveu-as no ano de 1780. Contudo,
em 1761, o ouvidor e provedor da Capitania de São José do Rio Negro, Lourenço
Com estes conversos finalmente se organiza a República sosse­ Pereira da Costa, em carta dirigida ao governador Mendonça Furtado já propu­
gada, temente a Deus, e ao Rei, desejando arrancar da memória nha este mesmo recurso pensando no difícil problema do povoamento e da força
de trabalho daquelas regiões. Observe as sugestões e argumentos no trecho a
dos homens o delito que os fez culpados, e punidos [fl. 1-V].
seguir: “O quarto modo é determinar-se que nenhum delinquente seja castigado
com pena de morte — limitando-se os crimes excetuados — mas que se lhe co
O termo “conversos” é sublinhado com o intuito de despertar a mute em desterro para este Estado e Capitania, antepondo-se a causa da povoa­
atenção para a possibilidade de vir-se a observar o transplante desta ção ao castigo. Praticando-se este procedimento, não só nas relações do reino,
idéia para a situação dos índios catequizados ou propensos a aceitar mas nas da Bahia e Rio de Janeiro, de onde podem vir homens já com alguma luz
do Estado porque de um a outro B rasil vai pouca diferença e um homem custa
a doutrina cristã e o convívio com a civilização. Como se constata, muito a criar e servem muito cá, p o r este m odo povoaram j á o s senhores m is
invariavelmente, nos documentos coloniais que tratam de empresas deste reino a outra A m érica e assim fizeram os romanos, quando povoaram a
exploratórias e povoadoras no Brasil, a presença do índio é comen­ ilha de Serdenha, degredando p ara ela todos os hebreus e ciganos" (AHU, caixa
tada como um problema a solucionar. A conversão ao cristianismo 1, doc. 31).
104 R ita H eloísa d e A lm eida O D ire tó rio d o s índ io s 105

ção para os que atentam [?] a régia im unidade do trono, por qual­ A discussão deste texto foi aqui introduzida para se questionar
quer modo, para salteadores que matam; p ara aleivosias circuns­ o caráter inovador desse tipo de literatura guiada por máximas, prin­
tanciadas; e em sum a para todos os crim es d e L esa M ajestade cípios antigos de natureza quase proverbial. Pois o aspecto inovador
divina e hum ana da prim eira e segunda cabeça [fl. 1-V], (se existir) reside justamente em pretender fincar alicerces sociais
mais sólidos e profundos do que os que possam requerer uma feitoria.
Afora os cuidados com a “regularidade dos povos”, resolvidos Começando por formar uma elite que fosse nativa da sociedade em
pela pena de morte a transgressões ideológicas, o que se impunha construção, observe-se como tal propósito subjaz no argumento em
pensar e equacionar como problema da política e da economia de tomo da concessão de privilégios e honrarias, repetimos:
Portugal era o povoamento de seus domínios representados pelas
colônias. O problema jurídico da correção social implícito na decisão E som ente naqueles governos [índia, Bahia, Minas Gerais e São
em favor da “conservação das vidas” dos condenados à morte inse­ Paulo]; porque a sua população, civilidade, e o comércio fazem
ria-se, assim, nos programas de civilização dos índios, construção os prim eiros fundos dos interesses da M onarquia [ib].
de estradas internas, exploração de rios, edificação de cidades, etc.
Nos casos em que o réu é escravo de origem africana, o autor Vale notar que os critérios eletivos dignos de recebimento des­
sugere que o degredo seja cumprido no Brasil — por si, um conti­ sas honrarias estavam articulados aos interesses do Estado monár­
nente —, sem que o proprietário particular ou o Estado tenha prejuí- . quico, de conduzir empreendimentos coloniais. Ou, melhor esclare­
zo pela perda de sua força de trabalho. Ele discorre sobre o exemplo: cendo, o autor desperta a atenção de leitores de sua época, ou
representa mais um a pensar na necessidade de ir-se formando uma
N este caso qualquer preto criminoso, e ainda criolo do país, que classe privilegiada nativa da própria colônia, que provesse apoio
escapar da m orte no M aranhão seja condenado a galês por toda a econômico à colonização e fosse fundada em antigos esquemas me­
vida, rem etido para as Minas; os da B ahia para o M aranhão; os dievais de aliança política, constituída por meio de laços de fideli­
do R io para Pernambuco, e por este m odo trocados sempre os dade, concessão de privilégios e obrigações recíprocas. Atente-se
continentes da culpa com os da pena, ficará a justiça satisfeita, e para o elenco das necessidades que ditaram a formação de catego­
o Réu punido com a mudança de dom icílio e com as galês a que rias sociais próprias ao contexto econômico do Brasil:
deve ser sentenciado [fl. 2].

Aquelas graças, honras, e privilégios, são para repartir unicamente


A ampliação do poder dos governadores e vice-reis não teria com os nacionais paisanos da sua capitania; aqueles que além da
por finalidade somente punir criminosos, como também fazer justi­ sua distinção, ou do seu tratamento regulado pela Lei da Nobreza
ça com os que fossem considerados “beneméritos” . Como sugere o têm servido, ou servirem para a Sua M ajestade descobrindo ter­
texto, ras d e ouro, ou quaisquer preciosidades. Com os outros, que abrir
cam inhos, e estradas seguras aos viandantes com a utilidade de
o vice-rei do estado do Brasil, os capitães-gerais da índia e dos dim inuir as distâncias, e livrá-los dos frequentes insultos dos gen­
governos da Bahia, das M inas Gerais e d e São Paulo [teriam] a tios; com aqueles que facilitarem o passo d e alguns dos rios cau-
faculdade de darem em seu Real Nome todos os anos um certo dalosos, fazendo-lhes pontes, ou pondo canoas a benefício co­
núm ero de H ábitos das três Ordens M ilitares, e alguns foros de mum dos passageiros, e enfim com outros muitos aos quais os
Fidalgos das classes; e som ente naqueles governos; porque a sua governadores ocupam em diligências do Real Serviço, e eles
população, civilidade e com ércio fazem os prim eiros fundos dos desam param contentes as suas casas e famílias e fazendas saindo
interesses da M onarquia [fl. 2-VJ. a executar as mesmas ordens em muitas distâncias à sua custa,
acompanhados dos seus escravos, cujos serviços também perdem
[fl. 3].
106 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 107
\

Note-se que, mesmo num contexto colonial, ações consideradas (BNL, cod. 770), provavelmente escrito em 1774, há referências à
valorosas, dignas de méritos e honrarias eram, em suas devidas pro­ criação de uma universidade, dois colégios e três seminários, sendo
porções histórico-contextuais, as mesmas que levavam reis portu­ que um deles se propunha a ensinar “latinidad” aos filhos de “indios
gueses aescolher seus cavaleiros ou fidalgos. Não há uma distorção nobleis” ou “caciqueis”.
cultural. O que o autor sugere é o que reza o costume. Pode-se identificar, por esses exemplos, os princípios de forma­
Um manuscrito do século XVII, Fidalgos, ou cavaleiros do ção de uma elite em qualquer tempo e lugar, posto que, mais que
conselho (BA, 51-VH-31), assim o confirma. Nele se define, como uma classe de “beneméritos” (privilegiados), o que está se repassando
qualidades que preenchem as condições de pertencer à categoria, o e, portanto, permitindo formar novamente é um mesmo código mo­
fazer bom uso da “prudência”, do “saber” e da “experiência” em ral de distribuição do poder — este, sim, verdadeiro autor das divi­
todo “gênero de política”, seja este em tempo de guerra ou de paz. sões intemas em qualquer sociedade.
Os cavaleiros eram escolhidos pelo rei por suas qualidades e não Voltemos às Máximas de Rodrigo José de Meneses. O ponto
necessariamente procediam de famílias nobres ou eram grandes final de sua argumentação para ampliar sua proposta de comutar a
donatários. pena de morte pela de degredo é ponto de partida para entender as
Este modelo de escolha de cavaleiros e os critérios que o ins­ políticas coloniais no trato das questões ligadas à aproximação e
truem chegam aos tempos coloniais e tomam-se procedimento de convívio com índios no Brasil. É um trecho evidentemente apolo-
formação de alianças com populações nativas. Os “beneméritos” não gético. Um elogio à própria convicção que defende — qual seja, a
são apenas os colonos de origem européia. Uma carta do rei D. José, de fazer valer mudanças no comportamento da Justiça, por exemplo,
de 11 de junho de 1761, a um governador e capitão-general do Esta­ em concordância com posturas mais tolerantes e com o crescimento
do do Grão-Pará discorrendo sobre o aproveitamento dos edifícios dos direitos individuais diante dos interesses gerais do Estado. Uma
que pertenceram à Companhia de Jesus, então expulsa do Brasil, estratégia, uma postura política que já vinha sendo aplicada em boa
manda providenciar medidas de estímulo à formação de uma elite parte da Europa Ocidental, Nela se entrevê um acordo de obrigações
nativa: mútuas entre o indivíduo e o Estado. Muito a propósito, aliás, para
no presente trabalho começar-se a refletir sobre como foi tratada a
Hei por bem que a Casa de M . de Deus, que ultim am ente era questão do índio em face do processo de colonização.
quinta, seja erigida em colégio de educação dos nobres da mes­
ma cidade de São Luis, e de todos o seu território, entrando os Q ualquer pessoa de um m ediano raciocínio, que conhece os po­
filhos dos Principais dos capitães-mores, e dos capitães dos ín­ vos dos continentes de A m érica sabe muito bem que os frutos
dios que já se acham civilizados, e dos que vierem a civilizar-se desta M áxim a [relativa ao perdão régio] são infalíveis, e também
pelo tempo futuro. E que o m esm o pratique, com o das aldeias sabe que os mesmos povos animados por este modo são capazes
altas entrando da m esm a sorte naquele colégio com os filhos dos d e em preender os maiores, progressos em benefício com um da
nobres daquela parte do M aranhão e da capitania do Piauí, e seu pátria, e do serviço de sua majestade pelo seu vulgar axiom a, de
território até os confins das M inas d a N atividade os filhos dos que os vassalos contentes, é que fazem o importante objeto da
principais, os dos capitães-mores e os dos capitão dos índios ci­ riqueza do Estado, e da opulência da Monarquia [fl. 3].
vilizados e que se forem civilizando [ANTT, n° 51, fl. 68].
Parece-nos fundamental reter do texto anterior não tanto sua
Este recurso também está presente nos meios com que se vale­ afinidade e filiação conceituai em relação a idéias que circulavam
ram os espanhóis para lograr um convívio pacífico com populações nos meios cultos da Europa ocidental dos séculos XVH e XVHI,
nativas. Na Descripción de la ciudad de Lima del Reyno del Peru mas como tais idéias serviram de embasamento a futuras situações
108 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 109
'I

de autonomia política das terras, então colônias européias. Há uma montagem de um vasto programa de reformas sobre o todo da socie­
preparação, uma organização gradual para a emancipação política, dade é o que veremos a partir de agora, tendo como enfoque a ação
ainda que paradoxalmente concebida e fabricada pelo colonizador. colonizadora de Portugal no Brasil ao tempo do reinado de D. Jõsé,
Na formação de um governo, os procedimentos devem sér a atuação de seu ministro, Marquês de Pombal, e a experiência de
normatizados, e para tanto o arquivo de experiências passadas é um civilizar índios contida no Diretório.
guia. No trecho a seguir, há um claro indício de se estar consciente­
mente tratando da formação do governo de futuras nações:
Falando de tolerância
As [...] Ordens do Conselho Ultramarino, e os O fícios do Minis­
tério da mesma repartição expedidos por m otivo público ou par­ O terceiro texto trazido à discussão reflete esta disposição à
ticular devem ficar na Secretaria infalivelm ente. L ogo que se mudança. Seu autor, o embaixador de Portugal em França, Luís da
verificar a passagem de um para outro governador; por que a Cunha (1662-1749), protagoniza acontecimentos correlacionados a
mente do soberano é, que no governo se conservem as suas reso­ esta situação. Confirma-se, no caso, a força de textos discursivos de
luções, como Regime constante, e não só com o regras acidentais, conotação contestadora, e, às vezes, libertadora, na condução de pro­
que acabam com o governador pois isto seria o m esm o que redu­ cessos que resultam em profundas transformações nas instituições e
zir um a capital de opulenta população aos prelim inares da infân­
nos homens. Seu título: Máximas sobre a reforma da agricultura,
cia de qualquer colônia [fl. 6].
comércio, milícia, marinha, tribunais, e dirigidas ao sereníssimo
Senhor Dom José, Principe da Beira, Augusto Filho do Senhor Rei
Esse arquivo de experiências é constituído por definições e nor­ Dom João V.
mas sobre a natureza e uso dos papéis que circulam entre o Conse­
O próprio título deixa entrever o momento histórico: foi escrito
lho Ultramarino e os governadores nas colônias. E, nas especificações
às vésperas da mudança de reinado. Embora aponte para a direção
que definem um documento como secreto, vemos o esboçar de ques­
específica dos assuntos econômicos, o ponto nodal da discussão é o
tões plenas de nossa atualidade nos conceitos de fato público e de
sentimento de intolerância religiosa como objeto de revisão. Por seu
fato privado, como objetos de diferente apreensão e manuseio pela
intermédio, esse diplomata tece a intrincada malha das questões pi­
História, Política e Diplomacia. Vejamos mais este breve trecho:
lares que envolvem o mercantilismo português.
O texto de Luís da Cunha gira em torno de um ponto que não é
A guerra, a paz, a aliança, a cessão de dom ínios, e as convenções
do Estado, e do com ércio, entre as potências são fatos públicos
secundário, pois atua internamente, influenciando essas outras ques­
ao nosso conhecimento, mas a política com qu e se trataram pou­ tões, centrais, da balança comercial e da posição política de Portu­
cos a sabem, pois não é vulgar a todos [fl. 6-V], gal no mercado mundial. Trata-se da “população”, considerada no
horizonte de seus problemas particulares, no que diz respeito ao
Duas questões são extraídas deste texto exemplar. A primeira é povoamento do território nacional e das suas colônias em ritmo favo­
a postura que sinaliza a consciência do autor, de estar presenciando, rável ao crescimento da economia.
em sua própria época e ambiente, uma disposição generalizada a Suas sugestões são, sem dúvida, inovadoras, em que pese ao
revisões ou reflexões que implicavam efetivas transformações no pensamento econômico, vindo anunciar posturas mais abertas por
comportamento e na maneira de pensar questões da sociedade. A se­ parte de Portugal, em relação às colônias, no concernente a favore­
gunda é a oportunidade do encontro dessas disposições e esforços cer o desenvolvimento das instituições políticas já existentes, prin­
com situações favoráveis a transformar essas reflexões em planos cipalmente as do Brasil. Uma de suas propostas introduz a idéia do
de governo. Um governo auxiliado por filósofos e homens cultos na imigrante europeu para povoar o Brasil:
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 111
110

Seria permitir que os estrangeiros com as suas famílias se fossem No referido texto, Luís da Cunha apresenta pontos de vista mui­
estabelecer em qualquer das suas capitanias, que escolhessem; to contrários às idéias comumente encontradas no meio da popula­
seria examinar qual seja a sua religião, e recomendando aos pro­ ção em geral, inclusive entre as camadas mais cultas, de onde provi­
vedores todo o bom acolhimento, arbitrando-lhe a porção de ter­ nham os governantes e formuladores de políticas. Idéias paradoxais,
ra, que quisessem cultivar, do que se seguiría, que lá se casariam, como;
e propagariam com poucos tempos, e os seus descendentes se­
riam bons portugueses, e bons católicos romanos, em caso que
O quarto meio, para se extinguir o nome de cristãos novos, e não
seus avós fossem protestantes. No que não acho nenhum incon­
se fossem multiplicando, misturando-se com os cristãos-velhos,
veniente [BNL, cod. 51, fl. 248].
seria decretar que fossem inválidos os seus casamentos, e ficas­
sem sendo bastardos os seus filhos. E se algum arguir, que por
A outra proposta volta-se para a importância do povoamento do este modo se estabeceriam em Portugal dois diferentes povos,
próprio território de Portugal e de sua economia como um todo, com quase inimigos, contra a união, e sociedade da República, res­
ressonâncias no sistema colonial. E neste contexto Luís da Cunha ponderei que isto mesmo se está tacitamente praticando pois
propõe a revisão da condição jurídica dos cristãos-novos. vemos, quantos casamentos se deixam de fazer entre certas famí­
A intolerância religiosa e o anti-semitismo são temas freqüen- lias, porque ou de uma, ou de outra, se tem opinião de descender
tes nas obras de Luís da Cunha, Ribeiro Sanches, Antônio Ribeiro de cristão-novo. De sorte que faria a lei, o que faz o mal enten­
dos Santos— todos autores portugueses, observadores contemporâ­ dido costume, sem outra diferença senão, o que vai do mais ao
neos do novo momento que passamos a tratar. menos [fls. 265-269].
O problema é antigo e não se restringe aos limites de Portugal
ou da Península Ibérica. Percorre França, Alemanha e Itália. O anti- Há outras sugestões de efeito maior. São elas: conceder liber­
semitismo está vinculado ao milenar e conflituoso relacionamento dade aos judeus para praticarem seus cultos, abolir o confisco de
dos povos europeus com os de origem judaica e árabe, sempre ana­ seus bens e permitir-lhes viverem em “guetos” (um em Lisboa e
lisado pela ótica do confronto das convicções religiosas. Em Portu­ outro, no Porto, tal como ocorria em Roma), com a ressalva de que
gal, as raízes da discriminação aos judeus estão presentes nas pri­ fossem obrigados a usar um chapéu amarelo quando transitassem
meiras restrições à sua liberdade, instituídas por D.Manuel, em 1492. fora desses espaços.
Um dos desdobramentos desta discriminação oficial foi a obrigação Estranhas propostas para quem dedica um texto a condenar as
imposta aos judeus de cristianizarem-se. Daí emerge a expressão discriminações dos cristãos-novos. Sua máxima, inserida logo no
“cristão-novo”, associada aos que supostamente aceitassem a con­ início do texto, aponta para a direção do seu argumento e explica o
versão ao cristianismo, embora, como de fato se veria posteriormen­ porquê desta forma de tratamento. Ele dirige-se a Dom José, dizen­
te, esta forma de identificação não os excluísse da perseguição geral do: “Esteja Vossa Alteza certo, que todas as vezes, que houver um
infligida aos que se declaravam judeus. A instalação da Inquisição Tribunal privativo para castigar certos crimes sempre haverá crimi­
em Portugal, no ano de 1536, resulta deste conflito e define-se desde nosos [fl. 258]”.
cedo por uma postura policial, censora intelectual das artes e ciên­ E toma como exemplo a Inglaterra, onde a liberdade de consciên­
cias, reguladora do comportamento moral-religioso e essencialmen­ cia já permitia aos judeus não mais ocultarem-se em casamentos
te anti-semita.7 com cristãos. Luís da Cunha demonstra, portanto, que justamente a

7 Nas palavras de Ronaldo Vainfas: “Duas grandes distinções marcariam em princí­ como tribunal eclesiástico diretamente subordinado à monarquia e a segunda re­
pio, as inquisições ibéricas em relação à congênere medieval e à inquisição papal: pousa em sua conhecida obsessão anti-semita, razão ou pretexto da própria insta­
a primeira, já mencionada, reside em que o Santo Ofício Ibérico se organizou lação dos tribunais em Espanha e Portugal” (1989).
112 R ita H eloísa de A lm eida O D ir e tó r io d o s ín d io s 113
1

situação de censura e cerceamento causa a multiplicação numérica traz à tona antigas explicações de origem judaica sobre a perda da
de cristãos-novos (como judeus híbridos do convívio com europeus) “pátria”, do “rei,” do “templo”, fundada na culpa bíblica em se ter
e a exacerbação de sentimentos contrários à doutrina cristã. Natural­ misturado aós cristãos. Dois outros exemplos de origem bíblica, uti­
mente, sua intenção não é ver reduzida a população de origem judai­ lizados por Luís da Cunha, foram o diálogo entre Deus e Adão e a
ca em Portugal. Ao contrário, ele crê que a liberdade de culto e de pergunta a Jesus Cristo sobre quem o condenara (fls. 263-264). Com
trânsito (com a já dita ressalva da exposição pública de sinais estes exemplos, Luís da Cunha quer reforçar seu argumento em prol
diacríticos indicativos da procedência étnica) conduziría de volta a da reforma dos processos de inquirição. Ele propõe uma humanização
Portugal pessoas com a capacidade intelectual de um Ribeiro Sanches dos rituais de inquirição, cujos réus, em sua época, não conheciam
e muitos outros, que fomentaram o comércio marítimo e a produção direitos de defesa contra acusações e denúncias ocultas.
de manufaturas no Reino. Ribeiro Sanches (1699-1783), em Cartas sobre a educação da
O que parece haver adiante é a formação de uma nova ética. mocidade (1759/1922), resgata o exemplo romano, pelo qual os es­
A esse mesmo tempo, o português Antônio Vemey, vivendo um pro­ cravos iam gradativamente se extinguindo, pelo casamento com
longado exílio na Itália, escrevia textos que formariam a base das mulheres romanas livres. Seu propósito é confirmar, reafirmar, vin­
mudanças institucionais praticadas no reinado de DJosé. cular a idéia de liberdade civil à de crescimento do Estado. É sob tal
Em Verdadeiro método de estudar (1747), Vemey esboça a idéia perspectiva que observa os casos de intolerância religiosa: “como
da ética como propedêutica da jurisprudência e da teologia moral. dos privilégios dos fidalgos e da nobreza procedeu a escravidão,
Em sua conceituação, não transparece, tal como no texto de Luís da assim das imunidades eclesiásticas procedeu a intolerância civil
Cunha, uma postura propensa a grandes inovações do pensamento e [1922, p. 90]”.
do comportamento. A ética de Vemey é universalizante e perene. Conquanto partindo de premissa contrária à de Luís da Cunha,
Está ancorada no direito natural (“Lei Natural”), que ele entende ser o argumento de Sanches aproxima-se deste, ao associar liberdade de
a mesma lei divina plantada na consciência de todos os povos. Como consciência a estabilidade política e riqueza econômica.
referência ao comportamento civil desejado, segue o conceito de Com esse mesmo pano de fundo ético, há outro texto motivado
“virtude”, do qual emerge o de “nobreza”, que ganha corpo por meio pelos mesmos anseios de transformação social. É como se todos tive­
dos exemplos históricos da Antigüidade — os grandes soberanos ssem lido (ou estivessem lendo) Carta acerca da tolerância escrita
assírios, persas, egípcios, gregos e romanos. Não está dito por Vemey, por John Locke ainda no final do século XVII.
mas, no afã do exercício de dedução que ele próprio sugere, pode-se A Carta acerca da tolerância é um texto eficaz, por formar
dizer que seu conceito de ética surge dos princípios que informam a opinião. Discorre sobre a adversidade dos perseguidos pela
idéia de civilização ocidental. Afinal, estamos falando de uma nova Inquisição, os desatinos e a truculência dos processos inquisitoriais,
ética, ou de releituras desses padrões bíblicos, mitológicos, históri­ sendo que, fundamentalmente, trata da necessidade de dar liberdade
cos, sempre e sempre revisitados? A ética de que nos fala Vemey de escolha individual sobre qual religião deseja seguir. Este é o pon­
promove a orientação nos estudos, visa à “felicidade”, o “Sumo Bem”, to comum em tomo do qual gravitam expectativas e esforços de trans­
constitui-se em referencial que provém da “boa razão” , do formação da condição humana de judeus, mouros, canarins, índios
“racionável” e, portanto, continuamente mutável e adequado ao com­ americanos e escravos africanos. Há mais que informação. Há revi­
passo das percepções humanas sobre as relações entre si, homens e são da postura européia em face dos povos que não seguiam a dou­
coisas (Vemey, 1952, pp. 253-293). trina cristã. Algo que começava por inverter os termos, segundo
Os exemplos são muitos. Luís da Cunha exercita a dedução. Ao Locke:
propor a reversão do estigma mediante a exposição da diferença, ele
Rita Heloísa de Almeida
Í1 4

0 que ocorre, porém, se a religião cristã parecer falsa e ofensiva


aDeus, ao pagão e a um príncipe maometano? Não devem, igual­
mente, com base no mesmo raciocínio e de modo semelhante,
liquidar com os cristãos? (1689/1973, p. 24).

Na condição de questionado e seguidor de uma “religião falsa e


ofensiva a Deus”, Locke ensaia um exercício de relativização das
Capítulo 4
próprias convicções, mediante o qual reflete sobre os conceitos de
liberdade individual e soberania de distintos povos.
Veremos, mais adiante, como esses conceitos vieram equacionar Ensaios, esboços, projetos
o problema de reunir questões muitos diversas entre si em um mes­
mo projeto colonizador. Veremos, ainda, como a política de Portu­
gal em relação ao uso de suas colônias, articulada com a posição que
ocupava no mercado mundial e com a necessidade de fixar bases
Este capítulo deverá tratar da secularização, retomando-se ao
permanentes em novas áreas de fronteira, contou com um apoio pensamento de Locke e à concepção do homem ainda calcada na fé
conceituai fundado na condição de liberdade que seria outorgada
em Deus. A intenção será mostrar que a secularização não foi um
aos índios, seus naturais povoadores. processo demolidor, no sentido do rompimento com o antigo. Ao
contrário, a secularização foi definidora de campos já existentes: o
político, o civil, o religioso. Da leitura de Locke e do material dis­
ponível a respeito da secularização das instituições em Portugal
sobressaem dois aspectos. O primeiro poderia ser considerado an­
tropológico. Entendo que a livre escolha de formas de venerar a Deus
representou uma abertura para escolhas efetuadas em outros cam­
pos. Escolher, ou melhor, refletir, reconhecer o diverso, selecionar
por critérios são exercícios indicadores da formação de um ambien­
te conceituai favorável à aceitação das diferenças étnicas e culturais
e à coexistência com elas. Neste contexto, será comentada a equipa­
ração jurídica dos índios à dos europeus livres, assim como a formu­
lação de planos de civilização articulados aos da colonização em
geral.
O segundo aspecto é político. A secularização foi o argumento,
o tema de grupos em disputa, tanto no contexto europeu quanto no
colonial. Uma colonização só seria possível com um Estado forte,
em que à Igreja caberia uma posição subalterna, a de lhe prestar
serviços. A secularização motivava, ideologicamente, o que teria de
ser feito no contexto colonial de qualquer modo: garantir fronteiras
portuguesas, civilizar terras e índios, estabelecer a autoridade do rei.
Como embasamento a essa discussão, serão apresentadas cartas
116 Rita Heloísa de Almeida
O Diretório dos índios
117

escritas ao tempo da expulsão dos jesuítas, cujo propósito foi esclare­


Os que negam a existência de Deus não devem ser de modo al­
cer e implantar a secularização no Brasil. Com este material será
gum tolerados. As promessas, os pactos e os juram entos, que são
levantada a questão de se saber qual concepção prevalece na defini­
os vínculos da sociedade humana, para um ateu não podem ter
ção dos processos históricos: a que identifica descontinuidades, ou a segurança ou santidade, pois a supressão de D eus ainda que ape­
que postula o movimento contínuo. Qual peso dar a cada concepção. nas em pensamento, dissolve tudo [1689/1973, p. 30].
Se se reforça a idéia de um movimento contínuo, cumulativo, o que
estamos a fazer é negar a possibilidade de escolhas, de apresentação Estando em voga as primeiras contestações de repercussão polí­
de planos, enfim, de tomada de consciência. Ao contrário, se se enfa­ tica aos procedimentos da Inquisição na perseguição ideológica ao
tizam as descontinuidades, está-se dando crédito à efetividade, à efi­ paganismo, à heresia e ao judaísmo, Locke anuncia idéias que só
cácia, à força de atitudes deliberadas na direção intencional das mu­
seriam assimiladas no século seguinte e nos posteriores. Paradoxal­
danças e, simultaneamente, colocando em segundo plano a percepção
mente, a fermentação dessas idéias teve como matéria-prima as mes­
dos processos cumulativos da cultura. O Diretório dos índios exige
mas concepções religiosas, a mesma fé em Deus sobre a qual tam­
um entendimento que fica a meio caminho dessas duas considerações,
bém cresceram a ortodoxia e a intolerância.
por ser a soma de experiências colonizadoras passadas. Ao mesmo
Louis Dumont (1977) menciona a questão ao tratar do conceito
tempo, com o Diretório, inaugura-se a direção do Estado sobre o
e propriedade em Locke. Não considerou, porém, importante saber
processo de civilização dos índios.
o que mais pesava no pensamento do filósofo inglês: se sua crença
Outra questão que se destaca neste capítulo é a noção de pro­
sincera em Deus, se sua preocupação em dirigir-se a um certo públi-
jeto. Aqui se define o Diretório, primeiramente, por seu formato de
projeto, sendo que, na tentativa de melhor explorar a tipologia, se­ “ Ing!"terra 6 da Europa de sua éP°ca>sensível às questões
rão analisados alguns exemplos de documentos coloniais com atri­ . 3 fe ( , y / / ’ P- 56)- A meu ver>as convicções de Locke representam
butos semelhantes. Alguns pontos podem ser desde já destacados. importante tema para a localização de idéias então germinadas. O
Para começar, a idéia de ensaio, de preparação para algo a ser propno Dumont o confirma, ao considerar o pensamento de Locke
construído e que tem o estímulo da idealização e da oportunidade da representativo de uma transição entre ideologias (id, p. 59-60) As
criação. Na análise de tais projetos anteriores ao Diretório, não hou­ palavras de Locke, escritas apaixonadamente sob o calor de senti­
ve de minha parte a preocupação de verificar se eles foram efetiva­ mentos de revolta, tiveram o efeito contemporâneo de formar uma
mente aplicados e que resultados geraram. Estes papéis vieram ao opmiao pública e uma postura política diante dos acontecimentos de
texto como exemplos antecessores a demonstrar que o Diretório está sua época e a longo prazo vinham esboçar o discernimento sobre
filiado a uma expressiva tradição colonizadora. domínios de poder e de conhecimento até então tratados indistinta-
mente. No caso, os assuntos da política e da religião, que ele define
delimitando campos próprios a cada um :
O sentido da secularização
Sendo isso estabelecido entende-se facilmente os fins que deter­
Lendo mais uma vez a Carta acerca da tolerância, de John minam as prerrogativas do magistrado para formular leis- o bem
Locke, deparei com uma questão aparentemente secundária: ele não público em assuntos terrenos ou mundanos, que é a única razão
desacreditava em Deus. Ao atacar firmemente a Igreja, a Inquisição, para iniciar a sociedade e o único objeto da comunidade uma
os magistrados, ou seja, todos aqueles que se investiam de autori­ vez formada; e, por outro lado, a liberdade facultada aos ho­
dade para ditar formas de veneração a Deus e execrar as crenças que mens em assuntos que dizem respeito à vida futura: cada um
contrariavam a doutrina cristã, Locke tinha um propósito simples­ pode fazer o que acredita agradar a Deus. em cuja vontade se
baseia a salvação dos homens. Porque se deve, antes de tudo
mente reformador. É o que se depreende desta sua afirmação:
obediência a Deus, em seguida, às leis. Mas, perguntar-se-á, se
R ita H eloísa d e A lm eida O D ire tó rio dos ín d io s 119
118
1 .

os decretos do magistrado prescreverem algo que pareça ilegal à Com isso, Locke dá a entender que a relação do homem com
consciência das pessoas? Se a comunidade — respondo — é go­ Deus é fundamentalmente individual e alimentada por julgamentos
vernada de boa fé, e os conselheiros do magistrado estão real­ internos, ainda que daí emeijam igrejas ou religiões que constituem
mente voltados para o bem geral dos cidadãos, isto raramente associações de pessoas unidas voluntariamente.
ocorrerá. Mas, se isso por acaso acontecer, afirmo que tal pessoa Nada parecería extraordinário nessas últimas declarações, não
deve abster-se de uma ação julgada por sua consciência ilegal, fosse o fato de Locke escrever num ambiente de forte animosidade a
embora tenha que se submeter ao castigo, que não é ilegítimo
manifestações do livre pensamento. É, sobretudo, um desabafo polí­
para ele suportar. Desde que o julgamento particular de qualquer
tico este esforço de redimensionamento das relações humanas com
pessoa com relação a lei, decretada em assuntos políticos, visan­
as questões religiosas.
do ao bem público, não suprime a obrigação a esta lei, nem mere­
ce tolerância. Mas se a lei diz respeito a coisas que estão fora da Em verdade, será somente um esforço, posto que a ordem das
alçada do magistrado, como, por exemplo que o povo, ou qual­ questões humanas apenas começa a esboçàr-se, tendo como “norma
quer parte dele, seja obrigado a aceitar religião estranha e adotar e medida” para o legislador o bem comum ou o bem público, esse
novos ritos; os que discordarem disso não devem ser coagidos referencial rarefeito e ainda vinculado a questões da fé, em tomo do
por essa lei, porque a sociedade política foi instituída unicamente qual serão formulados os direitos civis e a idéia de Sociedade Civil.
para assegurar a cada pessoa a posse de coisas desta vida, e com' No entanto, na Carta acerca da tolerância tais conceitos
nenhum outro propósito. O cuidado da alma e de assuntos espi­ encontram-se apenas esboçados, pouco elaborados, e talvez assim
rituais, que não pertencem e não se subordinam ao Estado, é estejam por refletir o nível das percepções humanas da época do
reservado e mantido p o r cada indivíduo. Deste modo, a p ro te­ autor — o final do século XVII. Lembremos Dumont, que discute a
ção dá vida e das coisas que se referem à vida é fu n ç ã o do E sta­ percepção do momento por Locke, ou seja, se ele estava ou não
do, e a preservação delas para seus possuidores consiste em de­ discernindo suas convicções religiosas das próprias racionalizações
ver do m agistrado [1973, p. 28]. sobre a ideologia da Igreja e da Inquisição.
Resta-nos imaginar a possibilidade de que Locke tenha feito
Do trecho acima infere-se que Locke não postula a eliminação uso desses conceitos somente para contrapô-los à questão central de
ou primazia de um ou outro domínio e, sim, a definição do que sem­ seu texto, a saber, qual é o espaço de ajuizamento e quem desempe­
pre esteve posto indistintamente: o que é inerente aos assuntos da nha o papel de juiz nas questões de fé e formas de expressá-las.
ordem divina e o que cabe aos homens julgar. Em seu pensamento Pensando indiretamente nessas questões, ele viria a esboçar os cam­
(não é demolidor, mas reformador) nada se dissolve, senão reforça, pos da política e da religião, atribuindo-lhes qualidades de domínios
fortalece: o homem, inteirando-se de si, refaz sua imagem à seme­ público e privado, regido, o primeiro, pelo compromisso social e, o
lhança de Deus. É justamente na medida desta relação primordial segundo, por sentimentos e convicções individuais (ou, em seus ter­
que Locke reivindica um espaço próprio para os homens — o de mos,” persuasões internas do espírito”). Tudo isso se mostra latente
dispor de liberdade para colocar-se diante de Deus, conforme sugere em seu texto. E seria melhor explicitado e entendido ao longo do
a fé, e a maneira de exprimir de cada indivíduo. E, se existem cam­ século seguinte, quando foi transformado em diretrizes de políticas
pos distintos, uma ordem divina e outra humana, também existem que visavam à administração pública, à economia e às colônias.
leis próprias de ordenação de cada uma. Assim, dessa nova postura, Ao repassar os olhos sobre a Carta, nota-se a repetição quase
em que o homem pode colocar-se perante Deus como um dos termos obstinada das palavras “voluntária”, “voluntariamente”, “livre von­
e não mais como parte indistinta, nasce a possibilidade de decidir tade” e “escolha”. A própria concepção de Locke sobre “religião
livremente sobre qual religião adotar e ter garantidos os direitos verdadeira” como sendo um exercício de “persuasão interior do espí­
sobre esta escolha, além da obrigação de proceder da mesma manei­ rito” é exaltação à liberdade, manifestação efetiva de livre escolha,
ra com outros indivíduos e suas respectivas convicções. livre expressão dos sentimentos.
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 121
120
1

A secularização, em Locke, compreende o discernimento de dois Este significativo trecho integra uma das cartas de um conjunto
espaços distintos de atuação humana: um, que resguarda para o indi­ de documentos que abrange o período de 1751 a 1807. Para quem não
víduo a liberdade do espírito e tem como limite a obediência a Deus; conhece a história dos padres da Companhia de Jesus, ou somente
o outro, que vincula o homem a outros homens mediante acordos, a conhece pela interpretação dos historiadores, sem ter lido o que
pactos, compromissos firmados entre si. Percebendo, assim, os limi-, dizem os próprios jesuítas, este maço de documentos é um bom co­
tes de cada um em relação a esses espaços, quer Locke entender e meço de estudo, ainda que pelo ângulo de seus perseguidores, so­
passar ao público leitor a idéia de que as manifestações próprias do bretudo o marquês, que representava os interesses da monarquia.
espírito estão livres da legislação do magistrado, em razão de sua Mas, considerando-se apenas um lado da questão, tem-se a possibi­
condição essencial de serem sentimentos: “Porque cada igreja é orto­ lidade de empreender uma leitura multifacetada da matéria, ou me­
doxa para consigo mesma e errônea para as outras” (id , p. 15). lhor, nem César, nem Deus, mas a configuração de idéias em torno
Locke estava pensando no caráter arbitrário da perseguição de da contenda, uma vez que todas as razões para a expulsão da Com­
uma igreja sobre outras e na intervenção igualmente arbitrária de panhia de Jesus estão colocadas nessas cartas. E todas as versões
governos temporais sobre essas questões da fé. para tais razões ficam, assim, subentendidas.
A influência de seu pensamento em autores portugueses dos Falemos, antes, da expulsão. Um alvará de 3 de setembro de
setecentos é evidente, a começar por Antônio Veroey, um dos prin­ 1759 coloca um fim no confronto entre Estado e Companhia de
cipais formuladores do programa de reformas institucionais coloca­ Jesus, ordenando que, daquela data em diante, estariam oS padres
do em prática pelo Marquês de Pombal com o sentido de seculariza­ jesuítas expulsos de Portugal e de seus domínios coloniais, bem como
ção até aqui discutido (Crippa, 1982, pp. 21-27, Falcon, 1982, pp. destituídos de seus bens e poderes de administração sobre os índios.
330-343). Propõe-se, pois, pensar Locke debruçando-se sobre um Estimativas indicam terem sido 122 jesuítas banidos do Brasil, entre
caso efetivo, qual seja, a contenda entre o Marquês de Pombal e a noviços e os padres expulsos anteriormente do Grão-Pará, que dei­
Companhia de Jesus, que culminou na expulsão dos jesuítas de Portu­ xam atrás de si uma estrutura construída desde 1549, em termos de
gal e de todas as colônias portuguesas. Vejamos que direções segue hospitais, colégios, seminários, casas de residência, bibliotecas, igre­
essa discussão conceituai e qual tratamento político se dá a essas jas e missões indígenas (Soares, 1983, pp. 213-216).
idéias nascidas da reflexão de filósofos. Uma rica literatura discute este acontecimento. Por exemplo, as
cartas trocadas no âmbito do governo, nas quais se deliberou sobre
a difícil tarefa de substituir os jesuítas no Grão-Pará e Maranhão.
A correspondência entre governantes
O processo tem início em 1756, com as primeiras acusações contra
Em 16 de junho de 1761, o Conde de Oeiras, futuro Marquês de os padres da aldeia de São Francisco Xavier, localizada no rio Javari,
Pombal, escreve ao bispo do Pará, a fim de comunicar que o Rei culminando, em 1757, com a decisão do rei de expulsar jesuítas do
D. José I havia restituído aos índios daquele Estado Grão-Pará, providência adotada em 1758, um ano antes da medida
geral para toda a Companhia de Jesus (id ., fls. 1-2 e 5-6). Quase
a liberdade de suas pessoas, bens e comércio, e estabelec[ido] o todas as cartas estão assinadas pelo rei e por Tomé da Costa Corte
governo temporal dos mesmos índios nos generais, ministros e Real, integrante do Conselho Ultramarino e Secretário de Estado
magistrados seculares, deixando toda a espiritualidade aos prela­ dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, estando dirigi­
dos e ministros eclesiásticos, e dando assim a D eus o que era de das ao governador e capitão-geral do Grão-Pará e Maranhão, Fran­
Deus, e a César o que era de César [IHGB, D ocum entos sobre a cisco Xavier de Mendonça Furtado, e ao bispo do Pará, D. Miguel
Capitania do Pará, fl. 39]. de Bulhões e Sousa.
122 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 123
'1

A primeira informação a destacar é a de que a substituição dos medida (nos documentos o termo é “dispensa”) teria permitido aos
jesuítas e de outros regulares atingidos pela medida teria sido gradual. regulares, como os jesuítas,
O que, indiretamente, mostra o reconhecimento de que a experiên­
cia de catequese e civilização de índios, desenvolvida pelos jesuítas, exercitar o ofício de curas administrando os sacramentos aos ín­
foi internalizada. O seguinte trecho da referida documentação indi­ dios somente enquanto não houvesse número de clérigos secula­
ca que, além de a medida ter sido gradual, outras ordens regulares res suficientes” [IHGB, Carta do Rei a Gomes Freire em 8 de
foram igualmente atingidas com o banimento ou impedidas de con­ maio de 1758, fl. 184].
tinuar o trabalho missionário.
Em outro documento, é referida tal concessão como uma sorte de
Sobretudo manda S. Majestade ainda prevenir a V. Exa. a respei­
to destes Religiosos [refere-se especificamente aos da Conceição infração do direito canônico, e das constituições apostólicas, que
e aos da Piedade] que posto que por agora permitiu o mesmo permitia aos ditos religiosos saírem dos seus claustros para vive­
senhor que o número deles nesse Estado fique sendo de trinta; rem apartados dos santos exercícios, que neles se ffeqüentam; e
contudo isto se entende, enquanto for necessário que eles exposto aos perigos que correm os sobreditos regulares fora da
paroquiem; porque Jogo que V. Ex. tiver clérigos bastantes para obediência dos seus competentes prelados, seria interina para durar
promover as Igrejas, serão os mesmos religiosos reduzidos ao somente enquanto não houvesse a necessária cópia de clérigos
número dos 22 [id, fl. 13]. seculares [IHGB, Carta do Rei ao Bispo do Rio de Janeiro, de 8
de maior de 1758, fl. 185].
Além da restrição ao limite de 22 religiosos, ficava proibida a
admissão de noviços, sob o argumento de que o rei não mais queria A segunda informação esclarecedora dá mostras da extensão e
no Estado do Pará “senão religiosos de virtude e letras já provados, dos efeitos da secularização sobre as aldeias indígenas missionadas,
que nele [no Estado] possam servir ao bem comum das aldeias” comprovando que os jesuítas não foram os únicos regulares atin­
(id, fl. 13). gidos pela medida. Uma carta do rei para o governador e capitão-
Mais que um reconhecimento da experiência específica de lidar general das capitanias do Estado do Grão-Pará e Maranhão, datada
com índios, acumulada em dois séculos de trabalho missionário de 11 de junho de 1761, delibera sobre as modificações estruturais,
pelas ordens regulares, estaria implícita a constatação da fragili­ após o alvará que trata da expulsão de regulares. Além do conhecido
dade do empreendimento, dada a insuficiência de pessoas qualifi­ fato da expulsão dos jesuítas de todos os. domínios portugueses e,
cadas no âmbito da estrutura administrativa civil e militar mantida inclusive, de Portugal, também foram afastados os religiosos das
pela Coroa no Brasil, em regiões com processo de colonização já províncias da Conceição e os da Piedade. Os primeiros deveríam
em andamento. passar para o Maranhão, e os demais voltar para o Reino (Docu­
A questão do número exíguo de pessoas qualificadas para colo­ mentos sobre a Capitania do Pará, fl. 31).
nizar terras e civilizar índios condicionou uma medida que seria pro­ A terceira informação a respeito da expulsão desses regulares
visória em uma situação histórica de longo curso. Não poucos docu­ versa sobre as acusações aos jesuítas. A questão configura-se como
mentos indicam que governantes, discutindo, em correspondência uma explicação conjuntural e é prova efetiva de que a secularização
oficial, os problemas da secularização, costumavam sempre men­ representou um fato político. É como se de uma postura antropoló­
cionar uma medida extraordinária de sumos pontífices predecesso- gica perante assuntos teológicos pudesse surgir uma ideologia de apoio
res e que concedia aos reis de Espanha e de Portugal religiosos regu­ aos processos sociais engendrados pela idéia da secularização.
lares que substituíssem os clérigos no trabalho de catequese. Essa Nos mesmos Documentos sobre a Capitania do Pará encontra-
se a primeira acusação pesando sobre dois integrantes da Companhia
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 125
124
'l

de Jesus, segundo a qual eles teriam “roubado” índios da aldeia de sacrossantos evangelhos, que tomam por pretexto, e só assim fi­
São Francisco Xavier e da missão de São Paulo. Ali se comenta a caram os jesuítas castelhanos, que tem ocupado as fronteiras dos
domínios de Espanha nesses vastos sertões, inibidos para recebe­
irregularidade e a necessidade de os índios serem recolocados em
rem os avisos e socorros, que lhes ministravam, e estão ainda
suas respectivas aldeias e entregues aos padres do Carmo (os ministrando os chamados vassalos (jesuítas portugueses] de Sua
carmelitas) (id, fls. 1-2). Majestade, que vestindo a mesma roupeta, conspiram contra os
Nas cartas seguintes, sustenta-se que os clérigos poderíam ser domínios desta Coroa na causa comum que por tantos e tão estra­
tão bons párocos quanto os regulares. O argumento apresentado, nhos fatos, se tem manifestado nestes últimos tempos [Documen­
adotado como medida saneadora, como se demostra a seguir, teve a tos sobre a Capitania do Pará, fls. 20-21].
força simbólica de por si justificar a expulsão dos jesuítas. É julgada
Assim, redefinidos os limites do poder de cada um, os jesuítas
escandalosa a facilidade com que os padres ofereceram largar o não teriam aceito as novas regras, recusando-se a ficar com parte
govemo espiritual logo que se lhes tirou o temporal, manifestan­ menor em relação àquela que antes detinham. Retratados mais pela
do que o zelo da salvação das almas é neles um puro pretexto face mercantil do qüe educadora em seu desempenho colonizador
para adquirirem, e acumularem riquezas extorquidas pelas vio­ no Brasil, os jesuítas seriam foco de acusações e, por seus alegados
lências, que até agora fizeram aos miseráveis índios [id, fl. 4],
crimes, punidos com o banimento.
Consideraria uma reação natural se me perguntassem por que
Questionando deste modo a espiritualidade do jesuíta, toma­
fazer esse inventário de questões específicas da circunstância histó­
ram-no alvo fácil de acusações diversas como autores ou co-autores rica. A meu ver, tudo parece conduzir a observar esses dados conjun­
de sedições atribuídas a índios e que a essa época ocorriam simultâ­
turais da expulsão dos jesuítas e as providências adotadas para o
neas em duas aldeias de Goiás, na Capitania do Mato Grosso, e nas
reordenamento social como um movimento transformador repenti­
aldeias do Rio Negro.
no e breve que não rompe, antes faz parte de um momento especí­
A última acusação é transmitida como atitude de resistência aos fico da lenta formação das instituições públicas e civis da Europa
interesses da monarquia. Dá notícia de que jesuítas portugueses e Ocidental.
espanhóis estariam comunicando-se entre si como integrantes de uma A quarta informação elucida o processo de transformação das
entidade própria e estrategicamente posicionados em áreas de defi­ instituições. Diz respeito à destinação dada aos bens pertencentes às
nição das fronteiras coloniais na América do Sul. Esta última acusa­ ordens regulares atingidas pelo alvará régio. Uma correspondência
ção é a mais significativa, porque se assenta na percepção político- entre Tomé da Costa Corte Real e o Conde dos Arcos, com data de
diplomática da época, de que os jesuítas, na qualidade de membros 19 de maio de 1758, trata da destinação dos bens da Companhia de
de uma congregação de princípios independentes, transnacionais, Jesus, conforme os seguintes critérios: os bens considerados
que não necessariamente se coadunavam com os de nacionalidade, indevidos deveríam ser reduzidos a “bens de raiz” e estariam subor­
constituíam efetiva ameaça à soberania de Espanha e de Portugal, dinados à jurisdição espiritual do arcebispo. Os bens relativos às
principalmente pelo que representavam em termos de estrutura de igrejas passariam a pertencer às mesmas. Os “bens semoventes e
colégios, missões e fazendas (id, fls. 9 e 16). É apropriado à reflexão móveis” (entre os quais se incluíam, indistintamente, escravos e ani­
dos conceitos de soberania e cidadania o trecho a seguir: mais, isto é, “pretos” e “bestas”) ficariam destinados às “enfermarias
dos hospitais”. Neste documento fica evidenciado que o confisco
É incompatível com o ministério, que constitui o único título dos dos bens teve uma destinação pública, como se depreende do trecho
ditos religiosos jesuítas, a potência secular, que afetam, sem lhe
do inventário de bens da Companhia de Jesus no Grão-Pará e
poder assinar princípio e compositiva resistência, dos mesmos
Maranhão:
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 127
126
’i
Entre os bens seculares que ficaram vacantes neste Estado [Grão- Primeira, que a dita Livraria se conservará sempre unida e vincu­
Pará e Maranhão] [...] [a casa que] servia nessa cidade de semi­ lada sem dela se poder extrair por qualquer título que seja livro
nário dos referidos jesuítas, vos ordeno, que seja logo erigido em algum dos que nela se acham, e acrescerem pelo tempo futuro.
um colégio secular para a educação dos filhos das pessoas nobres Segunda, que será colocada em casa que ao mesmo tempo
da mesma cidade, e seu território, compreendendo-se entre eles em que tiver uma porta particular para o interior do Palácio dos
os filhos dos principais, dos capitães-mores, dos sargentos-mo- prelados, tenha outra porta e entrada pública para a serventia dos
res e dos capitães dos índios [id, fl. 31]. habitantes da cidade.
Terceira, que a mesma livraria estará sempre aberta em to­
O bem indicado a seguir dá expressão civil à secularização, quan­ das as manhãs dos dias, que não forem santos para a instrução do
do igrejas pertencentes a ordens particulares se tomaram bens de público da mesma cidade, e das pessoas, que na mesma livraria
quiserem estudar, não se conservando a porta dela aberta por me­
domínio público:
nos de três horas [etc, seguem outras normas menores] [id, fl. 33],
A Igreja da Vigia, que foi dos mesmos regulares expulsos, man­
Cabem, ainda, referências ao estabelecimento de escolas públi­
do avisar ao bispo dessa Diocese, que deve erigi-la em paróquia
da mesma vila, ficando a outra igreja, que até agora serviu de cas. Ficava estipulada a criação de escolas públicas nas cidades,
freguezia, servindo de capela filial [id, fl. 32]. vilas e lugares do Pará para o ensino elementar. Há um prenúncio do
que hoje se entende por concurso público nos princípios e critérios
E prossegue o inventário: de admissão de mestres estabelecidos nessa carta. A seleção de mes­
tres, efetuada por oficiais das câmaras e posteriormente examinadas
A casa chamada Hospício dç São Boaventura, que evacuaram os pelos prelados das dioceses, vem demonstrar como daí em diante
religiosos da Província da Conceição, mandei avisar em Carta de seria articulado o trabalho com os índios, congregando Estado e
18 de junho do ano próximo passado de 1760, que devia ser erigida Igreja, de maneira a assinalar sempre a preeminência do primeiro.
em Hospital para nele se curarem os soldados enfermos, e espero Após exame, a aprovação do candidato era referendada em certidão
que assim se tenha observado. A outra casa chamada Hospício de apresentada pelos prelados das dioceses.
São José, que evacuaram os religiosos da Província da Piedade
se deve aplicar de sorte que nas casas se acomode o capelão da Que nessa cidade e mais vilas e lugares dessas capitanias se esta­
nova olaria [...] A outra casa evacuada pelos mesmos religiosos beleça em cada uma delas uma escola pública, para nela aprende­
da Piedade que se chamava Hospício do Gurupá, será logo erecta rem os naturais desse Estado a ler escrever e contar, elegendo-se
em um colégio secular para a educação dos filhos dos nobres para cada uma das escolas mestres hábeis, os quais vos serão
daquelas partes, incluindo-se neles os filhos dos principais [e propostos pelos oficiais das respectivas câmaras, e antes de os
demais funções já mencionadas] de todas as povoações de índios, aprovares os fareis examinar pelos ministros, que vos parecerem
que jazem desde as vilas de Almeirim, Melgaço e Portei até aos mais dignos de vossa confiança.
rios Negro e Solimões [...] e até aonde se termina a Diocese do E porque os referidos Mestres devem ser também obrigados
Pará. [id, fl. 32], a ensinar o catecismo, serão ao mesmo tempo mandados exami­
nar, e aprovar pelos prelados das dioceses, a que tocar, de cuja
No mesmo inventário há um trecho de raro valor. Trata-se da aprovação vos apresentarão certidão para efeito de poderem ter
passagem da livraria existente no Colégio de Santo Alexandre, loca­ exercício [Documentos, fl. 36].
lizado na cidade do Pará [hoje Belém], para o serviço dos prelados.
A livraria funcionaria sob as seguintes condições, nascedouras da Os bens arrolados e repassados ao domínio público represen­
biblioteca pública: tam a própria concordância dos indivíduos que servem à monarquia
r
128
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 129

(ou são a própria monarquia), com as intenções e os resultados do Nem poderia ser de outro modo: o novo surge pela percepção
trabalho que os missionários vinham realizando desde o início da de já existir o antigo, que se deseja transformar ou abolir. Assim, P
colonização. movimento do texto dá-se pelo recurso a análises retrospectivas, em
A destinação pública dos bens de regulares é uma confirmação tomo de experiências sociais incorporadas à bagagem cultural de
de que movimentos de continuidade são mais freqüentes que tendên­ Portugal e, às vezes, em escala maior, quando imbuídas da percep­
cias a rupturas, quebra e descontinuidade, dissolução e nova cons­ ção de filiação à cultura da Europa Ocidental. A vivência cosmopo­
trução. lita do autor, como um político das relações internacionais, com expe­
Tudo isso é dito porque, desde o início, quando coloquei o pro­ riência de vida em outros países, é que tornaria possível essa
pósito de discorrer sobre o Diretório, condicionei este intento ao dimensão. Postura cosmopolita que em Portugal era vedada, em face
reconhecimento de que referido documento, que se propunha a ser da repressão imposta pela Inquisição às manifestações favoráveis à
um novo regimento para govemo dos índios, foi elaborado a partir renovação do pensamento. O exercício retrospectivo a que o Mar­
de conceitos e experiências culturais antecedentes. E assustador ob­ quês se dedica no texto leva-o a indagações sobre os limites da com­
servar que, remontando à tradição conceituai que embasa o Diretório, preensão humana acerca da vida em sociedade. Pombal reexamina a
tomou-se possível vislumbrar a condição em que os portugueses são capacidade genérica do homem de conviver com diferentes modos e
os aprendizes de cultura. É como se este movimento retrospectivo visões de mundo e adota como referencial para suas reflexões as
revelasse a lenta formação dos conceitos, a milenar rede de idéias experiências européias de vida social. Sua convicção a respeito da
encadeando processos, acontecimentos e convicções humanas. Fa­ superioridade da civilização ocidental assenta-se na atitude de tole­
zendo essa viagem retrospectiva aos conceitos de civilização, colo­ rância fundada na liberdade de expressão sobre escolhas pessoais.
nização e govemo, pouco a pouco vimos destituindo o Diretório de Note-se que tais idéias, entrevistas, lá atrás, em I.ocke, são agora
sua natureza intrínseca, ao mesmo tempo em que o reintegravamos à expressas, cinqüenta anos depois, por um político, estando cada vez
bagagem ampla de experiências humanas no esforço de ordenação mais presentes no cotidiano e no pensamento do homem comum.
da sociedade. Acredito que a partir de agora seja possível restituir Se o Iluminismo é a confiança no homem, Pombal é um
a singularidade do Diretório: a de ter abolido uma ordem e orienta­ iluminista. De suas reflexões infere-se que essas “gentes”, como os
do a implantação de outra, nova, isto é, a de ser exemplo de secula­ europeus chamavam os outros povos,
rização, compreendendo uma experiência pioneira de formação da
idéia de sociedade civil. não são feras, mas sim homens racionais que fugiram (por isso
mesmo porque são racionais) dos que até agora os perseguiram,
afugentaram e mataram; roubando-lhes com os filhos e mulheres
Òs autores de projetos até a liberdade natural [id, fl. 39].

A última carta dos Documentos da Capitania do Para está assi­ Além de uma postura relativizadora, esta é uma referência crí­
nada pelo Marquês de Pombal, a esse tempo Conde de Oeiras, com tica ao trabalho missionário e à sua participação em procedimentos
data de 16 de junho de 1761. A personalidade do autor emana do de aproximação de índios, na época chamados descimentos, ou seja,
texto. Ele discorre sobre a questão dos índios como um assunto de o trabalho de convencimento, às vezes violento, sobre os índios,
governo e, como tal, entendido e amparado pela mesma postura que tirando-os de suas regiões de origem para virem conviver com os
concebe a política econômica e a administração colonial. Saber de brancos e a eles servir.
onde vêm suas idéias apenas interessa para mostrar que, embora o O que tencionava Oeiras, ao destituir os missionários da tarefa
Marquês de Pombal tenha a convicção de estàr implantando uma de civilizar, era principalmente excluí-los das expedições de resgate
nova ordem, ainda se orienta por valores antigos. de índios, cuja atividade fora por eles dirigida e conduzida até a
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 131
130 i

etapa final, de aldeamento. A nova maneira de pensar e de lidar com Natureza e às suas qualidades inerentes (selvagem, indomável, rús­
os índios, que excluía a participação dos missionários regulares, tico). Civilização descreve o esforço de superação da Natureza pelo
teria por norte a seguinte legislação: a Bula expedida pelo Papa Bento seu englobamento. Uma superação que não implicava eliminação
XIV, em 20 de dezembro de 1741, e publicada pela Diocese do Pará, física e, sim, ajustamentos às concepções européias de vida social.
em 29 de maio de 1757; a Lei de 6 de junho de 1755, que trata da Quando Oeiras propõe que os descimentos sejam conduzidos pelos
liberdade dos índios, a Lei de 7 de junho do mesmo ano, dispondo “oficiais militares e ministros civis” (id, fl. 42) e recomenda atrair
sobre a secularização das aldeias, e o Alvará de 17 de agosto de “índios internados nos matos” para viverem entre os brancos e ins-
1758, que dá o cunho de lei ao Diretório dos índios. Essas leis infor­ truirem-se nos meios da “civilidade”, seu referencial se direciona
mam'as mudanças e instruem sobre o comportamento que deveria para o conceito de civilização como uma “união universal de racio­
ter o branco — secular, civil ou militar— diante do índio, no quadro nais”, a que ele chama de “sociedade civil” (id, fl. 41). No curso de
dessas importantes deliberações e sob o respaldo conceituai da nova sua argumentação, ele parte da proposição de que “é necessário que
postura. Em suas próprias palavras, são os índios sejam homens antes que possam ser cristãos” (id). Recor­
rendo à metáfora, ele sustenta que, “enquanto sáfaros [os índios] e
estas as quatro colunas em que se acha sustentada toda a grande metidos nos bosques, é o mesmo [que] semear neles o grão do Evan­
máquina desse Estado, em que já se vêem os prelúdios de um gelho, que lançá-lo às pedras estéreis por sua natureza” (id). Ficava,
vasto império: e consistindo uma destas colunas em uma Bula assim, definido que a cristianização é um refinamento da civilização
Pontifícia, e as três que restam em outras tantas leis régias, que e deveria vir depois desse primeiro trabalho feito por civis e milita­
V.Exa. achou publicadas e executadas e que constituiram o últi­ res. O Diretório é referido como plano de instrução para a civiliza­
mo e pacífico estado de um tão importante e tão vasto Domínio
ção dos índios. As concepções religiosas que evoca como referencial
[Documentos sobre a Capitania do Pará , fl. 40].
ético para tais reflexões e deliberações adotam o exemplo bíblico
dos Apóstolos.
Está clara a separação de poderes e atribuições, como também
está desperta a consciência de sua articulação como domínios com­
S. Paulo e os outros santos apóstolos é certo que tiveram por
plementares e dependentes. O elemento político da secularização
seara a vocação do gentilismo; este gentilismo porém era o dé
reside justamente em dar fundamentação ideológica a um confronto
Roma, Atenas e outras regiões, que a cultura dos hebreus, dos
pela hegemonia, que acontece entre segmentos sociais no meio colo­ gregos e dos romanos tinha civilizado de sorte, que eram homens
nial, tendo como razão da disputa o controle sobre índios e terras. sociáveis, polidos e hábeis para trato, aos quais só faltava cori-
Estes, todavia, são alguns dos muitos efeitos de um movimento vencer-lhes o entendimento para neles fazer impressão a verda­
maior na Europa que Locke deixa registrado plenamente em seus deira crença, impressão que era verdadeiramente, digo que era
escritos, quando tudo ainda era apenas uma inquietação, uma con­ privativamente pertencente ao ministério sagrado dos apóstolos
testação política formadora de opinião. e dos sucessores na ordem do sacerdócio e do ministério evangé­
A secularização é a reafirmação do Estado sobre as demais lico [id, fl. 40],
instituições. Constitui, nesta circunstância histórica, o ideário de um
pacto vinculando todas as instituições a uma idéia de sociedade civil, Com base nas experiências de persuasão contra o paganismo
ou, mais precisamente, à idéia de civilização que participava do pen­ que as Escrituras imortalizaram, ele dá fundamentação ética ao arbí­
samento dos europeus à época. trio de destituir os missionários regulares do poder temporal que
Se fôssemos inventariar pessoas que escreveram sobre o con­ detinham sobre os índios, além do espiritual permitido e esperado
ceito de civilização, teríamos como fundo comum às variadas formu­ pelas autoridades civis e militares. Separavam-se os domínios, re-
lações a imagem de sociedade civil que se autodefine em oposição à forçando-se cada um pela reafirmação de suas especifícidades.
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios
132 133

Os projetos Quando levantava referências documentais nos arquivos histó­


ricos para composição do material de pesquisa, deparei com algu­
No correr de uma carta escrita pelo ouvidor Lourenço Pereira mas constantes. É significativo o número de textos que propõem ou
da Costa, em 2 de setembro de 1762, escapa-lhe nas entrelinhas uma se intitulam projetos, planos ou reflexões, apresentados sob a forma
concepção aparentemente incompatível com o ideário do governo de parecer, memória, consulta, requerimento, etc, e nos quais se dis­
ao qual servia. Ele sugere, para o crescimento de povoações que corre sobre uma mesma questão que sempre intrigou brancos colo­
estavam principiando próximas a um “sítio das cachoeiras e nizadores, ou seja: qual o melhor modo de aproximação com os ín­
Marabitanas”, que fossem enviados dios, a fim de trazê-los à civilização?
Essas reflexões, desenvolvendo-se em tomo de questões que
três padres cientes da Língua Geral e de gênio dócil para irem tocam os problemas da natureza e das potencialidades do homem e
batizando e catequizando o gentio, formando-se as suas igreji- tendo por finalidade a melhoria da condição humana, constituem
nhas para que o gentio não viva desconfiado de que os querem
projetos. Pensemos a partir de agora que essas reflexões, sendo pro­
amarrar e levar para o Pará, porque entre eles haver igreja e pa­
dres é sinal de permanência, e estabecimento [AHU, cx. 1, doc. jetos, não têm temporalidade; -são, essencialmente, padrões de
ordenamento social ou, nos termos do século XVIII, modelos para a
37].
formação da sociedade civil.
O que se constata no trecho acima é a instituição da primeira Projetar. Os autores de projetos investem-se nessa tarefa imbuí­
autoridade tutelar absorvida pelos índios já ingressos no convívio dos da sensação de estarem realizando a grande obra. Ao mesmo
com civilizados. Aqui se entreve a possibilidade de coexistência de tempo, são motivados pela oportunidade de tudo mudar, quer dizer,
métodos antigos e novos como prova da gradual substituição dás “idear” uma mudança e contar com o apoio da circunstância histó­
experiências. Por um lado, os missionários destacavam-se entre os rica. O Diretório é filiado a esse gênero de esforço humano e, como
colonizadores, gozando de relativa confiança dos índios. Por outro, tal, tem componentes semelhantes, que permitem tratar de um pen­
sando nos outros.
a evangelização tornava-se a primeira experiência de convívio entre
colonizadores e populações nativas, com a qual o autor, ao escrever O primeiro traço comum aos projetos é a amplitude de visão e
de desejo de mudança. No arquivo da Torre do Tombo, há um texto
esta carta, em 1762, em plena voga dos primeiros efeitos da expulsão
de autoria desconhecida e possivelmente do início do século XVIII,
da Companhia de Jesus, expressa concordância (o que é demonstrado,
cujo título é: Projeto em se mostra como fo i o passado, e o presente
por exemplo, em relação ao uso da “língua geral , utilizada pelos
e será no futuro, o Estado do Brasil formando-se uma Companhia
jesuítas para a comunicação entre eles e os índios de diversas proce­
que só ela possa fazer o comércio em África, principalmente o con­
dências linguísticas, apesar das implicações políticas que se discuti­
trato dos negros.
rão mais adiante)
Acima de tudo, é preciso fazer uma observação sobre a filiação
O problema, porém, sempre existiu. Desvendar a natureza do
das idéias deste texto. Trata-se de um papel da administração colo­
índio e, antes disto, encontrar meios propícios à aproximação sem­
nial plenamente identificado como os esquemas do pensamento
pre foi uma preocupação dos colonizadores e da constelação de pes­
mercantilista. Desde as primeiras linhas do texto, o argumento tem
soas que giravam em torno dos negócios da colonização, desde os
como campo de observação a nova conquista a ser explorada — o
práticos, os viajantes, os que iam administrar tarefas na colônia, até
Norte do Brasil, que localiza, difusamente, entre o Cabo do Norte
as pessoas que refletiam abstratamente o problema, escrevendo leis
(Amapá) e o rio da Prata. É sob o olhar a esta vasta extensão de
e políticas. terras que se discorre sobre a natureza das populações nativas, a
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 135
134

conveniência política de tratá-las com amizade e a necessidade de poderemos pôr na terra poderosos exércitos, no mar grossas arma­
criar soluções alternativas, incrementando o transporte de negros da das, daremos leis a toda Europa, seremos temidos em África, res­
costa da África, para que eles viessem trabalhar nas lavouras de açú­ peitados na Ásia e finalmente obedecidos na América.
car e tabaco da América. Assim, no entendimento deste Projeto, su­
geria-se uma divisão mundial de atribuições para cada colônia, o O segundo traço dos projetos é ser uma articulação de diferentes
que de fato ocorreu (ou já devia estar ocorrendo, se o texto for mes­ objetivos em um mesmo programa de trabalho. Melhor exemplo é o
Projeto porque se apontam meios proporcionados porque se poderá
mo do início do século XVHI).
O texto prossegue indicando antecedentes históricos que expli­ reduzir a f é o inumerável número de gentio dos sertões do grande
cam a posição de Portugal na política internacional e no mercado Estado do Maranhão, e com ele, e outros moradores povoar aquele
europeu. A propósito, atente-se para o trecho a seguir, relativo ao grande Estado, que João de Moura põe aos reais pés de S. Majestade,
trauma da anexação de Portugal à Espanha, a fim de melhor que Deus guarde.
dimensionar os valores e as motivações que permeiam este Projeto: Este documento não indica a data em que foi escrito, mas
evidentemente antecede o Diretório, anunciando muitos de seus in­
Quando o Brasil se via no maior aumento e nós os mais flores­ tentas e proposições. Sua relevância é a de serum exemplo do pensa­
centes da Europa no ano de 1578 em que pelo lamentável suces­ mento abrangente que se desenvolve no exercício de estabelecer
so do Sr Rei D. Sebastião, veio esta Coroa ao Cardeal seu tio, e conexões entre questões que, nós, na atualidade, tendemos a vfer
por sua morte, podendo mais as armas, do que as letras, nós nos separadas, para, em exercício subsequente, reunir o que já estaria
vimos debaixo do tirano jugo espanhol [ANTT, Projeto em que reunido. É certo que as conexões existem ou deixam de existir somen­
se mostra como foi o passado e o presente...]. te pela única razão de serem construções culturais condicionadas
pelos processos históricos. Exemplo concreto é este projeto de João
Portugal tinha feitorias em Moçambique, Costa de Coromandel, Moura: converter à fé e povoar eram duas ações inevitavelmente
rios Cuama e Sena, Cabo'Verde, Cacheo, Angola, Bengala, Congo, ligadas no Brasil colonial de até pelo menos metade do século XVIII.
Loango, Beni, Abany, Calabar, Camarão, Gabão, e Cabo do Lago A secularização das aldeias missionadas e a implementação do
Gonçalves. Nestes lugares se faria o “negócio” com o “gentio já Diretório quebram essa concepção de transformação do índio pelo
domesticado”, principalmente o comércio de escravos. cristianismo, tomando o processo religioso uma parte inclusa, um
Sua proposta constitui o que mais tarde se tornou objeto da refinamento de um processo maior — o da civilização. Nos dias
Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, criada pelo Marquês atuais, questões de fé e de povoamento não têm nenhuma conexão e
de Pombal em 7 de junho de 1755: privilégios exclusivos no comér­ são politicamente vistas como domínios separados, conquanto per­
cio entre as colônias portuguesas e o mercado europeu, mandando sista o que o Diretório viria a inaugurar, ou seja, a inclusão das polí­
para a África gêneros que lá têm saída e remetendo desta os negros ticas relativas aos índios nos programas de política econômica.
ao Brasil e a cera e o marfim à Europa. Preocupações mais recentes com a conservação do meio ambiente
A amplitude das pretensões desse Projeto emana desse trecho, talvez tragam de volta o tom humanitário iluminista que permitiu
segundo o qual a Companhia teria direitos de profundas revisões, restituindo aos índios sua natureza e devolven-
do-lhes a soberania de fazer escolhas pessoais e coletivas de cada
comerciar em toda África, abrir nela portos, estabelecer fortale­ etnia.
zas, e cultivar a terra onde lhe parecer mais conveniente, se con­ O projeto que estamos comentando dá os primeiros sinais do
seguirá a introdução dos negros Baros [?] no Estado do Brasil,
que hoje se encontra institucionalizado. O texto tem realmente a
evita-se a extração do ouro na Costa do Marfim [...} sendo outra
vez nossa toda a Costa de África, como era nos tempos passados. forma de um projeto. Descreve a situação, empreendendo uma crítica
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 137
136

à condição jurídica dos índios, sempre vulnerável aos meios escravos índios foi preciso inventar exceções punitivas ao canibalis­
escravizantes de trabalho (tanto pelo colono quanto pelo missioná­ mo, que justificassem moralmente a “guerra justa” e o resgate de
rio e o funcionário colonial). Trabalha a máxima segundo a qual prisioneiros. Segundo, deixando crescer, a partir da noção de “pa­
uma “conquista” se mantém com o povoamento e o cultivo de gêne­ ganismo inocente” do índio, a idéia de menoridade, sobre a qual se
ros em abundância para também servir ao comércio. A aliança com assenta a instituição da tutela,
os “nacionais”, assim como a introdução de escravos africanos no
Brasil constituem um desdobramento da máxima do povoamento. pois por falta de Doutrina não tem mais de razão que Crianças e
São temas encadeados, que necessariamente levam um ao outro, como ainda destas das de menos da razão; são de naturais doces [dó­
que organicamente reunidos por uma razão intrínseca. A liberdade ceis] sem soberba nem ambição porque a de que se contentam e
dos índios e a escravidão dos negros estiveram presentes e apetessem por apetite de Crianças, mas são de boa índole para
tomarem tudo o que lhe ensina [id, parágrafo 13].
coexistentes, ao longo de toda a história colonial do Brasil, como
contradição consciente. Melhor dizendo, a escravidão apresentava-
O texto está impregnado de expressões como “grande obra”,
se aos indivíduos que lhes foram contemporâneos como situação
“grandeza da conquista”, “missão de redução”. São palavras que
inevitável, necessária e sempre existente desde a antigliidade. No
exprimem a magnitude das idéias contidas nesse projeto de João
texto, o autor dirige-se ao rei pronunciando-se contra os requeri­
Moura. Podería sercontra-argumentado que tais expressões são coe-
mentos de colonos que pedem autorização para empreender por conta
tâneas ao texto e que talvez seu emprego fosse comum, não impli­
própria o resgate de índios do sertão. No seu entender, o índio não
cando uma necessária correspondência com seus significados. É pre­
deveria ser destinado à escravidão,
ferível nos determos na primeira observação, por fazer justiça a um
porque além destes gentios serem para pouco trabalho em que propósito realmente amplo e que não permanecia na reflexão sobre
não está habituado com nosso, e é muito apreensivo e desconfia­ a natureza dos índios, mas vinha introduzir e reforçar um efetivo
do da liberdade, e todo fugirá metendo-se pelos sertões de que programa de povoamento. A configuração municipal daí resultante
são filhos apartando-se de nós, e do nosso trato como de cousa é comparável com a existente na atualidade, se nos ativermos à idéia
má [IHGB, arq. 1.1.9, Projeto..., parágrafo 7). de município como estrutura organizada em repartições subordina­
das e dependentes entre si:
O argumento nos parece familiar. O índio deveria ser um alia­
do, adverte o autor, porque, caso contrário, toma-se inimigo que “se Será muito úti! que os distritos do Estado se repartam em provín­
concilia” e se associa a outros europeus com quem os portugueses cias e cada província em comarcas fazendo em cada província
disputavam as terras do Brasil. uma povoação de moradores brancos para cabeça dela e outra em
Nesse contexto de estratégias de conquista e de sua consoli­ cada comarca para sua cabeça: as das províncias bastará por prin­
cípio que se ordenem de trinta casais cada uma, as das comarcas
dação, os índios são povoadores e assim deveríam ser conservados.
de dez casais e o ordenar estas povoaçoes de gente nossa com
A “redução do gentio” teria aqui o sentido da conservação por meio
suas aldeias de índios repartidas a cada uma e com o fim de que
de sua conversão à doutrina cristã. Considerava-se que a falta ou a se dilatem as lavouras dos gêneros por aquelas partes, e também
ignorância da doutrina cristã se refletisse sobre os índios, reprodu­ para que estes índios tenham comunicação e trato com os nossos
zindo a imagem da inocência infantil. Essa idéia é muito forte e está [parágrafo 17].
presente desde o início da colonização e dos problemas de enten­
dimento entre brancos e índios, modelando a condição jurídica do Mais adiante, o autor admite a superioridade numérica dos índios.
índio. Primeiro, isentando-o da escravidão, pois para fazer uso de Nem parece tal fato constituir-se em ameaça. João Moura voltará a
138 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 139
\

tratar da questão relativa ao necessário e contínuo suprimento de preender de um documento embaraçoso, ao mesmo tempo precioso,
escravos africanos para o serviço das lavouras, pois, decisivamente, em péssimo estado de conservação, de difícil leitura, letra ilusoria-
os. índios são “o número principal da povoação do Estado”. É signi­ mente clara, sem data, mas apenas referências históricas a permitir
ficativo observar que, no caso, a palavra “povoação” tem o sentido sustentar a imprecisa e larga localização temporal no século XVII e
de ato de povoamento, a ação de povoar, e não o resultado, o núcleo que, antecedendo o Diretório, é trabalho original, pioneiro, na asso­
surgido, como costuma ser empregada. ciação do processo de civilização dos índios ao da colonização como
Como vimos no trecho anterior, o povoamento teria a contribui­ ação abrangente, inclusive povoadora.
ção fundamental do colono português. Ainda que numericamente O terceiro traço a destacar é a direção. Os projetos são consti­
minoritário, ele participaria servindo de exemplo de civilidade e tuídos por um conjunto de metas que servem de guia de ação. Como,
autoridade. Faria engrossar as povoações que seriam cabeças de pro­ em geral, destinam-se a orientar construções sociais, suas diretrizes
víncias e de comarcas. É interessante a referência, a título de suges­ têm o cunho de cartas de identificação, sendo, pois, instrumentais
tão, feita pelo próprio autor, pensando na contabilidade de seu pro­ aos processos de construção de nações.
jeto e em tomá-lo realizável. Ele sugere que fossem buscados “casais” As instruções coloniais são como projetos. São regulamentos
nas ilhas dos Açores, para virem compor essas povoações, cabeças que têm a grandeza de orientar a instalação de governos, criando
das províncias e comarcas e, juntamente com as respectivas popu­ uma economia compatível com o meio ambiente e com as popu­
lações, estudarem maneiras razoáveis de fixar preços da terra e lações trabalhadoras; organizando o povoamento e a edificação de
despesas gerais mediante um sistema de “consignação” (id, pará­ cidades, o relacionamento com a população nativa, o convívio social,
grafo 22). segundo leis fundadas em alguma tradição de direitos e costumes.
A presença de habitações indígenas nas proximidades dessas Todos esses tópicos são metas, a longo prazo, de construção de na­
povoações completa o plano de povoamento, que traz a novidade ções, embora possam confundir-se organicamente com qualquer es­
ou, pelo menos, destaca o convívio com colonos brancos como a tatuto organizador de associações específicas e menores. A estru­
melhor maneira de dar aos índios noções de civilidade, a doutrina tura é a mesma.
cristã e o aprendizado da habilitação ao trabalho. Insisto em dizer O momento é oportuno para o questionamento da efetividade
que o Projeto de João Moura era uma novidade, tendo em vista o dos projetos, especialmente as vastas projeções representadas por
contexto do Brasil colonial de experiências que antecedem o Diretório construções de nações. Pergunto se são construções mentais, inventos
e nas quais a ação civilizadora sobre os índios, empreendida pelos de laboratório, ficções literárias, ou se de fato pretendem provocar
missionários regulares, tendia a resguardá-los de um convívio per­ acontecimentos, configurar situações históricas e condicionar pro­
manente com os brancos. Este é justamente o ponto de partida do cessos sociais. As instruções que apresentamos a seguir são material
Diretório dos Índios: os índios são trazidos para dentro das povoa­ apropriado a esse exame.
ções civilizadas. As Instruções régias públicas e secretas foram dirigidas a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, quando este recebia o encargo
Mas poder-se-á discorrer que esta grande obra poderá encontrar de servir ao rei como governador e capitão-general do Estado do
com tantas dificuldades que não possa ter efeito como em todas Maranhão e Grão-Pará. A data do documento, 31 de maio de 1751,
que são grandes [id, parágrafo 25].
pode ser aqui gravada como o começo de um programa de govemo
específico para o grasil, com metas de fortalecimento da economia
E evidente que o autor tinha consciência de estar elaborando um
colonial, promoção da defesa territorial e um esforço de ocupação
projeto de construção de uma nova sociedade. E o que se pode de­
das regiões do Norte.
140 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 141
11
As Instruções recebidas por Mendonça Furtado não apenas anun­ contágio, além da utilidade que eles teriam nas atividades internas
ciam o novo programa de governo, como provocam esta nova situa­ da localidade. Outra recomendação que vinha ao encontro das inten­
ção. A fórmula do projeto de João Moura é retomada aqui, no se­ ções de dilatar o povoamento e que coincidia com a orientação menos
gundo parágrafo, definindo desde já o lugar que ocupa o índio nas autoritária era a de que os índios recém-contactados fossem sendo
questões do Estado. aldeados em suas próprias terras.
Mais que deliberações, as Instruções pretendiam orientar o
O interesse público e as conveniências do Estado que ides gover­ comportamento do político Mendonça Furtado no ambiente em que
nar, estão indispensavelmente unidos aos negócios pertencentes se deveria implantar uma nova situação. Ao tecer tais considera­
à conquista e liberdade dos índios [em Mendonça, 1963, p. 26]. ções, as Instruções indicam ciência, reconhecimento de que se enrai­
zara na população branca do Brasil, entre funcionários da adminis­
Em seguida, passa a tratar da maneira de conduzir as relações tração colonial, indistintamente civis, militares e religiosos, o costume
com os índios, começando pela proibição do cativeiro, o pagamento m
de escravizar índios, tendo por base leis que legitimavam a institui­
de seus serviços em jornais e um tratamento com “humanidade”. ção como forma de punição corretiva a transgressões morais.
a M
Impressiona perceber que essas deliberações, em que são detalhadas Tratava-se de reformular intemamente a compreensão, por par­
as normas para novo comportamento do branco em relação ao índio,

te do branco, da natureza do índio e suas manifestações culturais li
ocupam todo o espaço das instruções recebidas pelo governador. Os singulares, a fim de que se viabilizasse a idéia de tomar os índios 11
fy !
índios constituíam a população que seria a base para a aplicação do livres. r : •i
novo programa de administração do Brasil, principalmente das áreas Para tanto, no texto das Instruções são referidas as providências
de fronteira entre os domínios português e espanhol. já adotadas, a partir de um decreto de 28 de maio do 1751, que man­ |i.;
Àssim, para viabilizar o propósito de conservar os índios em dava os moradores trabalharem as terras por conta própria, ou com
liberdade, seria preciso preparar formas alternativas de suprimento o auxílio dos índios, mediante o necessário pagamento de jornais. |
íjí;
de trabalhadores. Novamente as fórmulas encontradas no projeto de A nova situação visava, em especial, aos que viessem povoar o Grão-
João Moura se repetem. As instruções que Mendonça Furtado rece­ Pará: ii
beu ponderam que este fosse preparando o ambiente moral e mode­ ' :- q l !
lando pouco a pouco o comportamento das pessoas para aceitarem Com os novos povoadores que mando desta Cidade [as Instruções Hilllii
as mudanças. Convencer os colonos sobre o uso maior de escravos foram assinadas em Lisboa] e das Ilhas [Madeira, Açores] para o •"í

negros e exigir o estabelecimento de relações contratuais de traba­ Pará, será muito conveniente e útil que, quando os estabelecerdes,
lho com os índios eram as exigências e as condições primárias para cuideis muito que eles sigam a sua condição, acostumando-os ao
dar início ao novo programa de governo que vinha instalar-se no trabalho e cultura das terras, naforma que praticavam nas Ilhas;
porque, não sendo diferente o gênero de trabalho e indo acostuma­ :
Grão-Pará.
dos a ele, não há motivo para que não cultivem pelas suas mãos
Uma efetiva preocupação com os índios, em termos de taxas
as terras que se lhes repartirem, evitando-se assim uma ociosida­ ■>:>I
demográficas, é resultado do reconhecimento dos efeitos de epide­ de muito prejudicial [id, p. 29].
mia causada pelo contágio com doenças transmitidas pelos brancos.
Além de uma mudança no tratamento dado aos trabalhadores índios, Está imanente nessas Instruções que a resolução régia mandan­
o documento sugeria métodos menos contraditórios em relação a do alterar, de modo substancial, o comportamento do colono em re­
sua natureza. Cuidou-se, por exemplo, de sugerir que os índios não lação ao índio requeria lenta maturação. Um ensaio geral necessaria­
fossem retirados arbitrariamente de suas aldeias para o serviço pú­ mente antecedería a nova situação em que os índios seriam liberados
blico executado fora, levando-se em conta a possível exposição ao

nú\
i i liuíii-.t*
142 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 143

da escravidão e equiparados a qualquer colono ou vassalo da Coroa Este trecho confirma que a “repartição entre César e Deus”
portuguesa. tinha o propósito político de fortalecer as representações e ações do
Estas Instruções regem a preparação, instruindo Mendonça Fur­ Estado, exatamente nas áreas de discussão sobre domínios territoriais
tado sobre a mudança de postura por parte de todos os segmentos entre Portugal e Espanha. Da análise deste trecho fica evidente que
sociais que lidavam diretamente com os índios, a começar pela pró­ não seria a presença de atividade missionária que podería influir na
pria administração colonial, que os recrutava para o “real serviço” definição de fronteira, mas a nacionalidade e a afinidade ideológica
em desatenção ao crescimento natural das “aldeias livres”.' Outro dos religiosos com o projeto colonizador de Portugal ou de Espanha.
segmento envolvido são os moradores. Seriam estes, conforme os Daí, a redução do poder temporal dos missionários sobre os índios,
padrões da época, os que declaradamente praticavam formas mani­ sem destituí-los das obrigações espirituais. Ao tempo dessas Ins­
festas de escravidão de índios em suas lavouras e expedições truções, cabería ainda aos missionários a tarefa de ensinar e doutri­
extrativas, ou. a mantinham velada e acobertada pela agregação ser­ nar os índios nas aldeias construídas ou remodeladas para este fim.
vil, ao meio doméstico, de indivíduos isolados, destribalizados — É significativa a recomendação “de se aldearem os índios, especial­
principalmente mulheres e crianças índias. Por fim, os missionários, mente nos limites das capitanias” (ib, p. 35).
vistos nas Instruções como os detentores dos meios apropriados de Esta recomendação relaciona-se intemamente com a que vem
civilizar índios, mas excessivamente poderosos por disporem dessa em seguida, no que diz respeito ao estudo das possibilidades de esta­
exclusiva competência, havia dois séculos a eles atribuída. belecer comunicações entre o Grão-Pará (que ainda abrangia a futu­
O quadro requeria, portanto, transformações na conduta desses ra Capitania de São José do Rio Negro) e o Mato Grosso. Essas
segmentos sociais e já anunciava, pela crítica à postura de cada um regiões eram vizinhas e fronteiriças ao domínio espanhol e compar­
em relação aos índios, quais mudanças deveríam acontecer. Assim, tilhavam a dificuldade de estarem distantes do mar e desguarnecidas
as Instruções orientam o governador Mendonça Furtado para que da presença portuguesa. Neste contexto, uma antiga estratégia volta
fosse observando, no campo da administração dos índios, a disposi­ a ser pensada, pois vinha a propósito de um desafio de outra forma
ção, a aceitação ou a resistência às providências relativas à seculari- impossível de vencer, qual seja, povoar a extensa fronteira com os
zação que haveríam de ser implantadas num futuro próximo:
próprios nativos.
Como à minha real notícia tem chegado o excessivo p o d er que Estas Instruções dirigidas ao governador Mendonça Furtado,
têm nesse Estado os Eclesiásticos, principalm ente no domínio como qualquer outra documentação com a finalidade de orientar
temporal nas suas aldeias, tomareis as informações necessárias, funcionários da Coroa nos mais diversos empreedimentos da colo­
aconselhando-vos com o Bispo do Pará, [...] se será m ais conve­ nização do Brasil, têm o cunho dos projetos. Trata-se de documento
niente ficarem os Eclesiásticos somente com o dom ínio espiri­ que respira as discussões geradas pelo Tratado de Madri acerca da
tual, dando-se-lbes côngruas por conta da minha Real Fazenda, fronteira norte entre os domínios coloniais de Espanha e Portugal na
para cujo fim deve-se considerar o haver quem cultive as mesmas América. Há, inclusive, recomendações específicas ao governador
terras, do que fareis todo o exame para me informades, averi­
para que fosse observando “os discursos que se fazem sobre o Trata­
guando também a verdade do fato a respeito do mesmo poder
do de Limites e a execução da divisão dos domínios” (id, p. 37).
excessivo e grandes cabedais dos Regulares [id, p. 30].1
Portanto, convém examinar mais um projeto que foi escrito na
1 “Aldeias livres” é expressão ambivalente. São justamente as aldeias construídas
mesma época, com os mesmos objetivos de ocupação, desta vez
pelos colonizadores com destino aos “índios católicos e livres”, entendendo-se tendo em vista a outra extremidade — a fronteira sul dos mesmos
aqueles indivíduos conversos ou propensos a converter-se à doutrina cristã, ao domínios. Trata-se das Instruções dirigidas a Gomes Freire, em 21
contrário dos “índios de corso” sujeitos à “guerra justa” e à escravidão como de setembro de 1751, para orientá-lo na função de comissário da
transgressores das leis dos reis e da Igreja.
execução do Tratado de Limites. Esse documento dá continuidade
144 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 145

às deliberações anteriores, retomando a análise do papel estratégico dade de propósitos, ainda que cada uma delas tenha levado em conta
do índio na defesa da fronteira. Entre as ponderações que visavam realidades regionais particulares. Isto se deve à identificação de cer­
delinear a postura portuguesa em face das discussões sobre limites, to número de princípios qiie desde o início deram sustentação às
é colocada em questão a validade de Portugal receber aldeias Guarani ações colonizadoras em terras do Brasil, principalmente nas áreas
(Sete Povos) em troca da Colônia dó Sacramento. Ponderava e dos limites. Em poucas linhas repetem-se, no conjunto da documen­
alertava o comissário para a necessidade de verificação da validade tação colonial, as seguintes proposições: 1. proibição de manifesta­
desta cessão, por ver na amizade dos índios o aspecto decisivo das ção de sentimentos segregadores entre portugueses e índios; 2. incen­
controvérsias sobre os domínios territoriais. No caso, os índios das tivo aos casamentos entre si, mediante prêmios, graduações e
referidas aldeias faziam resistência ao domínio português, por esta­ privilégios; 3. implantação de povpações, a exemplo do modelo euro­
rem identificados com o trabalho missionário dos jesuítas de nacio­ peu, contando, desde cedo, com governos formados e recrutados entre
nalidade espanhola. Diante desta desvantagem política dos portu­ os próprios habitantes.
gueses junto aos índios, este documento sugeria que o exemplo do A partir da segunda metade do século, estes princípios, que
inimigo fosse imitado. Parece-nos fundamental a transcrição do se­ objetivam a incorporação dos índios aos processos econômicos,
guinte trecho para fixar o argumento: tomam-se instrumentos oficiais da colonização. A inclusão do índio
ao processo permitiu delinear, desde aquela data, a extensão territorial
E como este grande número de gente que é necessário para povo­ da fronteira do Brasil.
ar, guarnecer e sustentar uma tão desmedida fronteira não poder Conforme a Relação por mapa dos governadores (BA, 54.XI.27,
humanamente sair deste Reino e Ilhas adjacentes; porque ainda n° 17), foi com os olhos voltados para tal circunstância que Men­
que as Ilhas e o Reino ficassem inteiramente desertos isso não donça Furtado “indicou os principais fundamentos para a formação
bastaria p a ra que esta vastíssima raia fo s s e povoada-, não só
do Diretório dos índios”.
julga S.M. necessário que os vassalos do mesmo senhor, Renículas
e Americanos que se acham civilizados, mas que também o que
V. Ex. estenda os m esmos e outros privilégios aos Tapes que se
estabelecerem nos dom ínios de S.M., exam inando as condições
que lhes fa ze m os padres da Companhia E spanhóis , e conceden­
do-lhes outras à mesma imitação, que não só sejam iguais, mas
ainda mais favoráveis; de sorte que eles achem o seu interesse
em viverem n os dom ínios de P ortugal a n tes do que nos de
Espanha [em Mendonça, 1989, p. 297].

Aqui os jesuítas espanhóis são incorporados aos exemplos his­


tóricos (clássicos) de conquista e colonização, tais como os roma­
nos em relação aos sabinos, Afonso de Albuquerque e a experiência
povoadora que realizou na índia Oriental, os ingleses e o seu exem­
plo de colonização na América Setentrional. Estes exemplos são
exaustivamente retomados em quase toda documentação do gênero,
como se os seus autores fizessem transcrições literais. O que vem
confirmar que a preocupação central com estratégias de ocupação
da fronteira imprime às instruções então expedidas uma uniformi­
Segunda parte

As T ra n sp o siçõ e s
Capítulo 5

Um p rojeto em experim entação:


o D iretório dos índios

Até este ponto, viu-se o delineamento de uma “matriz cultural”,


onde se formaram princípios que embasaram o Diretório. Recortou-
se um Diretório de aspecto muito antigo. Suas idéias comparecem
essenciais no todo e no mais primário sentido de organização social.
Entretanto — e é o que veremos nesta parte que se inicia ~=, há no
Diretório um acento particular, que o toma novo diante dos demais
regimentos de mesma natureza. Ou seja, o Diretório foi um dos ins­
trumentos de trabalho de um programa de governo que lutou por
profundas reformulações nas instituições. A literatura sobre a época
das Luzes e do despotismo esclarecido, que aqui ambienta nossos
dados, registra um estado de espírito que aspira por mudanças e crê
nesta possibilidade, implantando projetos de construção de mundo.
A expressão “grande obra” é um dado do discurso do colonizador
que revela a convicção dos autores na viabilidade de seus projetos.
Exprime uma contemporaneidade de idéias e planos de construção
de mundo com a abrangência daqueles levados avante em toda a
Europa Ocidental.
Em Portugal, esta situação começa a esboçar-se ainda no século
XVn, tomando-se realidade no reinado de D. José e de seu ministro,
o Marquês de Pombal. Sob o gabinete pombalino são colocadas em
prática experiências diversificadas de finalidade reformista e até
mesmo criadora. As mudanças permeiam todos os setores da socie­
dade. Em alguns, conservam os procedimentos tradicionais, dos quais
150 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 151

são exemplos as companhias de monopólio com capitais privados e terremoto, austera, racional, geométrica, expressão do pensamento
direção do Estado, que foram criadas para estimular a produção do estético da época. Ou, tomando outro exemplo, tomou possível a
Reino e o comércio colonial (a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, construção, em dois anos, da Vila Real de Santo Antônio, criada nò
1755, por exemplo). Em outros setores, a modernização incidiu sobre Algarve em atendimento aos interesses ligados às.atividades maríti­
a administração das finanças, tendo sido reformulado o sistema de mas, e construída no terreno de uma povoação homônima e já desa­
arrecadação das receitas do Estado, criado o Erário Régio e o Banco parecida (Correia, 1984, pp. 81-88). Em ambos os casos, contou-se
Real (Saraiva, 1988; Sérgio, 1989). com o treinamento das “Aulas de Fortificação”, que tiveram como
Na formulação do programa de governo colaboram Antônio campo de aplicação a índia, a África e o Brasil, além da experiência
Vemey, Ribeiro Sanches, Francisco de Lemos, João Pereira Ramos, urbanística acumulada pela “Casa do Risco das Obras Públicas”,
Cenáculo, Vandelli é muitos outros homens cultos, portugueses e especialmente no que se refere “às técnicas de pré-fabrico e estandarti-
estrangeiros, que afluíam a Portugal atraídos pela configuração de zação” praticadas a partir da reconstrução de Lisboa (Correia, 1984,
situações políticas mais favoráveis a quem criticara a Inquisição pp. 82, 87 e 88; Moreira, 1984, p. 142). Experiência de tradição
portuguesa e fora perseguido por ela, embora o que se passou no muito antiga, que chega ao Brasil e tem seu melhor exemplo no tra­
governo do Marquês de Pombal estivesse longe de configurar uma çado da cidade do Rio de Janeiro, tomada capital em 1763. Certa­
situação de livre expressão política e religiosa. Pertencem ao mes­ mente, a mesma que Antônio Landi e Filipe Strum trouxeram para
mo período motins populares e insatisfações de setores da nobreza e implantar a Amazônia portuguesa, onde existiam missões religiosas
da Companhia de Jesus. Contudo, não há a negar que a presença e habitações indígenas.
desses intelectuais na elaboração do programa do ministério pomba- O Diretório dos índios harmoniza-se com este programa, tendo
lino garantiu a realização de experiências inovadoras no campo das sido escrito para a realidade da Amazônia na circunstância condicio­
instituições educacionais. Aspirações de secularização e fortale­ nada pela necessidade de dar execução às decisões definidas pelo
cimento da monarquia animaram as reformas promovidas nos esta­ Tratado de Madri, com respeito às possessões e limites de Espanha e
tutos do “Colégio dos Nobres” e da Universidade de Coimbra. Portugál na América do Sul.
Melhoramentos no campo da educação primária e secundária De volta à metáfora sobre o que leva um viajante em sua baga­
representaram o primeiro impulso para a institucionalização do en­ gem, veremos os autores do tempo do Diretório tratarem assuntos
sino público. A criação da Real Mesa Censória, atribuindo à censura coloniais com uma certa familiaridade e facilidade em lidar com
critérios mais políticos do que religiosos, favoreceu o crescimento grandes blocos de questões integrantes de um sistema que compre­
das artes e das ciências, na medida em que permitia a Portugal ende o monopólio de Portugal sobre o comércio da produção de suas
conhecer autores proibidos pela Inquisição portuguesa. Exemplo colônias, a sua conexão com o mercado europeu e o lugar político
maior de renovação social ocorre sob a guarda da legislação. Seriam que detinha na inter-relação com outros países europeus. Veremos
tomadas leis a abolição da escravidão em Portugal, a proibição de os documentos apresentarem o problema do relacionamento com os
discriminar judeus mediante a distinção entre cristãos-novos e cris- índios como uma peça deste sistema que devia atuar em sintonia
tãos-velhos e a liberdade dos índios do Brasil. com o funcionamento geral. É neste contexto que os autores destes
Não se podería imaginar tais inovações, não fosse este recurso à documentos são os atores da cena histórica que registram. Expres­
legislação de que, com frequência, o ministro Marquês de Pombal sam a visão de postos estratégicos do sistema geral. São os olhos e
lançou mão, promovendo transformações súbitas sobre o que so­ ouvidos do rei em todos os pontos do sistema.
mente podería efetivar-se espontaneamente a longo prazo. Ainda Inicialmente aqui se analisará a circunstância histórica que ser­
assim, é quase visível — e não há como discordar — que uma viu de ponto de partida para a formulação do Diretório. Em seguida,
vontade de grupo, um esforço concentrado, fez Lisboa ressurgir do o enfoque será o próprio Diretório, tomando por ângulos de visão
152 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 153

aspectos que o caracterizam, primeiro, como modelo da tutela observações foram fundamentais para a elaboração do Diretório dos
exercida pelo Estado; segundo, como regimento de trabalho entre índios e para um programa maior de ocupação da região, no qual se
índios e brancos e, terceiro, como plano dè povoamento. Ao final, inserem a criação da Capitania do Rio Negro (3 de março de 1755),
discute-se a efetividade do Diretório como projeto colonizador. o estabelecimento da Companhia do Grão-Pará (7 de junho de 1755),
a introdução da agricultura intensiva e a secularização das aldeias
missionadas pelas ordens regulares.
O contexto do Diretório Falemos mais do principal objeto, qual seja, o quadro de expec­
tativas e de afinidades entre os segmentos sociais existentes ao lon­
Afirmei há pouco que o Diretório pertence ao gênero de criação go da fronteira onde deveria ser implantado um governo português.
que dá vazão ao desejo de mudança inspirado em modelos ideais e Estava em discussão o traçado da fronteira entre os domínios
na vontade de tomá-los realidade. Há duas grandes razões para sen­ espanhol e português, na área de govemação de Mendonça Furtado.
tir desta maneira o objeto: a primeira, por sua própria natureza de Em conseqüência, formavam-se, do ponto de vista ideológico, as
projeto de construção social e a segunda, pela demolição que impli­ afinidades de cada um deles. Esta situação iria reformular a maneira
cava, ou que julgava ser preciso fazer para instalar a mudança. Sufi­ de o colonizador ver as populações indígenas habitantes dessas áreas
ciente material embasará aqui as direções tomadas, as distâncias e em processo de definição.
as diferenças existentes entre o modelo e o acontecimento. A correspondência entre funcionários coloniais, o Conselho
Diretório, que se deve observar nas povoações dos índios do Ultramarino e o ministro do Estado, coligida por Marcos Mendonça
Pará, e Maranhão, assinado em 3 de maio de 1757 por Francisco (1963), registra tal momento.
Xavier de Mendonça Furtado, teve suas diretrizes aprovadas por força Instalado no Arraial de Mariuá, escrevia Mendonça Furtado ao
do Alvará de 17 de agosto de 1758. Aplicado, primeiro, ao governo irmão Pombal — a esse tempo, Conde de Oeiras —, informando-o
das povoações indígenas do norte e, depois, recomendado como da resistência manifestada pelos padres da Companhia de Jesus em
expressão única do comportamento do colonizador em relação aos aceitar a nova situação decorrente da promulgação da lei que resti-
índios do Brasil, o Diretório foi lei geral até sua extinção pela Carta tuía a liberdade aos índios. Em tom pessoal, como que escrevendo
Régia de 12 de maio de 1798. um diário de campo, relata ao irmão-ministro que os padres da
O documento começa a ser escrito a partir das primeiras instru­ Companhia andavam publicamente a pregar contra as liberdades
ções de Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, a dos índios e a conclamar a quem fosse dono de escravos que resis­
seu irmão, o governador do Grão-Pará, Francisco Xavier de Men­ tisse às deliberações régias relativas à abolição da escravidão.
donça Furtado, para que assegurasse as conquistas territoriais atu­ Nessa carta, Mendonça Furtado encaminha um “papel” por ele
ando nos limites dos domínios português e espanhol (Carta de 31 de escrito, no qual pretendeu mostrar quão distantes estavam os jesuí­
maio de 1751, em Carneiro de Mendonça, 1963, p. 37). Conhecer o tas de sua época em relação aos ensinamentos pregados em Vozes
quadro de expectativas das populações habitantes da fronteira, daí Saudosas, por Antônio Vieira. O governador havia demonstrado certa
identificando manifestações de afinidade ideológica favoráveis aos relutância em divulgar este “papel”, no qual expõe suas reflexões a
portugueses ou espanhóis, foi o principal objeto do novo governa­ respeito da natureza das relações entre índios e colonizadores na
dor (id, p. 37). De 1751 a 1759, Mendonça Furtado atuou como área da fronteira norte do Brasil. Ao que parece, porém, não o guar­
r • :.=
representante plenipotenciário dos interesses da monarquia portu­ dou por muito tempo. Ele o encaminharia, em caráter confidencial, ! ;5
guesa, governando os Estados do Maranhão e Grão-Pará e supervisio­ ao bispo do Pará e, depois, a Pombal, por meio dessa mesma carta Lí
escrita no dia 8 de julho de 1755— um mês após ter sido promulgada !\ \ i
nando a execução do Tratado de 1750. Durante este período, suas . 1I
a Lei das liberdades dos índios, em 6 de junho de 1755. Dois dias,
154 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 155

um mês, dois meses fazem pouca diferença, numa época em que a pura reflexão sobre a realidade colonial. Há opinião. O texto está
correspondência era transportada por navios e animais de carga. Mas impregnado de convicções e compromissos, pelo fato de seu autor
a maneira como tal correspondência se apresenta a nós, leitores con­ ser um protagonista da situação que narra. Representa o lado portu­
temporâneos, ou seja, uma documentação em tramitação admi­ guês, que observa essa realidade enquanto aguarda o comissário espa­
nistrativa que aglutina assuntos diversos e está sempre referenciada nhol para dar início às conversações sobre a execução da demar­
a outros papéis antecessores, confirma a suposição acerca de uma cação da parte norte da fronteira entre os dois países. A própria
realidade em que muitas vezes as cartas chegavam em malotes, de expressão “Arraial de Mariuá ou do Rio Negro” — segundo Aurélio
uma só vez, contendo uma série diversificada de providências, deci­ Buarque de Holanda Ferreira, de ar + reial, hoje real, do rei — , pou­
didas em datas distintas e que, reunidas, compunham um programa co comum na toponímia da Amazônia e que nessa época designa
de ações interligadas. Não é a precisão cronológica que dá significa­ acampamento militar, tropas em campanha, é demonstrativa de uma
ção a essa troca de cartas e, sim, as impressões transmitidas a Portu­ singular situação geopolítica, que teve a qualidade de vir a ser a
gal a respeito da realidade dos segmentos sociais que viviam na fron­ experiência que fixaria o procedimento utilizado para toda a reali­
teira norte do Brasil. É a consciência dos representantes da monarquia dade indígena no Brasil, a começar nesses primeiros anos do reina­
portuguesa, no que concerne a um quadro colonial, pue interessa do de D. José, quando é criado o Diretório.
captar, porque nela se esboça a justificativa para a adoção de novas Nesse Papel o índio é situado na discussão como uma questão
leis que implicariam um profundo remanejamento no poder, em par­ relacionada com a ordem do povoamento. Preocupa-se o autor em
ticular, a expulsão dos jesuítas, que daria lugar aos “diretores”. localizar as razões da mortandade dos índios. Cita um dado forne­
Esse documento comentado por Mendonça Furtado é um bom cido pelo Padre Antônio Vieira, segundo o qual, em 1615, entre São
exemplo. Intitula-se Papel acerca da liberdade e resgate dos índios Luís e Gurupá, tinha-se como probabilidade encontrar uma popula­
(AHU, cx. 1, doc. 11). Foi escrito em 20 de abril de 1755, no Arraial ção guerreira em torno de cinco mil arcos e que, em 1652, já estaria
de Mariuá, alguns meses antes da edição da lei sobre a liberdade aos reduzida a menos de oitocentos índios de armas.
índios e dois anos antes de ser escrito o Diretório, podendo, portan­ Para Mendonça Furtado, esta redução foi resultado direto do
to, ser aqui considerado material de reflexão para os legisladores de modo como os índios vinham sendo tratados desde o início da colo­
Dom José, que elaboraram leis relativas à secularização das aldeias, nização. Ele discorre, então, sobre a questão do resgate e da liber­
à libertação dos índios, à regulamentação dos casamentos entre por­ dade dos índios, primeiramente considerando-a “matéria da consciên­
tugueses e índios, à implantação da língua portuguesa e ao próprio cia”, para ao final do texto retomá-la e dar-lhe um tratamento político.
Diretório, que aglutina todas estas medidas. Na primeira postura, como cristão, Mendonça Furtado questio­
Com o propósito de definir melhor a natureza deste Papel, dir- na a ambiguidade das leis que tratam da condição jurídica dos ín­
se-ia que ele é um texto informativo que estimula a reflexão e tem dios. A propósito, faz uma retrospectiva histórica, localizando a situa­
por função form ar a opinião. As motivações pessoais do autor não ção em que se fez necessário criar leis que permitiam exceções a
destoam das expectativas oficiais. Ele não estaria fazendo outra coi­ uma intenção geral de conservação das populações nativas do Bra­
sa senão acatar a recomendação régia, no que diz respeito a observar sil, e exemplifica com a constituição de “tropas de resgate” de índios.
afinidades ideológicas e possibilidades de adesão aos programas Segundo o governador, essas “tropas de resgate” eram criadas com o
colonizadores conduzidos pela monarquia portuguesa. O valor des­ intuito de atender à demanda por mão-de-obra escrava e, ao mesmo
se texto reside em haver transformado a discussão européia sobre a tempo, manter sob controle oficial o tráfico decorrente. Contudo,
humanidade do índio e seu lugar na civilização ocidental em tópico não parece terem atuado em conformidade com as leis que as regu­
da política colonial e, como tal, examinado sob a ótica de quem lamentavam. Ele observa, por exemplo, que as mesmas leis que tor­
vivenciava as relações entre colonizadores e índios. Há mais que navam legítimos certos casos de escravidão haviam generalizado a
Rita Heloísa de Almeida
O Diretório dos índios 157
156

prática. Seguramente, ele se refere ao Àlvará de 28 de abril de 1688, está aprendendo. Ele desqualifica o trabalho dos missionários que
que autorizava a escravidão de índios quando fossem prisioneiros lhes são contemporâneos e reafirma sua afinidade conceituai com as
doutrinas e procedimentos dos mesmos missionários, os primeiros
de guerra, condenados ao canibalismo, ou rebelados por questões
religiosas e políticas. Percebia Mendonça Furtado que essa situação que ao Brasil chegaram.
era forjada para dar justificação morai à prática generalizada de
Entrè todos os Doutores desta Sagrada Religião, [refere-se à Com­
escravização de todo e qualquer índio encontrado por tais expedi­
panhia de Jesus enquanto congregação] me servira de guia para o
ções oficiais respaldadas por leis de exceção. Citando Padre Vieira,
acerto, o Venerável Padre Antônio Vieira, e não buscando outra
Mendonça Furtado instiga em nós o questionamento de realidades autoridade alguma, só seguirei a este grande Mestre, para mos­
históricas, ou ditas históricas, como transparece neste breve trecho: trar que não pode haver um único índio, não só neste Estado, mas
“Mas os mesmos oficiais da Câmara, confessam nas suas cartas, que em todo o Brasil que possa ser escravo [Papel, parágrafo 8, fl. 6).
os índios de corda quando muito poderão ser vinte, ou trinta...” (Pa­
pel, 1755, fl. 18). O objeto de questionamento não é, portanto, o conhecimento acu­
Duvidando da validade dessas leis que permitiam a escravidão mulado pelos missionários na prática de evangelização dos índios
sob o argumento moral da correção da fé e dos costumes bárbaros, desde o início da colonização. Mendonça Furtado insere no texto as
ele deixa no ar a pergunta sobre se de fato existiam índios nestas doutrinas do Padre Antônio Vieira, contidas no livro Vozes saudo­ . i
condições e, caso afirmativo, que relevância teriam com tão reduzi­ sas, especialmente as partes conhecidas como “Doutrinai, Política e i
da representação numérica. Ele conclama a consciência cristã geral, Zelosa”, e aconselha sua leitura a Pombal, por identificar ali expli­
principalmente a dos missionários, que no seu entender estariam ali­ cações para o comportamento omisso e, às vezes, explicitamente
mentando situações de abuso naqueles casos em que era permitido favorável à escravidão por parte dos missionários de sua época.
tomar escravos os índios, contrariando, assim, uma tradição começada Não foi possível localizar essa leitura (talvez tenha chegado à
pelos primeiros religiosos e que sempre pautou pela conservação: nossa época sob outros títulos), mas, pelas anotações e transcrições
feitas pelo próprio Mendonça Furtado do Vozes Saudosas, denota-se
Conservaram-se os ditos religiosos até o fim do ano de 1751, muito mais uma postura contestadora contra o uso exacerbado de
praticando, e defendendo as doutrinas que seguiram os seus exceções permitindo resgates que propriamente um subliminar estí­
doutos, e Veneráveis Padres, em defesa das Liberdades. Daquele mulo a formas de escravidão. Entretanto, Mendonça Furtado insiste
ano porém para diante, mudando inteiramente de Sistema, segui­ nesse aspecto da não adesão dos jesuítas ao programa colonizador
ram opiniões contrárias e tanto que, em uns. atos públicos, nos português1.
quais proclamavam Liberdade alguns índios escravos do Colé­ Nesse jogo de palavras, em que é revalidada a autoridade de
gio [uma instituição de ensino da Companhia de Jesus) estabele­
Vieira e ao mesmo tempo são condenados os padres posteriores,
ceram como doutrina certa que os índios Ocidentais eram verda­
deiros escravos, e que não podiam deixar de ser cativos todos até
conforme ao Direito Divino [Papel, parágrafo 6, fl. 5). 1 Vejam-se, principalmente, as duas cartas reproduzidas em A Amazônia na Era
Pombalina. Na primeira, Mendonça Furtado considera Vozes saudosas uma fon­
te para entender o domínio que chegou a ter a Companhia de Jesus no Grão-Pará
Constatam-se, neste trecho, uma denúncia e um posicionamento
e, na segunda, afirma que no mesmo livro há doutrinas fomentadoras de sedições
político. Há, em todo o texto, uma preocupação de indicar falhas, contra a monarquia e favoráveis à conservação dos índios em estado de escravi­
apontar alterações e, em especial, dar legitimidade ao procedimento dão. Há que notar, inclusive, que a autoria de Vozes saudosas não está claramente
que se queria implantar em substituição ao missionário — no caso, definida. Na primeira carta, a autoria é atribuída ao Padre Vieira; na segunda,
objeto de crítica e graves acusações. É de extrema ambivalência a parece que este havia compilado papéis do padre André de Barros (Mendonça,
1963, pp. 736-737 e pp. 856-857).
postura de quem quer abolir uma experiência, mas com ela ainda
158 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 159

entrevê-se um exercício peculiar de racionalização que personificou gos daqueles, e que só estão detidos enquanto se não apresenta
o político construtor de estratégias que foi Mendonça Furtado. Sua ocasião de mostrarem o seu ânimo de haver corpo que os proteja,
intenção não foi eliminar uma doutrina tão necessária à continui­ e ampare, para se declararem e mostrarem verdadeiramente o que
dade do projeto colonizador, mas os que em nome deste defendiam tem no coração [id, parágrafo 30, fl. 16].
interesses contrários aos propósitos do governo que ele representava.
Na segunda postura, de político, ele associa em seu discurso Esses escritos permitem visualizar como gradualmente se foi
duas perspectivas, quais sejam, as doutrinas de Vieira sobre a liber­ formando uma opinião contrária à escravidão dos índios (e, por
dade dos índios e as máximas que haviam orientado os primeiros extensão, contra os jesuítas, o que, sem dúvida, é discutível, ao ana-
colonizadores a estabelecerem alianças com as populações nativas. lisar-se a questão duzentos anos depois).
O que se lê nesses escritos de Mendonça Furtado é o ideário do Em outra carta com data anterior, 8 de novembro de 1752, Men­
projeto colonizador português. Ele pode ser encontrado em qual­ donça Furtado relata a Pombal haver participado de uma reunião da
quer outro texto da época que contenha assuntos correlates e desti­ Junta de Missões na qual se discutia a causa de uma índia que
nados a distintos governantes e localidades do Brasil. No referido proclamava a liberdade e cuja sentença, pelo Juízo das Liberdades,
texto, é nítida a conquista de um novo espaço pelo índio, ou melhor, lhe havia sido favorável.2 Pela confirmação da sentença, votariam
é visível a abertura deste espaço concedida pelos que vinham repre­ os deputados, sendo que o reitor do Colégio se recusara a confirmá-
sentar o governo colonial, sendo necessário notar que tal esforço de la, apoiando-se na opinião do jesuíta Molina (1535-1600) para rea­
racionalização da condição humana do índio respondia a exigências firmar seu direito de posse sobre a índia. No julgamento dessa ques­
externas, ligadas à soberania de nações européias no contexto colo­ tão, Mendonça Furtado se posiciona com os deputados, recorrendo,
nial. Mendonça Furtado entendeu que as experiências de contato por sua vez, à opinião de Solórzano, jurista espanhol, para quem a
com os índios, realizadas pelos franceses, holandeses e castelhanos, posse legítima de índios se condicionava à comprovação da “origem
tiveram sucesso porque foram estabelecidas de modo “afável e bran­ da escravidão”3,
do”. Pondera que um procedimento mais respeitoso com os índios
havia produzido o efeito de contar com eles como aliados políticos.
A história da colonização até aquela data em que Mendonça Furtado 2 Ao tempo da Lei 6 de Junho de 1755, estes julgamentos aconteciam para o exame
fazia essas digressões históricas confirmava os erros táticos cometi­ de casos em que a identidade de índios estivesse sendo confundida com a de
dos pelos portugueses. Neste sentido, ele cita dois episódios: a inva­ negros, uma vez que a única exceção à regra geral de conceder liberdade incidiu
são dos holandeses em Pernambuco e a tomada da Fortaleza do Paru sobre índios descendentes de pretas escravas. Estes casos eram julgados por uma
pelos franceses. Em ambos os casos, os holandeses e franceses conta­ junta de autoridades, composta pelo Ouvidor Geral, o Juiz de Fora, o Procurador
dos índios, o Prelado Diocesano, o Governador e os quatro Prelados maiores das
ram com a aliança da população nativa. Informa Mendonça Furtado
missões da Companhia de Jesus, de N.S. do Monte do Carmo, dos Capuchos da
que, no caso, os índios, além de servirem de guias e prestarem apoio Província de Santo Antônio e de N.S. das Mercês. As causas eram sentenciadas
guerreiro, chegaram a transpor fronteiras, com aldeias inteiras, para no Tribunal da Mesa da Consciência e Ordens (Lei de 6 de junho de 1755, p. 7,
estabelecerem-se junto a esses europeus, deixando para trás, e de­ em Moreira Neto, 1988, p. 162).
sertas, as terras do domínio português (id, parágrafo 26, fls. 14-15).
3 Don Juan de Solórzano Pereira escreveu De Jure Indiarum, mais tarde traduzido
O trecho a seguir expõe a mecânica de suas estratégias: para o castelhano por Antônio Vieira e publicado em Amberes (Antuérpia), em
1702, com o título Política indiana. Comenta Marcos Mendonça que este livro
Os fatos que se têm sucedido a este respeito nos fazem uma clara “era como a bíblia do governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado, em
. demonstração que se tivermos algum dia guerra com algumas das todas ou quase todas as matérias concernentes à liberdade dos índios” (Mendon­
nações nossas confinantes, devemos contar como inimigos, não ça, 1963, p. 387). Quanto a Molina (1535-1600), foi jesuíta espanhol, servindo
só a tal nação, e aos índios que com ela se "acham aliados, mas muitos anos como professor de teologia na Universidade de Évora, em Portugal
dos mesmos que vivem entre nós que todos são parentes, e ami­ (hello Universal, p. 323).
160 Rita Heloísa de Almeida ei D ire tó rio d o s ín d io s 161

Porque a dita posse é de fato e, como tal, viciosa, por cuja razão las; todas m e responderam que logo obedeceríam; poucas fo ra m
não induz direito algum, e que à tal posse resiste o direito natural as que o fizeram ; rara é a que hoje conserva alguma aparência
[Carta de 8 de novembro de 1752, em Mendonça, 1963, p. 276]. deste estabelecimento. Porque todas im itam a Companhia, que
absolutamente desobedece e se obstinou contra estes utilíssimos
Este relato é apenas um exemplo de como estava sendo recebi­ estabelecimentos, e aqui nunca o quis executar sem mais razão
da a lei que restituía a liberdade aos índios. A base de argumentação que ade não obedecer, como éseu antigo costume, ede compreen­
da nova legislação relativa aos índios foi sendo constituída a partir derem que poderíam com ele, para o futuro, perder parte dos seus
interesses [Carta de 26 de janeiro de 1754, em Mendonça, 1963,
da já longa experiência evangelizadora dos jesuítas corn os índios e
p. 467].
do debate dos juristas a respeito da liberdade ou escravidão. Mas o
que fundamentalmente definiu as linhas dessa nova legislação foi a
As idéias foram sendo tecidas no contexto das exigências. Em !
observação de Mendonça Furtado sobre o que se passava diante de
pleno campo de observação e atividade, Mendonça Furtado escreve
seus olhos como governador e comissário da demarcação.
instruções ao tenente Diogo Antônio de Castro sobre como deveria is-i[
Suas opiniões foram tomando forma no dia-a-dia, vivendo no
ele proceder no estabelecimento da Vila de Borba, a Nova, uma al­
Arraial de Mariuá, antiga aldeia missionada, bem suprida de manti­
deia originalmente chamada Trocano. O ponto de partida, já o disse­
mentos e em posição geográfica apropriada para ser local de confe­
mos no capítulo anterior, é sempre a preocupação em reformular,
rências entre os comissários da execução do Tratado de Limites.
instaurar nova ética e novo comportamento moral.
Ali, na qualidade de representante do rei, com atribuições de obser­
var posturas e situações favoráveis ou desfavoráveis ao domínio de
Para absolutamente, desarraigar nesta vila o prejudicialíssimo
Portugal, ele fez de suas observações a base sobre a qual foi construída abuso que está arraigado em todo este Estado, de que só os índios
a nova experiência. são os que devem trabalhar e que a todo ó branco é injurioso o
O empreendimento exigia esse esforço de planejamento e incor­ pegar em instrumentos para cultivarem a terra [Instrução de 6 de
poração de experiências passadas. No processo de definição de fron­ janeiro de 1756, em Mendonça, 1963, p. 896],
teiras e implantação de um governo sobre a conquista territorial, a
imposição da língua do conquistador é tópico fundamental. Nesse Além desse esforço de reformulação da visão do índio, come­
empreendimento não estariam juntos os representantes da monar­ çando por uma revisão, pelo branco, da percepção que detém de
quia portuguesa e da Companhia de Jesus (em Mendonça, 1963, p. trabalho braçal, a expectativa era amadurecer a idéia, tornando-a
467). Na verdade, os jesuítas seriam julgados por suas ações junto uma realidade palpável e gradualmente constituída por meio do ca­
aos índios, favorecendo mais aos interesses espanhóis do que aos samento de colonos e mulheres nativas — antigo recurso de conso­
portugueses. Ou, vista a questão de outro ângulo, seriam os jesuítas lidação da conquista que ganharia regulamentação própria nesse novo
observados como uma congregação à parte, com projetos próprios, contexto pela Lei de 4 de abril de 1755:
reconhecidamente independentes dos interesses de reis e sumos pontí­
fices. Seja qual for o ângulo do observador, os projetos da Compa­ Que os meus vassalos deste reino e da América que casarem com
nhia de Jesus e da monarquia portuguesa estariam separados desde as índias dela não ficam com infâmia alguma, antes se farão dig­
então. nos de minha real atenção e que nas terras em que se estabelece­
rem serão preferidos para aqueles lugares e ocupações, que cou­ í;
berem na graduação de suas pessoas e seus filhos e descendentes |l
Já informei de que eu dei a todas as Religiões a ordem de S.Maj.
para que introduzissem nas aldeias a língua portuguesa, sendo serão hábeis e cápazes de qualquer emprego, honra ou dignida­
mais próprio para conseguir este fim o estabelecimento das esco­ de, sem que necessitem de dispensa alguma [Lei de 4 de abril de
1755].
162 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 163

A inclusão dos índios ao projeto colonizador passou a ser tópi­ É preciso um Procurador que não só tenha inteligência, desinte­
co comum nas instruções destinadas ao povoamento, edificação de resse, independência, mas que seja homem bom cristão, carita-
povoações e estabelecimento de governos civil, militar e eclesiásti­ tivo e sumamente ativo e desembaraçado. Que o seu ofício lhe
co. Tratava-se de um mesmo programa, ou melhor, de um mesmo renda com que se possa sustentar limpa e abundantemente, para o
procedimento, cuja eficácia dependia muito mais da absorção da nova que é preciso fazer-lhe um competente ordenado [Mendonça
postura que da originalidade, ou novidade, eventualmente implícita Furtado, em Mendonça, 1963, p. 77].
em uma ou outra instrução para uma adaptação às circunstâncias do
Terceiro, como se depreende da frase final da transcrição ante­
momento.
A primeira referência ao Diretório como nova lei a ser criada rior, neste texto, e somente nele, surge a preocupação de separar a
tutoria dos índios a serem civilizados do que constitui a gerência
veio no bojo de uma crítica às falhas da legislação em vigor,
sobre os mesmos como trabalhadores. A procuradoria deveria ser
condensada no Regimento das Missões, de Ia de dezembro de 1686.
um ofício imune aos interesses de exploração dos índios como força
Esse regimento foi formulado com base nas doutrinas de Vieira e
de trabalho:
nas experiências missionárias do século XVII, que se constituíram a
partir — e tendo em vista esse contexto — da disputa com os colo­
Enquanto S. Maj. não for servido mudar o sistema presente, é um
nos pela administração dos índios. O Diretório nascia da necessi­ ofício essencialíssimo; e que deve ter um Regimento porque se
dade de atender a situações em que haviam falhado o Regimento de governe, sem atenção ou respeito a pessoa alguma, e que viva e
1686 e outras legislações. Respondia a demandas da força de traba­ coma do seu ofício [id, p. 80].
lho indígena, principalmente nas áreas onde era a única disponível,
como constituía o caso do Grão-Pará e Maranhão. As reivindicações Quarto, ficava reconhecido o Regimento das Missões como um
por mão-de-obra provinham não só dos colonos brancos, mas tam­ modelo referencial, mas definia-se o novo regimento em conformi­
bém da própria máquina administrativa colonial. Fundamentalmente, dade “com o direito e leis municipais deste Estado” — o que parece
entretanto, como se pode inferir da correspondência de Mendonça demonstrar uma clara articulação dos programas de civilização dos
Furtado a Pombal, o Diretório tinha o objetivo de garantir o patri­ índios com os interesses gerais da colonização. Quinto, o ofício não
mônio populacional representado por índios catequizados e outros poderia ser exercido por um só homem. Tal ponderação levava em
ainda por conhecer e contactar nas novas terras a serem exploradas, conta não tanto a complexidade e a multiplicidade de tarefas, mas,
especialmente as situadas na fronteira. sim, a vulnerabilidade do cargo às influências ideológicas de seg­
Existe um documento que parece ter sido o rascunho do mentos específicos. A referência de caráter genérico aos regulares,
Diretório. Trata-se de uma carta escrita por Mendonça Furtado em bem assim, em particular, à Companhia, é uma prova de que a obser­
28 de novembro de 1751, na qual é esboçada uma proposta de solu­ vação tinha em vista o quadro político de disputa pela administração
ção para o problema do controle e distribuição da força de trabalho dos índios. Sexto,'a inserção do novo regimento em um projeto de
indígena. Nela são alinhavados os fundamentos e as condições em constituição de uma “república civil” é ponto comum, razão e finali­
que seria implementado o Diretório. Examinemos, sucintamente, dade, neste e em outros documentos similares do período.
alguns pontos. Delimitados os referenciais desse regimento quanto à forma de
Em primeiro lugar, a edição de um novo regimento ajudaria a relacionamento entre segmentos sociais e definida a natureza do
superar a grave crise criada com a administração dos índios pelos deslocamento do eixo de hegemonia destes grupos em relação à admi­
regulares. Segundo, estava sendo delineado o perfil do tutor. nistração dos índios, Mendonça Furtado passa a explicitar a idéia de
civilização que deseja ver incorporada, repetimos, a de que a civili­
zação dos índios vincula-se ao projeto de estabelecimento de uma
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 165
164

república polida e civil. A civilização dos índios viria, no processo à experiência missionária e o quanto parece ter sido súbita a decisão
de sua transformação, consagrar este ideal. O índio transformado é, política pela exclusão dos missionários regulares. Apesar de as cau­
aqui, um indivíduo incorporado à civilização ocidental, em razão de sas e queixas mútuas arrastarem-se desde praticamente o início da
suas funções, direitos e obrigações estarem bem definidos. colonização, a exclusão dos jesuítas foi repentina, uma vez que na
véspera ainda se contava com sua presença. Essa carta de Mendonça
A primeira coisa que [...] se deve fazer é que os índios, depois de Furtado testemunha o fato.
civilizados, procedendo no serviço de S. Maj. com honra e fide­
lidade, sejam habilitados para todas as honras civis. Segunda:
que nele se atenda aos Principais, a que os índios todos são suma­ O Diretório por ele mesmo
mente obedientes. Terceira: que sobre estes Principais, Sargen-
tos-Mores e Capitães das aldeias e seus filhos, ninguém tenha Ao escrever ao bispo do Pará instruindo-o sobre as providên­
jurisdição neles senão os governadores, e quando cometerem cias relativas à secularização, o Conde de Oeiras afirmou que a Bula
[os índios] algum delito, sejam processados como militares [id, de 20 de dezembro de 1741, a Lei de 6 de junho de 1755, a Lei de 7
P- 82], de junho de 1755 e o Diretório representavam “as quatro colunas
em que se acha sustentada toda a grande máquina desse Estado”
Estes tópicos bastam para formar uma idéia das concepções (Documentos sobre a Capitania do Pará, fl. 40). Quando assim se
existentes sobre o índio, das transformações que estavam sendo expressava, ele não se referia ao sentido atual de Estado, embora se
requeridas e das soluções que poderíam ser articuladas com o pro­ aproximasse de nossa percepção de organização, concebendo-a como
cesso colonizador. Desde já se instituía, com certa dose de am­
um “um vasto império” (id, fl. 40). Naquele contexto — meados do
biguidade, a figura do tutor como umà representação dos índios em
século X V ni — , Estado era algo que traduzia uma percepção visual
uma instância superior, reservando a estes ampla margem para cons­
de duas vastas unidades de administração colonial, o,Grão-Pará e o
tituição de governos próprios, em que os “principais” não seriam
Brasil. O Estado do Grão-Pará estaria recebendo, por intermédio
necessariamente os chefes legítimos de grupos ou comunidades, mas
dessa nova legislação, a orientação geral a um programa de ações
porta-vozes, intermediários da relação de seu povo com os colo­
múltiplas, envolvendo questões civis, militares, religiosas, econô­
nizadores.
micas, políticas e administrativas. Causa admiração constatar que as
O fato de os “principais” estarem sujeitos aos regulamentos
quatro leis-colunas que orientam o novo programa de governo di­
militares (id, p. 82) acrescenta mais esclarecimentos sobre as expec­
gam respeito basicamente aos índios. Reconhecia-se, desse modo, o
tativas dos colonizadores a seu respeito. Vale dizer que tanto o “pro­
Grão-Pará como um Estado indígena amparado em novas posturas
curador do índio” quanto o “principal” indígena seriam porta-vozes
tendentes a considerar o índio como indivíduo igual a qualquer euro­
do colonizador. Mesmo assim, embora representando um poder
peu. E reconhecia-se, fúndamentalmente, indígena o Grão-Pará, com
exógeno, a função do “principal” chega aos nossos dias enraizada
base na percepção da representação dos índios como expressão
nas concepções de chefia dos índios contemporâneos. No caso, a asso­
ciação refere-se, especialmente, aos atuais índios, que apresentam numérica.
O Diretório, tal como todas instruções do gênero, tem a quali­
séculos de experiência de contato com a civilização e que ainda con­
servam os cargos de caciques e capitães de aldeia para definir suas dade de carta de princípios e ações que irá confundir-se com a
lideranças comunitárias. identidade da obra que está orientando. Mas é preciso ressaltar
O documento prossegue tratando das atribuições dos missioná­ que, mais que qualquer outra lei similar aqui mencionada, o Diretório
rios. O que nos leva a pensar novamente o quanto a questão do trata­ tem o cunho das Constituições, tanto pela circunstância histórica de
mento dos índios pela própria máquina estatal ainda estava atrelada ter servido a grandes empreedimentos — como a demarcação de
166 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 167

fronteiras, afirmação da soberania por meio da fortificação, do po­ seu trabalho e comércio. Em segundo lugar, a emancipação dos pro­
voamento, da produção e do comércio de espécies nativas — quanto jetos de cidade em que os índios viviam, e que vinham a ser toda
pelo fato de representar uma prática fundada em uma nova postura, empresa de aldeamento e início de um trabalho de educação do modo
qual seja, a de considerar os índios a população dessa nova nação civilizado de viver.
(ou desse esboço de nação, já que se trata do ano 1757). É próprio do pensamento iluminista o legislar com os olhos fi­
O Diretório contém 95 parágrafos, que dispõem sobre variada tos em certo ideal de sociedade livre, formulado nos meios cultos
gama de questões, desde a civilização dos índios aos problemas da europeus, e que, evidentemente, se chocaria com a visão que os co­
distribuição de terras para cultivo, formas de tributação, produção lonos, missionários, funcionários civis e militares tinham do índio
agrícola e comercialização, expedições para coleta de espécies nati­ com quem mantinham contato direto.
vas, relações de trabalho dos índios com os moradores, edificação O Diretório teve, assim, o sentido de fazer um ajuste da nova
de vilas, povoamento e manutenção dos povoados por meio dos postura às condições do ambiente colonial. A parte introdutória do
descimentos, presença de brancos entre índios, comportamento espe­ documento tem um a conotação de retrocesso: reconhece-se acertada
rado entre as partes, casamento e, por fim, um delineamento do a decisão constante da Lei de 7 de junho, no que tange à eliminação
“diretor” — figura central neste novo procedimento que vinha subs­ da “administração temporal que os regulares exerciam nos índios
tituir os missionários. das aldeias”, mas considera-se limitada a capacidade de os mesmos
Todos estes tópicos podem ser agrupados em três grandes te­ constituírem governos próprios com os seus “principais” .
mas. Do lu ao 16- parágrafo é tratada a questão da civilização dos As explicações para o retrocesso estão centralizadas nos méto­
índios — neles se conceitua a função de tutor, com suas atribuições, dos utilizados pelos missionários regulares. Sem explicitar tais mé­
e é abordado o ideal de civilização que se deseja transmitir aos índios. todos e seus erros, qualifica-os negativamente, atribuindo-lhes res­
Do parágrafo 17“ ao 73a são tratados assuntos diversos, relativos à ponsabilidade pela condição de “rusticidade e ignorância” em que
economia: a agricultura, do 17“ ao 25“; a fiscalização e tributação se achavam os índios da época. O argumento era o de que, não tendo
fazem parte do 26u ao 34'-'; o comércio do 35ü ao 58“ e, finalmente, a sido educados com os “meios da civilidade”, da “convivência” e da
distribuição da força de trabalho representada pelo índio é regula­ “racionalidade”, os índios também estariam inaptos a formar gover­
mentada do 59a ao 73" O terceiro grande tema do Diretório é a colo­ f
nos próprios, inviabilizando, deste modo, a finalidade da Lei de 6 de
nização, seguida da adoção de providências, como o povoamento, junho quanto ao reconhecimento de sua representatividade política
edificação de povoações, descimentos e controle sobre as popula­ I
(Diretório, parágrafo 1Q)
ções aldeadas. Ao final, o texto retorna aos pontos iniciais: a tutela, Entrava-se, assim, no domínio do conceito de menoridade do i
o tutor, os métodos de trabalho e a nova postura em relação ao índio. índio e da necessária tutela.4 Criava-se a figura do “diretor”, um

O modelo de tutela presente no Diretório, 4 Não nos referimos ao conceito de menoridade empregado por E. Kant em sua
o referencial missionário que o precede Réponse à la question: quesl-ceque ies Lumières?. Ali, menoridade está relacio­
e o ideal de civilização em ambos nada com a condição de submissão voluntária a uma representação de poder
superior, que, no entender do filósofo, deve ser eliminada pela mesma vontade
do indivíduo em expor livremente seu pensamento, fazendo desta atitude uma
O Diretório veio a lume dois anos depois da Lei de 6 de junho direção para a sua existência. O tempo em que Kant expressa essas idéias é,
de 1755, que restituiu a liberdade aos índios, e da Lei de 7 de junho, como ele próprio define, o “século das luzes”. Sair da menoridade tinha um sen­
que excluiu os missionários do poder temporal de sua administra­ tido de emancipação do indivíduo em relação a situações de tirania (religiosa,
ção. Em ambas as leis objetivou-se a emancipação plena. Primeiro, política). Utilizo o conceito de menoridade com a perspectiva oferecida pelo
Código Civil e pela Constituição Brasileira anterior à atual de 1988, em que se
a dos índios como indivíduos livres, com direito a bens ganhos com
168 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 169

servidor secular a ser nomeado pelo governador do Estado para reali­ “vereadores”) ou as instruções contidas no Diretório, conferindo
zar, a exemplo de qualquer funcionário na colônia, serviço de inte­ plenos poderes aos “diretores” de representar os índios em qualquer
resse público nas missões que também se haviam transformado em circunstância, facilitaram seu domínio absoluto sobre as situações
áreas de domínio comum. O Diretório destina-se a instruir esses fun­ locais. Ainda voltaremos a esta questão.
cionários no exercício de seu ministério. O terceiro parágrafo legisla sobre a administração temporal e
Ainda é rarefeita a figura do “diretor” . Reúne virtudes idealiza­ espiritual que passariam a ter as aldeias. Os critérios para esta nova
das que servem à definição tanto de reis quanto de súditos. Devia organização de administração refletem o clima conceituai da secu­
“ser dotado de bons costumes, zelo, prudência, verdade, ciência da larização. Teria dois fins a atuação sobre os índios: 1. “cristianizar”,
língua”. Sua jurisdição devia reconhecer a existência de governos traduzido no texto como a ação de retirar índios do “paganismo” e
locais que, após a secularização, dispunham, nas aldeias maiores 2. “civilizar”, que compreende o aprendizado dos “meios de civili­
tornadas vilas, de “juizes ordinários”, “ vereadores” e “oficiais de zação, da cultura e do comércio”. Aos párocos, em cada aldeia
justiça” e, nas “aldeias menores” denominadas “independentes”, de missionada tornada paróquia e aos prelados na Diocese, represen­
“principais” . Perante esta organização e estrutura de poder sobre os tando a autoridade eclesiástica maior e equiparável ao governador
índios, as atribuições dos “diretores” seriam essencialmente inter- de Estado, estaria reservada a “cristianização” dos índios; aos “dire­
mediadoras, tal como M endonça Furtado havia esboçado em carta a tores”, seria destinado o Diretório legislando sobre a tarefa de levar
Pombal, quando externou sua noção de tutela dos índios, a ser a “civilidade” aos índios (parágrafo 4).
exercida por “procuradores de índios” (em Marcos Mendonça, 1963, Os párocos se encarregariam do trabalho espiritual, antes reali­
pp. 79-82). O diretor teria uma “função diretiva, em caso algum, zado pelos regulares, mas o Diretório é vago sobre em que moldes
coativa”, quando chamado a avaliar as circunstâncias em que os ín­ deveria prosseguir o aprendizado da doutrina cristã. Ao que parece,
dios eram julgados negligentes. O castigo para o delito público ou a neste aspecto reside o entendimento, por pessoas da época, da ruptu­
premiação por ação valorosa não seria função de “diretores”. A estes, ra que estavam protagonizando. Se é vago, talvez porque não havia
cabia persuadir os índios das conveniências e expectativas de cum­ ainda limites claros distinguindo o que significava “cristianização”
primento das obrigações. A responsabilidade pela execução de cas­ e “civilização” . Ou, talvez, o que entendeu Pombal como dóis mo­
tigos ou premiação era atribuição dos “juizes” e dos “principais”, e, mentos da história humana — primeiro, que os índios se transfor­
em instância superior, as decisões eram tomadas pelo “governador” mem em homens e, depois, que sejam convertidos em cristãos (cf.
e pelo “ministro da justiça” (Diretório, parágrafo 2).
Capítulo 4, “Os autores de projetos”, ou Documentos sobre a Capi­
Veremos que o contrário se deu. Os diretores eram representa­
tania do Pará, fl. 41) — estivesse sendo colocado à prova no Dire­
ções únicas de poder nessas vilas e aldeias, fomentando, na maioria tório. Neste caso, o processo estaria começando com o Diretório,
dos casos, situações de tirania e escravidão sobre os índios aldea­
ainda impreciso sobre o objeto e o procedimento da cristianização.
dos. Duas podem ser as razões para esta deturpação: ou faltavam
O mais certo, provavelmente, seria dizer que o conhecimento acu­
pessoas habilitadas para representar a justiça locai (os “juizes”, os
mulado na experiência dos regulares foi absorvido pelo que se com­
preende ser a tarefa prevista no Diretório de levar os meios da civi­
lidade aos índios. Como?
definia os índios como “reíativamente incapazes e, portanto, necessitando da tu­
tela do Estado”. O primeiro parágrafo do Diretório expressa, essencial mente, a O Regulamento das aldeias indígenas do Maranhão e Grão-
mesma idéia da legislação indigenista do século XX, ao garantir a liberdade aos Pará, escrito pelo Padre Antônio Vieira, orientou o trabalho missio­
índios com ressalvas restritivas à sua condição de indivíduos “sem capacidade nário entre os índios do Brasil, no período de 1658 a 1661 (em Beozzo,
para se governarem”. (Cf. principalmente Pedro Agostinho, Incapacidade civil
1983, p. 188-208). Há, ainda, catecismos escritos e aplicados para o
relativa à tutela dos povos e indivíduos, 1982, pp. 61-89.)
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 171
170

período do Diretório, mas não se identifica, nestes guias práticos, o formando-se uma comunicação entre os postos avançados, o geral
caráter doutrinário da política missionária jesuítica implícito neste na colônia e a Europa. A aproximação aos novos índios realizava-se
Regulamento. pela persuasão, conduzida por outros índios já catequizados, que,
Compulsando esse documento sobre a experiência de visitação em meio a discursos e doação de brindes, faziam convincentes
de Vieira às aldeias, tem-se a sensação de estar conhecendo um ma­ demonstrações das vantagens do contato, a começar representada
nual de orientação do comportamento religioso. Nele se regulamen­ por eles próprios (1874, p. 144). Informa o explorador que os índios
ta o dia-a-dia de exercícios espirituais, renovação de votos dos pró­ podiam ter representações e que estas eram essencialmente interme-
prios congregados e atividades de evangelização e de administração diadoras. Os “corregedores” e “alcaides” indígenas tinham contato
dos índios no trabalho que realizam nos negócios econômicos da permanente com seus “diretores”, para deles receber as ordens do
missão. É um regulamento sobre a conduta que deviam seguir os dia. Os demais eram responsáveis por tarefas específicas, ou seja:
próprios missionários. É possível imaginar que a evangelização dos “capitano de los carpinteros, capitano de los herreros, capitano de
índios vem no curso dessas atividades religiosas dos missionários. los tejederos, capitano de los rosários, capitano de la capela”, etc
Assim, na parte que toca à “Cura espiritual das almas”, é descrito o (id, 146). Ainda segundo Keller, reservava-se atenção especial aos
cotidiano dos índios catecúmenos: a missa pela manhã e, ao fim desta, exercícios militares de simulação de luta, os quais se intensificavam
as doutrinas por meio de orações e do catecismo que antecediam na medida em que o governo espanhol requisitava índios para com­
suas atividades nas lavouras; a escola onde se ensinava a ler e escre­ bater os paulistas. Esses treinamentos se tornariam frequentes com a
ver sobre a doutrina cristã, assim como a cantar e a tanger instru­ disputa pela posse da Colônia de Sacramento, que envolveu espa­
mentos; os diálogos do catecismo à tarde, com cânticos e orações, a nhóis, portugueses, jesuítas e índios de Sete Povos das Missões.
catequese dominical, as atividades sociais de batismo, casamento, Para Franz Keller, a severidade da disciplina e a regularidade
confrarias, funerais... Enfim, em todas essas atividades religiosas há militar não se aplicavam apenas a esses exercícios.5 Toda uma vida,
uma socialização, uma “cristianização”, tal como é referida no hora a hora, estava regulamentada, mantendo os índios sob total
Diretório. controle, conquanto disto eles não estivessem conscientes. A absor­
Franz Keller (1874) explorou a região dos rios Amazonas e ção de aprendizados realizava-se de tal maneira eficaz — diz o
Madeira, em 1867, um século após a secularização resultar na ex­
pulsão dos jesuítas, em 1759, dos domínios portugueses e, em 1767, s O rigor começa como exigência interna da Companhia dc Jesus. M onila Secreta
dos domínios espanhóis. Afirma, porém, haver constatado vestígios — Instruções S ecretas que devem gu ardar todos os religiosos da Com panhia de
indubitáveis da incrível organização alcançada pelos jesuítas espa­ Jesus espelha o que se esperava de cada membro da congregação. Por exemplo,
a punição ao insulto tem o caráter processual de ensinamento corretivo aos
nhóis em Trinidad (1687), San Ignacio (1689), San Javier (1690), transgressores punidos e aos outros que assistem o castigo exemplar: “(,..)e para
San José (1691), San Borja (1693) e Exaltación (1704). Keller acres- ■ que não se queixem da causa da expulsão, não hão de ser lançados [fora? ilegí­
centa que a severidade dos missionários só triunfou devido ao receio vel], senão, que em primeiro lugar sejam privados de ouvir confissões, e sejam
das tribos independentes de se tomarem alvo fácil dos paulistas (1874, moríificados, e vexados com exercícios dos ofícios mais vis, e ainda forçados a
fazer aquelas coisas as quais se conhece tem aversão natural, tirem-se-lhes os
p. 143). Entretanto, dirá, em seguida, que o segredo do sucesso dos
estudos, e honoríficos cargos, apertem-lhe os capítulos e públicas repreensões;
jesuítas estaria relacionado com o zelo, o altruísmo, a habilidade sejam privados de recreação e comércio com os irmãos, tirem-se-lhe o vestido, e
com que esses missionários tratavam os índios. Para tanto, contri­ outras coisas usuais, que não são absolutamente necessárias, até que prorrompa a
buía sobremaneira o temperamento dócil e humilde dos Guarani e murmuração, e impaciência, e então serão lançados como[ilegível], modifica­
Mojos. dos, e perniciosos a outros com seu mau exemplo, e se houver de dar razão desta
expulsão aos parentes, ou prelados, diga-se-Ihe, que não tiveram espírito d e com pa­
As missões eram unidades internamente auto-suficientes e vincu­ nhia” (BNL, capítulo 10, fl. 93).
ladas à autoridade de superiores que residiam em missões maiores,
172 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 173

explorador — que a consciência da condição escrava do índio a veneração, e a obediência ao m esm o Príncipe. Observando
missionado se diluía, sendo ignorada nas gerações seguintes. Neste pois todas as nações polidas do m undo este prudente, e sólido
aspecto, a perspectiva do viajante é sombria. Afirma que a condição sistem a nesta conquista se p ratico u tanto pelo contrário, que só
dos índios no período de prosperidade das missões só se diferen­ cuidaram os primeiros conquistadores estabelecer nela o uso
ciava da escravidão efetiva pelo fato de não estarem à venda’ No da língua, que chamaram geral; invenção verdadeiramente
mais, eram tratados como escravos, ou seja, não tinham a proprieda­ abominável, e diabólica, para q u e privados os índios de todos
aqueles m eios que os podiam civilizar, perm anecessem na rús­
de de seus bens (exceto os de destinação doméstica), o solo era culti­
tica, e bárbara sujeição, em que até agora se conservam [Diretório,
vado em conjunto, mas a comunidade de bens só beneficiava seus
parágrafo 6].
mestres, e estava proibida a venda de produtos a estranhos (quer
dizer, fora das missões) (1874, pp. 146-149). A língua do príncipe era a língua portuguesa, cujo uso passa a
Que dizer da veracidade destas informações colhidas um século ser obrigatório, recebendo seu ensino o estímulo da criação de esco­
depois da experiência relatada? O autor assegura haver testemun­ las públicas. Os parágrafos 7 e 8 do Diretório determinam a criação
hado a herança deixada pelos jesuítas, quando esteve em Trinidad, e
de escolas públicas para os filhos dos índios. Ler, escrever e apren­
comprovado a capacidade musical nos índios descendentes (id, p.
der a doutrina cristã continuam a ser matérias da educação elemen­
157). Estava o autor atento à herança cultural, presente no compor­
tar. Os mestres e mestras destinados a um estudantado tratado sepa­
tamento, na sensibilidade, nas aptidões que observava nos índios em
radamente por sexo deviam ser pessoas “dotadas de bons costumes,
1867, como, provavelmente, deve ter reconstituído ou fundamenta­
prudência e capacidade”, mas, sempre que não houvesse mestras, as
do suas informações sobre o cotidiano das missões jesuíticas espa­
alunas poderíam aprender na Escola dos meninos, onde fariam uso
nholas com base na tradição oral, mantida pelos descendentes des­
da língua portuguesa.
ses índios.
A introdução da língua portuguesa foi desafio de luta contra o
Não é necessário ir adiante neste passar de olhos sobre as pri­
uso da “língua geral”, empregada pelos jesuítas no trato com os
meiras experiências de cristianização. Parece suficiente reter o sig­
índios, mas também representou uma afirmação política sobre os
nificado da cristianização como a linguagem por meio da qual foi
domínios conquistados. Questiona-se, aqui, se a introdução da lín­
transmitido um ideal de civilização aos índios. Talvez se possa dizer
gua portuguesa não teria sido sobretudo uma disputa pela hegemonia
que este ideal estará absorvido no que o Diretório compreende ser a
(no sentido dado ao termo por Norbert Elias, 1985) entre grupos de
tarefa de instruir os índios sobre os meios da civilidade. Modificam-
se os emblemas, ou seja, os termos com que são expressos os apelos uma mesma cultura e civilização, antes de firmar-se e apresentar-se
e as convicções sobre os mesmos fins da colonização. claramente aos nossos olhos (dois séculos depois) como um projeto
Voltemos para o que o diretor deve fazer, ao substituir os missio­ de nação. A propósito, o historiador Artur César Ferreira Reis (1966)
nários na tarefa de levar a civilização: fornece um material muito especial que ajuda nesta reflexão.
Assegura Ferreira Reis, por meio de relatos de cronistas, via­
S em pre foi m áxim a inalteravelm ente praticada em todas as N a­ jantes e autoridades governamentais, que no Brasil o contrário se
ções, que conquistaram novos dom ínios, introduzir logo nos po­ deu em relação à máxima destacada no parágrafo 6o do Diretório:
vos conquistados o seu próprio idiom a, por ser indisputável, que foram os colonos portugueses conduzidos a aprender as línguas indí­
este é um dos m eios m ais eficazes para desterrar dos Povos rústi­ genas mais do que impor seu idioma. Por certo, as condições iniciais
cos a barbaridade dos seus antigos costum es; e ter m ostrado a de implantação de escolas, a baixa representatividade numérica do
experiência, que ao m esm o passo, que se introduz neles a Língua colono português e, seguramente, a prática, desde o início instaurada
do Príncipe, que o s conquistou, se lhes radica tam bém o afeto,
pelos jesuítas, de ensinar aos índios a “língua geral” foram fatores
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 175
17*

que inviabilizaram o projeto político de instaurar a língua portugue­ O segundo argumento é mais forte: todos falavam invarivelmente
sa nos primeiros tempos de Brasil. A “língua geral” procedia da lín­ a “língua geral”. Os próprios moradores de origem portuguesa nas­
gua Tupi, predominante entre os índios catequizados pelos jesuítas. cidos no Pará aprendiam primeiro a “língua geral” e só mais tarde o
A fim de facilitar as comunicações e a transmissão da doutrina cris­ português,
tã, os jesuítas tomaram o Tupi a língua franca das áreas missionadas,
viabilizando, assim, as comunicações em meio ao que o Padre Antô­ por que como não bebem, nem se criam com outro leite mais, que
nio Vieira observara como uma “verdadeira Babel” (Reis, 1966, pp. com o das índias, com o leite bebem também a língua, nem falam
178-179). outra, senão depois de andar alguns anos na escola e tratarem
com os portugueses, que vem de Portugal [...] As mulheres é que
Não há estudos conclusivos a respeito da “Língua Geral” .
ficam com maior ignorância, porque nunca sabem falar senão um
Provavelmente agregava ao seu vocabulário Tupi a contribuição de
português tosco, e é necessário haver nas igrejas, confessores pe­
povos indígenas procedentes de outras famílias lingüísticas e, certa­ ritos na língua, para as poder confessar, de sorte que elas se pos­
mente, empréstimos das línguas maternas faladas pelos missionários. sam explicar, e o confessor entender. Sendo isto assim, é também
Contudo não é certo que a “língua geral” seja uma invenção dos certo, que os índios das aldeias, mais tratam com os portugueses,
jesuítas. Quando no parágrafo sexto do Diretório é referida a “ lín­ do que com os missionários; porque com os missionários quando
gua geral” como uma “invenção diabólica”, o que certamente estava muito, só chegam estar dois meses no ano, que é os meses de
em questão era o ato em si de utilizar a língua para fins de domina­ agosto e setembro; donde ainda que os missionários lhe ensinem
ção política. algumas palavras da língua portuguesa, nestes dois meses, como
Com efeito, foi engenhosa sua utilização pelos jesuítas, a fim os portugueses nos dez meses seguintes, não falem com eles, se­
de efetivar o controle sobre as populações indígenas aldeadas, posto não pela sua própria língua dos índios, quando voltam para as
que as isolava ou dificultava seu contato com os demais europeus, aldeias, já se não lembram, nem das palavras que os Padres lhes
inclusive colonos portugueses e autoridades coloniais, resultando tinham ensinado; pelo que a ordem que requer o dão procurador
daí sacrificar o uso do próprio idioma em nome de um dia-a-dia de Paulo da Silva, para os missionários, deve muito especialmente
mandar passar, para os moradores do Pará, mandar-lhes que nem
comunicações por meio do trabalho e comércio que só se realizava
entre si, nem com os índios falem, senão pela língua portuguesa,
com o uso da “língua geral”. Artur César Ferreira Reis comenta e
com que não poderá ter efeito, sem que primeiro se proíba, que
transcreve trechos inteiros de uma troca de acusações entre um pro­
os filhos, e filhas dos portugueses, não sejam criados por índios
curador de moradores do Maranhão e um representante da Compa­ da terra [id, pp. 183-184].
nhia de Jesus, ocorrida em 1729. O episódio oferece uma boa pers­
pectiva da situação em foco.
Ainda que fosse ensinada a língua portuguesa nas missões aos
Queixava-se o primeiro de que os jesuítas não ensinavam o idi­
novos índios descidos — argumenta um governador simpatizante da
oma oficial de Portugal a fim de que os índios se mantivessem sob a
ação dos jesuítas — , estes aprendiam mais facilmente a “língua ge­
guarda das missões. O padre encarregado de responder à referida
ral”, pela razão de ser o instrumento de comunicação diária com
queixa encaminhada ao rei diria, em primeiro lugar, que, a exemplo
todos os demais índios aldeados e já completamente acostumados a
dos apóstolos, a melhor maneira de ensinar a doutrina cristã seria
seu uso exclusivo (id, p. 184). O aspecto considerado mais grave foi
por meio da própria língua do aprendiz.
registrado por Mendonça Furtado, algumas décadas depois de regis­
Ensinam os índios, sem os índios entenderem o que se lhes ensi­ trar-se esse debate, ao observar que os escravos negros também apren­
na, que coisa é senão estarem ensinando papagaios a falar: que diam com facilidade a “língua geral” e quase nada do idioma portu­
coisa é senão como diz S. Paulo, estar falando ao vento [em Reis, guês (Carta de 27 de fevereiro de 1759, em Reis, 1966, p. 189).
1966, p. 182J.
176 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 177

Se este material apresentado por Ferreira Reis não corresponde geral”, considerando-a um “romance” (1839, p. 12). Ele argumentaria
integralmente à realidade histórica em foco, ao menos registra a opi­ que “os jesuítas a dicionarizaram e a reduziram a uma gramática
nião, os argumentos de defesa e as convicções de ambos os lados da pequena e imperfeita”, cujo resultado foi ter-se constituído numa
questão, permitindo uma avaliação de quão difícil foi implantar a “língua monotônica”, simplicificada ao extremo {id, p. 12). Ou seja,
língua portuguesa em área de trabalho missionário. Este fato parece­ a “língua geral” teve os mesmos propósitos e destino que o esperanto
ría aos governantes portugueses uma contradição gritante, já que as em nosso século, como projeto de língua franca, universal. O que
missões representavam os principais focos irradiadores da coloniza­ nos leva mais uma vez a entender tais episódios como uma disputa
ção. O aspecto da luta pela hegemonia entre os grupos independen­ pela hegemonia. Voltaremos, mais adiante, a esta questão, quando
tes e os representantes dos interesses da monarquia insinua-se, no ilustrarem o presente trabalho cronistas que se referiram ao uso
caso, como uma explicação conjuntural, ao que a longo prazo se
amplo e espontâneo da “ língua geral” entre índios de diversas
registra como um mesmo processo colonizador. A obra mais difícil,
procedências linguísticas, que viviam em missões e povoações civi­
qual seja, o enraizamento da cultura do conquistador, devia começar lizadas.
por generalizar o uso geral da língua portuguesa. E o Diretório tem
Foi uma tarefa hercúlea unificar hábitos linguísticos de uma
esta tarefa como meta a realizar.
população profundamente diversificada, do ponto de vista étnico e
Pergunto: se caso a língua portuguesa não fosse adotada e con­
cultural. Opinião que contempla os esforços tanto dos jesuítas, num
tinuasse a prevalecer a “língua geral” (principalmente no Grão-Pará,
primeiro momento disseminando uma “língua geral” de procedên­
assim como permaneceu a língua Guarani no Paraguai), os resulta­
cia Tupi, quanto dos portugueses, fixando seu idioma com o adian­
dos na constituição da cultura, do território e do povo brasileiro se­
tar da colonização.
riam os mesmos?
Pelo uso da “língua geral” diluía-se a conquista, tornando-a porta
Esta questão é colocada porque tanto o português quanto a
aberta a invasões e tentativas de estabelecimento de poder. A Rela­
“língua geral” eram idiomas estranhos ao índio não-Tupi. Parece
ção por mapa dos governadores capitães-generais e dos capitães-
evidente que o uso da “língua geral” permitia estabelecer uma cone­
mores que governaram o Maranhão e Pará (BA, 54.XI.27, n“ 17), já
xão com as missões espanholas, circunscrevendo, assim, um uni­
referida no capítulo anterior, transmite a nítida percepção de uma
verso de ação dos jesuítas que se afirmava como um domínio políti­
nobreza que se forma aliada ao rei em feitos militares que garantem,
co próprio da congregação, a despeito de esta fixar-se em territórios
pertencentes às monarquias portuguesa e espanhola. Nesse caso, as de parte a parte, o patrimônio adquirido em explorações marítimas.
acusações coetâneas que consideram as ações dos jesuítas um proje­ Nessas biografias, o índio não figura como inimigo; é agente passi­
to político independente, que ameaçava as monarquias, estariam se vo, objeto de disputa de grupos. O conflito se passa entre europeus,
confirmando a partir de resultados ponderáveis, como a “facilidade” e mais uma vez o deslocamento espacial (pensar as conquistas e
com que a “língua geral” havia produzido efeito, mais tarde obser­ explorações marítimas no norte da África) permite o exercício béli­
vado por análises históricas como um “Estado dentro do Estado” co a partir do qual são alimentadas as hierarquias com ações consi­
(Abreu, Capistrano, 1976, p. 164 e Beozzo, 1983, p. 52). deradas meritórias, em uma sociedade cuja nobreza tem um perfil
Ademais, existem autores que questionam a qualidade da “lín­ militar. A Relação dos governadores é uma memória política orga­
gua geral” como um conjunto de conhecimentos lingüíticos nasci­ nizada cronologicamente, o que nos dá a clara idéia de que cada
dos e desenvolvidos por meio de uma espontânea comunicação de governador e suas respectivas instruções representam um avanço,
povos. É o comentário de autores contemporâneos ao uso da “língua seja em relação ao conhecim ento de novas terras, seja na forti­
geral”, como por exemplo o militar Ladislau Baena. Este, ao tratar ficação e edificação de povoações sobre as já existentes. E tudo isto
do assunto, no início do século XIX, questionou e depreciou a “língua no contexto de um programa colonizador de longa duração, cuja
178 Rita Heloísa de Almeida
O D iretório dos índios 179

coerência e uniformidade estão garantidas por sua condução, efe­


N esta circunstância, a expectativa em relação ao índio era a de que
tuada sempre por um mesmo régim e político: a monarquia.
viesse a assim ilar e dissem inar esta nova feição.
Repete-se a referência a tais aspectos da organização d b gover­
R ibeiro Sanches, com o se viu antes, glorifica as nações civili­
no da conquista com o intuito de situar a disputa pela hegem onia
zadas com o as únicas criadoras de cidades. A cidade teria o sentido
entre a administração colonial portuguesa e a Com panhia de Jesus,
de beneficiar o hom em , protegendo-o contra as injúrias da N atureza
nos termos e segundo as convicções que cada parte defende. Pode-
(1756, p. 72). N a m esm a perspectiva é vista a condição do hom em
se afirmar que o Diretório é o program a da m onarquia portuguesa
civilizado: os conhecimentos e realizações da civilização atuam deci­
para os anos de definição do território brasileiro ria parte norte que
se seguiram ao Tratado de M adri e seus reajustes, confirm ados nos sivam ente parâ seu distanciamento progressivo da Natureza, processo
Tratados de El Pardo (1761) e de Santo Udefonso (1777). N esse m otivado pela convicção de estar sendo prom ovida a sua proteção
momento, o povoamento do B rasil é assum ido com o m eta central — o seu bem-estar.
dos programas de governo de cada adm inistração colonial, especial­ E stas idéias parecem muito amplas, program as de um a civiliza­
mente nas áreas de fronteira. Tem inicio, nesse período, rima efetiva ção, e n ão planos de governo representativos de certos grupos em
política de imigração. As levas de fam ílias portuguesas (vindas, a disputa pelo controle dos índios e terras do Brasil. Procedem de um a
maior parte, das ilhas do Atlântico) são significativas por im prim irem m esm a bagagem de idéias acerca de vida social, convívio urbano,
um a feição cultural lusitana aos em preendim entos da ocupação.6 observância a leis e hierarquia de poder. Colocadas diante dos índios,
estas idéias são por eles percebidas com o partes de um a m esm a con­
cepção de mundo. Pois é justam ente este ideário que se identifica
6 A presença qualitativa do europeu no povoam ento do Brasil durante o período nas ações reformuladoras das instituições, que tiveram lugar durante
colonial é estudo a ser feito. Encontramos algumas referências que já permitem o reinado de D. José I, no qual se insere o Diretório dos índios com o
observar os seguintes problemas. Povoadores de distintas nacionalidades e não
só portugueses. Por exemplo, no governo de Marquês de Pombal, houve alguns
um a lei que instaura nova maneira de relacionar-se com os índios.
procedimentos que visavam estimular a imigração européia em geral. A carta de
Mendonça Furtado, de 25 de junho de 1760, refere-se a um armênio acom panha­
do da família. Esta família dirigia-se a São José do M acapá e recebería, por conta fl. 55). O utros locais referidos na mesma carta foram ilha de São Miguel, ilha do
da Fazenda Real, terras para lavoura, bem como gado, espingarda e ferramentas, Pies[?j, ilha do Fayal, Vila Porto de Môs, Beja, Na. de Estremoz. Profissões
além de seis mil-réis (ANTT, Mss. da Livr., número 51, fls. 17 e 18). Em outro declaradas: alfaiate, serralheiro, ferreiro. O estudo de Artur C.F.Reis mostra que
documento consulta-se o Conselho Ultram arino a respeito da vinda de três casais o povoador de origem portuguesa veio de todas as regiões de Portugal, mas
de irlandeses católicos para as capitanias de São Paulo e de São Vicente. Lá significativa foi a presença do açoreano no Brasil. Vindos em casais mediante
deveríam receber terras e tornarem-se vassalos sujeitos às leis da C oroa portu­ contratos prévios com autoridades de governo e fugindo da exigüidade espacial
guesa (id., F. 1631, fl. 103). Referência clara à condição legal dos povoadores em sua terra natal, os açoreanos foram os que primeiro fixaram costumes agríco­
encontra-se na carta de Mendonça Furtado, de 17 de junho de 1761. .Nela se las e pastoris na Amazônia e sul do Brasil (Reis, 1960). Esse aspecto cultural da
registra a chegada de 85 presos ao Grão-Pará, os quais seriam encaminhados contribuição do povoador já era cristalinamente percebido por Lourenço Pereira
para São José do Macapá- Da relação constam alguns casados, mas na maior da Costa, em 1762, quando comentava com Mendonça Furtado a respeito de um
parte era constituída por solteiros e viúvos e apenas um voluntário (id., número certo M anoel Dias que vivia na Capitania do Rio Negro com filhas, um filho e
51, fl. 102). A origem portuguesa, o movimento migratório e a condição social alguns índios agregados. Sugeriu Lourenço Pereira que, caso esse senhor não
dos povoadores do Grão-Pará podem ser contemplados no seguinte trecho de tivesse crim e que “desmereça indulto e perdão”, lhe destinasse alguma povoação
uma outra carta, desta vez de 22 de abril de 1761: “Quanto aos Ilhéus esses ou que o mandasse fazer. As ponderações de Lourenço estão neste trecho: “ ...este
homens vão sem mais crime, do que saírem com os passaportes fraudulentos de homem tem adquirido grande notícia dos sertões e poderá fazer descimentos,
sua terra, para virem a esta Corte, e dela passarem a diversos países estrangeiros; pela boa fé em que está com o gentio e poderão as filhas casar aproveitando-se
e como são precisos nesse Estado, para povoadores, S. Maj os manda rem eter a aqueles garfos de um Europeu, o que não sucederá se o pai m orrer no mato,
essa cidade [hoje, Belém) e para o Macapá, logo que chegarem” (id, número 51, porque se distrairão e seguirão os ritos gentílicos os filhos delas que será a maior
desgraça” (AHU, cx. 1, doc. 31).
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 181
180

Pergunto-m e da filiação conceituai deste regim ento, que não só Sua preocupação é dirigida ao indivíduo. Rousseau form ula a ques­
m odificava os detentores do poder de adm inistrar os índios, com o tão: se este evento prim ordial implica a reunião de forças separadas
tam bém lançava as condições futuras para sua plena em ancipação, e sua eficácia exige a conservação da liberdade individual, como
isentando-os da condição de escravos e considerando-os em estado estabelecer a obrigação d a associação sem prejudicar cada parte?
de m enoridade e de necessidade de direção. A solução é
O Diretório foi elaborado um a década antes de Rousseau escre­
ver o Contrato social (1762). Tem os, no entanto, o m esm o ambiente encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pes­
de circulação de idéias. Pode parecer estranho im aginar que um a soa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela
obra com o p Contrato social, que glorificava o regim e republicano e qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo,
permanecendo assim tão livre quanto antes [1978, p. 32],
a vontade geral do povo, tendo sido queim ada em G enebra e causa­
do polêm ica em toda a Europa, tenha impregnado, em suas idéias
M as este é o princípio de todo contrato social. A particularida­
organizacionais básicas, um a lei colonial escrita por um a adminisr
de do pensam ento de Jean-Jacques Rousseau está em seu conceito
tração a serviço da m onarquia e cuja finalidade era instruir o gover­
de “alienação total”, segundo o qual todas as cláusulas do contrato
no sobre índios. São textos escritos com objetivos distintos: um lite­
rário, filosófico, político; outro tam bém político, m as objetivam ente social reduzem -se a única condição: que cada indivíduo devote suas
adm inistrativo e jurídico. E, não obstante ser o D iretório anterior, é obrigações e direitos em favor do bem comum. Seria o estabeleci­
nítida sua fonte de inspiração em conceitos que se encontram em mento soberano da vontade geral, em que cada cidadão espera dos
textos, como o Contrato social, que contestam a ordem vigente e demais as mesmas exigências que faz a si mesmo. Concebe, desse
propõem transform ações. Em sua integridade, o livro de Rousseau modo, o fim das tiranias, ou da possibilidade de manifestação da
suscitou irritação entre os que defendiam a m onarquia, mas já con­ vontade de um só senhor sobre os demais, pelo advento da vontade
tinha elementos aceitos ou cuja instauração já era esperada na atm os­ pública expressa pelo “corpo moral e coletivo” formado pela união
fera político-institucional então vigente no continente europeu. de todos e cuja representação é o “Estado” ou o “soberano”, quando
A situação hipotética apresentada por Rousseau em seu Livro ativo, sendo seus associados o “povo” em suas nivelações como “sú­
Prim eiro, capítulo VI, a respeito do pacto social, é justam ente o pro­ ditos” ou “cidadãos” (pp. 33-34).
blema, ou a m aneira com o os funcionários coloniais o encaravam , N ão é absurdo im aginar que esta idéia de “República” chegue a
do dia-a-dia de confronto ou convívio pacífico com os índios: com por leis coloniais. É contraditório visualizar, de nosso presente,
o conquistador construindo um esquem a de permanência que vai
Suponhamos os homens chegando àquele ponto em que os obstá­ produzir sua negação. M as, ao tempo do acontecimento que aqui se
culos prejudiciais à sua conservação no estado de natureza so­ analisa, o conquistador concebia o futuro a partir do que estava cons­
brepujam, pela sua resistência, as forças de que cada indivíduo truindo, conform e o que desejava alcançar, quer dizer, como um
dispõe para manter-se nesse estado. Então, esse estado primitivo aumento de seu próprio mundo, e não sua perda, algum dia. Trazer
já não pode subsistir, e o gênero humano se não mudasse de modo seu m undo im plicava fazer o que faz o escultor platoniano, que de­
de vida, perecería [1978, p. 31], senha, m entalm ente, na pedra, a silhueta de sua criação e, para tomá-
la efetiva, repete o trabalho maquinai de tirar as sobras. Parece-nos,
N estas condições, continua Rousseau, os hom ens não pode-
portanto, que não se trata de qualificar a intenção do colonizador em
riam criar forças por si mesm os e, sim , unir-se, gerando novas for­
relação aos índios. Interessava construir a obra, que requeria uma
ças a partir das existentes. Estaria, portanto, sendo colocada em
transposição do m undo europeu para a colônia.
experiência um a situação propícia ao nascim ento da sociedade civil.
182 Rita Heloísa de Almeida O D iretó rio dos índios 183

No Diretório, os term os dirigidos aos índios transm item expec­ europeu e está fundada na idéia de “bem com um ” com o a garantia
tativas de sua transformação: são “vassalos do rei” , que têm de volta de m anutenção de direitos individuais num a situação de convivên­
a “liberdade de suas pessoas, bens e com ércio” . E suas terras são cia social. Todo o trabalho de civilização dos índios sob a adm inis­
“sertões” que devem ser reduzidos a “povoações bem estabelecidas” . tração do D iretório pautou-se por fazê-los tom ar consciência desta
Há um englobamento nesta proposta, poderia dizer Dum ont, ou, con­ convicção relacionada com o “bem comum ” , persuadindo-os a pra­
forme Rousseau, a intenção é traduzida pelo conceito de “alienação ticar a m esm a crença.*
total” {id, p. 32), ou seja, dar-se ao bem com um (nos term os de hoje, N o Diretório, este intento d e transform ação com eça por situar
massificar-se) por se ter tom ado vassalo da C oroa portuguesa. Note- cada indivíduo na ordem social em construção. Com o já se fazia ao
se neste propósito que tanto há inovação de elem entos, que já se tem po da adm inistração dos m issionários, o docum ento reserva aos
pode identificar na organização política de nossos dias quanto há de índios cargos e funções definidos com o “principais”, “sargentos
resgate de referenciais da estruturação de Portugal em seus pri- m aiores”, “capitães” e “oficiais” . A diferença — enfatize-se — está
mórdios. Os “vassalos do rei”, os de sangue ou os de privilégio, na recom endação de m udança de postura do branco em relação a
constituem uma representação política associada ao processo de for­ essa elite nativa em formação:
talecimento do Estado m onárquico. Seu fundam ento em tom o de
noções de lealdade ao rei, pronto atendim ento em situações de guer­ Recomendo aos Diretores, que assim em público, como em parti­
ra, tendo em contrapartida cessão de terras, privilégios perm anentes cular, honrem, e estimem a todos aqueles índios, que forem Juizes
garantidos pela transm issão hereditária e im unidades políticas e ju ­ Ordinários, Vereadores, Principais, ou ocuparem outro qualquer
rídicas, encontra-se na base da organização política e social portu­ posto honorífico; e também as suas famílias; dando-lhes assento
na sua presença, e tratando-os com aquela distinção, que lhes
guesa.7
foram devida, conforme as suas respectivas graduações, empre­
Considerar os índios vassalos do rei tem a força sim bólica de
gos, e cabedais; para que, vendo-se os ditos índios estimados pú­
reatualizar acontecimentos e personagens relacionados com a cons­ blica, e particúlarmente, cuidem em merecer com o seu bom pro­
tituição política e territorial de Portugal. Ritualização de um m ito de cedimento as distintas honras, com que são tratados; separando-se
origem da nacionalidade de um povo: eis o que acontece quando os daqueles vícios, e desterrando aquelas baixas imaginações, que
índios são tomados vassalos do rei e retirados da condição escrava, insensivelmente os reduziram ao presente abatimento, e vileza
ou do “estado de natureza” . Veja-se que a situação hipotética apon­ (Diretório, parágrafo 9).
tada por Rousseau (anteriorm ente transcrita) é ponto de partida, no
Diretório, para a construção de uma sociedade que segue o modelo E staria lançado, aí, o princípio de respeito aos índios com o
aptos a form arem seus quadros de representação política, bastando
que a interm ediação dos diretores se desse no sentido de ir prepa­
7 Para conceituação de vassalo, considerei fundamental a leitura de um manuscrito rando o am biente social para aceitação pacífica desta m udança de
da Biblioteca da Ajuda chamado: Discurso sobre que cousa he vassalo. A inten­
ção do Discurso é responder a um a indagação. Seu autor (pode ser, inclusive, do
atitude que se pretendia im plantar entre os que estavam à frente da
próprio conselho do rei) responde procedendo a uma com pilação de casos
registrados na Torre do Tombo desde os tempos mais remotos. Esta compilação
causou-me a impressão de estar assistindo aos processos em que a primeira ação * Esta discussão inspira-se na percepção de Dumont sobre os pontos comuns na
se torna exemplo, estabelecendo-se o costume. Do que pude anotar, são definidoras teoria de Rousseau e na de Hobbes. Nas palavras do antropólogo, “ambas postu­
da condição de vassalo as noções de linhagem e de obrigação de prestar serviço lam um a descontinuidade entre o homem natural e o homem político, de modo
ao rei na guerra, fornecendo armas em número estabelecido conforme o foro que que para as duas o contrato social assinala o nascimento real da humanidade
tinha e o lugar que ocupava na casa do rei. propriamente dita” (grifos do autor/1985, pp. 101-102).
184 Rita Heloísa de Almeida O D iretó rio dos índios 185

colonização. Todavia, antes que se tom assem entidades coletivas O parágrafo 12 tam bém dispõe sobre a conduta individual. Tra­
com legitim idade e efetiva representação política, os índios deviam tava-se de intervir nos costum es habitacionais, introduzindo no
ser m odificados com o pessoas, o que im plicaria a negação, a longo desenho do espaço físico destinado à moradia dos índios repartições
prazo, de sua diversidade cultural. internas que exprim em noções européias de vida privada e pública e
O parágrafo 10 declara a condição de liberdade dos índios, respectivas regras de m oralidade para cada domínio. O referencial
resguardando-os da “infâm ia e vileza” da escravidão que estava asso­ espacial que devia ser abolido é a form a tradicional ou a que mais
ciada ao nom e “negros” . Um trabalho que com eçava, mais um a vez, foi encontrada entre os índios amazônicos, que, segundo um obser­
por um a necessidade de revisão da atitude do branco, enraizada que vador do século XIX, o cônego André Fernandes de Souza, estava
estava no costum e de considerar legítim as as escravidões feitas sob representada por
justificação moral:
casas muito grandes com duas únicas portas em comprimento, e
sem paredes porque a cobertura de palha chega até o chão. Nelas
Não consentirão os Diretores daqui por diante, que pessoa algu­
moram de cinquenta a sessenta casais com todos os filhos peque­
ma chame Negros aos índios, nem que eles mesmos usem entre si nos, e regidos do seu principal com tanta harmonia e obediência
deste nome como até agora praticavam; para que compreendendo
que não discrepant em mínimo ponto [Fernandes, 1848, p. 485].
eles, que não lhes compete a vileza do mesmo nome, possam con­
ceber aquelas nobres idéias, que naturalmente infundem nos ho­
Se tal descrição for considerada padrão habitacional dos índios
mens a estimação, e a honra.
am azônicos (e provável m odelo predominante antes da chegada dos
europeus) e com parada com o que se chama de aldeias construídas
O índio, liberto da “ infâm ia” associada ao nom e Negro e habili­
pelos colonizadores, verificar-se-á que se trata de espaços sociais
tado a “em pregos honoríficos” , com eça a ter garantido um lugar rio
m uito diferentes. As casas e o arranjo espacial desses espaços
projeto de sociedade que tam bém se instala onde são aldeados e
construídos pelos missionários e, depois, pelos funcionários da admi­
passam a viver sob a adm inistração de diretores. O próxim o passo
nistração portuguesa seguem referenciais da arquitetura e do plane­
são os estím ulos à nom inação individual, em conform idade com os jam ento das cidades européias. Com relação aos interiores das ca­
costum es do civilizador. N o parágrafo 11, é descrita um a situação sas, as instruções no Diretório transmitem as seguintes noções de
confusa, em razão de os índios não possuírem sobrenom es portugue­ intim idade pessoal e familiar:
ses. Seguram ente, o que se pretendia, a exem plo da obrigação do
uso exclusivo da língua portuguesa, era abolir toda m anifestação de Sendo também indubitável.que paraaincivilidade, e abatimento
singularidade cultural entre os índios em processo de transform ação dos índios, tem concorrido muito a indecência, com que se tra­
de suas pessoas. Prescrevia-se, assim , que tam em suas casas, assistindo diversas famílias em uma só, na
qual vivem como brutos; faltando aquelas Leis da Honestidade,
terão daqui por diante todos os índios sobrenomes, havendo grande que se deve à diversidade dos sexos; do que necessariamente há
cuidado nos diretores em lhes introduzir os mesmos apelidos de resultar maior relaxação nos vícios; sendo talvez o exercício
[correspondem aos que no Brasil chamam sobrenomes] e sobre­ delas, especialmente o da torpeza; os primeiros elementos com
nomes [os nomes], de que usam os brancos, e as mais pessoas que os pais de famílias educam a seus filhos: Cuidarão muito os
que se acham civilizadas, cuidarão em procurar os meios lícitos, diretores em desterrar das povoações este prejudicialíssimo abu­
e virtuosos de viverem, e se tratarem à sua imitação [.Diretório, so, persuadindo aos índios que fabriquem as suas casas à imita­
parágrafo 11]. ção dos brancos; fazendo nelas diversos repartimentos, onde vi­
vendo as famílias com separação, possam guardar, como racionais,
as Leis da Honestidade, e polícia [Diretório, parágrafo 12].
186 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 187

Note-se como o trabalho de persuasão sobre a transform ação N a proposta do Diretório, cada segm ento tem um espaço, um
projetada terá sua eficácia garantida, pois com eça pela intim idade lugar definido, e já não é m ais eqüidistante e eqüitativo ao do vizi­
de cada indivíduo. N a concepção, porém , do espaço social indígena, nho. H á tam bém um centro coletivo com forte conotação sim bólica,
quer dizer, o tradicional (pré-contato), esta intimidade, esse dom í­ cuja form a retangular determ ina.que em tom o dele, e desdobrando-
nio privado se entrelaça com o dom ínio público. Com o se viu ante­ se em linhas retas, geométricas, sejam dispostos os lugares de cada
riormente, essas casas abrigavam segm entos sociais representativos segm ento social, segundo um a série de valores que diferencia uns
de etnias ou, nos term os de Alexandre Rodrigues Ferreira: “cada indivíduos dos outros como detentores de posições e obrigações dis­
maloca, de per si, é um a pequena povoação” (1787/1974, p. 23). tintas. O conquistador im planta sua hierarquia na aldeia, m issão ou
Segundo Alexandre Rodrigues Ferreira, o am biente interno se­ povoação por ele construída.
gue, evidentemente, um a ordem diversa da que pretende im plantar o Segundo N orbert Elias, todo tipo de convivência hum ana tem
Diretório. Há repartições internas, e estas seguem o desenho circu­ um a correspondente organização do espaço social. Em suas pala­
lar das malocas, definindo o lugar em que cada casal tem seu próprio vras:
fogo, instala sua rede e dem ais pertences pessoais. O centro é parti­
lhado por todos, sendo destinado aos trabalhos de subsistência e aos A expressão de sua unidade social no espaço, o tipo de sua con­
momentos de lazer coletivo, com o a dança (id, p. 24). formação do espaço é a representação de sua especificidade pal­
A sensibilidade inferida dessas observações — feitas, um a em pável e — no sentido literal — visível. Neste sentido, portanto, o
tipo de habitação dos cortesãos permite também um acesso segu­
1787 e outra no início do século X IX — com prova que os coloniza­
ro e muito gráfico para compreensão de certas relações sociais,
dores percebiam claram ente esta form a de habitação com o expres­
características da sociedade cortesã [1982, p. 62 — a tradução é
são espacial da organização social e política de seus ocupantes.
minha],
Dizer que o espaço da m aloca tinha consequências sobre o com ­
portam ento de seus ocupantes na geração de vícios de efeito m oral Este procedim ento sugerido por N orbert Elias garante nossa
degenerador era um a form a de persuadir os índios sobre a superiori­ passagem ao tem po da observação sobre o acontecim ento histórico
dade do modo civilizado de habitar. Parece inegável que os conquis­ que se estuda. A leitura dos projetos de aldeias indígenas e de edifí­
tadores, ao viverem sua prim eira experiência de estar no interior de cios em vilas amazônicas que passo a com entar segue de perto a
um a habitação indígena, não se confundiam nem achavam confusa m aneira com o este autor analisou plantas de castelos e palácios euro­
aquela ordem. Não. C aso contrário, os registros de suas im pressões
peus. Exam inem os alguns exemplos.
não seriam retratos bem focalizados daquela realidade histórica, com o Q uando, no Diretório, se redigiam norm as de convivência so­
referido antes. A alegada confusão (prom iscuidade) da ordem espa­ cial com os índios, vieram com pondo as com itivas de governantes,
cial indígena faz parte de um discurso de convencim ento (e de auto-
os especialistas em cartografia, física, engenharia e arquitetura. E ra
convencimento) que precede um a justificativa para im plantar um a
o m om ento da construção das bases adm inistrativas do G rão-Pará
form a de habitação estranha, que com eça po r negar o padrão nativo,
ou, pelo m enos, de fincar os pilares de afirm ação de um dom ínio
promovendo uma segm entação de sua organização coletiva. N o pa­
sobre toda a extensão amazônica, compreendida, naquela época, como
drão nativo, os casais instalados em suas repartições internas à m aloca
as capitanias do Piauí, M aranhão, Grão-Pará, Rio Negro e M ato Gros­
englobam o espaço público, com o que concretizando a idéia de Re­
so. As plantas de Felipe Strum , destinadas à orientação dos edifícios
pública, de bem com um , form ulada por Rousseau, em que cada indi­
públicos, representam padrões de residências relativos a diferentes
víduo é uma representação do todo, quer dizer, fazendo prevalecer o
cam adas sociais da sociedade portuguesa.
domínio privado, em últim a instância.
188 Rita Hetoísa de Almeida O D iretório dos índios 189

Em Plantas e alçados de diversas casas pa ra soldados da Vila espaço deslocado d a configuração anterior, indicando, após a tra­
de Barcelos, vêem -se precisam ente os arranjos habitacionais ideali­ vessia de um rio (ou igarapé), o lugar denominado “Aldeinha” (19).
zados no D iretório e que, no caso, se destinam a residências de sol­ A prim eira explicação para esta representação espacial é que houve
dados casados (figura 19). N ão está explicitado, supõe-se tratar-se um a absorção parcial, por parte da população indígena, no convívio
dos matrim ônios previstos e estimulados em avisos e bandos de adm i­ com civilizados, m antendo-se um a parte menor destacada do geral,
nistrações locais, tendo em vista a intenção régia de prom over o na “Aldeinha” . A segunda explicação tem como referência situa­
povoam ento com os “próprios nacionais” , casando-se os soldados ções de nossos dias, ou seja, cidades que foram originalmente m is­
com as índias das aldeias e m issões. Com o se pode observar, são sões e aldeias estarem sendo habitadas, em seu centro, por popula­
casas coladas um as às outras, apenas separadas por paredes. Q uer se ções não-indígenas, e na periferia por populações descendentes dos
queira ou não, estará m antida a intim idade das repartições indígenas prim eiros índios ali aldeados.
por casais (cuja delim itação sim bólica descartava a necessidade de Para mais um a visão geral de configurações urbanas projetadas
paredes) e, ao m esm o tem po, traz à representação palpável exata­ por Felipe Strum, observe-se a vila de Silvis, antiga Saracá, onde
m ente o que se passava: a conquista, o cotidiano da conquista, fin­ habitavam os índios A nibá e A ruaqui (figura 21). Ali, a form a
cando alicerces urbanos com as marcas de um a arquitetura militar. retangular espelha o sentido da secularização, repartindo em qua­
As casas gem inadas recordam acam pamentos rom anos em áreas con­ drados de iguais dim ensões os poderes civil, eclesiástico e militar.
quistadas e que vieram a definir o form ato de m uitas cidades, com o A expectativa antevista em Barcelos é a mesma: de um lado, a Igreja
Colônia, na A lem anha, Aosta, na Itália, Silchester, na Inglaterra, e Paroquial (A) e, de outro, a C asa de Câmara (B) e o Pelourinho (C).
Tim gad, na A rgélia (Ferrari, 1977, p. 219). N o caso, a marca distin­ Vale observar que a residência do diretor (E) se encontra no espaço
tiva n ã o é a cultura do conqujstador, mas suas estratégias de ocupa­ civil, do lado direito da Igreja Paroquial, tal qual a residência do
ção: toda cidade originada de um acam pam ento m ilitar tem um for­ reverendo vigário, à esquerda (F). Estavam espacialmente reparti­
m ato regular (Carvalho, 1989, p. 11). Tal disposição das casas, se dos os poderes tem poral e espiritual para a população da vila de
m antida no desenrolar da evolução urbana do lugar, fixa o padrão de Silvis. Im plantava-se, no cotidiano dos índios e brancos do Grão-
espaço reservado às habitações das cam adas populares, pois estas Pará, a secularização anunciada por Locke, Pombal e M endonça
são apenas um a seção particular, um bairro, um a rua, na configura­ Furtado.
ção geral da cidade. Estes exem plos de planejam ento urbano no Grão-Pará não se
Um exem plo de configuração geral de um a cidade, cuja repro­ distanciam muito das plantas das aldeias construídas pela adminis­
dução está prejudicada pela dim ensão reduzida do desenho, é Vila tração portuguesa da Capitania de Goiás. Nos dois casos, a dife­
de Barcelos (figura 20), à qual estavam reservadas as casas dos sol­ rença significativa é a antiguidade do projeto. As vilas e lugares
dados casados vistas anteriorm ente (figura 19). Nela, Felipe Strum destinados à civilização dos índios no Grão-Pará são originalmente
concebe um a cidade repartida em duas grandes seções: num a está m issões de ordens regulares. As aldeias da Capitania de Goiás, de
situada a praça em torno da qual agrüpam -se o Palácio dos Plenipo- que há exem plos gráficos, foram construídas ou reconstruídas ao
tenciários (3) [observe a num eração do desenho], o Palácio que anti­ tem po em que vigorava o Diretório como regimento aplicado a povoa­
gam ente foi H ospício (4), as casas feitas para o governo (5), a resi­ ções indígenas. Portanto, reproduzem , cristalinamente, sobre o es­
d ên cia do v ig ário-geral (6) e, na outra seção, a praça onde se paço os propósitos da nova política de civilização relacionada com
encontram o pelourinho (14) e os quartéis (15). os índios.
Com o se pode ver, Barcelos, o prim eiro centro adm inistrativo O prim eiro exem plo é a aldeia de S. José de Moçâmedes (fig.
da C apitania do R io Negro, recém -criada pelo governo pom balino, 22), reconstruída pelo governador José de Alm eida Vasconcelos
crescendo a partir da missão de M ariuá, já reservava aos índios um de Soveral e Carvalho entre 1774 e 1778. Além da afeição pessoal
190 ' Rita Heloísa de Almeida O D ire tó rio dos índios 191

deste governador, ganhando o nom e do lugar de seu nascim ento, Indicações seguras de um m ovim ento social diversificado, além
esta aldeia recebeu um tratam ento especial com o local de experi­ do que engendram as atividades econômicas, é a presença de casas
m entação das idéias do D iretório entre os índios de Goiás. S ua posi­ d a enferm eira, do “m estre e d a m estra dos m eninos” (26), da casa e
ção geográfica próxim a à Vila Boa, centro d a adm inistração da C a­ d a cozinha do “capelão” (29) e a casa dos pertences da Igreja (32).
pitania de Goiás, determ inou um program a de form ação d é grandes N ote-se, em todos os casos, que a função social do ocupante deter­
plantações, criação de gado e introdução de atividades m anufatu- m ina a localização da casa em relação à praça — local público onde
reiras destinadas ao preparo de condições de auto-subsistêncía e estão situados a igreja e os edifícios destinados aos governantes e
escoam ento comercial da produção de seus habitantes (A lencastre, principais adm inistradores da aldeia. Além da praça e das oficinas
1979, pp. 228-229). Este program a está espelhado na planta da al­ de trabalho, há indicações de outros locais de destinação pública:
deia, dadas as indicações relativas à existência de engenhos de fa­ casa de banho (27), casas de despejos (31), casa de pertences da
bricar farinha (16), m oinho (15), serraria (17), curral (23), horta (24), Igreja (32) e, claro, a igreja repartida em capela-m or e sacristia (1).
bananal em grande extensão (25), carpintaria (3Q), casa dos teares Plano projetivo da A ldeia M aria A Primeira (figura 23). E ste
(33) e casa debaixo [o andar térreo) de fábrica de fiar 40 fusos (28). projeto, tam bém situado na C apitania de Goiás e datado de 1782,
Está nitidamente im pressa sobre o espaço um a estratificação social aprim ora o espaço público arborizando a praça (9). Em relação a
das pessoas que ali habitam, conform e sua origem étnica, seus car­ M oçâm edes, traz novas indicações sobre a form ação de um cem i­
gos e funções. É clara a indicação de que a aldeia era frequentem en­ tério (13), quartéis para a tropa (11), e sobre novas form as de cultivo
te visitada pelo governador, tendo em vista a casa de sobrado em que e arm azenam ento, pela introdução de hábitos alim entares europeus
indicados pela presença do paiol para o sal (15), do pom ar (5) e do
se hospeda (5), bem com o casas de hospedagem de seus oficiais (6),
a casa de jantar de Sua Excelência (7), as casas de escravos e pajens parreiral (3).
É digno de destaque a denom inação “quartéis” , que tam bém
(9) e um local destinado a servir de cavalariça (10), o que indica a
está em pregada para indicar casas com “acom odações para 420 ca­
presença de guarnições m ilitares perm anentes ou acom panhando o
governador. sais de ín d io s” , o que m ais um a vez confirm a o caráter de a-
cam pam ento m ilitar m arcando as condições iniciais desses em pre­
As casas de m orada dos índios (11) parecem seguir o m esm o
modelo das plantas de Felipe Strum , e talvez a referência a casas de endim entos.
Não é conhecido o arquiteto desses projetos. Em particular, é
casais (20), colocadas em posição perpendicular à Igreja (1), refira-
valiosa a representação gráfica da aldeia M aria I com o um docu­
se a exemplos concretos de casam entos de índias com brancos que
m ento da história da arquitetura, pois traz, em sua m argem direita,
exercem funções na aldeia. H á indicações da presença de um a cate­
instruções aos construtores sobre o material de construção, as di­
goria inexpressiva, ou inexistente, no Grão-Pará, a do capataz (18 e
m ensões dos edifícios e o planejam ento das ruas. A s sugestões do
21). O número de casas para tal categoria sugere a existência de
autor dem onstram ter sido ele capaz de adequar o conhecim ento da
muitas pessoas com a m esm a classificação cum prindo distintas fun­
arquitetura e engenharia de sua época às circunstâncias do em ­
ções (com o se viu nas m issões espanholas descritas por F. Keller),
preendim ento e à disponibilidade de recursos naturais. Por exem ­
sendo um a delas destinada a cuidar das “bestas da aldeia”, tal com o
plo, o “cipó em bé” (im bé), indicado para substituir o prego na arm a­
o faz o vaqueiro de nossos dias nestas mesmas regiões. Seguem cum ­
ção dos tetos, parece traduzir um a incorporação de técnicas nativas.
prindo função à parte o adm inistrador das roças (14) e, finalm ente, o C om o se vê, o m odelo d e aldeia destinada à civilização dos
“regente”, que, por certo, é a tradução regional do diretor de aldeia índios em G oiás é um a unidade econôm ica preparada para prover e
(12), ambos intencionalmente localizados no rum o dos principais reservar excedentes à comercialização. M as não há indicações de
locais de trabalho da aldeia.
que tal com ercialização se passava no interior da aldeia, cum prindo
O D iretó rio dos índios 193
192 Rita Heloísa de Almeida

assim a função fundam ental à form ação de cidades que é o m ercado religiosos seria de grande valia, porque, como crianças m isturadas a
(W eber, 1967). Vale lem brar que um a das interdições aos índios outras da população nativa, transitavam facilmente entre os dois có­
catecúm enos era justam ente vender seus produtos a estranhos. N ão digos culturais, apreendendo o conhecimento do oütío e repassando-
se deve esquecer tam bém que a lei de 6 de junho de 1755 se refere à lhe as mensagens desejadas pelo conquistador (1991, pp. 187-198).
restituição da liberdade dòs índios, no que tange às suas pessoas, E xam inando as plantas de edifícios ou os desenhos panorâmi­
bens e comércio. A diante, se verá com o esta atividade, tão funda­ cos de aldeias, constata-se que ocorreu o contrário do que pensou
m ental à subsistência do produtor e à diversificação das atividades Pom bal ainda quanto ao particular, em que afirma ser necessário
econôm icas e tão central à m anutenção de qualquer cidade, de p e­ alcançar a “hum anízação” (leia-se civilização) do índio antes que
quena ou grande dim ensão, era controlada pelos diretores de aldeias fosse cristianizado (v. Capítulo 4). D íria que o contrário se deu por­
de form a quase sem pre tirânica, redundando em reproduzir m uito que são as idéias e sua crença que chegam primeiro ao receptor,
m ais as condições de trabalho e produção de um a fazenda colonial com unicando-lhe a conquista. O comportamento, a civilidade e a
(com a incidência de escravidão) do que a dinâm ica social e econô­ habilitação ao trabalho para o colonizador vêm, em seguida, como
m ica de um a povoação livre, com o propunha o Diretório. Serão igual­ um condicionam ento. Entre a experiência de Nóbrega, Anchieta,
m ente analisadas as brechas que possibilitaram os desdobram entos Vieira e a que se apresenta com o um a novidade sob o Diretório e as
indesejáveis da proposta original. Im porta deixar assinalado que es­ leis referentes à liberdade dos índios e à secularização das aldeias,
sas aldeias apresentavam todas as condições para serem elevadas à um processo transcorre com saldo positivo de aprendizado para os
condição de cidades e, com o representavam um com eço, expressam brancos, que, fundam entalm ente, aprendem com as próprias dificul­
tanto em leis quanto em seus planos gráficos as expectativas de im ­ dades que causam e procuram reparar.
plantar o que na época era considerado um padrão de convivência N o Diretório, como, em geral, na documentação oficial dos anos
urbana. do m inistério pom balino, fica reconhecida esta atitude de reparação
Os desenhos da viagem de Franz Keller, em particular o que contida no parágrafo 14, o qual, continuando a tratar da questão abor­
focaliza a M issão de E xaltación (figura 24), fornecem a dim ensão dada no parágrafo precedente, ou seja, a ebriedade com o vício gene­
de profundidade que falta às plantas baixas das vilas am azônicas e ralizado entre os índios, sugere seu com bateram outros meios. Fala-
aldeias goianas, e incitam -nos a pensar em seu cotidiano com o um a se em “refo rm a de costum es” com o tarefa a ser cum prida por
grande lição, o dia-a-dia de aprendizado, as todas as horas preenchi­ diretores. O trecho a seguir fam iliariza-nos com as referências mo­
das na absorção do modo de ser civilizado. rais coetâneas sobre a conduta ideal:
E sta experiência de convívio e aprendizado diário supera os
Advirto aos Diretores, que para desterrar nos Índios as ebriedades,
objetivos das atividades pedagógicas de representação teatral do
e os mais abusos ponderados, usem dos meios da suavidade, e da
Evangelho pelas quais os jesuítas transm itiam aos índios noções de
brandura; para que não suceda, que degenerando a reforma em
bem associadas ao D eus cristão e as de m al relacionadas às formas desesperação, se retirem do Grêmio da Igreja, a que naturalmen­
nativas de percepção do sobrenatural e do divino (Flores, 1978; te os convidará de uma parte o horror do castigo, e da outra a
M ourão, .1981). E xperiência ousada de com unicação foi realizada congênita inclinação aos bárbaros costumes, que seus Pais lhes
pelo Padre Nóbrega. O pesquisador Plínio Freire Gomes (1991), estu­ ensinaram com a instrução, e com o exemplo [parágrafo 14].
dando a atuação deste m issionário, m ostra que ele utilizou am pla­
m ente a língua e cultura indígenas para transm itir (isto é, traduzir) O 15o parágrafo continua a tratar da conduta dos índios aldeados.
aos índios a doutrina cristã. N este mister, segundo o m esm o pesqui­ N o caso, ensina o costum e de vestir-se em conform idade com os
sador, o desem penho dos m eninos órfãos de origem portuguesa que civilizados e sua posição social,
foram trazidos pelo Padre N óbrega p ara auxiliarem nos ofícios
194 Rita Heloísa de Almeida O D iretó rio dos índios 195

sendo efeito não da virtude, mas da rusticidade, tem reduzido a regulam enta as relações de trabalho, o D iretório apresenta um plano
toda esta Corporação de gente a mais lamentável miséria. Pélo
de organização da economia do Maranhão, do Pará e das novas áreas
que ordeno aos Diretores, que persuadam aos índios os meios
que estavam com eçando a ser exploradas e ocupadas — as regiões
lícitos de adquirirem pelo seu trabalho com que se possam vestir
à proporção da qualidade de suas Pessoas, e das graduações de dos rios N egro, Branco, Solim ões e Javari. Retom em os a sua leitura
seus postos; não consentindo de modo algum, que andem, nus, no ponto em que param os, os parágrafos 16 e 17, desta vez sem
especialmente as mulheres [parágrafo 15]. outro docum ento de referência senão o próprio.
N o D iretório, o planejam ento da econom ia coloca em prim eiro
Já se tem, a esta altura, um a idéia do conceito de civilização que lugar a agricultura. Neste sentido, segundo o parágrafo 17, os "dire­
vigorou ao tempo do Diretório. É a própria cultura do conquistador, tores” exerceriam um a função persuasiva sobre os índios, no que se
ou a parte reservada à form ulação de concepções de m undo e ex­ referisse ao valor do trabalho agrícola:
pectativas de aprim oram ento. Com o efeito “visível”, m anífesta-se
no comportamento e na convicção em torno de um a bagagem dè Cuidarão muito os Diretores em lhes persuadir o quanto lhes será
normas e ações identificadas com um a idéia de civilização, que tem útil o honrado exercício de cultivarem as suas terras; porque por
a Europa como centro e o m undo com o sua extensão e que deverá este interessante trabalho não só terão os meios competentes para
sustentarem com abundância as suas casas, e famílias; mas ven­
tomar-se igualmente cristão, m ercantil, pagador de tributos, agríco­
dendo os gêneros, que adquirirem pelo meio da cultura, se au­
la, sedentário e diferencialm ente segm entado em vários níveis de mentarão neles os cabedais à proporção das lavouras, e planta­
poder e obediência. A recom endação prim eira aos “diretores” foi ções que fizerem.
educadora: deveríam ser ou fornecer o “exem plo” aos índios. Era
um a tarefa que exigia uma postura interm ediadora, sobretudo. C on­ N aqueles casos em que os índios não estivessem persuadidos
forme se verá nos parágrafos seguintes que legislam sobre as condi­ quanto à im portância do trabalho agrícola, deveríam os diretores
ções de trabalho do índio para o branco, o aprendizado da quali­ indicar-lhes as conseqüências, fazendo-os com preender
ficação nas atividades econôm icas correspondeu, na experiência •
do Diretório, ao doutrinam ento das idéias cristãs realizado pelos que a sua negligência, e o seu descuido, tem sido a causa do aba­
missionários. timento, e pobreza, a que se acham reduzidos, não omitindo fi­
nalmente diligência alguma de introduzir neles aquela honesta, e
louvável ambição, que desterrando das Repúblicas o pernicioso
A transformação sobre os homens: vício da ociosidade, as constitui populosas, respeitadas, e opu­
um plano econômico de governo lentas” [parágrafo 17],

Atuar como um regimento de trabalho sem pre foi a prim eira C om este jogo de atribuição de honrarias e prêmios aos que
definição do Diretório e a razão de ter substituído o Regim ento das levam o trabalho com afinco, ou, de outra form a, de abatim ento e
Missões. O Diretório atendia ao intrincado problem a da força de pobreza aos que o fazem com desleixo, o D iretório passa a ser um
trabalho para todo o serviço da colonização e para toda categoria m anual de civilização que é essencialm ente de habilitação ao traba­
social de origem européia que a requeriam . U ltrapassa, portanto, a lho para o branco.
intenção missionária da conversão religiosa dentro dos lim ites de O parágrafo 18 esclarece os meios de convencim ento. Estim u­
um a missão, ao apresentar um a proposta mais abrangente de trans­ lar um sentim ento estranho às concepções indígenas, como am bição
formação da condição civil do índio, igualando-a à do europeu da por ganhos, o lucro por meio do trabalho, tem , no Diretório, o apoio
época em que é im plantado. A ssim , ao m esm o tem po em que de um esquem a de prem iação com base em privilégios. E ste se
196 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 197

contrapõe, exem plarm ente, ao outro, de punição e atribuição de res­ E ste trecho contém dados fundamentais. Começa, por exemplo,
ponsabilidade pelas condições de “pobreza” e “abatim ento” em que a ganhar form a a preocupação com a ordenação fundiária, atitude
se acham os próprios índios tidos com o “negligentes”. A didática do precoce e precipitada, quando se pensar na extensão territorial do
teatro jesuítico, que pretende tom ar compreensível os valores cristãos Brasil em face da ínfim a densidade demográfica do país na segunda
de bem e mal pela encenação de seus significados pelos próprios m etade do século X V III, todavia necessária e acertada, como deci­
catecúmenos, renova-se, no Diretório, m ediante este esquem a de são política, se considerarm os que a finalidade era a de ser um plano
prem iação e punição. Em penhar-se nas próprias terras é visto valora- que visava im plem entar tanto a atividade agrícola quanto a habilita­
tivamente com o um serviço público. A quem o fizesse, estaria reserva­ ção de seus produtores. Nos casos contrários às intenções régias,
da um a prem iação em term os de privilégios e em pregos honoríficos. isto é, de índios destituídos de terra com o principal meio de produ­
A criação de um governo form ado com representantes das popu­ ção, o procedim ento seria o seguinte:
lações nativas resulta desses esquem as de estím ulo ao trabalho tra­
zidos ao Brasil para a organização do setor produtivo. O em penho E achando que os índios não possuem terras suficientes para a
na produção agrícola, extrativa, comercia] corresponde, em igual plantação dos precisos frutos, que produz este fertilíssimo país;
medida, às expressões e m anifestações de lealdade política à Coroa ou porque na distribuição delas se não observarão as leis da equi­
de Portugal devida pelos índios eleitos, tornados “ vereadores” , dade, e da justiça; ou porque as terras adjacentes às suas povoa­
çÕes serão dadas em sesmarias às outras pessoas particulares;
“principais”, “sargentos-m ores”, etc., conform e mencionado no pará­
serão obrigados os diretores a remeter logo ao governador do
grafo 9 do Diretório. D ois com ponentes de m esm o peso são m oti­ Estado uma lista de todas as terras situadas no continente das
vadores ideológicos do projeto colonizador: a lealdade política e, mesmas povoações, declarando os índios, que se acham prejudi­
agora, o em penho econôm ico. E stas duas exigências serão per­ cados na distribuição, para se mandarem logo repartir na forma
m anentem ente lembradas no Diretório com o condições indispen­ que Sua Majestade manda.
sáveis à sua própria exeqüibilidade.
N o parágrafo 19, continua a ser tratado o program a agrícola. O vigésim o parágrafo dá continuidade ao interesse pela agricul­
Im plantar o hábito de cultivar para subsistência e para o com ércio, tura, discorrendo sobre a m udança de hábito subjacente na ativida­
quando até então em cada canto do Brasil só haviam sido desenvol­ de. Há que observar que a assim ilação do hábito de cultivar a terra
vidos em preendim entos m onocultores, era um a experiência m uito requer um doutrinam ento sobre suas vantagens para os próprios indi­
nova, que requeria planejam ento pormenorizado. Aqui se trata da víduos, ou de suas desvantagens, em caso contrário. Seriam identi­
organização das bases para um a agricultura diversificada, parte des­ ficados dois m otivos que estariam dificultando o crescim ento da
tinada ao consum o dom éstico interno de cada povoação, parte diri­ atividade agrícola:
gida ao com ércio entre as povoaçÕes e o centro d a adm inistração
colonial de cada capitania (um a vez que o D iretório serviu de m ode­ O primeiro é a ociosidade, vício quase inseparável, e congênito a
lo para todo o país). Com vistas a tal diversificação, era preciso asse­ todas as nações incultas, que sendo educadas nas densas trevas
gurar terras para o produtor. O Diretório faz m enção expressa a da sua rusticidade, até lhe faltam as luzes do natural conhecimen­
destinação de terras aos índios: to da própria conveniência. O segundo é o errado uso, que agora
se fez do trabalho dos mesmos índios, que aplicados à utilidade
particular de quem os administrava, e dirigia; haviam de pade­
Cuidarão logo em examinar com a possível exatidão, se as terras,
cer os habitantes do Estado o prejudicialíssimo dano de não ter
que possuem os ditos índios (que na forma das Reais Ordens de
quem os servisse, e ajudasse na colheita dos frutos, e extração
sua Majestade devem ser as adjacentes às suas respectivas povoa­
de drogas.
çÕes) são competentes para o sustento das suas casas, e famílias.
198 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 199

O segundo aspecto apontado no trecho anterior cham a, mais municionar as tropas, de que se guarnece o Estado: Bem entendi­
uma vez, a atenção para o problem a central, sem pre presente em do, que a abundância da farinha, que neste País serve de pão,
reformulações e novos planejam entos, qual seja, o da disputa, entre como base fundamental do comércio, deve ser o primeiro, e prin­
representantes da Igreja e d a C oroa de Portugal, pelo controle da cipal objeto dos diretores.
força de trabalho. Aqui, se atribui responsabilidade pelos insucessos
econômicos ao tipo de adm inistração que se exerceu sobre o índio, N o parágrafo 23 fica aberta a possibilidade de diversificar a
em alusão aos m issionários regulares. Qualquer que fosse o motivo, produção com p cultivo do feijão, milho e arroz. O algodão é recoT
porém, se o tipo de adm inistração ou a resistência do índio em habi­ m endado com o produto de boa aceitação não só no Reino (Portu­
litar-se ao trabalho agrícola, o fato é que a agricultura ainda não era gal), com o nas dem ais nações européias. O parágrafo 24 sugere o
uma atividade ordinária dos grupos e núcleos de colonização exis­ cultivo do algodão, articulado com a introdução de fábricas de pano.
tentes nos anos de colonização da Amazônia. N o parágrafo 25 é referido o tabaco. Interessa observar que o cultivo
O parágrafo 21 não é um a norma. É o registro histórico desespe­ de algodão e de tabaco expressa a típica produção de “lavoura”, ao
rado da ausência de atividades de provim ento básico de alimentos: passo que m ilho, feijão, arroz estão associados a produtos de “roça” .
A distinção vale para conceituar duas situações, no que se refere ao
Estes sucessivos danos, que têm resultado sem dúvida dos men­ trabalho realizado pelo índio, com o produtor e habitante de povoa­
cionados princípios, arruinaram o interesse público; diminuíram ções onde era experim entada ou prosseguia sua adaptação ao m odo
nos Povos o comércio; e chegaram a transformar neste país a de viver civilizado. Ali, na condição de morador, subordinado a auto­
mesma abundância em esterilidade de sorte, que pelos anos de ridades locais (“diretores” , “párocos” , “ju izes”), o índio aprendia a
1754, e 1755 chegou a tal excesso a carestia da farinha, que gerar condições de subsistência e a experim entar as prim eiras for­
vendendo-se a pouca, que havia, por preços exorbitantes; as pes­ mas de com ercialização da produção a partir de suas roças de peque­
soas pobres, e miseráveis, se viam precisadas a buscar nas fru ­ no porte. Já nas lavouras de tabaco e algodão, culturas tipicam ente
tas silvestres do mato o cotidiano sustento com evidente perigo
das próprias vidas. m onocultoras, o índio erá integrado a processos de produção e com ér­
cio em escala m ais am pla do âm bito do m ercado mundial. A distin­
ção faz ju stiça à organização que supõe a produção destinada ao
Havia uma expectativa otim ista de que o Diretório podería reor­
com ércio. Tanto a produção — principalm ente no que concerne à
ganizar esta situação. N ovam ente a experiência ancestral relativa
lavoura de tabaco, que exige m aior labor — quanto o seu com ércio
aos descobrimentos de novas terras dá diretriz às ações colonizado-
no m ercado europeu são atividades que desencadeiam um a com ple­
ras no Brasil dos setecentos. O parágrafo 22 alude ao procedim ento
xidade de ações e estratificação de funções com diferenciadas atri­
militar que considera a falta de alimento básico (o pão) o prim eiro
buições de poder. O discurso sugerido aos diretores é, neste sentido,
sinal de ameaça à obediência e à disciplina. E descreve a confusão e
o de educar os índios para a organização deste sistem a de produção.
desordem que este fato produz em países ou regiões em que os habi­
A todo m om ento a persuasão quanto ao valor do trabalho ensina que
tantes necessitam ir buscar no estrangeiro o “m antim ento preciso”
os rendim entos são proporcionais ao em penho de cada um:
que podería ter sido produzido por eles próprios. Segundo esta linha
de argum entação, recom enda o cultivo de roças de m andioca, a
“m aniba”, Que os diretores os animem, propondo-lhes não só as conveniên­
cias, mas as honras, que dele lhes hão de resultar; persuadindo-
lhes, que à proporção das arrobas de tabaco, com que cada um
não só as que forem suficientes para a sustentação das suas ca­ deles entrar na casa da Inspeção, se lhes distribuirão os empre­
sas, e famílias, mas com que se possa prover abundantemente o gos, e os privilégios [parágrafo 25].
Arraial do Rio Negro: socorrer os moradores desta cidade: e
200 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 201

O trabalho nas lavouras situa os produtores no quadro das ativi­ Pastoral, que ao digníssimo prelado desta Diocese mandou
dades de sua povoação: são trabalhadores, produtores e consum ido­ publicar em todo o Bispado, respectiva a esta importantíssima
res que em suas atividades desencadeiam as condições de continui­ matéria [parágrafo 27].
dade social dessas povoações nascidas da colonização. As roças
tam bém têm o m esm o peso na articulação do indivíduo com o meio A últim a referência deixa-nos tentados a observar este tributo
social em que vive. com o um a obrigação de destinação religiosa. Mas as recomenda­
A articulação da produção de cada índio com um a destinação ções m inuciosas daí resultantes, relativamente à arrecadação deste
final ao bem com um de dom ínio público de cada povoação está evi­ tributo, sugerem a estreita vinculação deste com a geração de fontes
dente no parágrafo 26, que orienta os diretores a exercerem um con­ de financiamento de ações colonizadoras (inclusive evangelizadoras).
O parágrafo 28 confirm a a importância da cobrança do “dízimo,”
trole preciso sobre a produção de cada indivíduo:
regulam entando e form alizando os critérios de avaliação das roças
dos índios, sobre as quais serão calculadas as taxas de tributação
Serão obrigados os diretores a remeter todos os anos uma lista
das roças, que se fizerem declarando nela os gêneros, que se plan­ devidas.
taram, pelas suas qualidades; e os que se receberam; e também os
nomes assim dos lavradores, que cultivaram os ditos gêneros, Serão obrigados os diretores no tempo, que julgarem mais opor­
como dos que não trabalharam; explicando as causas, e os moti­ tuno, a examinar pessoalmente todas as roçás na companhia dos
vos, que tiveram para faltarem a tão precisa e interessante obri­ mesmos índios, que as fabricaram; levando consigo dois Louva­
gação; para que à vista das referidas causas possa o mesmo Go­ dos, que sejam pessoas de fidelidade, e inteireza; um por parte da
vernador louvar em uns o trabalho, e a aplicação; e castigar em Fazenda Real, que nomearão os diretores; e outro, que os lavra­
outros a ociosidade, e a negligência. dores nomearão pela sua parte.

Este controle tinha um a razão prim eira de existir. E le perm itia N o parágrafo 29 são esmiuçados os critérios desta avaliação.
estabelecer as bases para um a tributação sobre índios, moradores e Os “ louvados” deveríam dirigir-se pelos “ditames da eqüidade, que
produtores dessas povoações construídas pela colonização. O parágra­ se atenda sem pre à notória pobreza dos índios; fazendo-se a dita
fo 27 define o dízim o com o obrigação com um de todos os católicos: avaliação a favor dos agricultores”.

Em sinal do supremo domínio reservou Deus para si, e para os Eis os passos do processo de avaliação:
seus Ministros, a décima parte de todos os frutos, que produz a
terra, como Autor universal de todos eles. Concordando os ditos louvados [peritos] nos votos, se fará logo
assento em um caderno, de que avaliando os louvados F. e, F. a
Os índios, em sua nova condição jurídica, socialm ente equipa­ roça de tal índio, julgarão uniformemente, que renderia naquele
ano tantos alqueires, dos quais pertencem tantos ao dízimo: Cujo
rados aos brancos com o cristãos e civilizados, participam desta con­
assento deve ser assinado pelos diretores, louvados, e pelos mes­
tribuição sendo...
mos lavradores. No caso porém de não concordarem nos votos,
nomearão as câmaras nas povoações, que passarem a ser vilas, e
obrigados daqui por diante a pagar os Dízimos, que consistem na nas que ficarem sendo lugares os seus respectivos principais, ter­
décima parte de todos os frutos, que cultivarem, e de todos os ceiro louvado, a quem os diretores darão também o juramento
gêneros, que adquirirem, sem exceção alguma; cuidando muito para que decidam a dita avaliação pela parte, que lhe parecer
os diretores, em que os referidos índios observem exatamente a justo, de que se fará assento no referido caderno.
202 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 203

A decisão recebe registro formal e é detalhadam ente tratada no m elhor canoa, a equipe (ou com o diziam na época do D iretório, a
parágrafo 30: “esquipação”) e, principalm ente, fariam a escolha do “cabo da ca­
noa”, cuja atribuição fundam ental era transportar os “dízim os” das
Mandarão os diretores extrair do caderno mencionado uma folha povoações para a cidade de Belém. O parágrafo 33 prossegue instru­
pelo escrivão da Câmara, e na sua ausência, ou impedimento, indo os “diretores” a m anter o controle sobre os dízimos. Percebe-se
pelo do público, pelo qual se deve fazer a cobrança dos dízimos; nitidam ente que a fiscalização desse im portante tributo era efetiva­
cuja importância líquida se lançará em um livro, que haverá em da mediante intensa vigilância sobre cada instância por onde passa­
todas as povoações, destinado unicamente para este ministério, e vam os “dízim os” . Acom panhem os sua tram itação:
rubricado pelo provedor da Fazenda Real: declarando-se nele em
o título da receita assim as distintas parcelas que se receberão,
Apenas se fizer real entrega deles [dízimos] neste almoxarifado,
com os nomes dos lavradores, que as entregarão: Concluindo-se
os mandará o provedor da Fazenda Real carregar em receita viva
finalmente a dita receita com um termo feito pelo mesmo escri­
ao almoxarife; declarando nela o nome da vila, de que vieram os
vão, e assinado pelo diretor, como recebedor dos referidos dízi­
tais dízimos, e o diretor, que os remeteu; de cuja receita mandará
mos. Advertindo porém que nem um, nem outro, poderão levar
entregar o dito ministro uma certidão ao cabo da canoa, para que
emolumentos alguns pelas referidas diligências, por serem
sirva de descarga ao dito diretor; e para que a todo o tempo, que
dirigidas à boa arrecadação da Fazenda Real, à qual pertencem
for removido do seu emprego, possa dar contas nesta provedoria
em todas as conquistas os dízimos na conformidade das Bulas
pelas mesmas certidões do líquido, que remeteu para ela. E dada
Pontifícias.
que seja a dita conta na forma sobredita, o provedor da Fazenda
Real lhe mandará passar para sua descarga uma quitação geral,
O trecho destacado afasta qualquer dúvida rem anescente sobre que apresentará ao governador do Estado, para lhe ser constante
o destino dos rendim entos arrecadados sobre a produção dos índios a fidelidade, e inteireza, com que executou as suas ordens.
moradores das povoações do Diretório. O parágrafo 31 refere-se ao
“Armazém” com o sendo um instrum ento central neste processo de N o parágrafo 34, o Diretório pondera que a responsabilidade
arrecadação de gêneros. N ovam ente os diretores são incum bidos dos “diretores” sobre os parágrafos respectivos “à cultura das terras,
de sua administração, encarregando-se dos gêneros, das providên­ plantações dos gêneros e cobrança dos dízim os” deve ser prem iada,
cias sobre seu beneficiam ento, assim com o sua rem essa p ara a ou melhor, paga com
“provedoria”.
O parágrafo 32 regulam enta a rem essa de “dízim os” em barca­ a sexta parte de todos os frutos que os índios cultivarem e de
dos nas “canoas de transportes”, instruindo sobre todas as etapas e todos os gêneros, que adquirirem, não sendo comestíveis: e sen­
obrigações de cada pessoa envolvida na consecução deste serviço. do cometíveis, só daqueles que os mesmos índios venderem, ou
Os “diretores” estariam encarregados de m andar fazer duas guias com que fizerem outro qualquer negócio
extraídas do “livro dos d ízim o s”, no qual tais avaliações estão
registradas, para, a seguir, encam inhá-las, uma, ao “provedor” da A intenção d esse sistem a de pagam ento é, m anifestam ente,
“Fazenda Real” e, outra, ao “governador” . Acautelando-se contra m anter vivo o interesse econôm ico dos “diretores” pelo serviço que
perdas causadas por naufrágios e outros desastres, os “diretores” executam ju n to aos índios, estim ulando-os a se r os prim eiros
também ficariam incum bidos de fazer um “term o de despesa”, obser­ em preendedores. E ste expediente abriu aos “diretores” a possibili­
vando o mesmo form ato utilizado no da “receita” — o que, em meu dade d e rec o rre r a form as extrem adas de adm in istração . Seu
entender, configura um a espécie de seguro sobre o investim ento. gerenciam ento em relação a pontos fundamentais da vida econôm i­
Finalm ente, os “direto res” estariam encarregados de esco lh er a ca das povoações, agora estimulada pela possibílidadp de participação
204 Rita Heloísa de Almeida O D iretó rio dos índios 205

percentual nos rendim entos gerais da produção dos índios, tom aria porque deste modo, nem os índios poderão falsificar os paneiros
fácil a introdução, ou até m esm o a continuidade, da adoção de meios na diminuição dos gêneros; nem as pessoas, que comerciam com
escravistas de exploração de sua força de trabalho. O planejam ento eles experimentarão a violência de os satisfazer como alqueires
da produção agrícola encerra-se nos dispositivos que tratam da tri­ não o sendo na realidade: Estabelecendo-se deste modo entre uns,
e outros aquela mútua fidelidade, sem a qual nem o comércio se
butação. A partir do parágrafo 36, tem início a discussão sobre o
pode aumentar, nem ainda subsistir.
com ércio e seu pesó sim bólico com o índice de civilização:
A segunda, que nenhum índio teria pleno arbítrio de com er­
Entre os meios, que podem conduzir qualquer república a uma
cializar com civilizados sem a assistência de seus “diretores” .
completa felicidade, nenhum é mais eficaz que a introdução do
comércio, porque ele enriquece os povos, civiliza as nações, e Retom a-se, neste parágrafo, ao tem a da menoridade do índio, já dis­
conseqüentemente constitui poderosas as monarquias. cutido em outras partes do Diretório e sempre servindo de explicação
para intervenção de um tutor na relação de troca entre índios e bran­
O conceito de civilização é expressamente considerado um ideal cos. O argum ento é sem pre a “rusticidade” e “ignorância” , mas, des­
de realização última. O intercâm bio implícito na atividade com er­ ta vez, estas qualidades que denotam selvageria sugerem proteção,
cial é sinônim o de com unicação entre povos, interesse m útuo, rique­ “assistência” . N ão se deseja mais perpetuar “a odiosa separação”,
za e civilidade. Ficava assim mais um a vez reconhecido o com ércio tão criticada pelos executores do Diretório, como tendo sido a atitu­
(e A ntônio Vieira já falava da im portância das “feiras”) com o um de dos m issionários em não perm itir o intercâmbio comercial entre
m eio fundam ental de educação dos índios. M ediante o livre estabe­ índios e outros grupos e categorias sociais da colonização. Aqui, “a
lecim ento do com ércio, introduzia-se entre os índios o hábito de liberdade consiste na alm a do comércio” . Contudo, a condição de
“desinteresse e ignorância” dos índios é contraposta à condição de
venderem pelo seu justo preço as drogas, que extraírem dos ser­ “conhecim ento e am bição” dos moradores, para m ostrar que nesta
tões, os frutos que cultivarem, e todos os mais gêneros, que ad­ precisa situação a liberdade de “arbítrio” e “convenção” estaria pre­
quirirem pelo virtuoso, e louvável meio da sua indústria, e do seu judicada pela desigualdade das partes em intercâmbio. Com tais pon­
trabalho. derações, o Diretório justifica a intervenção (ou a procuração) me­
diante a figura tutelar do “diretor” ,
O parágrafo 37 reporta-se à expectativa entrevista no anterior,
de iniciar os índios nas atividades de intercâm bio comercial. Entre­ para que regulando estes racionavelmente o preço dos frutos, e o
tanto, deveria ser limitado o alcance daquele propósito, porque os valor das fazendas [tecidos], sejam recíprocas as utilidades entre
índios “...em sua rusticidade e ignorância não podem com preender a uns, e outros comerciantes [parágrafo 39].
verdadeira e legítim a reputação de seus gêneros” .
Por este m otivo, os “diretores” deveríam atuar com o interm e­ A vigilância faz-se sentir, inclusive, sobre a disposição de consu­
diários no interesse dos índios, zelando pelas boas condições de co­ mo que o índio terá de m oldar à visão utilitária de seus educadores:
m ércio. O parágrafo 38 estabelece as condições em que se faria o
com ércio entre índios e demais pessoas civilizadas, com a inter­ Não consentirão os diretores, que eles comutem os seus gêneros
m ediação de “diretores” . por fazendas, que lhe não sejam úteis, e precisamente necessárias
A prim eira condição reza que toda povoação teria “pesos e me­ para o seu decente vestido, e das suas famílias, e muito menos
didas”, e seus valores deveríam ser aferidos pelas “câm aras”, por aguardente que neste Estado é o seminário [sementeira] das
maiores iniqüidades, pertubações, e desordem [parágrafo 40],
O D iretó rio dos índios 207
206 Rita Heloísa de Almeida

A proibição de venda de aguardente nas povoações é tratada a que serão assinados pelos mesmos Diretores, e comerciantes,
extraindo-se uma lista em forma autêntica, a remeterão todos os
seguir, no parágrafo 41. D a observância desta norm a participam o
anos ao governador do Estado (parágrafo 44].
“principal” e o “escrivão d a câmara”, com ordens de exam inar as
embarcações e de punir a transgressão, que só excluía o uso pessoal
N ote-se, aqui, e ao longo do Diretório, que cada norm a desen­
da aguardente pela equipe de embarcação. C ausa estranheza obser­
cadeia o concurso articulado de um m esm o quadro de funcionários
var que esta atitude de punição se com pleta com a apreensão da
situados em postos-chave de controle d a produção e com ercialização
aguardente para cobrir gastos na mesma povoação, o que parece in­
geradas nas povoações. Essa elite local, na qualidade de representante
dicar um consentimento velado para seu uso, ainda que sob o ditam e
do poder central, com funções de adm inistrar a produção interna das
de considerações morais. N o mesmo parágrafo há ainda referência à povoações, é que assegura o m onopólio da econom ia em m ãos do
intervenção de “diretores” na escolha de tecidos. São expressas as Estado. É preciso lem brar que este m esm o esquem a foi adm inis­
recomendações quanto à escolha de “fazendas” que atendam à utili­ trado pelos m issionários, tendo em vista que a quebra (ou mesmo
dade e à necessidade dos índios e suas fam ílias. M oldando o gosto é perm anente recusa) de fidelidade política à Coroa de Portugal foi a
o hábito de alimentação e de vestimenta, os “diretores” também esta­ prim eira e talvez única razão de sua substituição por funcionários
riam introduzindo, entre os índios, a prática do. uso do dinheiro me­ seculares.
diante considerações sobre o valor das m ercadorias, o salário ganho, O quadragésim o quinto traz ao texto a paisagem am azônica,
bem assim noções de usura e de desperdício (fala-se m uito em “arti­ tom ando-a com o referência na definição das form as de com unica­
gos de luxo”). Note-se que o “diretor” participa de todos os setores ção e de adm inistração da produção dos índios:
da cadeia econômica resultante do trabalho rem unerado realizado
pelo índio ou da com ercialização de sua produção agrícola e ex- Por este país cercado por toda a parte de rios, pelos quais se po­
trativa, isto é, de todas as atividades que lhe propiciariam acesso ao dem transportar os gêneros com muito facilidade, e pouca des­
dinheiro. pesa; recomendo aos diretores, que persuadam os índios pelos
O parágrafo 42 confirm a o consentim ento sobre o uso da aguar­ meios da suavidade, quais são neste caso, o propor-lhes a sua
dente pelas equipes de em barcações, detalhando o respectivo proce­ maior conveniência, que conduzam para a cidade todos os gêne­
ros, e frutos, que aliás poderíam vender nas suas Povoações; ob­
dimento. Afinal, o D iretório legislava sobre todos os aspectos refe­
servando os diretores nesta matéria aquela mesma forma, que se
rentes à dinâm ica social das povoações e ao funcionam ento das determina nos parágrafos subsequentes a respeito do comércio
comunicações entre elas e os centros coloniais. O com ércio só esta­ do sertão [parágrafo 45].
ria destinado a gêneros que não fossem do consum o interno dos pro­
dutores. Este é o quadragésim o terceiro parágrafo. A partir do parágrafo 46, o Diretório dedica-se a regulam entar
Havería um “livro do com ércio”, no qual seriam registradas to­ as questões que envolvem as atividades de extração e outras de ma­
das as transações comerciais: nuseio m aior, tal com o o fabrico da m anteiga de tartaruga, o óleo de
“cupaiva” , o azeite de andiroba.
Rubricado pelo Provedor da Fazenda Real, no qual os diretores Isto evidencia ter o Diretório sido escrito para o am biente ama­
mandarão lançar pelos escrivães da Câmara, ou do público, e na zônico. O s parágrafos seguintes tratam da organização de um a pro­
falta destes pelos mestres das escolas, assim os frutos, e gêneros, dução sugerida pelos próprios recursos naturais da região: os gêne­
que se venderão, como as fazendas porque se comutarão; expli­ ros do sertão, abundantes nas adjacências das povoações. A própria
cando-se a reputação destas, e o preço daquelas, e também o nome
localização destas confirm ava o extrativism o como solução econô­
das pessoas, que comerciaram com os índios, e de cujos assentos,
m ica e o transporte fluvial com o o m ais adequado.
208 Rita Heloísa de Almeida

1. Malaca. Em Silveira, 1955,


O parágrafo 47 determ ina que os “diretores” informem sobre as estampa 815. .

qualidades das terras adjacentes às povoações, observando, no casò,


quais gêneros são abundantes e respectivas possibilidades de com er­
cialização. N esse parágrafo, duas m áxim as sobre o com ércio são
m encionadas com o orientação às atividades extrativas e seu inter­
câm bio nas povoações. D a prim eira em ana o otim ism o acerca da
rentabilidade da atividade mercantil. Ensina que todo gênero que
im p lica m enos custo (m enor tem po e m enor núm ero de trab alh a­
dores) terá m elhor consum o e será m elhor reputado no m ercado.
A segunda m áxima defende a diversificação na produção e no co­
m ércio, entendendo que, quanto mais abundante for a produção de
um a só “fábrica ou extração”, maior será o abatimento sobre seus
produtores.
Há, nesses parágrafos, um a clara intenção de corrigir, reparar
os problemas causados por um a produção monocultora, tendo em
vista experiências passadas e contem porâneas ao Diretório, quando
este tipo de organização da econom ia gerou situações sim ultâneas
de luxo e m iséria para as regiões e seus produtores. É o caso das
áreas de extração de ouro em M inas Gerais e Goiás. Observava-se 2. Rotas marítimas dos
— e o texto do D iretório o reconhece — que a colonização, pelo portugueses.
m enos da região amazônica, necessitava, para sua continuidade, man­
ter ativa a intercom unicação das povoações por meio da organização
de um a produção econôm ica diversificada e complementar: “porque
as referidas povoações não poderíam mutuamente socorrer-se, com ­
prando um as o que lhes falta, e vendendo outras o que lhes sobeja
[parágrafo 47]” .
N o parágrafo 48 são citados produtos de boa receptividade co­
m ercial: os peixes, para os quais seriam construídas as feitorias das
salgas, e as culturas de cacau, salsa e cravo, nas adjacências das
povoações.
O quadragésim o nono introduz questões relacionadas com a SSi
principal atividade em todo Grão-Pará e São José do Rio Negro: o
■ p llT O p
“com ércio do sertão”, isto é, a extração e com ercialização de espé­
cies nativas destas regiões. De imediato observa-se a preocupação
em racionalizar esta atividade, alocando pessoas que não estivessem
ocupadas no “trabalho da cultura das terras” . A agricultura de sub­
sistência continua a ser destacada com o o “prim eiro objeto” dos C tlíÇ À Dfc bulsvdÉRÇ "#'.0 rj. 7>k-jtf WH iBo*
6. Madã. Em
Livro das
plantas das
fortalezas,
cidades e
povoações do
Estado da índia
Orientai, 1641/
1991, p.52.

7. Damão. Em
Livro das
plantas das
fortalezas,
cidades e
povoações do
Estado da índia
Oriental, 1641/
1991, p. 57.

8. Chaul. Em
Livro das
plantas das
fortalezas,
cidades e
povoações do
Estado da índia
Oriental, 1641/
1991, p. 67.

il

9. Negatapatam. Em
Livro das plantas das
fortalezas, cidades e
povoações do Estado
da IndiaOriental,
1R41/1991. d .102.

12.Theodore de Bry 11. Manora. Em Livro das plantas


Americae Tertia Pars das fortalezas, cidades e
Francofort, 1592 povoações do Estado da índia
(Viagens de Hans Oriental, 1641/1991, p. 63.
Staden, 1549-1553).
Em Brasil nas vésperas
do m undo moderno, 13. Kleedinghe van Maragnan,
1992, p.123. BNL, Iconografia, estampa 1667 R

10. São Tomé. Em Silveira, 1955, estampa 794.


íii

s.
15.Goa. Em Silveira, 1955, estampa 604.
SEKRA D Ê jÍSERÍJVJ

16. Salvador. Em Silveira, 1955, estampa 1020.

ji.

14. Asserim. Em Livro das


plantas das fortalezas,
cidades e povoações do
Estado da índia Oriental,
1641/1991, p. 61.
17. Cochim. Em Livro das
plantas das fortalezas, 20.Vila de Barcelos antiga aldeia
cidades e povoações do de Mariuá. Desenho de F. Strum.
Estado da índia Oriental, Em Mendonça, 1963, v. 1.
1641/1991, p.88.

18. Apontamentos de
21. Planta da vila
de Silvis erigida
pelo llmo.Snr.
|
ii
estratégia militar, BNL, Joaquim de Meio
Reservados, mss. 33, e Póvoas,
número 40. governador desta
capitania.
Desenho de Felipe
Strum. BNL,
19. Elevação das casas e
Iconografia,
alçadas que se estão
fazendo em um dos lados D.199.A [784],
da nova praça para os í
moradores soldados
casados nesta vila de i
Barcelos. Desenho de 22. Pianta da
Felipe Strum. BNL, Aldeia de S. José
Iconografia, D.200.A [786]. de Moçâmedes.
BNL, Iconografia,
D.117. R [1116].

- i - i - , --------- (_ o—■ 4
w 2> éná ACj- > imè
J «4w : s

4 4 -L
_ u __
J- JL ±
-1 J L -
4 4 _L 1, -L J.
— Li— 11—
23. Plano projectivo de
um novo
estabelecimento de
índios da nação
Caiapó. A H U, 27. Vila Abrantes da
26. Aldeia de São
Cartografia anexa doc. Comarca do Norte. À H U ,
Fidelis. AHU, [ca.1794].
Goiás, 1782. [ca 1794], Ms. Av.
Ms. Av.

24. Ancient mission of


exaltacipn (Mamoré).
Em Kelier, 1874.

28.Caert Van Spiritu Santo. Em Silveira, 1955, estampa 1047.

25. Mapa
circunstanciado de
todos os habitantes
que existem nas
diferentes povoações
anexas è Fortaleza de
São Joaquim do Rio
Branco, 1786, caixa 12,
doc.
29. Planta da Vila Nova de Mazagão. 30. Praça de Mazagão. Século
A H U, Pará 822 lea. 1830], XVIII. Em A engenharia miiitar no
Brasil e no Ultramar português
antigo e m oderno. 1960.
35. Prospecto do forte e da aldeia dePauxis. 36. Mapa da região amazônica, por
Em Schwebel, 1758, fls. 24. d'Anville, 1748. Em Question des limites j
du Brésil et de la Guyana Angíaise j
soumise a /'arbitrage de S.M . Le Roi ;
d'ltalie. Atlas accompagnant le prem ier j ■
m ém oire du Brésil, 1903, folha 17. í.:

j j . mapa da aldeia do principal


34. Prospecto da Aldeia
Majury. AHU, 773 (371).
chamada Jaú, administrada
pelos religiosos carmelitas.
Em Schwebel, 1758,fls. 29.
O D iretório dos índios 209

“diretores”. Estes, na adm inistração de suas povoações, convocari­


am os “principais” e dem ais índios para um a consulta sobre o desejo
da população trabalhadora dessas povoações de “ir ao negócio do
sertão” . E ssa consulta devia observar o que era chamado “leis da
alternativa”, ou seja, a distribuição eqüitativa entre a mão-de-obra
que perm anecia nas povoações e a que se destinava aos serviços
externos.
O parágrafo 50 versa sobre as expedições para extração de dro­
gas do sertão. A escolha e o núm ero de índios caberíam aos “princi­
pais”, “capitães-mores”, “sargentos-mores” e “oficiais”. Representan­
do o “governo das povoações”, conform e o início da argumentação
deste parágrafo, é natural que esta elite local delibere sobre pessoas
que executem em seu lugar o serviço da extração de drogas do ser­
tão. M as esse privilégio não im pede que tais pessoas possam partici­
par diretam ente das expedições, o que confirma a importância da
atividade extrativa, quase sempre central, na vida econômica das
37. Mapa da região amazônica, por povoações amazônicas. N ovam ente o que o Diretório reafirma é a
Seraphim José Lopes, 1813. Em
Question des limites du Brésil et de necessidade de distribuir equitativam ente as funções e os serviços,
Ia Guyane Ang/aise soumise a —— de m odo a não prejudicar o crescim ento espontâneo das populações
/'arbitrage de S.M. Le fíoi dita He.
Atlas accompagnant te premier
e atividades econôm icas desenvolvidas dentro das povoações. Não
mémoire du Brésil, 1903, folha 63; há a m enor dúvida, portanto, que o D iretório atendia a duas grandes
tarefas, em si complementares: organizar povoações para atuarem
com o unidades econôm icas e tam bém com o núcleos de povoamento,
para a transform ação gradual destes em vilas e cidades.
O quinquagésim o primeiro parágrafo trata da administração re­
lativa ao negócio do sertão, do controle administrativo sobre a expe­
dição das canoas e do registro das despesas nos livros das “câmaras
das povoações”. Este controle principia com o encaminhamento,
pelos “diretores”, de um a petição ao governador do Estado, infor­
m ando em detalhes o número de índios que deverão compor as equi­
pes (“esquipações”).
O parágrafo 52 autoriza seja incluído maior número de índios
(até 12) para suprir faltas inesperadas po r falecimento, enfermidade,
38. Mapa das canoas [...] ou m esm o fugas.
comandada pelo tenente coronel O parágrafo 53 realça a im portância das funções do “cabo da
engenheiro e primeiro comissário canoa” neste comércio. É referida a possibilidade de estes cabos
da Divisão Dom Francisco
Requena. A H U , caixa 5, doc.7. burlarem as normas do intercâm bio fazendo negócios particulares
210 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 211

com os índios. Exige-se, no caso, sejam eles nom eados pelas “câm a­ quarto, reservando a sexta parte aos diretores e, por últim o, repar­
ras” e “principais” , levando-se em consideração as qualidades de tindo-se o “rem anescente” em partes iguais p o r todos os índios.
“reconhecida fidelidade, inteireza, honra, e verdade” . Supõe-se que tal divisão não fosse eqüitativa, já que nos pará­
O parágrafo 54 reserva aos “diretores” mais um a função: a de grafos anteriores, principalm ente o de n° 50, legislou-se sobre o
fiscalizar as canoas logo que chegassem em suas respectivas povoa­ direito de as lideranças de cada povoação escolherem os índios para
ções, verificando se as condições previstas no parágrafo precedente fazerem parte dessas expedições. A releitura do parágrafo 50, po­
estão sendo observadas. C aso contrário, o “diretor” estaria investido rém , perm ite entender que o privilégio residia em escolher tal ou
de autoridade para prender infratores, rem etendo-os ao governador qual núm ero de índios que fosse ao sertão, sendo, portanto, a po­
do Estado. sição que ocupava no quadro de poder local o que definia o rendi­
Segundo o parágrafo 55, a carga contida nessas em barcações m ento. Explico melhor, com o vimos, no parágrafo 50, os “princi­
deveria ser rigorosam ente exam inada. Os “diretores” deveríam re­ p a is” podiam escolher até seis índios, enquanto os “capitães” e
gistrar no “livro do com ércio” todos os gêneros. O exam e seria feito “sargentos-m ores” podiam escolher até quatro e os “oficiais” ape­
na presença dos “oficiais da câm ara” e dos índios interessados. Os nas dois. H á um a estratificação dos lucros j á definida prèviam ente
“diretores” fariam expedir “duas guias” que seriam registradas no pela posição adm inistrativa, política, social ocupada por essas pes­
“livro do comércio” e entregues aos “cabos das canoas”, que as leva­ soas, pois que, na distribuição em “partes iguais” entre todos os ín­
riam ao “governador do E stado” e ao “tesoureiro-geral” dò com ér­ dios que participam das expedições, estes representam unidades
cio dos índios. percentuais para seus patrões. Por outro lado, não parece que esses
A eficácia do controle sobre o comércio efetivado em largas índios participassem dos lucros, do rendim ento da venda dos gêne­
extensões territoriais residia no concurso de poucas pessoas com ros do sertão na cidade. Com o reza o mesmo parágrafo 50, os índios
funções de confiança e com instruções para atuarem em contato di­ que fossem ao sertão deviam receber salários, cabendo aos “oficiais”
reto com o centro de decisões. N o trajeto que liga o “diretor” ao a obrigação de efetuar este pagamento, em conform idade com as
“governador” , há m ediações locais. Já foi dito anteriorm ente em ou­ “ reais ordens”, as quais deveríam orientar-se pela lei que restituíra a
tros termos, e volto a repetir, que o Diretório estabelece um a relação liberdade aos índios, a de 6 de junho de 1755.
de interdependência, com base na organização da econom ia e no O parágrafo 57 regulamenta o pagam ento dos dízim os em tran­
quadro de pessoas encarregadas de seu funcionamento. A intenção é sações com erciais, definindo a quem cabe a direção desta operação.
o crescimento interno, o fortalecim ento das povoações m ediante a N a cidade (e certam ente é Belém que está em foco), a direção da
interdependência comercial que se desenvolve com as demais povoa­ referida operação cabe ao “tesoureiro” e nas povoações está reser­
ções e que é incorporada pelos centros coloniais, ou seja, as vilas e vada aos “diretores”, seguidos dos peritos, nos term os das form ali­
cidades maiores, sedes adm inistrativas das capitanias. dades j á descritas ao se tratar do parágrafo 30.
O parágrafo 56 m ostra que n a cidade, destino final dessas O parágrafo 58 determ ina que os salários pagos aos índios não
embarcações, os “cabos das canoas” deviam entregar as “guias de sejam entregues em dinheiro. R etom a-se ao tem a d a m enoridade.
carregação” ao “tesoureiro”, que a partir de então tom ará a direção A intenção é intermediar a relação do índio com o dinheiro, dificultan­
de todas as transações, com eçando pela conferência das cargas, a do-lhe a independência que o trabalho rem unerado ou o livre com ér­
avaliação de seu valor de venda, a reputação dos gêneros e, por fim, cio lhe proporcionaria. O “tesoureiro” não p ag a o salário a cada
sua comercialização. É tam bém o tesoureiro quem distribui o di­ índio que participa da expedição. Ele efetua um a com pra de “fazen­
nheiro recolhido na venda: prim eiro, reservando à Fazenda Real os das” que ju lg a r necessário aos mesmos índios. C om o esta form a de
“dízimos”; segundo, ressarcindo as despesas com a expedição; ter­ pagam ento está prevista aqui no Diretório e em outras leis, supõe-se
ceiro, pagando ao “cabo da canoa” sua parte previam ente arbitrada; que a rem uneração podería ser efetuada em troca de gêneros alimen-
O D iretório dos índios 213
212 Rita Heloísa de Almeida

localiza a imagem deste ideal nas cortes européias. Mas é no pro­


tícios e m ercadorias m anufaturadas, tais com o ferram entas e outras cesso colonizador, do qual participa o Diretório como um de seus
julgadas necessárias aos índios por seus patrões. projetos, que ela assum e a dim ensão de um ideal representativo da
D o parágrafo 59 em diante, passa a ser introduzida a questão da civilização ocidental, um conjunto de idéias que compõem a identi­
distribuição dos índios. No parágrafo 60, alude-se, de form a crítica, dade dos povos europeus em face de outras culturas existentes fora
à situação anterior de adm inistração, no que diz respeito à distribui­ da Europa.
ção dos índios pelos m issionários. C oloca-se com o questão do Esta­ O parágrafo 63 discorre sobre o sistema de repartição dos índios.
do o problem a da repartição: A ntes, a repartição levava em conta três setores: missionários, mo­
radores e serviços internos às povoações. A partir do D iretório
. Porque faltando aos moradores dele [o Estado] os operários de determ inou-se que os índios seriam repartidos em dois grupos: um
que necessitam para a fábrica das Lavouras, e para a extração das
perm anecería nas povoações, para “a defesa do Estado, as diligên­
drogas, precisamente se havia de diminuir a cultura, e abater o
comércio. cias do R eal Serviço” , enquanto o outro serviria aos moradores, “não
só para a esquipação das canoas, que vão extrair drogas ao sertão,
N o que se refere ao parágrafo 61, a lei de 6 de junho de 1755, mas para os ajudar na plantação dos tabacos, canas-de-açúcar, algo­
que restitui a liberdade dos índios, é entendida com o solução para o dão, e todos os gêneros, que podem enriquecer o Estado e aumentar
problem a central dos m oradores, porque transform a os índios em o com ércio”.
trabalhadores assalariados. “O breiro”, “operário” são term os que N ão há alteração significativa na form a de repartição, mas ape­
exprim em a nova situação jurídica dos índios. Não são mais escra­ nas em relação à relevância e aos poderes de cada segmento ali dis­
vos, e tam pouco os índios se equipararam social e econom icam ente crim inado. Os m issionários não são completamente excluídos. Per­
aos colonos, aos moradores. Entretanto, assinala-se, com o Diretó­ dem o poder tem poral sobre os índios, mas conservam a função
rio, o início de um a relação contratual de trabalho m arcada pela inter­ evangelizadora, garantindo sua presença permanente em meio aos
dependência entre as partes e sob a guarda dos interesses do Estado. civis, na figura dos párocos.
O parágrafo 62 é breve e genérico. Trata das exigências básicas A situação das povoações e de seus serviços internos supera a
para a repartição dos índios destinados ao serviço dos moradores. fase inicial, de sim ples núcleos de povoamento, e adquire novo sen­
Prim eiro, a de que os moradores apresentassem “portarias” assina­ tido. Elas se tornam aglom erações urbanas, espaços públicos onde
das pelo “governador de Estado” autorizando a cessão. Em segundo todo trabalho se volta para o bem comum (e não somente no interes­
se dos m issionários). Assim, melhorias internas dentro das povoa­
lugar, deveríam seguir a orientação central, no sentido de que a dis­
tribuição dos índios constitua um a necessidade, um bem comum, ções, atividades econôm icas, tais como roças, plantações e também
que estava acim a de todos “os incôm odos e prejuízos particulares”. serviços de dem arcação e de defesa do Estado, ganham nítido signi­
ficado de serviços públicos. H avia igualmente os serviços externos
N os dois últimos parágrafos, já se vislum bram as duas grandes
idéias de organização institucional que desencadeiam a atitude de às povoações, ou mesm os internos, mas destinados aos moradores
obediência e aglutinam esforços: o Estado e o bem com um . Em seu em suas atividades econôm icas particulares.
nome ou por seu peso sim bólico, interesses pessoais e de grupos O parágrafo 64 estabelece os limites para a vida ativa: dos 13
devem ser colocados em segundo plano. Cada indivíduo deveria aos 60 anos. E p rescrev e que haja dois livros rubricados pelo
sobrepor a norm a ao desejo, tom ando hom ogêneo o diverso, e o “desem bargador ju iz de fora”, para a matrícula de todos os índios
pessoal em bem comum. capazes ao trabalho.
O s parágrafos 65 e 66 continuam a manifestar preocupação com
A intenção transformadora tem um referencial inspirador no ideal
o controle da população trabalhadora. Neste sentido, um daqueles
de civilização da Europa Ocidental. N orbert Elias (1993 e 1982)
Rita Heloísa de Almeida O D iretó rio dos índios 215

livros ficaria com o “governador do Estado” e o outro com o “desem ­ E para que os moradores não possam alegar ignorância alguma
bargador juiz de fora”, que era o “presidente da Câm ara”. O controle nesta matéria, lhes advirto finalmente, que falecendo algum índio
se efetuaria, então, pela perm anente atualização das inform ações. no mesmo trabalho, ou impossibilitando-se para ele, por causa de
moléstia, são obrigados a entregar ao mesmo índio, ou a seus
As listas— também assinadas pelos principais— deveríam ser envia­
herdeiros o justo estipêndio, què tiver merecido.
das pelos “diretores” anualm ente ao governador, no mês de agosto,
delas constando a identificação de todos os índios trabalhadores,
Segundo o parágrafo 71, nos casos em que os m oradores não
bem como as certidões dos “párocos” atestando falecim ento ou
pudessem pagar os salários aos xndios, eram obrigados a providen­
incapacidade para o trabalho.
ciar um “escrito de dívida” (prom issória), assinado por eles e pelos
Ainda no que concem e ao controle sobre os índios, o de n° 67
diretores. E sta tram itação introduz um segundo tipo de ação finan­
dispõe sòbre sua contratação para serviços externos às povoações e
ceira, ou seja, o em préstim o, além de um a terceira, o financiam ento,
destinados aos m oradores, tom ando obrigatório, para estes, a apre­ com base na negociação da dívida. Este expediente visa às pessoas
sentação de uma licença, p o r escrito, do “governador do Estado” . O definidas com o m iseráveis, isto é, as que não possuíam dinheiro ou
controle se encerra com a entrega de um recibo passado pelos m ora­
fazendas
dores aos “principais” . H avia a advertência aos “diretores” para que
não consentissem aos m oradores m anterem em seu poder tais índios com que possam prefazer a importância dos salários, porque nes­
além do tempo previsto em lei ou com binado entre as partes. te caso serão obrigados a fazer um escrito de dívida, assinado por
O parágrafo 68 versa sobre a obrigação de os moradores paga­ eles, e pelos mesmos diretores, que ficará no cofre do depósito,
rem aos índios pelos serviços prestados. Entretanto, o m ontante pago no qual se obriguem à satisfação dos referidos salários apenas
é entregue aos “diretores”, e não aos índios, fechando-se, assim , m ais receberem o produto, que lhes competir.
um a possibilidade de acesso livre po r parte destes ao dinheiro em
espécie. O que é agravado no parágrafo seguinte, 69, que ordena aos O parágrafo 72 regulam enta o pagamento dos índios em fazen­
“diretores” pagarem aos índios apenas um a terça parte de seus salá­ das. Aqui é tam bém nítida a m esm a preocupação com a presença
rios, ficando o restante depositado no “cofre” que deveria existir em dos diretores nesses intercâm bios, intervindo na transação, a pretex­
toda povoação: “destinado unicam ente para depósito dos ditos paga­ to de zelarem pelos interesses dos índios:
mentos, os quais se acabarão aos m esm os índios, constando, que
eles os vencerão com o seu trabalho” . No caso, que os moradores queiram fazer o dito pagamento em
fazendas; achando os índios conveniência neste modo de satisfa­
A propósito, observe-se, no parágrafo 70, que nos prim ódios da
ção; não consintam de nenhum modo, que estas sejam reputadas
formação das cidades brasileiras já se ensaiavam as prim eiras for­ por maior preço, do que se vende nesta cidade; permitindo unica­
mas de organização das finanças locais, a partir de tais depósitos, mente de avanço ajusta despesa dos transportes, que se arbitrará
com o objetivo de garantir, da seguinte form a, o cum prim ento do a proporção das distâncias das povoações a respeito da mesma
contrato de trabalho por am bas as partes: o tem po regulam entar de cidade. E quando os ditos moradores pretendam reputar as suas
serviço dos moradores era, no m áxim o, de seis meses. Sair, deixar o fazendas, por exorbitantes preços, não poderão os diretores aceitá-
serviço antes de com pletar este período era considerado abandono, las em pagamento, com cominação de satisfazerem aos mesmos
deserção. Nestes casos, os índios perdiam a parte (2/3) do seu paga­ índios qualquer prejuízo, que se lhe seguir do contrário.
mento em depósito, mas poderíam recebê-la em dòbro, se com pro­
vado que os moradores “deram causa à deserção”. O trecho anterior coloca-nos diante do intercâm bio entre duas
partes sem a utilização de um valor monetário padronizado e em que
Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 217
216

os fatores condicionantes do valor das m ercadorias são representados Empregarão os diretores um particular cuidado em persuadir aos
pelas despesas com o seu transporte entre as povoações e a cidáde. índios, que façam casas decentes para os seus domicílios dester­
Era esta a situação dos índios que viviam nessas povoações regidas rando o abuso, e a vileza de viver em choupanas à imitação dos
que habitam como bárbaros o inculto centro dos sertões, sendo
pelo Diretório, isto é, recebiam m ercadorias m anufaturadas em tro­
evidentemente certo, que para o aumento das povoações, concor­
ca de seus gêneros produzidos (agrícolas, extrativos) ou em paga­ re muito a nobreza dos edifícios.
mento por serviços prestados.
O parágrafo 73 repete a m esm a preocupação com o controle da Já o parágrafo 75 adentra a questão do povoamento. Aqui o
mão-de-obra indígena: Diretório se revela em toda a sua amplitude. Trata-se de instruções
sobre a questão central do povoam ento, que deveria seguir em ritmo
Para que de nenhum modo se possam iludir estas interessan­
contínuo e crescente. O briga os “diretores” a remeterem ao “Gover­
tíssimas determinações serão obrigados os diretores a remeter
nador do Estado”
todos os anos no princípio de janeiro ao governador do Estado
uma lista de todos os índios, que se distribuiram no ano antece­
dente; declarando-se os nomes dos moradores, que os recebe­ um mapa de todos os índios ausentes, assim dos que se acham
ram; e em que tempo; a importância dos salários, que ficaram em nos matos, como nas casas dos moradores, para que examinando-
depósito; e os preços porque foram reputadas as fazendas, com se as causas da sua deserção, e os motivos porque os ditos mora­
as quais se fizeram os ditos pagamentos. dores os conservam em suas casas, se apliquem todos os meios
proporcionados para que sejam restituídos às suas respectivas
povoações.
A transformação da terra:
um plano de povoam ento Acom panhando estas providências, o parágrafo 76 ensina a li­
dar com fugas, deserções, falecim entos, doenças. Contudo, essas
As listas a que se refere o parágrafo 73, inform ando sobre a medidas de controle, que visavam fiscalizar as condições de traba­
movimentação de trabalhadores índios recrutados pelos m oradores, lho de índios que estivessem sob a posse irregular de moradores,
serviam também aos governos coloniais para um a avaliação do cres­ não foram suficientes para atender ao crescimento das povoações,
cim ento das povoações. C om tais procedim entos de controle, o tendo sido, dessa form a, revitalizados os descimentos (id, pará­
Diretório vinculava a questão da adm inistração da m ão-de-obra in­ grafo 76).
dígena ao programa geral da colonização, principalmente para o aten­ O parágrafo 77 retom a o parágrafo 2o do Regimento das M is­
dimento de situações com o a do norte do país, em que o surgim ento sões, fixando o núm ero de 150 m oradores como limite ideal para a
de povoações derivou quase que exclusivamente da atuação das popu­ existência das respectivas povoações. N o caso, o aumento das popu­
lações nativas. lações urbanas é considerado o fator introdutório do conceito de civi­
O parágrafo 74 já revela esta conexão. R ecom enda aos “direto­ lidade, bem com o das comunicações e do comércio com os índios.
res” que, tão logo chegassem às suas respectivas povoações, provi­ H á neste dispositivo a preocupação com um aspecto: a condição dos
denciassem o estabelecim ento dos principais edifícios públicos — a índios com o indivíduos, civis, ponderando-se, por exemplo, não ser
“câmara” e a “cadeia pública” . O objetivo de edifícar obras públicas conveniente que eles vivam em povoações pequenas.
e dar cunho urbano a esses núcleos de povoam ento com eçados des­ Por outro lado, há também um a compreensão do papel dos índios
de os m issionários deveria estender-se aos índios e funcionar com o com o representantes de organizações sociais distintas. Isto se depre­
uma obrigação de cada indíviduo para construir seu espaço segundo ende da discussão em tom o do crescim ento das povoações. É suge­
as normas de habitação social prescritas no D iretório: rida, por exem plo, a aglutinação de povoações menores, para form ar
218 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 219

uma maior, mas adverte-se para a importância de que esta solução E para este virtuoso fim pode concorrer muito a introdução dos
seja criteriosamente estudada a partir das condições das populações brancos nas ditas povoações, por ter mostrado a experiência, que
indígenas a serem deslocadas, suas afinidades e incom patibilidades. a odiosa separação entre uns, e outros, em que até agora se con­
Nestas ponderações fica patente que as diferenças étnicas e cultu­ servavam, tem sido a origem da incivilidade, a que se acham re­
duzidos: para que os mesmos índios se possam civilizar pelos
rais já figuravam como fatores decisivos para o planejam ento dessas
suavíssimos meios do comércio, e da circulação; e estas povoa­
ações. ções passem a ser não só populosas, mas civis.
O parágrafo 78 tam bém rem ete ao Regim ento das M issões (pa­
rágrafos 8o e 9a) no que se refere ao tem a do descim ento. Em term os E ste trecho deixa claro que o am biente construído dentro das
conceituais nada se m odifica. O descim ento de índios continua a ser povoações, à época do Diretório, deveria produzir o m esm o efeito
uma necessidade e um em preendim ento custeado pela “Fazenda das apresentações teatrais encenadas pelos jesuítas na língua nativa,
Real”. “Descimento” significa trazer índios ao convívio da civiliza­ com tem ário e vocabulário ígualm ente fam iliares, a fim de que os
ção, em regiões com processo de colonização em andam ento. É bem índios pudessem com preender e assim ilar melhor a doutrina cristã.
provável que a palavra “descim ento” resulte do m ovim ento espacial O trecho “não só populosas, mas civis” define a qualidade deste
da descida do rio. Um a probabilidade quase certa, se pensarm os que am biente, que não deveria ser apenas um dorm itório ou um reserva­
os índios enfocados pelo Regim ento das M issões (1686) e pelo tório d e populações indígenas trabalhadoras, mas um local de apren­
Diretório (1757) são precisam ente os que habitavam as altas regiões dizado dos “meios de civilidade”, no qual os brancos serviriam de
dos rios amazônicos. A diferença assinalada no parágrafo 78 do m odelos. O rígido estabelecim ento de normas para o ingresso de
Diretório em relação ao Regimento das M issões está na reestruturação brancos nessas povoações não teria, entretanto, por objeto a prote­
dos poderes de administração temporal dos “descim entos” : sübsti- ção dos índios, tal com o a que veio a desem penhar o tutor do século
tuem-se “missionários regulares” pelos “juizes ordinários”, “verea­ XX.
dores”, “oficiais de justiça” e “principais”. O parágrafo 80 é m ais um dispositivo que visa reforçar o con­
O parágrafo 79 reafirm a a ascendência dos “diretores” e, em trole das comunicações entre índios e brancos, sem, todavia, impe­
última instância, dos “governadores do Estado” no tocante à exe­ di-las. Apenas discrim ina, ou melhor, seleciona, as form as de conta­
cução dos “descimentos”. to e seus agentes. Foi a m aneira pela qual os diretores lograram
A introdução dos brancos nessas povoações habitadas por índi­ exercer o controle da situação, até então detido pelos m issionários.
os é tratada no parágrafo 80, que normatiza e, principalm ente, expri­ A diferença, no Diretório, em relação ao sistema em pregado pelos
me claramente um novo procedim ento pautado pela valorização da m issionários, reside no objeto central da criação destas povoações,
comunicação e do comércio com o formas de se introduzirem conhe­ justam ente a incorporação dos índios aos projetos dos m oradores.
cimentos e costumes civilizados. Teoricamente, representa um a pos­ E ra nâtural que as norm as do Diretório se destinassem a regulam en­
tura renovadora em relação aos procedim entos de m issionários re­ tar o contato, e não o contrário, isto é, a prolongar a ordem de exclu­
gulares que, ao tempo do D iretório, eram acusados de im pedir a são. A situação prevista no parágrafo 80 constitui o inverso de um a
comunicação espontânea, com ercial ou por m eio de serviços entre m issão: são os brancos um a m inoria a ser incorporada às povoações
índios e brancos. A justificativa é reveladora de um a nova postura regidas pelo Diretório. Com este intento, os moradores brancos deve­
ou, pelo menos, de um a intenção de incluir os índios no m undo civili­ ríam apresentar “licença do governador do Estado” para serem ad­
zado que se instalava no Brasil: m itidos nessas povoações. C om este propósito, seriam subm etidos
aos costum es e norm as previstas, a fim de obterem suas “cartas de
220 Rita Heloísa de Alm eida
O D iretó rio dos índios 221

datas” e cultivar terras. M ais um a vez, com o se viu no parágrafo 19,


a posse de terras adjacentes a tais povoações é garantida aos índios, prias m ãos, ação que ao final seria recompensada com honras ré
n a qualidade de seus “prim ários e naturais senhores” (parágrafo 80). gias, com um ente conferidas aos que prestavam serviços ao bem co­
Aos “diretores” cabería, segundo o parágrafo 81, m anifestar as mum.
condições às quais estariam sujeitos os brancos que desejassem in­ O D iretório concretiza teorizações contemporâneas à época, no
gressar nessas povoações. Os diretores se encarregariam de form ali­ que dizia respeito à liberdade dos homens e ao trabalho remunerado,
zar a admissão destas pessoas, m ediante um “term o” registrado nos ou independente, realizado em benefício próprio. Vimos, anterior­
livros das “câm aras” , o qual seria assinado por am bas as partes. Tais m ente, que a nova situação que o Diretório vinha regulamentar exi­
condições encontram -se nos parágrafos 82 a 86. O parágrafo 82 gia profundas m odificações no comportamento e nas concepções
estabelece: dos próprios brancos com referência ao trabalho braçal e ao escra­
vo. A dissociação é aconselhada e observada como norma de compor­
Que de nenhum modo poderão possuir as terras, que na forma tam ento para adm issão de brancos nas povoações. Os brancos deve­
das Reais Ordens de Sua Majestade se acharem distribuídas pe­ ríam ser os prim eiros a valorizar o trabalho feito com as próprias
los índios, perturbando-os da posse pacífica delas, ou seja em m ãos, sem interm ediários ou auxiliares em condições de escravidão.
satisfação de alguma dívida, ou a título de contrato, doação, dis­ A o b se rv â n c ia desta norm a de com portam ento seria objeto de
posição testamentária, ou de outro qualquer pretexto, ainda sen­ prem iação, considerando serviço destinado ao bem público.
do aparentemente lícito, e honesto. Por fim , o parágrafo 86 estabelece que a inobservância das nor­
mas anteriorm ente referidas resultaria na expulsão do transgressor,
Fica assim reafirm ada a condição jurídica das terras original­
com a decorrente perda de direitos adquiridos em termos de lavou­
m ente distribuídas aos índios para a form ação de povoações: elas
ras e plantações.
lhes pertencem e a seus descendentes.
Q uanto ao parágrafo seguinte, 87, não é uma norma, mas um a
A segunda condição encontra-se no parágrafo 83, que estabelece
afirm ação dos valores que sustentam o Diretório. Recomenda aos
a form a e a qualidade das relações entre índios e brancos. Obriga,
“diretores” que apliquem “todos os meios condizentes para que se
ainda, aos m oradores atentarem para novo status dos índios, com o
extinga totalm ente a odiosa e abominável distinção”. Tkl discrimi­
indivíduos em ancipados pela Lei de 6 de junho de 1755:
nação representava um a ação ideológica que poderia ser modifica­
Considerando a igualdade, que tem com eles na razão genérica da. D istinguir convinha aos interesses particulares e quase sempre
de Vassalos de Sua Majestade, e tratando-se mutuamente uns a dirigidos a escravizar os índios. Conduzir as relações entre índios e
outros com todas aquelas honras, que cada um merecer pela qua­ brancos, a fim de que fosse possível a união, convinha e atendia aos
lidade das suas pessoas, e graduação de seus postos. interesses públicos, os da sociedade civil. Aqui sobrevêm uma clara
alusão à situação que estava sendo abolida, qual seja, o controle
O parágrafo 84 — terceira condição — determ ina que o privilé­ hegem ônico, pelos m issionários, da força de trabalho representada
gio de receber cargos honoríficos seja avaliado a partir do critério de pelos índios nessas prim eiras tentativas de criação de uma economia
capacidade, havendo que dar preferência aos índios, não aos bran­ na Amazô n ia e de fixação de povoações. “Concórdia Pública”, “Re­
cos, quando julgados melhores. pública”, “Sociedade C ivil” são, no caso, expressões que marcam a
O parágrafo 85 refere a quarta condição para o branco obter passagem , para o Estado, do controle que era exercido pelos missio­
perm issão de residir num a povoação indígena. O m orador branco nários sobre os índios. Exprim em as razões em nome das quais uma
deveria “anim ar”, servir de exemplo no cultivo de terras com as pró- nova configuração de poderes e de relações sociais se instaura com
o D iretório.
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 223

O parágrafo 88 legitim a e incentiva o convívio e a m iscigena­ O parágrafo 92 retom a aos “diretores” a quem o regim ento des­
ção por meio do casam ento, com instruções específicas aos “direto- de o início se destina, instruindo-os sobre suas funções. A tribuir fun­
res , ções tam bém é um a m aneira de definir o papel representado pelos
“diretores” . A qui, pela prim eira vez, reserva-se aos “diretores” (mas
para que por meio deste sagrado vínculo se acabe de extínguir apenas em tom com parativo) a função de tutoria. A alusão tem um
totalmente aquela odíosissima distinção, que as nações mais po­ referencial genérico e suspeitam ente autojustificativo, qual seja, a
lidas do mundo abominarão sempre, como inimigo comum do situação em que a direção se exerce sobre quem dela necessita como
seu verdadeiro, e fundamental estabelecimento. condição de sobrevivência social (pensar nos casos em que se aplica
a m atéria: crianças, loucos). Está patente um relacionam ento dife­
Os “diretores” deveríam estim ular esses casamentos, concedendo renciado, pautado pela condição de conhecim ento existente em um
aos candidatos brancos postos honrados e privilégios corresponden­ e ausente em outro. Ou, com o dizia Foucault (1977), um poder que
tes, conforme estabelece o parágrafo 89. Elevava-se, valorativamente, sê exerce pelo dom ínio de um saber específico, que é im posto ao
uma união que sem pre fora reputada como um a infâm ia. M ais urna outro que não o detém . É certo que este sentido de adm inistração
vez, a persuasão sobre a m udança de com portam ento social atingia sobre os índios já havia sido empregado. C onverter índios em indi­
primeiramente os brancos. Tentar m odificar correspondia a inverter víduos cristãos foi um a tarefa (um a m issão) de fínalidáde religiosa,
a escala de valores, tom ando o que era considerado um a infâm ia m as, sobretudo, educadora, que se desenvolveu a partir da idéia de
situação de privilégio. que os índios poderíam ser transform ados (cristianizados) se dirigi­
O parágrafo 90 prevê a punição aos que resistissem à m eta de dos a este fim . N o Diretório, é claram ente estabelecido que este pa­
unir índios e brancos pelo m atrim ônio. Nele se recom enda aos “ di­ pel tutor deveria ser desem penhado pelo “diretor” . Sua form alização
retores” estreita vigilância sobre os cônjuges brancos casados com (institucionalização) com o serviço público realiza-se na obrigação
índios (e índias, principalm ente) a fim de que não do “diretor” , de cum prir cabalm ente tal função, que tam bém estaria
sendo fiscalizada por um a instância superior e punida em casos de
degenere o vínculo em desprezo, e em discórdia a mesma união; inobservância. Parece nítido estar germ inando destas prescrições a
vindo por este modo a transformar-se em instrumeptos de ruína idéia que atualm ente se cristalizou em tom o da tutela exercida pelo
os mesmos meios que deverão conduzir para a concórdia.
Estado sobre o índio e a conduta esperada entre os funcionários que
as exercem . O trecho a seguir reforça esta suposição:
Os “diretores” deveríam m anter-se inform ados sobre o anda­
mento destas uniões, zelando para que os cônjuges de origem indí­
Devo lembrar aos Diretores o incessante cuidado, e incansável
gena não fossem prejudicados — vigilância que autorizava a puni­ vigilância, que devem ter em tão útil, e interessante matéria; bem
ção quando verificado ter sido a condição indígena a razão do eventual entendido, que entregando-lhes meramente a direção, e econo­
conflito. mia destes índios, como se fossem seus Tutores enquanto se con­
N o parágrafo 91, são reafirm adas as intenções am istosas e fixa­ servam na bárbara, e incivil rusticidade, em que até agora foram
do o compromisso de convívio pacífico com os índios. A expressão educados; não os dirigindo com aquele zelo, e fidelidade que
“acordo” (contrato social) alcança aqui pleno sentido, um a vez que pedem as Leis do Direito natural, e civil, serão punidos rigo­
a relação com o índio está sendo considerada a partir de dois níveis, rosamente como inimigos comuns dos sólidos interesses do Es­
ou seja, como indivíduo e coletividade com base organizacional fa­ tado.
miliar, política, econômica, diferente da que dispõe o branco.
Rita Heloísa de Almeida O D iretó rio dos índios 225
224

N ote-se neste trecho que tam bém se form ava um código ético sentim entos da própria conveniência”. Seria este o melhor estímulo
de conduta dos tutores em relação aos índios, seus tutelados. O tre­ aos índios. Acreditava-se, que co m a manifestação espontânea deste
cho citado convence que o rigor exercido pelos tutores é um a exi­ sentim ento de altruísmo, viessem os índios a se aproximar “volunta­
gência que com eça neles m esm os. A auto-exigência, com o didática, riam ente” destas “povoações civis” , cumprindo desta feita os fins
m arcou o procedim ento adotado pelos m issionários com referência que encerram as razões d a edição deste Diretório:
aos índios.9 A representação e o vivenciam ento desta auto-exigência
eram a m elhor m aneira de transm itir aos índios tal convicção. A dilatação da fé; a extinção do gentílismo; a propagação do Evan­
gelho, a civilidade dos índios; o bem comum dos vassalos; o au­
O parágrafo 93 dispõe sobre a qualidade dos m eios de que de­
mento da agricultura; a introdução do comércio; e finalmente o
veríam valer-se os diretores para desem penharem sua função de estabelecimento, a opulência, e a total felicidade do Estado. Pará,
educadores. São elas “a prudência, a suavidade e a brandura” . 3 de maio de 1757 = Francisco Xavier de Mendonça Furtado =
Estes meios seriam em pregados principalm ente na correção de
costum es considerados viciados e abusivos. Esta nova m aneira de
relacionar-se, educar, civilizar vinha substituir procedim entos mais
violentos e cerceadores da liberdade dos índios. C uidava-se em não
reverter ganhos, o que podería frustrar intenções de consolidar a
convivência com índios que já haviam sido persuadidos a abandonar
seus costum es e seguir o modo de viver civilizado. A convicção de
estar apresentando um m undo m elhor do que aquele que os índios
tinham a sua volta está assim expressa e justificada: “para que não
suceda que, estim ulados da violência, tom em a buscar nos centros
dos M atos os torpes, e abom ináveis erros do Paganism o.”
O parágrafo 94 versa sobre a graduação do processo de aprendi­
zado. A “suavidade” subentendia, sobretudo, a percepção de que os
índios necessitavam de um período de adaptação e habilitação. Foi
fixado um prazo de dois anos, ao longo do qual os “diretores” não
poderíam obrigá-los a nenhum serviço e durante o qual seriam eles
assistidos nas povoações, isto é, em habitat tradicional, transform a­
do pelos colonizadores, ou nas povoações por estes inteiram ente
construídas.
O último parágrafo, o 95, propõe-se aos “diretores” considerar
o trabalho de adm inistração dos índios acim a e fora dos “naturais

9 Recordar o difícil processo de doutrinamento dos valores da Companhia de Jesus


pelos seus congregados, bem assim o sistema de prêmios e punições por meio do
qual eram transmitidos os sentimentos de lealdade para com os interesses da
congregação (cf. nota 5).
Capítulo 6

Questionando a realidade das normas

A questão que inspira o texto a seguir é a de saber se um autor,


ao form ular um projeto, tem como referencial alguma realidade social
concreta, ou se sua criação é produto de um a inspiração ideal. N a
hipótese de que o projeto seja visto como um a construção ideal, pouca
valia terá para o autor saber se a sua criação vai ou não tom ar-se
realidade. Os cam inhos que ligam a intenção e o objeto criado são
traçados pelo artista, já dizia Platão nos diálogos de A república.
Propõe-se aqui o exercício de verificar o que foi entendido e
realizado a partir das norm as do Diretório, pensando, ao contrário
do artista de Platão, que os projetos constituem um esforço deli­
berado, reunindo e com patibilizando vontades sociais de modo a
provocar novas situações que venham a tom ar-se realidade.
Fizem os a leitura do Diretório, passo a passo, e pudem os ava­
liar a extensão de seus objetivos com o instrum ento organizador de
um a sociedade. Vejamos agora o que revelam os documentos contem­
porâneos ao D iretório sobre a efetividade de suas norm as.

Criação de uma economia extra ti vista

Tratem os, em prim eiro lugar, dos esforços de form ação de um a


econom ia apropriada à região.
U m a correspondência, datada de 22 de janeiro de 1752, entre o
C onselho U ltram arino e o governo do Pará, assinada por Francisco
X avier de M endonça Furtado e dirigida a D iogo de M endonça Corte
228 Rita Heloísa de Almeida ■ O D iretó rio dos índios 229

Real, m ostra com o o plano de criação da econom ia específica do logísticos e, portanto, em m elhores condições de resistir aos colonos
G rão-Pará e M aranhão foi delineado a partir da observação da rea­ brancos, poderíam representar séria am eaça ao seu domínio, mais
lidade dos recursos naturais existentes. O governador inform a ter do que se contidos nos lim ites vigiados do engenho.
conhecim ento de 39 gêneros que poderíam ser produzidos para des- E stá im anente nessa e em outras sugestões tom ar o que era re­
tinação com ercial, m as dos quais som ente estavam sendo aproveita­ curso abundante em produção sistematizada. Um bom exemplo é o
dos o açúcar, o algodão, o arroz, o cacau, o café, o carrapato (ma- carauá, um tipo de linho m ais forte do que o linho europeu e que
m ona), a canela, os couros em sola, o “couranhá”, o “jarzelim ” existia “bravo, nascido no m ato”, dele servindo-se as populações
(gergelim ) e o tabaco (M endonça Furtado, em Carneiro M endonça, nativas com o m atéria-prim a para feitura de cordas de rede. O m es­
1963: p. 199). Dentre os produtos que ainda não tinham sido objeto mo propósito de sistem atizar o cultivo de plantas agrestes que eram
de interesse econôm ico, o governador cita o anil, o alm íscar, a abundantes e, em conseqüência, propícias ao ambiente amazônico
andiroba, as baunilhas, os cravos, o carajuru, as castanhas, os puxiris, era observado pelo governador em relação ao tabaco, café, cacau e
o pinhão e o urucu, denom inando-os todos “agrestes” (id, p. 199). A anil. A s considerações sobre o cultivo do cacau, relativamente às
seguir, passa a exam inar o uso que se fazia dos gêneros cultivados, inadequações do produto agreste em relação ao cultivado, servem
discutindo as etapas da produção, as condições de trabalho e os ren­ com o amostra:
dim entos. N o caso, trata-se de um a carta em que o governador regis­
tra suas observações sobre as atividades agrícolas que estavam sen­ P e lo q u e resp e ita ao c a ca u , m e p are ce que o manso é de muito
do experim entadas pela prim eira vez, conquanto represente tam bém maior utilidade aos lavradores, sem em bargo qu e tem trabalho
um conjunto de sugestões baseadas na experiência de técnicas de c o m a s u a c u ltu ra e fa z e m n ela alg u m a despesa do qu e o bravo,
cultivo da terra trazidas pelos colonos portugueses. porque o manso é sempre apanhado em sezão, e se reputa muito
O algodão situava-se em prim eiro lugar. O fato de seu cultivo bem.
P e lo co n trário , o do sertão, além da incerteza d e h av e r ou
ser sim plificado, ocupando apenas m ulheres e crianças durante a
n ão n o v id a d e, c o rre m o risco , a fazenda entregue em m ão s de
sem eadura e a colheita, nada m ais havendo a fazer senão conservar g e n tio s, e ex p o sto s a o g ra n d e p erig o d a navegação d estes rio s; e,
lim pa a plantação, era um convite ao increm ento dessa cultura, u ltim am en te , q u an d o te m b om sucesso, trazem d e m odo ordinário
principalm ente se vinculada à instalação de “fábricas de fazendas” , c a c a u se m se r co lh id o e m sezão [m aduro], q ue m isturam co m o
solucionando deste modo problem as de absorção de pessoas desem ­ m a n so , arru in an d o a ssim a rep u tação dos gêneros, h avendo no
pregadas e tornando possível substituir pelo tecido nacional o arti­ se rtã o u m a tal am b içã o , q u e o s que prim eiro ch eg am apanham
go que “os estrangeiros” introduziam no Brasil “a peso de ouro”. a q u e le q u e lh e s p a re c e p o d e r acab ar d e sazonar no cam in h o , e o
O algodão crescia m elhor no M aranhão, o m esm o se aplicando ao q u e re s ta n as árv o res o d eitam no ch ão , p o rq u e se não ap ro v ei­
açúcar, que, segundo o governador, era “mais branco e de m elhor tem o s q u e fo re m d e p o is d eles [id, p. 202].
grã” (id, p. 200). E le ainda propõe colocar em prática um a divisão
étnica do trabalho, ao destacar a validade do em prego dos “tapuias O m esm o se podería afirm ar quanto aos azeites que se pode­
que se acham aldeados nas m argens dos rios” no transporte de le­ ríam fabricar a partir do pinhão, do carrapato, da andiroba, da casta­
nhas, até então realizado pelos “escravos negros” . nha e da ibacaba. Frutos do m ato, como o cravo, a copaúba (copaiba),
C om o se sabe, tal providência tinha com o justificação ideológi­ as baunilhas e o puxiri, a tinta encarnada extraída do carajum e do
ca o aspecto frágil do índio para atividades mais laboriosas, com o a urucu, a sem ente do alm íscar, o âmbar, todos, segundo o governa­
do engenho. A sugestão do governador dá-nos com o pista ver a ati­ dor, poderíam ser cultivados “m ansos”, junto às povoações, evitan-
vidade de transporte de lenha com o um a oportunidade de fuga para do-se, assim , os gastos e riscos de sua extração em sertões ainda
os africanos, que, em m aior núm ero, dispondo de conhecim entos desconhecidos e habitados po r índios aguerridos. Certas espécies
230 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 231

ganham relevância com a colonização. É o caso da casca do castanhei­ A a g ric u ltu ra p o r c o n s e g u in te n ão d e v e se r m a is d istin ta
ro, que serve de estopa para calafetar navios. D e im portância tam ­ n esta, d o q u e n as o u tras p o v o a ç õ e s: s i a m a n ib a n ã o fo sse o seu
bém eram produtos com o a cera, o breu e a alm ácega. Do rio N egro p ã o , n em e s ta p la n tariam . O ín d io , q u e tem le m b ra n ç a d e p la n ta r
alg u n s p é s d e alg o d ão , c o n te n ta -s e d e re c o lh e r ta n to , q u a n to c h e ­
interessam o am bé e a piaçava. C om relação a todos esses itens,
g u e p a ra a s u a m a rc a [id, p. 111].
discutiam-se as facilidades de produção, o custo m enor em term os
de número de trabalhadores e a viabilidade com ercial, sem que dei­
Estas observações foram colhidas por um naturalista durante
xasse de haver referência, insistentem ente, a um quadro adverso de
ausência de hábitos de trabalho sedentário por parte das populações um a vivência de quase nove anos correndo as regiões am azônicas
envolvidas na colonização dos estados do N orte, das quais não se do M aranhão, Pará, Am azonas e M ato Grosso. Um luso-brasileiro
excluem os brancos em sua conhecida aversão às atividades braçais. com pletam ente harm onizado com as concepções européias da se­
Termina-se a leitura dessas notas com a im pressão de que havia um a gunda m etade do século XVTII, no que tange a organizar a econom ia
forte disposição em fazer germ inar entre as populações am azônicas colonial com a participação dos índios na condição de hom ens livres
•— brancos, índios e m estiços — um a vocação agrícola sem dúvida e iguais aos dem ais colonos.
inexistente. E sta idéia tem sido repetidam ente sugerida sem revelar seu sen­
tido original. A Lei de 6 de junho de 1755, que em ancipou os índios
Estas impressões m oldam a visão dos colonizadores a respeito de toda sujeição tem poral, exceto a devida ao rei com o qualquer
do índio, do que resulta, inclusive, a convicção em tom o de sua fra­ outro súdito, é resultado efetivo de um a idéia de inclusão. Seu texto
gilidade física e até m esm o psíquica, não só no que se refere aos é prova do amadurecimento do europeu em tom o de suas ações devas­
trabalhos sedentários requeridos pelos colonizadores, como tam bém tadoras sobre as populações nativas das colônias. Ou seja, é por m eio
pelo fato de não suportarem em ocionalm ente as m udanças nos h á b i­ dela que o rei resolve “restituir aos índios do Grão-Pará e M aranhão
tos que lhes eram impostas. A lexandre Rodrigues Ferreira fala-nos a liberdade das suas pessoas, bens, e com ércio”.
desta recusa m arcada por um a certa susceptibilidade do índio a subi­ A ocasião sugere-nos resgatar o sentido desta atitude, con­
tam ente descartar tudo, retroagindo à sua condição natural, que aos siderando-se a época em que ocorre, algo como consultar um di­
olhos do colonizador se confunde com um retorno à Natureza: cionário editado coetaneamente. Parece-nos que o que escreviam os
Filósofos, poetas e cronistas sociais pode ser visto com o verbetes
Para d e sg o star-se u m ín d io d e ste s q u a lq u e r c o isa basta, e so b e ja:
relacionados com conceitos de “liberdade” , “felicidade” , “prudên­
basta, q u e o d ire to r o ad v irta, q u e tra te d e fa z e r a su a c asa, o n d e
more; basta, q u e o v ig á rio o a d m o e ste d a o b rig aç ão , q u e te m d e
cia” , “utilidade” .
aprender a d o u trin a p a ra se b a tiz a r; e b a s ta en fim , q u e lá d e si Em seu ensaio Introdução aos princípios da m oral e da legisla­
para si c h e g u e a d e s c o n fia r d e u m a aç ã o , o u d e um d ito , q u e e le ção, publicado pela prim eira vez em 1789, Jerem y B entham trata do
não entende; a o q u e tu d o acresc e, q u e si c h e g a a ver, q u e ad o ece, sentido dessas palavras, tão freqüentes no Diretório.
ou m orre alg u m d o s c o m p a n h e iro s, d e s c o n fia en tão d o lu g a r d a Substancialm ente, Bentham fala em nome de um pensam ento
povoação, d e sc o n fia d a q u a lid a d e d o su sten to , d esco n fia d o s re ­ disposto a ações de reforma, correção, educação. Para tanto, deviam
m édios, q u e lh e fa z e m , e d o s q u e o s fa z e m ; e co m o está p o sto n a
servir as leis, cujo m aior objetivo é o de aumentar a felicidade glo­
povoação, situ ad a n a b o c a d o rio , donde desceu, sobe a dissua­
dir os outros, q u e fic a rã o . Em termos semelhantes está mostran­ bal da coletividade. Prim eiro, excluindo o que é motivo de sua dim i­
do a experiência, que nem com tê-los mui mimosos, e ainda mais nuição, o que é tido com o pernicioso. Entretanto, continua a pensar
guardados do que bichos de seda, nem por isso mudam de con­ B entham , a punição é também um m al que só deve ser adm itido se
duta; quanto a mim são galos do campo, que por mais milho que perm itir a chance de evitar um m al m aior (1979, p. 59). M al menor,
se lhes deite, com dificuldade se habituam às capoeiras.
232 Rita Heloísa de Almeida O D iretó rio dos índios 233

m al maior são, portanto, m ensurações fornecidas por um a ética que sável que não há com o im aginar form ações com plexas, como o
a seu ver “é a arte de dirigir as ações do hom em para produção da Estado, sem um conjunto de preceitos definidos pelo legislador. É
m aior quantidade possível de felicidade” (id, 63). interessante notar, a partir destas conceituações, que a “arte de go­
Note-se qué, para Bentham, felicidade é um sentim ento que pode vernar”, quando se destina a indivíduos não-adultos, é cham ada por
ser quantificado, m ensurado. No capítulo 4, referíam o-nos ao enten­ Bentham dé “arte de educação” .
dim ento sobre a m esm a m atéria por outro contem porâneo, A ntônio Poderiam os, então, questionar a operacionalidade e a universa­
Vemey, que deduziu a ética da boa razão, da reflexão sobre o direito lidade dessa ética que tom a com o m edida os interesses pessoais de
natural, dos conceitos de virtude e nobreza construídos historica­ cada hom em na busca de sua felicidade, imaginando a ocorrência de
m ente pelas civilizações. E m suma, a ética servindo com o um guia conceitualizações divergentes sobre esses meios entre indivíduos de
para os homens na form ação dos conceitos e regulação de sua con­ um a m esm a configuração social. Em tal situação, a existência de
duta, com vistas ao objetivo com um de alcançar a “verdadeira felici­ uma coletividade social nos term os pensados por Bentham seria im­
dade” . Üm entendim ento próxim o ao que pensa Bentham quanto ao possível. M as ele próprio resolve nosso exercício imaginativo ao
fim (a felicidade), em bora am bos percebam distintam ente os meios definir ò princípio de “utilidade” com o conceito form ado pelo equi­
com que se busca atingi-lo. Bentham parece dissociar a ética do que líbrio de dois sentim entos humanos: o prazer e a dor. É a soberania
serviu a Vemey com o m atéria-prim a para a form ação de conceitos destes dois sentim entos universalm ente humanos que form a a base
orientadores da conduta humana. Ou seja, não leva em conta o conhe­ dos conceitos de certo e errado. Algo cambaleante aos nossos olhos,
cim ento e a experiência acum ulados pelas sociedades hum anas, ado­ eu diria. O conceito de “utilidade” tem um referencial associado ao
tando como referencial som ente o hom em , ou m elhor, as ações dos coletivo, m as é perm eado pelas escolhas e percepções dos indiví­
| )
hom ens em relação a si m esm os, em busca dessa felicidade. A ética duos. É, portanto, circunstancial e conjuntural, para não dizer tão-
de Bentham, m ais do que um guia moral, um a propedêutica da ju ris­ somente cultural, local. Faltam elem entos que permitam visualizar a
prudência, é a “arte do autogoverno”. Aqui o hom em é a m edida dim ensão universalizante que nos repassa Vemey com seu conceito
absoluta, não há nada m ais eficaz que o interesse do hom em em de ética. Entretanto, o conceito de Bentham sobre ética é muito mais
regular seu com portam ento em busca de sua felicidade. É um a obri­ apropriado ao entendim ento das intenções do Diretório do que o de
gação inata tão forte quanto o instinto de sobrevivência. Todavia, o Vemey. As últim as palavras do referido ensaio repetem a idéia em
dom ínio do hom em sobre seu destino e felicidade depende de sua si, que não explica, ou seja:
interação social, na m edida em que seu com portam ento afeta e por
A ética privada e n sin a co m o u m hom em p o d e d isp o r-se para
eles é afetado, pelos interesses que o circundam, tom ando-se tam ­
e m p re e n d e r o ca m in h o m a is e fic a z qu e o co n d u z a su a própria
bém a “ética” a arte que deve governar as obrigações de um a pessoa felicid a d e, e isto atrav és d o s m e io s q u e se o ferecem p o r si m es­
em relação às outras. m o s. A arte da legislação a qual p o d e ser c o n sid erad a com o um
U m a “arte de autogoverno” e um a “arte de governo” . Bentham se to r d a c iê n c ia d a ju risp ru d ê n c ia ensina como uma coletividade
reproduz, assim, o raciocínio que entrelaça questões do indivíduo de pessoas, q u e in teg ram u m a com unidade, p o d e d isp o r-se a em ­
com aquelas da sociedade, do que invariavelm ente se deduz um a p re e n d e r o c a m in h o q u e, n o seu conjunto, co n d u z co m m aior efi­
preem inência dos hom ens em relação à construção social de que c á c ia à felicid a d e d a c o m u n id a d e inteira, e isto atra v és d e m oti­
fazem parte. R efiro-m e, especificam ente, a dois conceitos: ao de v o s a se re m ap lica d o s p e lo legislador [ 1979, p. 68],
“ética privada”, que B entham define como a “arte do autogoverno”,
e o de “legislação”, que corresponde à “arte de governar”. Esse último A ética de Bentham é a ética do legislador. Note-se que “legisla­
destina-se a coletividades de m aneira tão perm anente e indispen­ dor” está no singular, denotando o sentido de uma vontade soberana
234 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 235

sobre toda a com unidade — um construtor abstrato que cria um a Lem brem os que o D iretório pretendia regulam entar um a situa­
experiência d e vida social em lab o rató rio e a c o m p a n h a seus ção em que os índios são considerados hom ens livres. Não perdendo
desencadeamentos. Algo que muito apropriadamente Foucault (1982) de vista esta função disciplinar do Diretório, há pelo menos duas
chamou de “o olho do poder” , pensando na força sim bólica d a figu­ direções que podem ser seguidas pelas relações entre índios e bran­
ra arquitetural do panóptico utilizada por Bentham em seus projetos cos: a prim eira provém da consideração política que observa os ín­
de penitenciárias destinados a organizar o espaço, de m odo que os dios com o indivíduos a serem preservados. Certam ente, incide nesta
prisioneiros ficassem em um cam po de visibilidade total, de perm a­ decisão a percepção tática do colonizador, d a representação num éri­
nente exposição ao julgam ento de outros. Esta concepção de espaço ca e da capacidade de adaptação dos índios. A segunda é econôm ica
teria efeitos corretivos mais eficazes que os m eios extrem os da tor­ e paradoxalm ente se fundam enta nas m esm as razões, de eles serem
tura e da masmorra. Como bem observou Foucault, a época das Lu­ num erosos e hábeis para os serviços específicos que o m eio físico
zes produziu hom ens esclarecidos que perceberam a liberdade com o solicitava. N ão estou falando o m esm o de duas m aneiras diferentes
um estado social construído, para tanto, inventando a disciplina com o e, sim , em diferentes direções tomadas a partir do Diretório, de com o
seu instrumento m oderador (1977, p. 195). . relacionar-se com os índios. Adiante será discutida a natureza do
Nada mais genuíno à época das Luzes — e precocem ente posto status político do índio, seu papel povoador e cultural. A gora inte­
à experimentação j á em 1757 — que o Diretório instruindo os funcio­ ressa-nos ver o que d e fato se deu com o D iretório disciplinando os
nários seculares da Coroa portuguesa sobre o funcionam ento de um efeitos em ancipadores da Lei de 6 de junho de 1755, a fim de aten­
laboratório, similar ao panóptico de Bentham, para servir aos propó­ der aos propósitos da colonização. Isto é, será a consideração econô­
sitos da civilização dos índios. F ica im pressionantem ente claro o m ica do lugar do índio na civilização o prim eiro objeto de nossa
raciocínio que entrelaça as expectativas sobre os indivíduos com o atenção.
todo que se quer construir. O Diretório gerou um a docum entação específica. Primeiro, para
Pensemos que cada lugar de m orada dos índios ou cada missão, divulgar a decisão régia, instruindo os governadores, prelados, dire­
aldeia, vila, povoação funcione com o um laboratório de form ação tores e dem ais autoridades sobre os procedim entos a seguir. Segun­
de costumes da civilização ocidental e, mais do que isso, que cada do, para com unicar a extensão dos efeitos do Diretório a todas as
indivíduo faça parte desse laboratório, interagindo, fazendo esse partes do Brasil. Terceiro, para tom á-lo adequado a cada região. Esta
entrelaçamento de que Bentham nos fala e que nos perm ite constatar últim a docum entação é constituída por bandos, ordens, instruções,
a sobreposição d e processos individuais aos processos coletivos, ou cartas circulares, providências adm inistrativas e relatórios, conten­
melhor, segundo os termos até aqui referidos, ver que no curso do do inform ações sobre a contabilidade das povoações. Pode-se consi­
processo de civilização dos índios decorria também o de colonização. derar a docum entação destinada aos diretores a principal artéria por
Por conseguinte, o trabalho de colonização deveria com eçar pelos onde as decisões elaboradas pelo Conselho U ltram arino em Portu­
índios, incidindo sobre seus m odos de produção e organização cole­ gal chegaram a cada aldeia, passando pelo governo colonial de cada
tiva com este fim . Vimos A lexandre Rodrigues Ferreira falar em capitania, com unicando-se entre si com todas as aldeias e usando o
ausência, entre os índios am azônicos, de hábitos de um a agricultura m esm o m eio, m ensagem e fonte de orientação.
de subsistência. Excetuando o plantio da m andioca, as atividades P or esses docum entos, fica patente a im portância que seria atri­
econômicas destinadas à sobrevivência eram preenchidas pela caça, buída ao “diretor” para execução das intenções do Diretório, princi­
pela pesca e pela coleta de frutos e sementes. A s ações civilizadoras palm ente o entendim ento das intenções pelos diretores.
— ou, para usar a term inologia de Bentham, a educação dos índios
— teriam que necessariamente ser entendidas com o habilitação ao
trabalho sedentário.
236 Rita Heloísa de Almeida O D iretó rio dos índios 237

Formação de hábitos de trabalho tivesse observado a troca de patrões em um a relação de trabalho que
ficara de todo inalterada.
Estávam os tratando da form ação do hábito de cultivar gêneros N esta carta circular, o controle da movimentação dos índios no
de subsistência. A docum entação destinada aos “diretores” repete as atendim ento aos serviços externos é tópico retomado para revalidar
normas do D iretório, adaptando-as aos casos particulares. Este é um as “portarias de perm issão” e, por m eio delas, coibir o livre acesso
bom momento para a verificação das ramificações do poder (Foucault, dos m oradores aos m esm os índios. Este expediente, aliás, marcou a
1982), a eficácia do sistem a, com a entrada e absorção das intenções atuação de defesa dos índios pelos missionários em legislação ante­
do Diretório em cada aldeia. rior ao Diretório.
A carta circular de José N ápoles Tello de M eneses, governador Observe-se, inclusive, a vigilância de outros (toda a comunida­
da Capitania do Pará, escrita em 9 de junho de 1780, é o nosso pri­ de de Bentham ) sobre a observância destas normas pelo “diretor”.
meiro exem plo (IHGB, lata 283, pasta 5). A prim eira observação a Com o representante im ediato do governo colonial, ele não estaria
destacar é o endereçam ento d a carta a com andantes e diretores, isento de punição, caso transgredisse alguma norma. A previsão de
podendo por esta destinação entender-se que nos dois casos se apli­ recom pensas, prêm ios a qualquer um que denunciasse uma trans­
ca a experiência de convívio com os índios, sobre a qual deveríam gressão com etida por um “diretor” ou outra pessoa é prova de que o
instm ir-se com o representantes do poder colonial, tanto na direção poder da legislação foi tam bém construído nos indivíduos, com ri­
das fortalezas.quanto na dos povoados. Nesta m esm a instrução m a­ gor excessivo, e lentam ente.
nifesta-se a preocupação com a distribuição racional dos índios para
Q u e to d a p e sso a , d e q u alq u er q u alid ad e ou condição, qu e fo r
as diversas frentes de trabalho representadas pelas dem arcações, os
c o m p re en d id a n o ab o m in áv el crim e de co nsentir no seu serviço
serviços dos m oradores e as “canoas do com ércio do sertão”, H á
ín d io s d e u m , o u o u tro sexo, sem o s ju sto s títulos, q u e prescre­
também um a preocupação com o despovoam ento que a distribuição v em as leis, e o rd e n s d e Sua M ajestade, além das penas im postas
dos índios entre os diversos interesses conflitantes podería ocasio­ no d ito b an d o , se rã o co n d en ad o s em m ais um m ês d e prisão, e
nar, frustrando as possibilidades de crescim ento dem ográfico natu­ 5 $ 0 0 0 R éis h a v id o s su m ariam en te, p o r ca d a índio, p ara o d en u n ­
ral destas povoações. N esta intenção, pede-se aos “diretores” que cian te [IH G B , C a rta C ircu la r d e J.N.T. d e M eneses, 1780].
aumentem a vigilância sobre a m ovim entação dos índios no atendi­
mento aos serviços externos, a fim de que não viessem a perm anecer O controle era exercido até mesmo sobre a circulação espontâ­
ausentes de suas povoações, roças e fam ílias por períodos irregula­ nea dos índios entre as povoações. U m a ausência superior a oito
res, que, m uitas vezes, chegavam a ser de dez, onze meses. dias, “a não ser por portaria” , era considerada uma irregularidade,
Em 1780, quase três décadas depois, o D iretório já era um a um a “deserção” . O “diretor” que surpreendesse um índio nestas con­
experiência m ensurável. O dado anteriorm ente fornecido pela refe­ dições, sem a devida autorização, devia apreendê-lo e reconduzi-lo
rida carta circular denuncia um desvio da norma nele prevista, no à sua povoação de origem . Exceção era feita em relação a índios de
tocante ao tem po concedido aos m oradores para reter índios em seus distintas povoações que resolvessem casar e morar em uma das po­
serviços, o qual correspondia a seis m eses. Tal problem a é invaria­ voações. Nestes casos, a autorização era concedida, não se exclu­
velmente citado nesse tipo de docum entação, revelando a prim azia indo, contudo, os rigores da form alização da escolha da moradia
do controle e distribuição da força de trabalho sobre todo plano, pelo casal, para que cada povoação pudesse reatualizar o número de
método ou doutrina, no encam inham ento da civilização do índio. efetivos pertencentes a cada uma.
Como sê no curso de dois séculos, transcorridos desde as experiên­ O utras instruções especializaram -se em orientar tecnicamente
cias m issionárias do início da colonização até o D iretório, só se os “diretores” na condução dos índios em atividades agrícolas.
238 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 239

Exemplo: Instruções que regulam o m étodo porque os diretores das que você comanda em Cupacá com vinte e cinco índios vendidos
povoações de índios das capitanias do Grão-Pará se devem con­ de seis em seis meses; cujos índios assim que forem vendidos
duzir no modo de fa ze r as sem enteiras e plantações, que do com um você os mandará, aonde eu me achar para receberem logo os
das mesmas povoações lhe estão positivam ente determ inadas. Este seus pagamentos que tiverem vencido; e para isso deve você ao
mesmo tempo remeter à Provedoria da expedição o competente
documento organiza o quadro de trabalhadores conform e o calendá­
ponto dos ditos índios com as alterações que tiverem tido [IHGB,
rio de semeadura das “roças do com um ” e das “roças particulares” .
lata 284, livro 2, Carta do Governador do Rio Negro para o Tfe-
O estímulo à eficácia dos “serviços do com um ”, isto é, lavouras e nente Comandante do Destacamento, 21 de maio de 1791].
plantações, está m anifesto nestas instruções, dentre as quais um a
medida específica autoriza os “diretores” a garantirem aos trabalha­ Venda da força de trabalho é um a expressão que caracteriza a
dores uni suprimento diário de farinha, peixe e outros gêneros, con­ condição de trabalhadores livres que concorrem para a sua sobrevi­
tradizendo a intenção de criar-se o hábito do cultivo de subsistência. vência com a oferta de sua força de trabalho sem dispor dos meios
Aqui se ensaia o distanciamento dos “operários” ou “obreiros” índios de produção (terras e ferram entas). No entanto, a situação que então
das atividades diretam ente relacionadas com a própria subsistência. se form ava não com portava a rem uneração dos trabalhadores índios
Uma outra instrução, desta vez assinada por M arcos Joseph M on­ em dinheiro. A té 1749, não circulava a m oeda m etálica em qualquer
teiro de Carvalho, datada de 28 de junho de 1776, apresenta novas parte do Pará e M aranhão. O que a substitui com o objeto de troca é
categorias de trabalho, como a de “feitores” ou “olheiros” — pesso­ o algodão, ou o cacau. U m a informação rara e interessante é a que
as com salário definido e instruídas para o exercício de vigilância do afirma ser a aguardente um valor de troca dom inante no com ércio de
trabalho indígena (em Rodrigues Ferreira, 1786/1974, pp. 231-241). gêneros produzidos pelos índios. Esta situação não decorreu somen­
Estas Instruções repetem fielm ente as normas do Diretório, com te da ausência de circulação de dinheiro, m as da utilização abusiva,
alterações de pouca relevância para reforçar algum a particularidade pelos “diretores” , dos poderes que o Diretório lhes conferia. Veja-se
regional. Assim, além da repartição, o estabelecim ento da duração a descrição desta situação em carta de D om Francisco de Sousa
dos turnos, as form alizações para cessão da m ão-de-obra indígena, a Coutinho a M artinho de M elo e Castro, escrita em 23 de setembro
regulamentação das condições de trabalho e o pagam ento de jornais de 1790 (IH GB, lata 284, livro 2).
(relativo a jornada), há tam bém um a orientação relativa à arreca­
dação do dízimo. Alexandre Rodrigues Ferreira descreve o “exam e As mais populosas povoações do Estado se achavam com taber­
ocular” de roças, mostrando que o procedim ento ritual, previsto no nas de aguardente e arrematadas quase todas pelos mesmos dire­
Diretório quanto à presença de “louvados” para o julgam ento da tores; em todas as outras onde não havia tabernas os diretores
produção dos índios e posterior dedução do dízimo, era com um no negociavam com os índios comprando-lhes os seus efeitos com
dia-a-dia das povoações (em Ferreira, 1974, p. 233-238). aguardente e os negociantes praticavam o mesmo do que tem
resultado não só a ruína das povoações e a pobreza aos índios,
Alguns documentos testem unham a plena form ação de concei­
não só as imensas desordens que nas mesmas povoações suce­
tos que vinham atender a situações m uito novas no âmbito da produ­ dem e tem sucedido, mas este grande número de engenhos e
ção colonial, como o trabalho livre e remunerado exercido por índios. engenhocas de aguardentes único gênero que servia para comér­
Em um a carta do governador de São José do Rio Negro ao tenente- cio com os índios arruinando inteiramente a importação das fa­
comandante do Destacamento em Cupacá, registra-se claram ente a zendas que antes eram remetidas da metrópole para consumo dos
idéia de venda da fo rça de trabalho: mesmos índios.

Pela portaria, que você mandará aos respectivos diretores, orde­ Quem inform a a situação teria um papel relevante na extinção
no que as povoações nela declaradas assistam ao destacamento do Diretório. Sua crítica ao sistema, tomando po r base as perdas
240 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 241

econômicas de Portugal, teria a força política de justificar um a mu­ Portugal e Brasil. M as é também um a situação que descreve as re­
dança nos procedim entos, a com eçar pela extinção da função do percussões dessa ordem econôm ica em nível local, se levarmos em
“Diretor”. Dom Francisco Goutinho com enta que, no intuito de escla­ conta que cada povoação era acim a de tudo uma unidade de produ­
recer esses fatos, m andaria o ajudante A J . de Freitas ao G urupá no ção organicam ente fundam ental para o equilíbrio e o funcionamento
local... de todo o sistema. D aí o regular, o diretor, o comandante, o ju iz e
quaiquer um que fosse o representante oficial branco junto ao índio
aonde aportavam e se registravam as canoas do comércio que no período colonial ter como prim eira obrigação servir à interligação
vem do sertão para que vindo alguma com carga pertencente a destas unidades de produção e, por conseguinte, à continuidade do
diretor a fizesse remeter a Tesouraria dos índios a quem legitima­ sistema.
mente pertencia a dita carga. Ora, o que se observa é justam ente a emergência de brechas no
funcionam ento desse sistema, devido à interposição de “diretores”
A prim eira carga que este ajudante encontrou ia de fato para nestas mesmas conexões comerciais, fazendo-as operar em benefí­
destino diferente ao da Tesouraria e teria sido “carregada po r sua cio próprio. Em nível local, essa figura intermediária coloca-se diante
conta diferentes gêneros no valor de 13 mil cruzados e duzentos e do produtor índio, distanciando-o gradativamente dos resultados fi­
tantos m il réis em arroz” . nais de sua produção mediante expedientes que o poder de adminis­
A lém desta carga, continua a relatar D. Francisco Coutinho, trar previsto no Diretório perm itia e que na solidão destes lugares
havia... extrapolavam , em term os de tirania, como a de dispor do tempo dos
índios, reduzindo a dedicação destes às suas roças particulares e
trinta frasqueiras varias para continuar o sortimento com que cos­ aum entando a que seria destinada aos “serviços do comum” e cujos
tumava prover a povoação; tal era o sistema que todos tinham
resultados cabia aos mesmos “diretores” arbitrar, isto é, qual destina-
adaptado-se nesta conformidade se dizia que a aguardente era
gênero de primeira necessidade, porque era a moeda do sertão. ção dar e qual valor atribuir.
Esse é justam ente o procedimento que chega aos nossos dias
Verifica-se, por esse relato, a ocorrência de um a transgressão e com o nome de “sistem a de barracão” e que ainda persiste em regi­
de um a ação de correção por parte de um funcionário da Coroa por­ ões remotas da A m azônia, acobertado pela distância das comunica­
tuguesa. Ano de 1790. Oito anos antes de o Diretório ser extinto ções e o rarefeito controle pelo Estado. É um processo gradativo de
pela Carta Régia de 12 de maio, que destituiría as funções dos “dire­ escravização por endividam ento, no qual, por contingências do po­
tores”, repassando-as aos juizes e principais, num a vã e paradoxal der local e da estrutura fundiária regional, o seringueiro é forçado a
tentativa de reforçar o próprio Diretório em seu segundo parágrafo, só vender sua produção ao seringalista, mediante preços por este
no tocante a fazer valer aos índios as mesmas leis que governavam arbitrado, vindo pela mesma sorte de dependência e subordinação
outros vassalos. Tem-se, aí, a reprodução dos mesmos argumentos atar-se em dívidas infindáveis, ao adquirir mercadorias em seu bar­
que conduziram , décadas antes, a Coroa portuguesa a destituir os racão.' 1
regulares do poder temporal sobre os índios — os mesmos elementos
indicadores de uma iminente ou já substancial perda do m onopólio 1 V. discussão específica sobre o sistema de barracão por João Pacheco de Olivei­
pela Coroa. ra, a partir de pesquisa de campo com os índios Tícuna (1988, p. 83-86) e, de
Este é um aspecto que envolve considerações amplas, que di­ maneira geral, os casos de irregularidade nas relações de trabalho inventariados
zem respeito ao mercado europeu e, diretam ente, ao equilíbrio das em todo o Brasil pela equipe coordenada por Alfredo Wagner B. dè Almeida
(Levantamento das denúncias de trabalho escravo em imóveis rurais, 1986, p.
importações e exportações no âm bito do com ércio colonial entre 83).
242 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 243

Esta é um a situação que apenas revela um aspecto, um a parte do trabalhador, que, antecipadam ente sabedor de seus direitos de
do quadro geral de acontecim entos da colonização em que se evi­ descanso, podia dispor com planejam ento dos m inutos que lhe per­
dencia uma realidade de escravidão nas condições de trabalho dos tenciam. Ou seja, a legislação, educando, treinando os indivíduos,
índios que estavam sob a adm inistração de “diretores”. O que se introjetando m ecanism os de autodisciplinam ento mais eficazes que
passa é uma necessidade geral de m ão-de-obra para toda ordem de a extenuante situação da jorn ad a de trabalho arbitrada som ente pelo
serviço. A Companhia do Grão-Pará e M aranhão, criada em 7 de patrão, com o m ais tarde explicou Foucault, em outros termos.
junho de 1755, na esteira dos acontecimentos e das intenções propaga­ N a A m azônia colonial, o tem po social era m edido po r em ­
das pela lei de em ancipação dos índios, atendia em parte à dem anda
preitadas, grandes em preendim entos, com o a extração de “gêneros
por mão-de-obra com um fluxo constante de escravos trazidos de
do sertão”, o reconhecim ento da terra, as demarcações e a construção
África. A propósito, lem brem os a fala de Antônio Vieira, que na­
de ruas, edifícios públicos e casas particulares. O Diretório estabe­
quela data remota percebera (“tudo são índios, e tudo é dos índios”)
leceu com o m edida generalizada o prazo de seis meses para substi­
que toda política para a A m azônia devia render-se à evidência de
tuição de um a turm a de trabalhadores índios por outra, a fim de que
um a população indígena num erosa, única detentora dos conhe­
a prim eira pudesse usufruir do descanso e o tem po livre para dedi­
cimentos e dos meios apropriados de um a fixação hum ana naquele
car-se às roças particulares. E esta talvez tenha sido a norm a mais
ambiente em bases duradouras — não sendo casual que a coloniza­
burlada. Alexandre Rodrigues Ferreira faz observações a respeito:
ção portuguesa e também a espanhola crescessem do solo das habita­
ções indígenas (sobre isto, no entanto, reservam os m om ento ade­
[Os índios] que pensam a nosso jeito [i.é. os que se sujeitam às
quado à discussão). leis dos brancos] e são por isso capazes de maior esforço não
Historiadores da colonização da A m azônia reproduzem a ob­ param nas povoações; porque ainda que se restringe até ao espa­
servação de Antônio Vieira. Vem de A rtur C ésar Ferreira Reis a per­ ço de seis meses o tempo de serviço, a que obrigam as portarias,
cepção: na inteligência de ficarem livres os outros seis meses, para traba­
lharem nas suas roças, liberdade é esta que jamais conseguem
A mão-de-obra com que contava era, quase unicamente a do in­ pelo ordinário; porque, pedindo-se incessantemente os índios para
dígena sob a forma de escravo ou não era ele o caçador, o rema­ as diferentes expedições, que se empreendem, apenas descansam
dor, o serviçal de casa, o coletor de drogas, o identificador da oito e nove dias, se é que descansam tanto, são de novo reconduzi­
variedade de flora e fauna, o operário dos estaleiros, o lavrador, dos para o serviço por outros seis meses, sem lhes ficar tempo,
o soldado das unidades militares. Não se dava um passo sem ele, que empreguem na economia rústica e doméstica, como devem,
que era a força material e a inteligência pragmática para a vida de obrigações às suas famílias [1786, p. 112],
local [grifo do autor, 1976, p. 269].
Registros na correspondência oficial entre funcionários portu­
Algo similar ao que Karl M arx com preendia com o sistem a de gueses e o Conselho Ultram arino m ostram que essas em preitadas de
turnos: “É como se estivesse num palco onde as m esm as pessoas, seis meses, principalm ente as de reconhecim ento e estabelecim ento
altem adam ente, entram nas diversas cenas dos diferentes atos” de com unicação entre capitanias, exauriam a reserva de índios das
(1975, p. 330). povoações, frustrando prematuramente seu crescimento demográfico.
A jornada de trabalho é um a m edida social de produção e, sem O trecho a seguir é argum ento para um romance. M artinho de Sousa
dúvida, cultural. N a Europa do século X IX correspondia ao dia de e Albuquerque expõe a M artinho de M elo e Castro (em Portugal) as
trabalho, descontadas tis horas de pausa para descanso (id, p. 300). dificuldades de m anter com regularidade as comunicações da Capi­
E Marx percebería claramente que por trás da aparente vitória da re­ ta n ia de M ato G rosso com ou tras cap itan ias, refe rin d o -se às
gulamentação da jornada de trabalho se revelava a lúgubre situação dispendiosas expedições e especialm ente
244 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 245

a falta infalível de um grande número de índios, que vão a per­ Toda docum entação registra a aquisição de escravos africanos
der-se por causa das mortes, e da fuga, em grave prejuízo, e atra­ com o procedim ento usual, que procurava resguardar a contribuição
so das povoações tão debilitadas e abatidas; talvez que uma gran­ do índio ao crescim ento das povoações. Um a carta de Francisco
de parte, por causa das expedições, e serviços daquela capitania: X avier de M endonça Furtado trata da “doação” de quatro índios
o que assim infelizmente acabamos de observar nesta última via­ “práticos” à Com panhia Geral do Grão-Pará, a fim de
gem, ali feita com o destino de ir levar 0 provimento das Reais
Demarcações, na qual desde que saíram desta cidade até que de
instruírem os negros da mesma companhia na forma de cortarem
volta chegaram à Vila de Óbidos, morreram sessenta e três pes­
as madeiras e de as conduzirem ao lugar do embarque, os quais
soas, quase todos índios, além de outras que faleceram no hospi­
serão pagos à razão de 150 por dia a cada um não merecendo
tal, que o alferes comandante da expedição foi precisado a dispor
mais porque sendo assim se lhe deve aumentar o jornal à propor­
para se curarem o resto dos índios, com que ali chegou; e destes
ção do empréstimo fazendo-se-lhes o pagamento com assistência
os que escaparam, foi com moléstias pela maior parte irre­
dos procuradores dos mesmos índios na forma que ali se pratica
mediáveis [IHGB, lata 284, livro 2, Ofício de 16 de agosto de
[ANTT, n° 51, fl. 104, Carta de 9 de junho de 1761, pp. 87-89],
1788, assinado no Pará].
De trabalhadores escravos a instrutores de escravos: neste per­
O autor desta carta faria sugestões de que os gastos e serviços
curso da legislação, os índios tiveram sua condição jurídica substan­
com esses correios fossem partilhados pelos governos das capitani­
cialm ente alterada? Puderam optar por conviver ou não, trabalhar
as interessadas, reduzindo, assim, os efeitos dram áticos sobre os ín­
ou não com brancos? Excluindo aqueles que permaneciam aguerri­
dios em pregados nessas expedições. Tal preocupação com o desgas­
dos, ou melhor, serenos e ocultos nas ainda inexploradas regiões,
te físico da m ão-de-obra está presente em toda a docum entação do
“os altos rios” , não havia, ou não parecia haver, outra escolha para
gênero p o r m eio d a reco m en d ação que in siste na p rá tic a do
os índios já descidos e acostum ados, desde os tempos missionários,
rem anejamento das turm as de trabalhadores índios, assim com o na
a conviver com civilizados.
obrigação de pagar os jornais pelos serviços prestados. A situação é
Em ofício de 14 de fevereiro de 1754, Francisco X avier de
am bivalente. Tem os um discurso reform ador em um am biente
M endonça Furtado registra a enorme presença de índios “alforriados”
escravista. É mesmo recorrente esta preocupação na geração de po­ que “vagueavam ” pelos povoados sem permanecerem com qualquer
líticos saídos do gabinete pom balino para vir atuar no Brasil. O que morador. No m esm o ofício é tam bém comentada a situação inversa
demonstra, por outro lado, que o comentário, a repetida recom enda­ de índios m antidos sob o controle de moradores que não lhes paga­
ção, reflete uma preocupação com um a realidade de todo escravi- vam pelos serviços prestados, nem os devolviam às suas povoações.
zante para os índios: Procurando dar solução a ambos os casos, o governador estipulou a
obrigação de os moradores pagarem a “soldada” aos índios. Este
Tenho praticado em poupar os índios o mais que me é possível, o bando não se aplicava aos índios que estavam em suas plantações,
detalhe porque lhes tenho regulado as suas mudas de seis em seis
ocupados em ofícios ou servindo ao público. Foi um a m edida pre­
meses, infalivelmente; as recomendações contínuas que estou fa­
lim inar, já expressando o pensam ento do Diretório, no que diz
zendo sempre aos Diretores não lhes disfarçando-os a responde­
rem e a dar uma exata conta de tudo o que obram relativa às suas respeito a colocar todos os índios civilizados sob o controle do Esta­
direções, me persuade que as ditas povoações, o seu comércio e a do, tanto aqueles que estavam sem direção (tutela), vagueando pelos
sua agricultura poderão ir prosperando até onde puder consegui- povoados, isto é, que não mais aspiravam retom ar aos matos, quanto
lo a minha cuidadosa diligência [IHGB, arq. 1.1.3, Ofício de 6 de os que não fugiam , por estarem sujeitos ao controle de pessoas não
novembro de 1775 de João Pereira Caldas para Martinho de autorizadas a adm inistrá-los (IH G B, arq. 1.1.3, Ofício de 14 de fe­
Melo e Castro). vereiro de 1754 e documento anexo de 12 de fevereiro de 1754).
246 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 247

O Diretório não trata do valor dos salários. Ao contrário, instrui fixa os seguintes jornais: 1$200 réis para índios em pregados em ser­
sobre a intervenção de “diretores” na arbitragem do preço dos teci­ viços pesados (roças, engenhos, cortes de m adeiras, transportes des­
dos como valor de troca nos serviços prestados pelos índios. M as a tas e de pedras, navegação e expedições ao sertão); oitocentos réis
Lei de 6 de junho de 1755 contém em seu texto a fixação dos jornais para os serviços dom ésticos, pescadores, caçadores, índias em pre­
dos índios, em conform idade com as necessidades básicas (alimen­ gadas em fazer farinhas e no serviço de am as-de-leíte; seiscentos
tação e vestuário) e á especialidade das profissões tal com o se prati­ réis para índias em pregadas em serviços leves e para rapazes índios
cava em Portugal e em outros reinos da Europa. D a seguinte forma: até 13 anos; quatrocentos réis para “raparigas” índias até 12 anos; e,
por últim o, havia os índios artífices que deveríam ser pagos com o os
Primeiro exemplo, se em Lisboa custa o sustento de um homem dem ais artífices b ran co s, de con fo rm id ad e com os seus “m e­
de trabalho um tostão; e é por isso de dois tostões o jornal de um recimentos” (IHGB, arq. 1.1.3, Regulamento de 30 de maio de 1773).
trabalhador; a esta imitação se deve taxar a cada índio de serviço
Portanto, os parâm etros que a Lei de 6 de junho tom a com o
por jornal o dobro do que lhe é preciso para o diário sustento
referência para fixação dos jornais estavam sendo aplicados com
regulado pelos preços da terra [Lei de 6 de junho de 1755, p. 8].
adequações específicas, para incluir o critério do esforço maior, a
No meio urbano — segundo exemplo — o valor aumenta, por­ distinção po r sexo e idade e a variedade de serviços requeridos pela
que o artífice tem um a ocupação considerada superior à do “o ho­ colonização. Todavia, não há como negar que a form a predom inante
mem do trabalho” que se em prega em todo tipo de serviço não-espe- de pagam ento dos jornais aos índios foi sem pre m ediante m ercado­
cializado. Na m esm a lei é destacado que o pagam ento sem anal dos rias, principalm ente tecidos e ferramentas de trabalho. Listagens de
jornais deveria ser efetuado aos sábados, sob a form a de tecidos, m ercadorias destinadas ao pagamento de índios, por serviços pres­
ferramentas ou dinheiro, de acordo com a conveniência (livre esco­ tados, atestam a aplicação corrente deste procedimento.
lha?) dos trabalhadores (id, p. 9). A listagem de artigos que serviram para o pagamento de servi­
Este era, sem dúvida, um referencial longínquo para os traba­ ços prestados por m ulheres índias em um hospital incluía machados,
ferros de cova, facas, m içangas, anzóis, navalhas de barba, espe­
lhadores da Amazônia. No entanto, um a correspondência de 29 de
julho de 1773, entre João Pereira Caldas e M artinho de M ello e Cas­ lhos, etc. Os serviços prestados por índios no transporte de canoas
tro, comprova que as decisões tom adas na Lei de 6 de junho estavam eram pagos com aguardente da terra, frascos, arpões, pregos, verruma
sendo observadas. Esta correspondência inform a que depois da pro­ (AHU, Rio Negro, C aixa 5, Doc. 7). N a Relação de gêneros que se
mulgação desta, que era cham ada “lei das liberdades”, o salário que devem remeter do Pará para a Partida ocupada nas demarcações
venciam os índios ocupados no “Real Serviço” e no de particulares do Rio Negro e para satisfação dos salários dos índios incluíam -se
tinha o mesmo valor das “soldadas”, ou seja, quatrocentos réis. Seu carne de vaca salgada, aguardentes de cana, sabão e panos de algo­
antecessor, Fernando da Costa de Ataíde Teive, havia arbitrado o dão (AHU, Rio Negro, caixa 7, doc 3). Trata-se de artigos de pri­
valor de mil e duzentos réis (1$200) para os que servissem na obra m eira necessidade, ao lado de outros considerados básicos para o
da fortaleza de Macapá. O m esm o valor deveríam passar a pagar os colonizador. Entretanto, estas m ercadorias, oferecidas, inclusive,
moradores aos índios que lhes servissem. Som ente os índios empre­ com o presentes, em conversações que tencionavam persuadi-lo a #
gados na colheita de “drogas do sertão” continuavam a receber as “descer” para as povoações civilizadas, tinham o efeito de produzir,
antigas soldadas de quatrocentos réis. Exatam ente o serviço “repu­ no índio, encantamento, sedução e dependência. Das mesmas listas
tado com o o mais trabalhoso e de mais m erecim ento” (IHGB, id, p. depreende-se a diversidade de tipos de serviços prestados por índios,
320). Com o propósito de ajustar os novos salários na proporção dos desde aqueles declaradam ente adequados às suas habilidades, como
diferentes serviços, sexos e idade, o governador João Pereira Caldas pescadores, remadores, coletores, guias em viagem, até os que viríam
aprender com os brancos, sendo estes últim os de grande variedade.
248 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 249

O Detalhe dos serviços em que atualm ente existem empregados os Arq. 1.2.10, pp. 178-181). Um trabalho que tanto poderia continuar a
índios da Vila de Barcelos, dá-nos a extensão da participação dos ser o de providenciar a alim entação das pessoas empregadas nos
índios em toda a obra da colonização. Prim eiro, com o oficiais das serviços de dem arcação, atuando com o pescadores e caçadores
povoações, nas funções de principais, capitães, alferes, abalizados; (AHU, Carta de João Pereira Caldas para o coronel Manoel da Gama
segundo, com o oficiais de ped reiro s, carpinteiros, serradòres, Lobo de A lm ada de 5 de abril de 1784), quanto contribuir para o
calafates, ferreiros, sapateiros, oleiros; e, terceiro, com o pescado­ reforço m ilitar das fronteiras, fazendo parte das guarnições das tro­
res, em pregados em obras públicas, fábricas e serviços de morado­ pas (id, Carta para o tenente-coronel João Batista Mardel, de 5 de
res (BNRJ, 30 de outubro de 1786). abril de 1784). Nas duas situações, os índios habitantes das povoa­
Cada docum ento, carta, relatório retrata um a situação especí­ ções seriam solicitados.
fica da colonização e exprim e um a percepção da utilidade que possa Em outras circunstâncias, é a povoação com o um todo requerida
ter o índio para aquela circunstância. U m a carta de M endonça Furta­ ou pensada estrategicam ente com o ponto de apoio para as ações de
do, ainda de data anterior ao D iretório e às medidas da seculariza- defesa das conquistas territoriais. É certo que o nascimento das po­
ção, manda que os m issionários orientem os índios na preparação de voações está quase sempre relacionado com esses projetos de defesa
mantimentos destinados às expedições de serviços da demarcação: militar. João Pereira Caldas discute, em carta endereçada ao tenente
João Batista M ardel, o projeto de construir duas novas povoações
Cada pessoa das aldeias, de 13 anos para cima, deveríam dar por localizadas nas bocas dos rios Ixié e “Cauaboris”, com recomenda­
derrama um alqueire de farinha para ser paga para Fazenda Real ções expressas para que fosse estudada junto a este último, no lugar
pelo preço que correr [IHGB, arq. 1.2.10, Carta de Mendonça de Caldas, ou na boca do rio, a formação de outra fortificação:
Furtado, p. 219].
Pois que ela parece indispensável para melhor fecharmos aquela
A obrigação de fornecer víveres às expedições, aos “reais servi­ porta contra qualquer futura descida e invasão dos espanhóis; e
ços”, tornar-se-ia corrente nos governos seguintes. Por exem plo, nas para evitar que a comunicação nos cortem com as superiores for­
cartas de João Pereira Caldas endereçadas aos diretores de Fonte talezas e povoações deste rio, segundo faz evidente de precaver o
Boa e Castro de Avellans, há recom endações para que as farinhas conhecimento de tais terrenos, e praticáveis paragens [AHU, Rio
produzidas pelas povoações de Fonte Boa (e outras rio acim a) e re­ Negro, caixa 8, doc.3 — Carta de João Pereira Caldas ao tenen­
servadas aos dízim os não sejam transportadas e, sim, permaneçam, te-coronel João Batista Mardel].
a fim de serem distribuídas ao destacam ento de Tabatinga (AHU,
Caixa 6, d o c .l — Cartas do governador João Pereira Caldas para os Supunha-se de grande importância fechar “portas aos espanhóis”
Diretores de Fonte B oa e Castro de Avellans). com povoações e habitantes índios tom ados portugueses. Esta, a
Não seriam os índios apenas os fornecedores de víveres, poden­ segunda face do plano de civilização dos índios contido no Diretório:
do ser convocados com o trabalhadores. Uma correspondência entre a consideração política de seu lugar na colonização.
M endonça Furtado e Diogo de M . Corte Real dá notícia d a obriga­
ção, com unicada ao vice-provincial da Companhia de Jesus e aos
As alianças nativas
superiores das m issões de Nossa Senhora do M onte do Carm o, Nos­
sa Senhora das M ercês, dos capuchos de Santo Antônio e da Pieda­ Sua Majestade é servido que pelo Conselho de Ultramar se pas­
de, segundo a qual todos esses religiosos missionários deveríam ter sem patentes ao índio Alberto Coelho, de principal da nação Aruan
sempre “prontos os índios para servirem nos trabalhos de dem arca­ ao teor da outra patente inclusa que se passou a Inácio Manajabora
ção, sob pena, em caso de escusa, de retirá-los por força” (IGHB, seu avô por ser falecido seu irmão Inácio Coelho a cujo favor se
250 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 251

havia passado a outra patente também junta; ao outro índio Luís os índios presenciaram a cerim ônia retom ando com as patentes às
de Miranda de sargento-mor da mesma nação Aruan ao teor da suas regiões de origem .2 Entretanto, o que se coloca em destaque é a
que lhe passou o governador, e capitão general do Grão-Pará e sim ultaneidade de idéias e acontecimentos naquele m esm o ano, em
Maranhão: Ao outro índio Gonçalo de Sousa de Menezes de prin­ especial um cerimonial da monarquia portuguesa de estabelecim ento
cipal da nação Maraconá: e a seu filho Francisco de Sousa de de aliança com chefes indígenas e que acontece m eses antes de pro­
Menezes de sargento-mor do seu pai: expedindo-se as ditas pa­ clam ada a “lei das liberdades” . É um caso que dem onstra com o fatos
tentes sem emolumentos: E sendo-me remetidas com toda a bre­
m enores, m as significantes, antecedem e m esm o provocam grandes
vidade para as fazer presentes o mesmo senhor as assinou: de­
vendo os referidos índios embarcar-se na frota que está próxima m udanças. É expressiva, aqui, a idéia de um certo espírito de época
a partir-se: Deus guarde ao Senhor. Paço a 15 de Março de 1755. presidindo ao encadeam ento de todos esses fatos. Um conjunto de
Senhor Marquêz de Penalva. idéias antigas e novas que perm itiam a im plem entação de projetos
coloniais a partir de um a estrutura tradicional, m as renovada e refor­
É quase inevitável im aginar que na escolha de “principais”, çada por um a percepção cada mais tolerante em relação ao índio.
sargentos e “oficiais” pudesse haver, da parte dos colonizadores, Estava aceita a possibilidade de um a correção, por m eio de sua trans­
uma expectativa de que esses índios fossem ou, pelo m enos, vies­ form ação em indivíduos civilizados.
sem a ser a genuína liderança das coletividades a que pertenciam ,
pois, por alguma razão, foram escolhidos pelos colonizadores para Sem elhantes a essa patente e de mesmo grau sim bólico são as i!
responder por su a gente e transm itir mensagens de ambos os lados. cartas de fundação de aldeias construídas para colocar em prática
Imagine-se, então, que daí em diante pudéssem os perceber esses ín­ esta convicção sobre a possibilidade de transform ação dos índios
dios como começo de um plano de civilização. em indivíduos civilizados. Trata-se do prim eiro docum ento a notici­
A citação anterior refere-se a patentes concedidas a índios per­ ar o início de experiências de civilização de índios, devendo, com
tencentes às “nações Aruan e M araconã”. Embora a referência à nação tal m edida e com este caráter inaugural, conter com maior clareza
fosse, naquele contexto, um entendim ento equivalente a raça, etnia, possível todos os elem entos desta convicção. Entre as experiências
estava implícito nesses cerimoniais de estabelecim ento de aliança de aproxim ação dos índios que habitavam Goiás e as efetuadas pe­
política o reconhecimento dos índios com o representantes de povos los governos dessa capitania, na mesma época em que eram conce­
distintos, identificados com base nos mesm os aspectos com que se didas patentes a chefes indígenas, é expressiva a que resultou no
definiam as nações européias, no que diz respeito a ter um a m esm a aldeam ento dos índios C havante (X avante) no sítio do Carretão.
origem, história, território, língua, cultura. Em prim eiro lugar, esta­ A Relação da Conquista do Gentio Chavante (em Ravagnani, 1978), : !j jiil

va, portanto, o reconhecim ento da representatividade política desses escrita por um dos militares que participaram desta experiência, é
índios diante das estruturas de poder do colonizador, sendo oportu­ um testem unho desta convicção.
no indagar acerca do consentim ento coletivo em tom o dessa lide­ A narrativa com eça por identificar os problem as que esses ín­
rança surgida a partir de fatores exõgenos. dios vinham causando aos movimentos colonizadores da capitania.
&
Os índios estão relacionados por parentesco, podendo-se, em
consequência, por esta medida afirm ar que um princípio de suces­ 2 Paço, por tal expressão entende-se espaço político, às vezes residencial, podendo
são ainda iniciante orienta as escolhas de representantes índios ju n ­ serum palácio real ou episcopal, mas também a corte ou o local onde funciona a
to à colonização. São referidas duas patentes: a de “principal” e a de câmara municipal. A dúvida esboçada no texto é esclarecida pelo que primor­
“sargento-mor” . dialmente denota o termo, ou seja, o local onde se realizou a cerimônia das pa­
tentes é Lisboa, uma vez que por “Paço” entende-se, essencialmente, sede de
A tiltima referência é curiosa: o local e o assinante estão a indi­
governo.
c ar que esse documento foi assinado em um “Paço” [Lisboa], e que
252 Rita Heloísa de Almeida O D iretó rio dos índios 253

Faz alusão expressa à responsabilidade dos índios Xavante pelas novos hóspedes” . Como eram muitos, projetou-se a divisão do gru­
mortes de portugueses, seqüestros de escravos e ataques aos povoa­ po entre o Carretão e outra aldeia denominada Salinas. A justifica­
dos, considerando tais acontecim entos um a form a de “insulto” que tiva para esta divisão foi política e prova de que o acordo de paz era
justificava a decisão política de um a resposta bélica, caso não acei­ essencialm ente um ato de conquista: pensou-se tão-somente êm di­
tassem um acordo de paz. Às duas possibilidades de resposta exis­ m inuir o orgulho, que lhe podia fomentar o seu grande número .
tentes desde o início do em preendim ento são próprias do espírito da M as a proposta foi recusada pelos índios, seguindo todos para o
época, que concede prêmios ou estabelece punições, civiliza ou es­ Carretão.
craviza, conform e a atitude de docilidade ou rebeldia com que os O primeiro registro desta chegada, salvo a Relação da Conquista,
índios recebem essas tentativas de aproxim ação e de convívio ofere­ dada à publicação em 1790, foi a carta de 13 de janeiro de 1788,
cidas pelos colonizadores. O relato dem onstra que o procedim ento assinada pelo capitão de D ragões, José Pinto da Fonseca, dando no­
adotado foi o da negociação. tícia da chegada à aldeia do Carretão de dois mil e duzentos índios
A prim eira expedição resgata um pequeno grupo composto p o r da nação “chavante” . N esta carta, a conquista dos índios é traduzida
um homem e algumas mulheres e crianças Xavante e os transporta com o um resgate de sua hum anidade embrutecida, dada a condição
ao centro urbano da capitania, onde, em convívio com os brancos, de “feras” em que viviam. U m a conquista, continua o autor da carta,
recebendo presentes e sendo tratados com docilidade, os índios te- que beneficiava tanto o “Im pério português”, com novos “vassalos”,
riam oportunidade de form ar um a idéia diversa da que sem pre tive­ quanto a Igreja, com novos “filhos” . Curiosamente, o cerimonial de
ram a respeito dos brancos. Argum entava-se, nessa Relação, que o juram ento que na chegada dos índios se praticou foi atribuído pelo
bom tratam ento deveria “encher de vaidade o am or-próprio” daque- autor da carta às exigências dos próprios índios e acatado com o
le homem, de m aneira que, ao voltar à sua terra, livre e envaidecido interesse de quem cum pre form ar um am biente de concordância
pelos obséquios concedidos, pudesse atuar com o um “em baixador” política:
das intenções de paz e de estabelecim ento de um convívio com os
brancos em habitações urbanas”. Os grupos X avante, com os quais Igualmente tenho a honra de por na presença de V. Exa. a fala que
esse índio foi negociar, não se convenceram dos propósitos de paz na sua chegada lhe fiz, e o termo de juramento que prestaram por
oferecidos pelo governo da capitania. Outro grupo, entretanto, se s e r co stu m e entre e sta s nações o ju ra re m sempre a paz, ou a
g u erra com a lg u m a fo rm a lid a d e o que aqui se fez com a soleni­
convencería, ao que parece identificado pela procedência Xavante,
dade possível tendo para este fim convidado o vigário de Crixás
em bora tivesse sido encontrado em paragens estranhas a esta etnia.
celebrando aqui missa, e entoado os cânticos do Senhor pela pri­
Dos esforços de transmissão da m ensagem de paz participaram este
meira vez nestes incultos bosques.
índio Xavante e alguns “Cayapos” (Kayapó) e “A croas”, que já con­
viviam com brancos nos aldeam entos da capitania. Foram esses ín­
O juram ento feito pelo chefe Xavante é prova de que o cerimo­
dios “embaixadores”, apoiados por escoltas de pedestres, que pratica­
nial foi de grande significado para ambas as partes, a julgar pelo
mente conduziram todo o processo de conversação com os Xavante,
registro, e seguramente para os oficiais militares portugueses que se
tomando suas pessoas como provas da veracidade dos propósitos de
viam renovados pela repetição de um ato que ritualiza sua origem e
paz e, ao m esm o tempo, como testem unhas do poder bélico dos bran­
sua identidade. Um discurso que vinha consagrar atos de conquista
cos, na hipótese de esses índios insistirem em continuar o que se
na Am érica, na África, na Ásia, praticados não só por portugueses,
qualificava com o “insultos e rapinas”.
mas tam bém por ingleses, franceses, espanhóis, os quais invariavel­
O segundo passo foi o aldeam ento, em local escolhido previa­
m ente representando um a m onarquia européia, oferecem proteção e
m ente e onde já estariam em andam ento “plantações, e constru­
amizade, fazem a real entrega do terreno e exigem o juramento de
ções de algum as fábricas necessárias a assegurar a subsistência dos
O D iretório dos índios 255
254 Rita Heloísa de Almeida

gratidão e fidelidade a essa aliança. O juram ento de um índio Xavante, indicar a origem de seu povo relacionada com a terra em que vive­
considerado chefe na ocasião d a chegada de seu povo ao Carretão, ram seus ancestrais. U m ato de fundação com base histórica e m ito­
com pleta esse cerimonial: lógica tem , assim, a força social e cultural de estabelecer um a iden­
tidade, com suas convicções e projetos de vida capazes de atravessar
Arientomô-Iaxê-qui, maioral da nação Chavante de Quá, em nome oceanos para querer possuir e construir mundos sem elhantes à terra
de toda a minha nação juro e prometo a Deus de ser, como já sou natal, ou de lutar e resistir pelo que igualm ente considera com o sen­
de hoje em diante, vassalo fiel da rainha de Portugal, Maria I, a do seu (caso dos índios, no passado e no presente).
quem reconheço por minha soberana senhora, mãe e protetora, e
de ter perpétua paz, união, e eterna aliança com os brancos; o que A form ação de governos coloniais com lideranças nativas con­
assim me obrigo a cumprir e guardar para sempre. Aldeia de Pedro tou com m odelos e conceitos de poder que haviam em basado a for­
UI, 13 de janeiro de 1788. m ação do Estado m onárquico em Portugal. C onceder patentes mili­
tares a índios responde à m áxim a do estabelecim ento de alianças
M ircea Eliade descreve este m om ento com o um ato prim ordial políticas com as populações que habitavam as terras conquistadas.
de criação do mundo, a transform ação do caos em cosmos, e tom a Aos olhos dos colonizadores repetem -se, na terra conquistada, os
como exemplo o cerimonial de levantam ento da cruz, pelo qual os ritos de fundação de sua gente. Não é um a invasão e, sim , um a tom a­
colonizadores espanhóis e portugueses faziam valer a tom ada de da de posse. O rei reconhece seus dom ínios e suas gentes, concede-
posse. Em seus term os, esse ritual equivalia a um a justificação, um a lhes terras, cria privilégios a seus vassalos, instaurando um pacto de
consagração, que tinha o sentido de um novo nascim ento, celebrado favores e lealdades que alicerçará sua soberania. N ão há rei sem
com batismo (1990: pp. \9-2Q). povo, escrevia Rousseau (p. 30) na m esm a época em que se conce­
São muitos os nomes que dão expressão a esse ato. A justifica­ diam as patentes anteriormente referidas. M uito claro fica, então, o
ção do oficial português ao juram ento, de ser este mais um a exigên­ significado, para os legisladores, da outorga da liberdade aos índios
cia do índio do que dele próprio, não indica estar por esta via esca­ no século X V m . É evidente que a liberdade que se concedia não era
moteando as razões da conquista ou as intenções im plícitas no ato. a que concebem os (ou idealizam os), com o a que perm ite aos índios
Apenas revela que aquele ato de fundação era conceitualizado dife- serem o que realmente desejam. A noção de liberdade desta época
rencialmente, embora sentido e percebido por ambos com a m esm a do D iretório é a que permite aos índios partilharem os conhecimentos
intensidade. Daí a universalidade do gesto humano, que M ircea Eliade de civilidade, com a convicção de se estar atingindo a felicidade (a
captou bem. Um traço universal que é, todavia, de constituição cul­ que B entham concebera).
tural, gerador de particularidades e distinções. E m 18 de março de 1767, as idéias elaboradas em 95 parágrafos
Em nossos dias, os d escen d en tes d e sse s prim eiros índios, no D iretório estavam resum idas da seguinte forma:
aldeados no Carretão no século XVUI, falam desse ato, por vezes
repetindo acertadamènte fatos e personagens históricos relativos à Foi servido, não só de mandar expedir em seu favor a lei da abo­
fundação desse aldeam ento sem nunca ter lido essas informações lição do governo temporal dos eclesiásticos, e de lhes declarar a
em algum lugar. Im pressiona constatar que esses descendentes, já propriedade das terras, que na verdade eram suas\ e de me rqgp-
bastante miscigenados e aculturados, principiam seus relatos sem ­ dar as mais positivas ordens para a sua civilização, o conheci­
pre a partir da referência a um hom em e algum as mulheres (tal qual mento do valor do dinheiro, gênero para eles nunca visto, o interes­
narra a Relação da conquista), com o se desse núcleo prim ordial fos­ se do comércio, o da lavoura', e, ultimamente, o da familiaridade
se possível restabelecer de tem pos em tem pos (m edida geracional) o como os europeus, não só aprendendo a língua portuguesa, mas
laço que os mantém unidos aos prim eiros. Fazem -no, assim, expli­ até o dos casamentos das índias com os portugueses que eram
meios todos os mais próprios para aqueles importantes fins, e
cando a eles próprios e a outros que lhes perguntam quem são, para
256 Rita Heloísa de Almeida O D iretó rio dos índios 25 7

para todos juntos fazerem os interesses comuns, e a felicidade do N ote-se no trecho anterior com o as experiencias colonizadoras
Estado [Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao passadas no território de Portugal e em relação aos outros povos são
Conde da Cunha, 18 de março de 1767 em Mendonça, 1989 p sempre lem bradas e reproduzidas. A eficácia do plano colonizador e
455], civilizador reside em contar com o m esm o conjunto de valores (e
convicção sobre eles próprios) em qualquer empreendimento. Fos­
Estas palavras constituem a linguagem oficial dos documentos sem estes destinados à índia Oriental, a Portugal, a Goiás ou à Am a­
da época. Seu autor, M endonça Furtado, delas faz uso com a fluên­ zônia Pom balina, porque,
cia de quem as concebeu ou nelas deposita as suas certezas. Resti­
tuir terras aos índios, estabelecendo relações de vassalagem , não tra­ havendo S. Majestade posto ao cuidado e préstimo de V. Sa. toda
duz um ato de subordinação. A o contrário, exprim e um a escolha a sua Real confiança, esperando que daquelas virtudes se siga,
civil de prestar lealdade ao rei, ou, nos termos do século XVIII, é um inspirações muito semelhantes às que na primitiva índia Orien­
ato de obediência civil devido por todo indivíduo, em retribuição à tal fizeram com que se vissem tão poucos portugueses/azer tan­
satisfação de seus direitos garantidos pelo Estado. Interesse, am bi­ tos e tão façanhosos progressos, e dominar tantas, e tão numero­
ção, disciplinam ento, habilitação ao trabalho sedentário são qua­ sas nações: tendo por certo que os portugueses são sempre e hão
lidades geradas nesse acordo social de m ando e obediência civil. de ser os mesmos e que a diferença só consiste no modo com que
U m a carta régia dirigida a João Pereira C aldas, ao tempo em são dirigidos [em Mendonça, 1989, p. 530].
que foi im plantar a Capitania do Piauí, tem a m arca das leis funda­
doras que servem à instauração de um a nova ordem social. Assim, U m a direção aos foragidos, sertanistas, mineiros (a gente pobre
in stru i para e fe tiv a r a “red u ção dos sertões a povoações bem que afluía para a colônia) haveria de ser tao rigorosamente corretiva
estabelecidas”, restitui as liberdades individuais dos índios, m anda quanto a que se aplicava aos índios, em bora n a atribuição de cargos
organizar a econom ia e form ar cidades com governos adm inistrati­ estes ocupassem sempre posições hierarquicamente subordinadas aos
vos civil e m ilitar, representados por Câmaras da Justiça e da Fazen­ cargos preenchidos pelos brancos. E, para demonstrar <£ie as con­
da e um Regim ento de Cavalaria com posto por Com panhias (Carta quistas civis relativas aos índios ainda estavam distantes do que se
R égia de 29 de julho de 1759, em M endonça, 1989, pp. 362-364). compreendia com o condição de vassalos, o “plano” (palavra tão usual
P or conseguinte, um governo civil e um governo militar. Com quanto “projeto” nesses papéis) encerra-se na criação do cargo de
m aior ou m enor grau de com plexidade, esta era a estrutura de todo “diretor” com plenos poderes sobre os índios e povoações que viria
lugar, vila, cidade criada no Brasil do século X V m . É referida a administrar:
participação dos índios nesta estrutura. Daí, resta-nos indagar em
que proporção ou até que ponto o ideal de constituição dos governos O ponto gràve que há que considerar, é ver quem há-de ser a
nativos se realizou ou se m anteve rarefeito com o m edida inaugural pessoa que vá governar estas gentes; que tenha não só eficácia e
(e ideal) que nao seria absorvida ordinariam ente nos m omentos se­ conhecimento para semelhantes estabelecimentos, mas que seja
guintes. de uma consumada prudência e reflexão, para os inclinar aos tra­
A s instruções de M artinho de M ello e Castro a Luiz de Albuquer­ balhos com suavidade, e fazer-lhes conhecer, que nós o que que­
que e M ello Pereira e Cárceres constituem um guia de conduta aos remos deles é o seu proveito, e que a esse fim é que trabalhamos”
que vieram form ar a C apitania do M ato Grosso. H á um destaque (id, p. 455).
para os índios tornados m ilitares. Trata-se dos índios “B araros”
(Bororo), que seriam designados a form ar um “Terço de M ilícias ou O “diretor” foi o ponto frágil do plano.
tropas irregulares à m aneira dos Cipaes da índia O riental” (Carta-
Instrução de 13 de agosto de 1771, em M endonça, 1989, p. 520).
Terceira Parte
As Traduções
C ap ítu lo 7

Os primeiros registros

O que pensava aquele primeiro índio da lista de nomes indica­


dos para receberem patentes? O índio Alberto Coelho, pertencente à
etnia Aruan, existiu com o personagem concreto da história da colo­
nização da Amazônia. Aruan foi uma das primeiras nações aguerri­
das que habitavam a ilha do Marajó (“ilha de Joannes”) a ser noti­
ciada pelos portugueses, que então construíam o Forte do Presépio,
no Pará, em 1616. Ém 1700, esses índios ainda travavam violenta
guerra contra os colonos de Belém, tal como os “Manáos”, no Vale
do Rio Negro (Renor Carvalho, Cedeam, 1984, p. 67). Em meados
do século XVIII, seus líderes recebem patentes militares. Um pro­
cesso de transformação transcorreu nesses primeiros cento e cin­
quenta anos de colonização: os índios não atacam mais o coloniza­
dor, servem-no como seus guerreiros.
O que entenderam os índios quando viram chegar os primeiros
colonizadores — volto a insistir, pensando nesse momento funda­
mental, que parece ter sido de perplexo assentimento. Um texto es­
crito no século XVIII, Geografia histórica do Brasil, África, Ásia,
Portugal, refaz a cena da primeira missa, analisando o temperamen­
to dos índios: “gente pouco esquiva, facilitando a nossa sair e levan­
tar o altar, adonde houve m issa e pregação, ouvindo com admirável
sossego aquele gentio [BNL, cod. 475]”.

“Gentio” . E sta palavra será desde então empregada para todos


os índios. Sua etim ologia ajuda-nos a compor percepções de am­
bos os lados a respeito desse encontro. A palavra hebraica goyim
262 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 263

equivale a “gentio” e exprim e a condição prim ária de todos que não Prossegue esse estudo pioneiro de geografia do Brasil com o que
são judeus. O termo, entretanto, designa nações ou povos, sendo realizando um a viagem ao interior do pais por meio da descrição de
esta a tradução que predom ina na maioria dos dicionários, acrescida seus rios. O rio M aranhão, informa, era habitado pelo gentio tapuia,
do sentido de “grande número” e da característica de “não ser civili­ gente bárbara, tragadora de carne humana, am iga de guerras e trai­
zado e cristão” (Lello, p. 1150). ções” . As expressões pejorativas refletem, sobretudo, sentimentos
Muito expressivo 6 o fato de os colonizadores europeus terem de pertinência étnica.
transposto este conceito de “gentio” para denominar os índios do N o registro desses sentimentos mútuos de identificação por
Brasil. Implícito neste transplante estava o propósito de inclusão exclusão com partilhados pelos índios do Brasil, tem -se o primeiro
que justificava um a missão de salvá-los pela conversão ao cristia­ esboço de um a classificação geral segundo o critério da língua fala­
nismo. No espaço semântico entre a “guerra santa”, que com bate os da. São os índios de língua ‘T upi” que se referem injuriosamente a
infiéis sob o pretexto de resguardar os “lugares santos”, e a “guerra seus contrários, incluindo todos na expressão T apuya . Expressão
justa”, que pune a idolatria e o canibalismo dos índios, o que se ilusória, se consideram os sua alusão genérica (com pequenas m odi­
constituiu firmemente foi um a base cultural judaico-cristã, de expe­ ficações na grafia) tanto a índios quanto a europeus e africanos, con­
riências fundamentais de percepção dele próprio, o europeu, e do tudo, em um período pré-colonizador, notavelmente distintiva para
outro, isto é, todos os povos que foi conhecendo nas novas terras designar todos que não fossem Tupi.1
conquistadas. M as também transcorreu a constituição da idéia de
civilização ocidental. A palavra “gentio” revela-se, assim, com o parte
da matriz cultural do colonizador, dando razão ao espanto que a per­ Conhecer a terra, conhecer a gente
cepção da diferença lhe suscitava no encontro com o índio. Os “gen­
O registro do estranhamento intratribal produziu um a classifi­
tios” vinham dar sentido ao não entendimento, preenchendo, com
cação linguística. Outro texto, intitulado Sobre os tapuias que os
pagãos, idólatras, canibais, selvagens, o imaginário de monstros oceâ­
paulistas [aprisionaram] ha guerra e mandaram vender aos mora­
nicos, construído pela ansiedade do desconhecimento (Fonseca, 1992,
dores do [Porto?], contém uma classificação dos índios a partir das
pp. 35-51). Superado esse desconhecimento geográfico pela conclu­
características físicas do espaço que habitam ou da distância ém que
são da travessia do oceano, prossegue o desejo do descobrimento, se encontram em relação ao mar. Assim se definem três “sortes” de
desta vez terra adentro, e são os índios aliados que guiam ou, em seu “gentios” no Brasil: primeiro, os que estão “abeira-mar” ; segundo,
rastro, seguem os exploradores do sertão. os que se encontram “aterra adentro, distância de cinqüenta léguas” ,
e terceiro, os “da distância destes cinqüenta léguas, por espaço de
[O lago dos enganos] contam os índios versados no Sertão que oitenta, noventa e cem léguas, o sertão”. A segunda categoria de
bem no meio é visto dar-se a mão este grande rio [Amazonas]
índios é particularmente identificada como a dos “tabajaras”. Estes
com o da Prata em uma lagoa famosa [formosa] ou lago profundo
índios viviam da pesca, da caça, da coleta de frutos silvestres, estan­
de águas, que se ajunta das vertentes das grandes serras do Chilli,
e Peru, e demora sobre as cabeceiras do rio que chama S. Fran­ do ausente entre eles a prática da antropofagia. Já os da terceira
cisco, que vem desembocar ao mar em altura de 10 graus, e um
quarto: porém [não é certo] que se encontram águas com águas,
1 Estas afirmações estão apoiadas em estudos sobre os significados da palavra
mas que avistam tanto ao perto, que distam somente duas [?] lé­ “tapuya” que foram feitos por Câmara Cascudo, 1972, e Antenor Nascentes, 1955,
guas. bem como registros de sua aplicação entre os índios, por Claude d ’Abbeville,
1 6 1 2 (data da observação), von Martius, 1819/1863; Karl von den Steinen, 1884
e 1887/1942; frei Michel Berthet, 1883/1982.
264 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 265

categoria são aqueles indistintam ente denominados de o “Gentio do desconhecimento da terra adiante e de seus habitantes, até chegar
Tapuya” . A seu respeito serão repetidas as mesmas qualificações ao sertão, expressão genuinamente alusiva a “terrenos incultos”, que
depreciativas: “gente de corso, tragadora de carne, amiga de guerras é o inverso de seu ponto de partida, a civilização. A “ferocidade”, a
e traições” . Citando o padre Vasconcellos, o autor desse texto expri­ “bestialidade dos costumes” vinham, assim, ocupar, em equivalên­
m e as seguintes considerações: cia semântica, a obscuridade de monstros oceânicos.
Por certo, os colonizadores fizeram de suas impressões sobre o
Esta tal gente não lavra, nem semeia, nem tem casa, nem povoa­ ambiente os traços com que desenharam seu entendimento sobre os
ção, andam nús, vive no campo, e dorme na terra nua, seu comum índios. E stá presente em todos os roteiros de viagem esse entrelaça­
sustento são frutas do mato, mel silvestre, todo o gênero de ani­ mento de impressões sobre a terra e seus habitantes. Parece um dado
mais, ratos, cobras, lagartos e seu maior regalo é carne humana cultural do colonizador, e ainda hoje operante em Portugal, que entre
[BA, 54-X n i.l6 ( 162)]. as classes de povoações lá existentes sejam sinônimas as categorias
de “lugar” e “povo” (Vasconcelos, 1931, p. 21). No século XVIII,
É difícil mensurar a reação que deveríam causar essas informa­ quando o governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado reali­
ções ao público leitor europeu dos séculos XVI e XVII. Por oportu­ zou a viagem de Belém até as regiões ainda pouco exploradas dos
no, traz-se aqui o entendimento de Luís Adão Fonseca a respeito do rios Am azonas e Negro, ele registra o entrelaçamento dos significa­
imaginário dos navegantes portugueses dos séculos XV e XVI e sobre dos desses conceitos, ao explicar que
o qual nos transmite a idéia de um espaço desconhecido, preenchido
com imagens e explicações fantasiosas. O elenco de monstros oceâ­ o Rio de Sulimões é o mesmo Rio das Amazonas continuado da
nicos (sereias, serpentes, dragões, ciclopes) não acaba aí. Sua barra do Rio Negro em diante, dando-se-Ihe esta denominação
perm eabilidade, explica, tem o limite da percepção hum ana do des­ por serem da Nação Sulimão os índios, com os quais se forma
conhecimento. Segundo Fonseca, “o monstro é outro, é a alteridade ram as primeiras povoações do Rio Amazonas, seguindo do Rio
dentro da comum condição humana” (1992, p. 49). E tom a como Negro para cima, e ser costume introduzido entre os índios o
referência uma fonte da época, que diz: “son tout autre que nous ne atribuir aos Rios a denominação do Gentio mais dominante deles
som es” (id, p. 49). [in RIHGB, 1906, p. 276],
Poderiamos continuar a pensar com este autor que os monstros
são as dúvidas, que não deixam o hom em descansar em sua “comum A julgar por este trecho, um mapeamento antropológico era fei­
condição humana”, impulsionando-o sempre a um enfrentamento que to juntam ente com o cartográfico. E certamente servia a uma delibe­
busca sua superação pelo conhecimento. Todas as duras provas da rada ação colonizadora. Rios como “Uaupéz, Topinambaras, Bacaxis,
vida podem ser visualizadas como um a travessia, um a outra margem Amazonas” eram, verdadeira ou imaginativamente, territórios flu ­
do rio que é preciso alcançar. É m esm o um gesto universal, próprio viais de etnias.2 Resta saber até que ponto esse mecanismo de
da condição humana, transmitir ou traduzir em categorias de espaço
as abstrações do pensamento. Impressiona perceber que os movi­ 2 Richard Morse menciona a questão comentando a influência do colonizador so­
m entos dá mente hum ana reproduzem os movimentos da interação bre a configuração municipal futura. Ele discute os resultados dos arranjos admi­
física do homem no mundo, sendo m uito coerente que a geografia nistrativos espanhóis, vendo que na Guatemala, muito embora as divisões fos­
hum ana tenha sido a antropologia na ausência desta. A classificação sem “arbitrárias", algumas “tendiam a refletir grupos étnicos preexistentes” de
onde vieram a emergir municípios que “desempenhavam o papel de unidades
geográfica dos índios de nosso último documento reproduz a grada­ culturais fundam entais” (1962, pp. 39-40). Entendo que os agrupamentos
ção do conhecimento que o colonizador tinha do Brasil: é com o se a preexistentes e os novos agrupamentos não se excluem, mas permanecem mes­
visibilidade litorânea de seus habitantes índios, já familiarizados pelo clados como experiências sedimentadas. Mais adiante ainda será retomada esta
convívio, fosse sendo paulatinamente preenchida pela obscuridade discussão.
266 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 267

nominação é dado cultural trazido pelo colonizador ou por ele assi­ pela leitura de textos precedentes, que trataram da mesm a matéria.
milado como um costume nativo, isto é, entrelaçar gente e terra em Falem os brevem ente de alguns pontos por ele descritos.
um a mesma designação, a com eçar por “gentio do sertão”. N o pri­ - A m aneira como o autor trabalha reproduz um a terceira classi­
meiro caso, se o dado provém do colonizador, o que se registra nes­ ficação, qual seja, o reconhecim ento por exclusão — conhecer o
ses roteiros de viagem como nomes de etnias podem ser pontos geo­ Outro, observando o que lhe falta, estranhar pela ausência de aspec­
gráficos e nem sempre referirem -se a etnias que habitavam nas tos familiares. É como se um questionário invisível presidisse às
circunvizinhanças. Por outro lado, no segundo caso, se considera­ suas observações voltadas para indagações, tais como se há Estado,
mos que esse mecanismo de nom inação pode ter sido também um monoteísmo, monogamia, propriedade, Vida urbana, a fim de, com
costume nativo, temos em outra conta a variedade de nomes de etnias estes conceitos, com por a descrição pela constatação do inexistente.
existentes em um período pré-colonizador e que hoje remanescem Sua descrição parte dessa postura genérica, com a consciente
como topônimos indígenas. percepção da diversidade. Confirmando essa afirmação, no prim ei­
Um livro pode produzir o efeito de ser eternizado por diversos ro parágrafo o autor diz que, muito em bora sejam “divisos e haja
motivos, tais como curiosidade, estética e, ainda, o conteúdo .de apren­ entre eles diversos nom es de nações [são] todavia na semelhança,
dizado que permite a seus leitores. O Tratado da Província do Bra­ condição, costumes, e ritos gentílicos, todos são uns” . Sua intenção,
sil de Pero Magalhães Gandavò serve como exemplo.3M uito do que no entanto, não é o conhecimento da geografia humana em detalhe
nele se leu está presente nas etnografías de nosso século. É um texto e, sim, o desenho da silhueta por meio da qual se possa visualizar o
com interesse em mapear as condições gerais da colônia, em todos índio encontrado no Brasil no século XVI. O retrato daí resultante,
os seus aspectos, a começar pelò reconhecim ento físico da terra, a algo genérico e impreciso, talvez explique sua vital correspondência
localização, os recursos naturais e as possibilidades produtivas; em com as observações antropológicas sobre os índios da atualidade, o
seguida, reproduz relatos sobre monstros marinhos e, por fim, trata que permite evidenciar que o estranhamento produzido por esse en­
dos índios do Brasil de m aneira genérica, uniforme, com magnífica contro (não importando se há quinhentos anos ou agora) é fator que
descrição de seus costumes e crenças. Sem dúvida, a fluidez desse dirige, condiciona a percepção e o enquadramento da observação.
relato e o detalhamento intenso da descrição foram os elementos Com respeito ao comportamento, os traços descritos são descon­
que fizeram desse texto uma fonte prim ária de consulta fundamental certantes: ao mesmo tempo em que os índios são pintados como
para estudo do Brasil colonial. “desagradecidos, desumanos, cruéis, vingativos”, apresentam pro­
Seu ponto de partida reproduz as categorias de pensam ento de pensão “a crer em tudo que lhes persuadem” , sentem com intensi­
sua época, condicionadas por um a realidade em que os índios só dade o desgosto, e mantêm em “devido resguardo os seus ajunta­
poderíam ser compreendidos a partir de uma perspectiva espacial mentos” .
M ais um a vez o autor deverá reconhecer a diversidade de etnias,
que estava associada ao conhecimento físico disponível sobre á colô­
ao referir-se às línguas indígenas. O relativo conhecimento sobre a
nia. Os índios e seus modos de vida, com os quais já se familiarizara
“língua geral”, falada em toda a costa, habilita-o a duvidar que exis­
o colonizador, é que serviram de m odelo para a descrição de seus
costumes e crenças. Além desse limite geográfico, o autor reproduz tam as três letras com que se podería expressar a existência de “fé”,
“lei” e “rei” entre as organizações sociais indígenas. Mas o tom jo ­
um a visão de que já devia dispor antes de chegar ao Brasil, fornecida
coso não esconde a admiração que logo a seguir revela, em face do
consenso coletivo em torno de uma espécie de “principal em cada
aldeia, que é como capitão, ao qual obedece, por vontade, e não por
3 Biblioteca da Ajuda, 51.VII.31. Utilizei, para transcrever citações, a reprodução
atualizada de alguns trechos publicados em Cronistas e viajantes, 1982. força” .
268 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 269

Essas coletividades foram, desde o início, chamadas “aldeias”, não altera a direção, os objetivos e as convicções em tomo da con­
à sem elhança do que ocorreu com as pequenas aglom erações de quista. Ao contrário, as instmções são para que: “...se ponha a tirar
mesmo porte no continente europeu. Cham am a atenção do autor as algum a utilidade,...logo que forem apanhados, [e que] sejam trans­
form as de convívio dos índios, em que todos os bens eram partilha­ portados às povoações mais remotas porque dali será impossível
dos e todos os frutos do trabalho repartidos sem distinção, não ha­ fugirem...” (id).
vendo qualquer motivo que os colocasse em posição diferencial, uns Esta convicção é de tal maneira forte que não se admite outra
em relação a outros, na ausência não de letras, mas de noções intei­ form a de verdade senão a racionalização, que culmina num autocon-
ras de propriedade particular, valor de dinheiro atribuído a coisas e vencimento da superioridade da civilização: “Como V.Exa. me tem
sentimentos diversos de cobiça. P or a í se vê como o conhecimento sempre perm itido...falar na sua presença com aquela liberdade filo­
dos habitantes do novo mundo provocou profundas reflexões e es­ sófica que expõe as coisas como elas são e não como parecem”
forços de modificação das próprias estruturas em que estavam base­ (BNRJ, ms. 21.1.1).
adas as instituições européias. Constatar esta fórmula ideal de con­ Tais palavras são a prova de que não havia argumentos contrá­
vívio social inspirou autores, co m o Thom as M orus, a criarem rios à convicção de se estar falando de uma realidade (e não de uma
modelos alternativos para a sociedade européia de sua época e que crença virtual na sua existência).
retom ariam aos próprios índios em planos de civilização como o Os relatos de Alexandre Rodrigues Ferreira sobre as localidades
Diretório, do ponto de vista da conduta solidária, da responsabili­ visitadas propiciam ao leitor experimentar, com mais intensidade, a
dade consensual em relação ao trabalho destinado ao “bem comum ”, sensação de serem elas presididas por um questionário invisível,
das form as desde já cooperativas de trabalho, ensaiadas nas planta­ mediante o qual ele descreve fotograficamente as edificações exis­
ções coletivas realizadas pelos índios aldeados. E talvez possamos tentes nas povoações, avalia o movimento da economia e das popu­
afirm ar que o que atualmente se entende por “m utirão”, “ajuri”, lações e fiscaliza a atuação dos diretores em relação ao comporta­
“adjutório” — nomes dados a tipos cooperativos de trabalho no meio mento dos índios aldeados. Assim, a etnografia dos índios é escrita
rural brasileiro — seja a form a híbrida dessa inspiração no modelo em meio a diversas observações, pela razão de o naturalista estar
indígena, aplicada pelos colonizadores para direcionar o trabalho incumbido de realizar o que seria o primeiro levantamento científi­
feito pelos índios. Curioso m ovim ento de conceitos. co sobre a Amazônia.
A etnografía de Alexandre Rodrigues Ferreira já traz implícito Novamente se reconhece a diversidade, mas não se cogita o es­
o conhecimento sistematizado pelos primeiros cronistas sobre o modo tudo dos índios condicionado a esse reconhecimento:
de ser do índio. Perde-se, parcialm ente, a admiração quinhentista
pela postura e pelas organizações indígenas, ao se constatar serem Em uma só aldeia se falam tantas línguas diversas quantas são as
passíveis de modificação no contato com a civilização. O jogo de diferentes tribos de gentios, que a povoam. A superstição de to­
das elas, seus diferentes costumes, extravagância no vestir e em
luzes e sombras presente no im aginário dos navegantes é retomado
se ornarem, as suas festas e bailes, os seus instrumentos marciais
nos planos de civilização para expressar uma ação de esclarecimento.
e festivos [...] tudo isto apresenta um dilatado campo de obser­
Todo documento oficial da época traz sempre este recurso visual a vações, pelo qual não farei mais do que correr ligeiramente em
essas justificações. Recomenda: “procurar antes ilum inar os ditos ordem a deixar algum rasto, que indique a minha marcha [1786,
índios, fazendo-lhes conhecer o engano em que se acham, do que p. 618].
destruí-los” (BNRJ, ms. 11.32.17.1).
E um discurso de reconhecim ento sobre erros cometidos em Pensando deste modo, Alexandre Rodrigues Ferreira irá escre­
relação aos índios no passado. Entretanto, o sentimento que daí emana ver um a etnografia genérica sobre os índios da Capitania do Rio
270 O D iretório dos índios 271
Rita Heloísa de Almeida

Negro, em que as características predominantes são apresentadas das dores e tormentos que passa, enquanto se lhe retarda a morte,
que é a porta que se lhe abre para escaparem das misérias da vida
como leis gerais para todas as etnias observadas e não observadas.
[...] Eis aqui um rasgo de piedade entre eles, que entre nós é
Por vezes, ele assume a postura de um observador familiarizado com uma impiedade [id, p. 620].
o estudo da arte popular e transplanta o conhecimento dos costumes
e crenças do europeu das cam adas mais pobres de sua época pára O que se constata nesses prim eiros estudos etnográficos sobre
descrever os índios americanos. Suas considerações sobre a “supers­
os índios do Brasil é a utilização do espaço desses textos para refle­
tição”, nome dado ao tópico em que trata dós assuntos religiosos,
xões sobre a condição humana, m ediante a procura e identificação
reproduz o exercício de definição por exclusão:
de aspectos universais do comportam ento do homem em sociedade,
as posturas filosóficas e sua capacidade organizativa. Isto confirm a
Mas estes mesmos nenhuma forma tem de culto público, não
a vocação, desde cedo, da Antropologia, de adotar as ferram entas
erigem templos em honra das suas divindades, não tem ministros
especialmente consagrados ao seu serviço, porque os pajés, que analíticas da própria cultura para o reconhecimento da diferença.
são os seus feiticeiros e sacerdotes, também são os médicos, os Pensando assim, os demônios, a cólera dos deuses, os pajés, os feiti­
filósofos, e os estadistas de cada tribo. O entusiasmo supre a ceiros, os embaixadores da paz, os oráculos, os sinais de deform ida­
ciência do feiticeiro [id, p. 619]. des industriais, as tangas de entrecasca, as aldeias, tudo são nomes,
expressões e ferramentas conceituais de análise que, vistas fora do
Exercícios comparativos de História perm item relativizar cos­ texto e do contexto em que estão empregadas, poderíam levar leito­
tumes indígenas ou por este m eio defender um a tendência evolutiva, res a pensar que se trata de um a leitura sobre a índia inglesa ou a
em que o índio participa do m esm o percurso, apenas a uma distância África francesa, ou, ainda, algum a distante ilha da Oceania onde
temporal comparável ao estado em que se encontravam os ances­ dominaram os holandeses.
trais do europeu:
t
Outros desenham na pele uma multidão de listras e de figuras A face fantasiosa da observação: amazonas, gentio de corso,
diversas, custando-lhes estas pinturas muitas dores, muito tem­ anões, caudados, canibais
po, e muito trabalho. Outros andam sempre tintos de urucu ou
carajuru; assim como dos antigos Bretães se escreve, que se tin­ H á mais um mecanismo de definição do índio a discutir e que se
giam com o pastel, para assim incutirem maior terror ao inimigo, encontra entrevisto no roteiro que Ribeiro Sampaio fez das povoa­
e também apresentarem as suas pessoas em um ar mais bizarro ções da Capitania de São José do Rio Negro, entre 1774 e 1775.4
[p. 621]. Esse roteiro de viagem pode ser concebido como um a das pri­
meiras etnografias dos índios do Amazonas. É etnográfico com o in­
Há momentos de plena percepção da observação sobre o outro- tento consciente de registrar costumes e diversidade de nações. Cons­
índio como exercício de autoconhecimento e autocorreção. No m es­ tata a variedade, tal como o fizeram os observadores quinhentistas,
mo tópico sobre costumes, em que desqualifica a antropofagia, ele mas não hom ogeneiza e, sim, vai adiante, na indagação dos fiinda-
logra refletir com isenção religiosa sobre a prática da eutanásia en­
tre os índios:
4 Viagem que em visita e correição das povoações da Capitania de São José do
Os mesmos pais e filhos têm o cuidado de lhe antecipar a morte, Rio Negro fe z o Ouvidor e Intendente Geral da mesma Francisco Xavier Ribeiro
não só para se aliviarem a si do fardo de tratar deles, durante a no ano de 1774 a 1775. O manuscrito encontra-se no AHU, caixa 2, doc. 21. Esta
impertinência da moléstia, mas também para o aliviarem, a ele obra foi publicada pela Academia Real das Ciências em 1825.
272 Rita Heloísa de Almeida
O Diretório dos índios 273

mentos d a diferença. Ele age dessa m aneira cumprindo atribuições.


É o registro de um ouvidor e intendente. Ofício que forçosamente na A m érica com características semelhantes às da mitologia grega
espreita as relações sociais, privadas e públicas, na m edida em que foi Orellana, que as chamou de “amazonas”, dando ao rio que elas
precisa indagar, ouvir, formar m atéria para julgam ento. Ele é um habitavam o mesmo nome, até hoje conservado (cx. 2, doc. 21)
magistrado que usa a verdade com o m edida de aplicação de justiça. Com o Gandavo, Orellana deve ter contado com informantes
Torna-se muito evidente que por esse caminho tivesse ocasião de índios de fala tupi para suas observações. Nesta medida, supõe-se
investigar temas que incitavam a curiosidade européia sobre o novo que o m ito das “amazonas”, transplantado pelos colonizadores, te­
mundo e seus “habitadores” — os índios. Suas digressões chamam a nha um equivalente cultural, uma variante entre os índios sul-ameri­
atenção para o aspecto fabulador do entendimento acerca do que se canos. Ribeiro Sampaio levanta provas para discussão desta hipó­
observava. Como se, não podendo adm itir realidade no que via, fosse tese. Prim eiro, avalia o testem unho de um europeu, O rellana,
necessário traduzir usando um sim bolism o familiar. corroborado pelas populações indígenas ribeirinhas que visitou,
Refiro-me, em primeiro lugar, às “amazonas”, mito de origem indagando-lhes acerca destas e de outras questões de sua curiosi­
grega sobre m ulheres guerreiras que viviam às m argens do “rio dade. Veja-se seu argum ento em tom o de uma questão tratada com
Thermodonte, na Capadócia” (Lello, p. 97), na Ásia Menor. Essa o rigor da averiguação da verdade:
localização do m ito é pertinente, porque de lá saíram muitos indiví­
duos para a colonização da América nos séculos XVII e XVTH. Trans­ Mas, eu não posso calar o que ouvi com os meus ouvidos, e que
quis verificar logo que me embarquei neste rio Amazonas: disse­
plantar para a Am érica uma fábula gerada de um ambiente fluvial
ram-me pois em todas as povoações por onde passei, que havia
significava permitir associar fatos concretos identificados com o mito
mulheres no seu país, como eu lhas pintava [ele indaga pelo pro­
ou, simplesmente, por esse mito e por outros, dar expressão verbal blema que transporta] e cada um em particular me dava delas
aos receios que causava o mundo amazônico a seus novos habitantes. sinais tão constantes, e uniformes que se a coisa não é assim é
A origem do nome do rio localizado na Am érica M eridional, preciso que a maior mentira passe em todo o Novo Mundo pela
conta Ribeiro Sampaio, recorda esse mito asiático, registrando ma­ mais indubitável de todas as verdades históricas [AHU, cx. 2,
nifestação similar entre mulheres índias que diziam ostentar grande doc. 21].
coragem guerreira, cuidavam em não deixar desenvolver um dos seios
para facilitar o m anejo do arco e, ao gerarem filhos, enjeitavam os Em seguida, Ribeiro Sampaio coloca em dúvida a mesma fonte
varões, mantendo apenas as filhas, com quem form avam um conví­ que anteriormente legitimou como argumento de autoridade, ou seja,
vio de exclusiva presença feminina. Situação sim ilar é descrita por o consenso em torno da existência de “amazonas” e a repetição de
Gandavo. M as ele não atribui nome ou associa a exemplos mitológi­ características constantes que lhe conferiam veracidade:
cos familiares e tam pouco reconhece um a base orgánizativa de gru­
po, povo ou nação a essas índias, as quais descreve como obrigando- Não cabe no meu entendimento igual opinião e se examinarmos
se a serem castas em relação aos homens, abandonar a condição esta matéria pelas regras da verdadeira lógica e sólida critica,
feminina e assum ir atitudes masculinas. Na descrição de Gandavo é devemos assentar que a existência das Amazonas da América é
uma daquelas preocupações populares que achando fundamento
realçada apenas a escolha pessoal que implica um a inversão de pa­
no maravilhoso que o povo ama se propagam com extraordinária
péis sociais (o que não deixa de ser rico material de indagação e
facilidade.
fabulação sobre a existência do m atriarcado como organização polí­
tica concreta).
A o mesmo tempo, traz para sua digressão casos concretos, fun­
Muitos cronistas escreveram sobre a matéria. M as, segundo Ri­ dados na observação de mulheres que realmente participam da guer­
beiro Sampaio, quem primeiro teria encontrado mulheres guerreiras
ra ju n to com os hom ens, na função de auxiliares. Ao concluir a
274 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 275

digressão, Ribeiro Sampaio, inesperadamente, desqualifica as duas sempre no singular com o um coletivo. Tal grafia transmite as im ­
fontes de comprovação que havia reunido: plicações da circunstância do nome. Reflete, primeiramente, o des­
conhecimento acrescido da incontida admiração pelo poder que es­
Eis aqui dois exemplos de Amazonas [Muturucús e Otomácas]: ses índios p areciam d e te r so b re largas ex ten sõ es, onde seus
e, eis aqui quanto bastou para que Orellana, sucedendo-lhe o mes­ integrantes seriam encontrados em posição defensiva.5
mo, tivesse fundamento para estabelecer a sua fábula: complica­
Quem está lendo papéis oficiais sobre planos de civilização e
da ela com o que se dizia das Amazonas Asiáticas, não foi neces­
sário mais para aplicar às da América que se contava daquelas notícias de estabelecimento de contato com índios há de notar que
nas histórias, que junto tudo as circunstâncias preponderadas e na docum entação a respeito dos índios M ura destaca-se a função de
aos costumes dos índios propensos naturalmente às feições e “língua” (intérprete) exercida por índios que já detinham algum a
mentiras, fizeram criar raízes a esta opinião; favorecendo-a mui­ experiência de convívio com eles. Função que se tom aria ofício in­
to o gosto da nação espanhola, por quem tem sido transmitida e dispensável nas negociações de paz entre os portugueses e os M ura.
apoiada para o maravilhoso É mesmo possível que essa circunstância ditada pelo medo e pelo
desconhecimento da língua M ura tenha produzido a impressão de
Seu desfecho é subitamente racional para quem procedeu a uma homogeneidade relativa a essa etnia, que é de todo fictícia.
investigação partindo do pressuposto de que tanto podería ser ver­ Entretanto, os documentos que registram as notícias sobre os
dade quanto mentira, daí trazendo ao texto testemunhos com os quais Mura, desde a sua condição m ais aguerrida, em que são referidos
procurou dem onstrar que exemplos como estes é que inspiraram como “índios de corso”,6 até o momento em que estabelecem acordo
Orellana a transplantar um a fábula do Velho M undo para traduzir o com os portugueses, de ir viver em suas povoações sob as ordens de
que via entre os índios. N essa digressão constata-se um exame da “diretores” ou “principais”, propiciam a percepção de que havia di­
verdade.
ferenças por trás do nome Mura. Em 1785, João Batista M ardel es­
Os receios de uma viagem plena de riscos iminentes — cor­ creve ao governador João Pereira Caldas sobre algo que lembra um
rentezas, ventos de proa, regiões inexploradas ou pouco exploradas,
possibilidade de engano sobre a rota — têm o nome de Mura. Esta
fantasia do medo deriva da suposição de serem encontrados grupos 5 O mapa elaborado por Curt Nimuendajú atesta este domínio territorial, recobrindo
Mura margeando os rios, protegidos pela vegetação abundante, a com o nome Mura toda a extensão do Amazonas, começando nas proximidades
espreitar embarcações para um ataque de surpresa. O m edo, materia­ do Trombetas e tocando pontos fundamentais dos rios Negro, Japurá, Madeira,
lizado na figura do M ura, tem o aspecto mágico das questões sobre­ Punis, Tefé, até o Juruá (1944/1980).
naturais e é ampliado pelas comunicações entre as povoações que 6 Os corsários não se confundem com piratas — estes agiam tanto na guerra quan­
alimentavam o receio de um ataque inesperado. Em Alvéolos (ou to na paz. Os corsários recebiam dos reis patentes ou cartas de corso, que lhes
davam o direito de apresar navios mercantes de nações inimigas (Lello Univer­
Arvellos), a população chegou a ouvir que um M ura havia matado
sal, p. 660). Não é estranho que se transplante o conceito para denominar índios
um pescador e levado sua canoa. Segue-se novo registro com a outra em estado de beligerância, mas é curioso que se revele, por trás desta denomina­
versão do evento, segundo a qual o pescador e a canoa continuavam ção, o sentido de guardiães que tinham os corsários incumbidos oficialmente
em Arvellos “ [que] o m edo de ver o gentio o fizera fugir, como suce­ pelas monarquias européias de proteger os mares contra a circulação de embarca­
deu com um preto daquele lugar, que vendo M ura largou á canoa e ções identificadas com nações inimigas. Contudo, o sentido que veio impregnar
expressões como “gentio de corso” ou que veio compor considerações sobre ín­
se meteu ao m ato” (AHU, caixa 11, doc 8). dios como os Mura, especificamente, designa a qualidade atribuída à pirataria,
Há alguns pontos importantes que se pode extrair da leitura dos ou seja, vida nômade de pessoas que tiram seu sustento fazendo guerras e saques.
documentos que tratam desses índios. O nome M ura aparece quase Vale considerar também que os Mura foram — e talvez ainda sejam — exce­
lentes canoeiros.
O Diretório dos índios 277
276 Rita Heloísa de Almeida

“Coatá-tapuya” é também um nome dado aos “Ugina”, o que nos


grande reduto de resistência ao contato com a civilização, um a espé­
perm ite identificar como fonte de informação deste relato os índios
cie de quilom bo indígena, que tem na vida nômade um recurso
de fala Tupi, um a vez que o vocábulo “tapuya” pertence a esta. lín­
defensivo:
gua. Novam ente Ribeiro Sampaio reúne provas para demonstrar que
O império destes miseráveis é composto de muitos de diferente não se trata de um a fábula criada pelos homens. Assim, comenta os
língua [família lingüística] e muitos refugiados entre eles,e apa­ testemunhos de grande número de índios descidos do Juruá. A se­
nhados das povoações, todos passando debaixo do nome de gunda prova é um a certidão juram entada por um religioso carmelita
Muras, sendo estes refugiados os mais dificultosos de sujeitar e e deixada em poder do reverendo visitador e vigário da Capitania do
ps que dissuadiram algum a que não se submetam à paz, como Rio Negro. Nesta certidão, o religioso afirma que conheceu um ho­
andando a sua vontade entre eles, e livres de remarem canoas, e m em pertencente à nação “Coatá-Tapuya”, tendo certificado o
mais diligências a que são nas povoações obrigados e em que reverendo “que vira sem poder padecer engano algum que o sobredito
morrem em tanta quantidade [epidemias do primeiro contato] índio tinha um rabo da grossura de meio palmo, coberto de couro
[AHU.cx. ll.d o c . 2].
liso sem cabelos” (id, cx. 2, doc. 21).
A princípio, é o próprio ouvidor a duvidar do relato, conside-
Um outro papel faz referência a um índio Baré que diz ter vivi­
rando-o um a quimera. Entretanto, ao apresentar provas testemunha­
do junto aos M ura e observado sentimentos contrários e marcadas
das e juram entadas, torna legítima a discussão sobre a veracidade do
distinções que só vinham confirmar a ausência de hom ogeneidade
fato.
interna devido à presença de outras etnias entre eles {id, cx. 12, doc.
O fabuloso tom a-se objeto de investigação. Foucault (1980), ao
14-A).
estudar o desenvolvimento da reflexão humana sobre a verdade e as
Em certas circunstâncias, deve-se acrescentar, os ataques assu­
formas jurídicas, observou que modelos como o da “indagação”,
miam a autoria M ura por motivos políticos. Uma correspondência
originados na Antigüidade e retomados na Idade Média, são a base
entre militares, posterior à pacificação dos M ura, dá notícia de um
sobre a qual se desenvolveram os domínios da história, geografia,
ataque por eles supostamente efetuado. O ataque logrou êxito por­
cartografia e astronomia {id, p. 85).
que os soldados não reconheceram seus atacantes, julgando, equivo­
O exercício de verificação da verdade empreendido por Ribeiro
cadamente, tratar-se dos M ura, dos quais só esperavam um a aproxi­
Sampaio traz ao texto uma discussão muito ao gosto de sua época a
mação pacífica. Em outro documento reaparece a m esm a dúvida
respeito da origem do homém associada à do macaco. Uma indaga­
quanto à autoria dos ataques, nele preferindo-se acreditar que tais
ção que sempre existiu é, no texto de Ribeiro Sampaio, destituída da
ataques estivessem sendo incitados: “se é que são de alguns ainda
religiosidade que a inspira e tratada como objeto de racionalização,
não reduzidos [pacificados] a atual paz talvez praticados pelos espa­
permitindo considerar o exemplo dos “Coatá-tapuya” um testemu­
nhóis, para na referida form a tal embaraço fazerem e sustentarem ”
nho vivo da gênese da espécie humana.
(AHU, cx. 15, doc. 7).
Vimos, anteriormente, Luís Fonseca abordar a força estimuladora
Outras digressões trazem de volta o exercício de verificação da
que encerra o desconhecimento expresso em diversas monstruosida­
verdade visto em relação às amazonas. São de Ribeiro Sam paio as
des oceânicas. A indagação, como sugere Foucault, tem o mesmo
descrições de índios anões (nação “Cauána”, “estatura curta que não
efeito do desconhecimento, ao desencadear o conhecimento.
passa de cinco palm os”) e o povo “Ugina” (“nação que possuía rabo
Se as questões que suscitam a observação dos índios em seus
com.cum primento de três a quatro palmos ou mais”).
costumes diversos nos levam a conclusões sobre a universalidade
A origem da nação “Ugina”, garante Ribeiro Sampaio, é atribu­
dos modos de vida humanos, é natural que as ferramentas conceituais
ída ao ajuntamento de mulheres deste povo com “monos Coatás”.
278 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 279

de quem os observa sejam as mesmas utilizadas em suã sociedade. prova compreender este domínio o que era então as regiões da Bahia,
As observações sobre costum es são transmitidas mediante os signi­ Pernambuco, M aranhão e Pará. Seus informes partem de um a tradi­
ficados impressos em term os próprios da cultura do colonizador (ou ção oral sobre um a grandeza guerreira ‘Topinam bá”, que fez “rigo­
do Velho Mundo). A circuncisão praticada pelos “Tecúnas” (Tükúna rosa oposição no descobrimento do Brasil” . Relatos sobre confron­
ou Ticuna), observados por Ribeiro Sampaio, é traduzida com os tos e alianças desses índios com portugueses, franceses, holandeses
termos e o conhecimento que ele detém sobre rito sim ilar e compa­ e espanhóis perm item verificar terem sido os ‘Topinam bás” num e­
rável, de origem judaica. rosos e distintos, com o bem podem exprim ir as diferenças dialetais
Assim como os conceitos e significados servem à leitura da nova entre si, desde o início registradas pelos cronistas. M as era essencial­
realidade, os valores e as convicções em que se formam tam bém são mente uno esse povo, como detentor de um a língua entendida desde
transmitidos. Sobre os “Cam bebas” ele diría que o litoral sudeste até a extremidade do domínio português no Solimões.
É o que Ribeiro Sam paio afirma, contrariando um a outra versão, já
são os mais civilizados e racionais, [...] sua cor mais alva e a discutida: a de que a “língua geral” não era um a língua natural e,
figura elegante, sempre usaram vestidos em ambos os sexos, cousa sim, um instrumento de comunicação pobre, simplificado ao extre­
rarísima nos índios da América Meridional [id]. mo. Por que, então, com tal número e unidade linguística, teriam
sucumbido à persuasão ou à guerra m ovida pelo europeu, num erica­
Suas observações adm iram o engenho e gosto pela estética, mas m ente m inoritário e internam ente fragm entado por desavenças
reprovam a existência de canibalismo entre os “Cam bebas”. Ao con­ trazidas de seu continente?
trário, a feitiçaria já não lhe causa m aior espanto. Suas práticas e Os “Topinambás” foram sendo pouco a pouco combatidos. Seus
praticantes são referidos com a mesma objetividade com que obser­ sobreviventes refugiaram -se em “lugares rem otíssim os” , tendo a
va o meio físico. Daí poderm os confirmar, ou supor, com relativo
m aior parte se aldeado nas missões dos rios Tocantins e Iguaçu. Em
grau de certeza, que a constatação de práticas de canibalism o entre 1661 ainda existiam “em bastante número em povoações próprias”
tal ou qual grupo indígena foi, desde cedo, um dado ideológico, com ou “nos serviam na guerra contra as mais nações de índios, que sem­
a função de tom ar legítimos os resgates de índios para fins de escra­ pre respeitaram o nom e de Topinam bá”, continua a escrever o
vidão. ouvidor, referindo-se a esses índios que viu nos povoados portugue­
ses de Conde, Cayeté e Azevedo.
Ao que parece, estes mesmos povoados abrigaram índios “To­
Focos de resistência nas entrelinhas das descrições:
pinam bá” refugiados dos domínios espanhóis no Peru. Lá, narra o
Topinambá, Ajuricaba, Caboquena
ouvidor, maus tratos e humilhações, ferindo o sentimento de honra
Leituras como esta, de Ribeiro Sampaio, permitem o questiona­ daqueles índios, m otivaram a migração para o domínio português e
mento pela contextualização de dados como o canibalismo, sua real sua posterior dispersão pelas terras do Brasil. O seguinte trecho é
extensão ou expressão ideológica, am pliada pelas determ inações um a pista para encontrar respostas à pergunta feita anteriormente:
político-econômicas.
Os destas povoações [i.é. formadas ou aumentadas a partir da
Este é um aspecto do conhecimento que está condicionado pela
migração para o lado português] conservaram ainda a memória
circunstância histórica. Há, também, o aspecto do conhecim ento
de seus antepassados, falavam língua geral, diziam que a causa
etnológico, que desaparece com os índios. da sua dispersão pela maior parte da América Meridional fora a
Topinambá — É conhecida sua soberania sobre larga extensão dificuldade de subsistirem juntos por serem muito numerosos;
territorial do Brasil em um a fase pré-colonial. Ribeiro Sam paio com ­ exemplo bem semelhante às irrupções dos Povos do Norte da
280 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 281

Europa, e que dá a conhecer que os Topinambás naquele tempo mento, agravado por um desdém em relação a si mesmo, apossou-se
ignoravam a Agricultura; causa verdadeira de semelhantes de M acunaíma, herói de lendas amazônicas e personagem da litera­
transm igrates [AHU, cx. 2, doc. 21]. tura de M ário de Andrade. N o entender de Ribeiro Sampaio, não foi
heróica, mas fundada em sentimento de honra ferida, a motivação
O nomadismo, a atividade de caçadores e coletores produziram do grupo “Topinambá” para transmigrar das povoações do Peru até
um a significação diferente da que povos sedentários, ágrícolas im ­ chegar ao Brasil. P or outro lado, os portugueses do tempo de
primem à terra em que habitam. As expectativas e disposições defen­ Ajuricaba, ao tentarem compreender seu suicídio, fizeram-no reto­
sivas e exploratórias decorrem do sentido de território desenvolvido mando um a experiência histórica e afetiva de perda de um herói
em ambos os casos. querido, símbolo de um im pério colonial:
Vimos, pelo trecho anterior, com o o exemplo histórico (povos
do norte da Europa) serviu à elucidação dos movimentos m igrató­ O que na verdade é mais célebre na história do Ajuricaba é que
rios Tupi. N o relato de Ribeiro Sam paio a respeito de rebeliões mais todos os seus vassalos e os mais da sua nação, que lhe tributavam
recentes, observa-se uma outra ordem de transposição conceituai o mais fiel amor e obediência, com a ilusão que fazem na fantasia
que faz uso da história particular que o colonizador trouxe consigo. estas razões parecendo-lhe quase impossível, que ele morresse,
Fala-se em “rebeliões recentes”, comparando os rebelados com os pelo desejo [id, cx 2 , doc. 21].
“Topinam bás” históricos — isto, porque lem os, com R ibeiro
Sampaio, de um a perspectiva que observa Ajuricaba como o perso­ A recusa em aceitar a perda definitiva de seu herói tem familia­
nagem heroíco contemporâneo ao século XVIII. ridade com o mesmo desejo cultuado pelos sebastianistas — de ter
de volta o seu rei, D. Sebastião. Ajuricaba, aproximado simbolica­
Ajuricaba — índio M anáo, reconhecido entre brancos e índios mente dõ jovem rei estim ado pelos seus súditos justamente pela sua
como um poderoso “principal” . Conta-se que empreendia com ércio vontade de vencer uma difícil batalha, fez do ato de bravura um
com os holandeses da Guiana usando como única droga dessa tran­ atentado à própria vida. Am ado por seus vassalos indígenas, indo na
sação os índios escravizados provenientes de aldeias portuguesas. direção consciente do próprio suicídio, Ajuricaba comunica a cora­
Ajuricaba é perseguido pelos portugueses, combatido e preso junto gem de saber terminar com a vida quando é o que lhe corresponde
a outros “principais” e levado ao Pará (Belém). Na embarcação, reve­ fazer. Em todos os casos, uns de efeito político, outros emocionais,
laria sua “intrepidez”, sublevando-se e conjurando com os demais o que em comum existe entre eles é a realização da bravura expressa
prisioneiros. Apaziguado o motim, no domínio do homem sobre o instinto de sobrevivência, quando
este é colocado em segundo plano em razão de uma causa primeira,
porém, o Ajuricaba vendo impossibilitados os meios de se ver abstrata, mais importante que a própria vida.
livre da prisão, e obrigado a ceder a sua infelicidade, com incrí­
vel resolução e ânimo se lança com os mesmos ferros que levava C aboquena — Este era o nome antigo da povoação de Moreira,
ao rio aonde achou na sua opinião morte mais heróica do que a também chamada Cam arã (ou Camarã, ou Caboquina). Um povoado
que alcançaria no patíbulo que 0 esperava [id]. fundado pelo “principal” Caboquena depois que se segregou de ou­
• I
tra povoação chamada Bararoá (Bararuá), mais tarde denominada
O suicídio heróico de Ajuricaba tem um a correspondência sim­ M oura, ambas às margens do rio Negro.
bólica com o retrato desenhado por Alexandre Rodrigues Ferreira, a | Caboquena era “m uito amante” dos brancos e por esta razão foi
respeito do desgosto que se apossa dos índios que fogem da civiliza­ morto pelos índios de outras aldeias, em um motim ocorrido em 1757.
ção seguindo o rio na direção inversa, rio acima. O mesmo senti- A relação deste levante é de Ribeiro Sampaio (A viagem, caixa 2,
t
J
ii
I
................. à
282 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 283

doc. 21). Os comentários, por Alexandre Rodrigues Ferreira, têm tação pelos agentes da época é que podería equivaler a um a variante
como fonte os registros de Ribeiro Sampaio. entre as explicações oficiais sobre tais levantes no rio Negro, entre
O estopim foi a revolta do índio Domingos do Lugar de Lama- 1757 e 1758.
Longa (anteriormente, Dary), por ter sido proibido, pelo missioná­ Trata-se de um ofício de M endonça Furtado, dirigido a Thom é
rio, de viver em companhia de um a “concubina” . Dom ingos conju- Joaquim da Costa Corte Real, em que narra o levante ocorrido em
rou com os “principais” João Damasceno, Am brózio e Manoel a Bararoá (Thomar), definindo-o como um a deserção comandada pelo
invasão da casa do missionário, onde fariam furtos e destruições. “principal” Jacunum á, Inácio Pimentel (e não um levante gerado
Dali passaram, “amotinados”, para a Igreja, “derramaram os santos pelo desgosto de um índio em relação às intervenções do m issio­
óleos por terra”, roubaram ornamentos, arruinaram com a capela e nário de seu Lugar). Esse “principal” e outros índios “fizeram ajuste
incendiaram a povoação ao fim do levante. De Io de junho a 24 de entre si de irem-se m eter nos matos” e ainda estimular outros “prin--
setembro cresceu o número de amotinados, com o reforço de novas cipais” das demais povoações a fazer o mesmo. Inácio morreu e dei­
alianças com os principais Uariocaçari (ou Uanocaçari) e Mabé, xou como “legado” ao sobrinho executar esta resolução. O levante
ambos do Lugar de Poyares. Dirigiram-se, então, a M oreira, onde foi fortalecido pela participação de índios da nação “Coyama” , da
mataram o missionário carm elita frei Raimundo de Santo Eliseu. aldeia de Surubiu (posteriormente cham ada Alenquer),7 atem oriza­
Em 26 de setembro, prosseguiam os levantados, desta vez contra a dos que foram pelas advertências de um missionário da Província da
aldeia de Bararoá, mais tarde Vila de Thomar. Desguarnecida de Piedade, de que seriam escravizados na nova ordem que se instalava
soldados, a aldeia foi invadida sem qualquer movimento de resistên­ com o Diretório e a secularização das m issões (IHGB, lata 283,
cia. Dirigiram-se novamente para a Igreja e lá praticaram atos de pasta 1 e ref. 1.1.3, p. 144-147; AHU, caixa 11, does. 3 e 4).
profanação. Cortaram a cabeça da imagem de Santa Rosa, para fin­ Note-se que neste levante a participação do missionário não
car na proa de uma de suas canoas, queimaram o corpo da imagem, incidiu sobre as práticas culturais dos índios. Ao contrário, sua cul­
sobre o altar, e deixaram a aldeia de Bararoá em chamas. Dali segui­ pa assume a cumplicidade de conselheiro e construtor intelectual da
ram para a ilha Timoni, onde pretendiam confederar-se com mais rebelião. Os dois levantes complementam-se, no sentido de que ex­
índios das “Cachoeiras”, a fim de preparar seu exército para um ata­ primem um mesmo descontentamento, que teve como desfecho o
que sobre a capital da Capitania de São José do Rio Negro, ocasio­ enforcamento de três líderes. Ou seja, um a sentença política dada ao
nalmente indefesa pela deserção de soldados sublevados contra o final dé uma reconquista militar e em que se pensou contar necessa­
sargento-mor que os comandava. O intuito foi sufocado, frustrando riam ente com os vencidos para a reconstrução das povoações. Foi o
uma rebelião que realmente ameaçava desmoronar o dom ínio portu­ que entendeu fazer o oficial da Coroa portuguesa, ao identificar es­
guês sobre as povoações que m argeiam o rio Negro. No ano seguin­ tes levantes como sintomas da mudança em curso naqueles anos. As
te, o governador do Grão-Pará, M endonça Furtado, retom a à Capi­ reações à mudança vieram dos dois lados, e com justificações espe­
tania do Rio Negro com um “ou.vidor-geral e desem bargador para cíficas. Do lado dos missionários regulares, sua participação em
formar processos legais sobre a conjuração e rebelião” . Procedeu-se
a uma devassa, que resultaria em “castigo exem plar” , consubs­
7 Esta aldeia está localizada na margem setentrional do rio Amazonas. Conforme
tanciado no enforcamento de três líderes, perdoando-se os demais as descrições feitas por João Vasco Manoel de Braum em 1789, a aldeia de Surubiu
sublevados, com os quais se retom aria o crescimento de suas povoa­ achava-se a quatro léguas da Vila de Alonquer (Alenquer), portanto, relativa­
ções (AHU, cx 2, doc. 21). mente distante das povoações do rio Negro, onde havia uma guerra entre brancos
Há dois outros papéis que tratam da sublevação. N ão chegam a e índios. Questiona-se a participação dessa aldeia como um todo nos levantes do
rio Negro, embora não se possa duvidar da presença de índios dela saídos (Braum,
ser uma variante e, sim, um a das histórias que aconteciam simulta­
1873, p. 314).
neamente, estimuladas pelo ânimo de rebelião no ar. Sua interpre-
284 Rita Heloísa de Almeida
O Diretório dos índios 285

levantes, ou incitamento, acalentava a esperança de reconquistar o


e Solimões, ou supor pelo que transcorria nas visitações missionárias
antigo poder que detinham sobre as aldeias antes do Diretório. Do
de curta duração. As lideranças nativas eram como que cortejadas.
lado do índio, o terror pintado pelo missionário seria entendido como
D ar presentes aos “principais e abalizados” era um procedimento
um agravamento de sua condição de sujeição às práticas de inter­
previsto na contabilidade dessas visitações. Machados, facas, espe­
venção cultural por ele já vivenciadas:
lhos apaziguavam conflitos.
Escandalizou-se o índio Domingos, do lugar de Lamalonga, de
E para tornar a domar esse gentio, vesti ao Principal e a seu filho,
ter o seu missionário feito separar da sua companhia uma
e com todos os mais despendí das drogas que levava, para os
concubina, que tinha, e premeditando a vingança de assassiná-lo,
obrigar a receberem e tratarem melhor outro missionário, como
ilaqueou na mesma conjuração os principais João Damasceno,
de fato receberam e trataram [Pimentel, 1701, apud Wermers,
Ambrózio e Manoel [Alexandre Rodrigues Ferreira, 1786, p. 55].
1965, p. 24].
Esta é a narração de Alexandre Rodrigues Ferreira. É quase idên­
Trabalho de longo prazo era devotado à educação de jovens ín­
tica à de Ribeiro Sampaio, escrita entre 1774 e 1775, com algumas
dios, filhos de principais. Além de ato político de formação de alian­
modificações nos termos usados. A quase transcrição do relato de
ças com a população nativa, revela preocupação em sedimentar os
Ribeiro Sampaio por Alexandre Rodrigues Ferreira, em 1786, pôde
doutrinamentos começados com os pais:
estar mostrando um entendimento consensual dos colonizadores a
respeito das sublevações no rio Negro. Um mesmo registro atestan­ Trouxe em minha companhia dois Principais Cambebas cabeças
do a resistência dos índios em aceitar os costumes civilizados. chatas, que foram os primeiros que viram o Maranhão e Pará. Os
Um não-entendimento como sentimento de ambos os lados. Este quais, depois de estarem em minha companhia ano e meio, e sa­
é o registro simultâneo da intolerância mútua: a do índio expressa a berem já a língua geral e portuguesa muito bem, os mandei para
indignação de não ver reconhecida sua escolha pessoal (e cultural), as suas terras, um feito capitão, outro ajudante, por patentes do
enquanto a do missionário exprime, com a proibição do concubinato, governador [id, p. 26].
uma justificativa moral de intervenção e interdição. Na verdade, era
a incapacidade de tolerância que estava sendo colocada em questão Até o momento, apenas vimos os índios pelos olhos dos bran­
nesses momentos fundamentais do primeiro contato entre índios e cos. Aos poucos, porém, em meio a um a só fonte de narração da
brancos. Num contexto em que era desejado o diálogo e não o exter­ observação, o leitor acaba se acostumando a assistir índios pronun-
mínio, as traduções particulares tiveram o efeito do apaziguamento ciarem -se sobre suas histórias de contato por méio das palavras es­
ou do ajustamento de códigos culturais para um convívio social. critas pelos brancos.
Exemplos esclarecem mais que enunciados. Vejamos. Nessa Relação, o religioso exprime as dificuldades de adapta­
ção ao ambiente amazônico, mesclando-as à sua incomprensão so­
bre os índios que à sua volta estavam sendo cristianizados: “porque
Dois casos de tradução e de vivem em sertões mui remotos, em covis mui ocultos, em climas
ajustamento de códigos culturais mui nocivos” ( i d , p. 27).
Os diários de viagem contam sentimentos momentâneos sobre
A Relação de frei Vitoriano Pimentel (AHU, Papéis Avulsos, situações de estranham ento aguçado, posto que são europeus expe­
doc. 7.9.1705) é reproduzida, em parte, por M anuel M aria Wermers rim entando viver no ambiente amazônico. Nesses relatos, a ativi­
(1965). Nela é possível entrever o cotidiano das missões do rios Negro dade m issionária tem um sentido ingrato. Não se bebe do altruís­
m o que constitui a espinha dorsal de sua ideologia justificadora da
« í.
286 Rita Heloísa de Almeida . . O Diretório dos índios 287

conversão do índio, por ser tam bém lugar de confissão das próprias um a orientação para os colonizadores. Vimos essa imposição desen­
fraquezas da inadaptação. Diante destas condições, a visão que os cadear revoltas indígenas (rio Negro), expressas em atos de profana­
missionários têm sobre os índios é a de que eles estão muito aquém ção e idolatria praticados com o intuito de agressão física e, princi­
das possibilidades concretas de conversão ao cristianismo: palm ente, moral. A profanação de templos e a idolatria não seriam
vistas com o peculiaridades culturais, mas com o atos de oposição e
E tudo isto os defende assegura e afouta a viverem, não como é rebeldia às convições e ideologias do colonizador, daí proibidos, con­
bem, senão como querem, sendo necessário a um pobre missio­ denados com a pena de morte exemplar. Estam os saindo do domínio
nário, que vive entre estes brutos, tolerar-lhe este seu modo de bélico. A conquista se efetiva pelo enfraquecimento dos meios sim ­
vida, sob pena de acabarem de uma morte, esperando sempre que bólicos que fundam entam as organizações sociais. É notável que o
o tempo, juntamente com o seu desvelo, abra os olhos a este gentí- m issionário tenha sido desde sempre o encarregado de substituir os
lismo, cuja fé está ainda tão pouco radicada e tanto no princípio símbolos. Eles próprios, atuando como sacerdotes, conform e o sen­
de sua intrancia [id, p. 27], tido universal desta palavra, representam os porta-vozes desses ou­
tros e novos sím bolos de poder que os índios deveríam assimilar.
O relato a seguir exprim e bem o clim a de mútuo estranhamento
O segundo exem plo que nos faz refletir sobre o problem a da
e potencial confronto:
tradução de valores é a Relação de M artinho de Nantes, referente à
sua missão, com eçada em 1671, entre os “Cariris” (Kariri) do rio
Querendo eu, na Missão de São José, batizar uma menina que
São Francisco (Nantes, 1979). Exemplo distante dos casos até aqui
estava doente, não queria o pai que o fosse senão em uma pouca
de agua, que ele trazia de sua casa. E sabida a razão, éra porque vistos em ambiente amazônico e que perm ite subtrair contextos e
em umas doenças malignas, que houveram naquela aldeia, tinha épocas para o apanhado abstrato da função simbólica do m issioná­
o missionário batizado vinte e sete crianças in articulo mortisi e rio na conquista de territórios e populações indígenas.
como assim morreram todas, meteu-se-lhes na cabeça que o batis­ Seu registro com eça pela fundação da missão. A origem da pri­
mo as matara. E por isso este não queria, que eu lhe batizasse a m eira aldeia que visitou está associada a um português que, vindo à
filha senão naquela água, porque lha tinha benzido (ou para procura de pastagens, encontrou um a “tropa” de índios “Cariri” e
melhor dizer, amaldiçoado) um feiticeiro, que havia naquela al­ deles obteve a concordância de ali fixar seus rebanhos. Ofereceu
deia, e lhe segurava [assegurava] que naquela água não perigava presentes e, mais tarde, foi a Pernambuco, à procura de um m issio­
a sua filha.
nário que quisesse estabelecer-se entre eles. Este é o princípio de
toda missão, ou a direção que toma todo povoamento onde existam
Tentativas de convívio cultural: Eu deixo a criança ser batizada,
índios, em qualquer parte do Brasil colonial. Nessa missão, que, ao
mas com a água por mim benzida. É o que, em outras palavras, disse
tempo de sua visita, era dirigida por um padre capuchinho, bem como
o índio, dadas a insistência e a impossibilidade de vencer a obstina­
nas demais que percorre pelo rio São Francisco, M artinho de Nantes
ção do religioso em cum prir suas' designações e ritos. Um apazigua­
retransm ite o panoram a de Gandavo, centralizado fundam entalmen­
mento recíproco, pois parece que o m issionário concordou em bati­
te na admiração pela ausência de instituições de poder entre os ín­
zar a criança com a água benzida pelo pajé.
dios. Os termos são quase os mesmos:
Terá sido sempre assim , isto é, teria havido tal sim biose de
significadas encaminhando os dialógos, as traduções e os relaciona­ Quanto ao primeiro, devemos admitir que esses pobres índios,
mentos? Parece que este caso é um a exceção — é mesmo prover­ não tendo Fé, nem Lei, nem Rei, nem artes, que são ajudas e
bial. Como bem puderam verificar os historiadores da colonização guias de uma vida racional e política, haviam caido em todas as
do Brasil, as transposições foram um a imposição aos colonizados e desordens que podiam causar essas falhas gerais, e estava, de tal
O D iretório dos índios 289
288 . Rita Heloísa de Almeida

Os m issionários eram tidos como “feiticeiros^dos brancos. Sa­


modo embrutecidos, pela maneira de vida grosseira, fundada toda
biam m uito, tam bém detinham poderes ocultos, podiam enfeitiçar.
nos sentidos, que se pode dizer que não tinham senão a figura de
homem e as ações de animais e, conquanto tivesse, alguma forma Talvez por esta razão, quando poupados, eram dè fato seguidos e
de culto aos deuses que havia, imaginado, era tão ridículo e ver­ respeitados.
gonhoso o culto quanto as coisas que adoravam [p. 4]. Esses dois casos relatados por missionários visitantes nos aju­
dam a pensar o problema da tradução na comunicação entre pessoas
A leitura do missionário segue caminho próprio ao da visão de culturas diferentes. O missionário exerce função similar à de uma
etnográfica de Gandavo. Isto, por compreender aquele modo de ser figura bem instituída na cultura indígena, o “feiticeiro”. Assim, o
como um estado transitório, ou seja, os índios só são aceitos na me­ missionário consegue transplantar conteúdos da doutrina cristã e ter
dida em que possam ser convertidos. Observe-se com o a cultura do relativo êxito no entendimento da mensagem pelos índios, posto que
índio, vista pelo europeu, constitui o inverso da sua. estes procuram traduzir estabelecendo correspondência com suas
instituições de fé. Algo com o um “feiticeiro” que fornece a água por
As mulheres costumavam dominar seus maridos, os filhos não ele benzida para o missionário batizar a criança índia. Sincretismo
respeitavam pai e mãe e nunca eram castigados. Conquanto ti­ cultural? D a parte do missionário, há explicações e racionalizações.
vessem em cada aldeia um capitão ou governador, só existia au­ A história européia dava lições aos colonizadores, ponderando que
toridade em tempo de guerra. Havia entre eles feiticeiros ou, para a ignorância dos índios tem familiaridade com a de seus ancestrais
dizer melhor impostores, que adivinhavam o que eles pensavam bárbaros. Cabia aos missionários intervir sobre esse estado de coi­
m . sas, apressando transformações. Primeira tradução. E a segunda tra­
dução é a que resulta da convicção de que o estado dos índios é
Os “feiticeiros” eram os principais adversários dos missionários. provisório em seus erros e passível de transformação:
Detinham o poder conferido pelo conhecimento do futuro e o con­
trole sobre os males. Um poder reforçado e alim entado pela crença É precisò, pois, nos persuadirmos que tudo o que pode nascer de
das pessoas na existência desse fenômeno tido como natural, imanente uma natureza corrompida, instigada pelo Demônio, encontra-se
em certos indivíduos. O missionário, sendo o porta-voz de um a cren­ entre os índios, que antes de sua conversão são arrastados por
ça, é também um “feiticeiro” aos olhos dos índios. M artinho de Nantes essas ilusões [id, p. 7].
relata casos estranhos, em que ele correu verdadeiro risco de vida,
pelo fato de ter agido de maneira que poderia ter sido interpretada Esses relatos são exemplos de tradução feita pelos brancos.
como praticando feitiçaria: Havería a possibilidade de ouvir-se o índio da colonização de outro
modo, e por ele mesmo verificar como traduziu e absorveu as idéias
Eu fui, eu mesmo, a causa inocente da morte de um homem de da civilização?
outra nação, que imaginou que eu o havia enfeitiçado, pelo fato
•*K

de o haver admoestado verbalmente, por haver feito, em relação


a uma das mulheres de nossa aldeia, que tinha ligeira dor num de
seus braços, essa espécie de rezas que procurávamos evitar. Esse
homem foi tomado de tal terror ao ouvir o tom de minhas pala­
vras, pois não entendia o português, que não pôde sair do lugar e
foi preciso levá-lo dali, e morreu poucos dias depois, vítima da
própria imaginação. Isso deu motivo a que alguns de seus com­
panheiros me ameaçassem de morte [id, pp. 5-6],
C ap ítu lo 8

Os primeiros testem unhos

Recapitulando um pouco tudo o já dito desde o primeiro capítu­


lo, estamos verificando um a experiência de convívio com os índios
que teve a iniciativa, o plano, os procedimentos efetivados pelos
brancos. Com o esta experiência foi pensada e aplicada em um a épo­
ca em que os índios eram a população num ericam ente dom inante e,
além do mais, senhora e conhecedora das terras que se pretendia
dominar, tudo o que se fez de específico e pertinente a instruções
sobre formas civilizadas de conduta resultou em ações gerais de co­
lonização. Ouvim os os brancos, colonizadores, defenderem suas
convicções sobre a melhor maneira de viver, o melhor modo de cons­
truir habitações, de conviver socialmente com outras pessoas, organi­
zando estruturas políticas, administrativas, com noções de direitos e
obrigações mútuas — entre si e em relação ao poder. Toda um a vi­
são de mundo foi assim sugerida, a começar pelo simples gesto de
sobrepor linhas retas a um traçado em que vigoravam curvas
direcionadas para o centro. E toda a convicção de estar transmitindo
o ideal teve e ainda tem, para nós, o efeito de dificultar o acesso a
expressões e manifestações contrárias ao que se estava transm itin­
do. Ou seja, as traduções feitas pelos índios daquilo que aprendiam
e deviam assim ilar da civilização, com tudo o que isto implicava em
termos de perda para sua cultura. M aterial que certamente Foucault
haveria de incluir no rol dos “saberes desqualificados ou não-quali-
ficados” (1982, p. 170). O que analisaremos a seguir permite verifi­
car como tais saberes e experiências periféricas em relação ao dis­
curso oficial, unitário (na terminologia de Foucault) representam,
292 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 293

na perspectiva de Norbert Elias, um dos muitos resultados do pro­ tratamento ao seu passado histórico, com o uma espécie de pré-his­
cesso de dissem inação da civilização, no qual, em lugar da hom o­ tória quase nunca investigada ou somente referenciada, a pretexto
geneização, o que ocorreu foi a “redução dos contrastes” e um “au­ de uma localização preliminar, uma classificação científica do obje­
m ento da variedade” (Elias, 1993, p. 213 ). to de estudo. É evidente que estamos nos referindo a procedimentos
T ratar de idéias e sentim entos de povos ágrafos, espacial e e posturas há muito abandonados pelos pesquisadores sociais. A lei­
tem poralmente distantes do universo do pesquisador, requer auxí­ tura etnográfica que com eça e termina dentro do espaço temporal de
lios que tomem o trabalho de reconstrução histórica correlato à tare­ um a investigação de cam po tem sido criticamente revista e substi­
fa do etnólogo em campo, na observação e vivenciamento dos fatos. tuída por um a metodologia mais atenta aos condicionamentos histó­
Na ausência de tais recursos da pesquisa antropológica, os monu­ ricos por que passam a cultura e a consciência que sobre ela têm os
mentos, a cultura material, a tradição oral passam a ser o material indivíduos que a portam.
predom inante para a reconstituição das histórias específicas desses Toda essa discussão não pretende polemizar o julgamento que
povos. Essa tarefa ganha com plexidade e conhece os primeiros em­ desqualifica a tradição oral diante da história escrita. Aqui se
baraços para sua consecução quando levado em consideração o fato conjectura conhecer os mecanismos subjetivos de armazenamento
de que essas histórias submergem em processos maiores que resulta­ da tradição pela possibilidade de, agora, aqui se examinar uma fonte
ram, inclusive, em sua colonização. Estou pensando que a tradição escrita, produzida diretam ente com os índios e na qual estes, indaga­
oral desses povos sem escrita pode sofrer um processo de esqueci­ dos na condição de réus, denunciantes e testemunhas, falam direta­
mento, escamoteação, ou subjugação no contato com a cultura do mente ao escrivão, que copia palavra a palavra, ou melhor, narra a
colonizador. Essas histórias de contato particularizam-se, chegando conversação entre o inquisidor e o interrogado, dando-nos a sensa­
aos nossos dias com um discurso histórico (um a tradição oral) que ção de estar ouvindo essas falas, ocorridas há mais de dois séculos,
em alguns aspectos apresenta clara percepção do que é próprio e da mesma maneira com o até o momento ouvimos os colonizadores
genuinamente indígena e, em outros, demonstra-se inteiramente mis­ falar de si próprios e de seus projetos em cartas, diários, relatórios,
turado e confundido com os valores da cultura ocidental. leis, crônicas, etc. Temos a possibilidade de contemplar concepções
Uma reconstituição desse processo que utiliza corúo fonte de de mundo bastante distintas, registradas em uma mesma fonte de
investigação as avaliações retrospectivas dos índios da atualidade pesquisa.
há de contar com as suas percepções afetivas, a mistificação dos O primeiro contato com este material veio por meio da leitura
acontecim entos, a idealização de seus personagens. A subjetividade do Livro da visitação do Santo Ofício da Inquisição do Grão-Pará,
que daí decorre, os mecanismos de armazenamento de determinados que contém as denunciações. O volume consultado constituía a pri­
1j fatos, a transmissão seletiva de mensagens fizeram com que em seu meira publicação de parte desse material inédito, existente no arqui­
conjunto a tradição oral fosse vista com o um conhecimento objetivo vo da Torre do Tombo, que fora conseguida pelo historiador Amaral
de qualidade inferior ao que resulta da compilação e análise de do­ Lapa. N a apresentação ao Livro da visitação, Amaral Lapa discute
cumentos escritos. É natural què, p o r muito tempo, com parar essas as razões de Estado que teriam trazido o inquisidor Giraldo José de
duas form as de conhecimento histórico equivalesse a fixar limites Abranches ao Grão-Pará. Como o próprio período de sua visita indica
intransponíveis, separando o que então se com preendia como o do­ —- 1763 a 1769 — , a visitação do Santo Ofício ao Grão-Pará estava
mínio da história concreta, factual, comprovada em sua veracidade relacionada com as decisões tomadas pela Carta Régia de 3 de se­
com documentos, do que pertencia ao campo dos mitos, lendas, fá­ tem bro de 1759, no que respeita à expulsão da Companhia de Jesus
bulas e toda forma de narrativa que rem ontava ao passado sem for­ de todas as partes pertencentes a Portugal e ao seqüestro de seus
necer ou apoiar-se em dados da realidade. O resultado vemos espe­ bens. Os seis anos de plena instalação da Inquisição na cidade de
lhado nas etnografias sobre esses povos ágrafos, na consideração e Belém, período em que foram tomados depoimentos da população,
294 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 295

principalmente de índios que viveram experiências de catequese com o último). Com parando um e outro, há um a sim plificação do segun­
os jesuítas, podem ser entendidos com o um a longa investigação em do quanto aos procedimentos judiciais previstos no primeiro. Veja­
tomo da extensão do poder da Com panhia de Jesus sobre a popula­ mos, então, um pouco o primeiro.
ção e o patrimônio por esta construído, sob a forma de missões, co­ As penas, a formação de culpas, o conceito de crim e são maté­
légios e fazendas. Conforme o mesmo historiador, ria do L iv ro III do R egim ento de 1640. N ele constam com o
transgressores passíveis de serem julgados pelo Santo Ofício: os
Foram prometidas recompensas através de editais nas capitanias hereges e apóstatas, os que os auxiliam ou com eles se comunicam;
do Pará, Maranhão, Piauí e Rio Negro para todo aquele que des­ os que “disputam em matérias de fé” (questionam); os blasfemos, os
cobrisse bens sonegados pelos jesuítas [... e...J não será avançar que desacatam ou fazem irreverência ao Santíssim o Sacramento do
em exagero conjecturarmos que a própria ordem que remeteu um
altar ou às imagens sagradas, ou recebem o Santíssim o Sacramento
visitador do Santo Ofício até o Pará esteja relacionada ainda com
não estando em jejum ; os feiticeiros, sortílegos, adivinhadores e os
OSjesuítas, cuja extensão das influências e sobrevivências tinha
que ser melhor avaliada [1978, p. 25]. que invocam o demônio e têm pacto com ele ou usam de arte de
astrologia judiciária; os bígamos; os que lêem e retêm livros de he­
Este é o pensam ento do historiador, tendo em vista as cir­ reges ou de algum a “ímpia” seita e os que cometem o “nefando”
cunstâncias históricas do Tratado de M adri, acirrando rivalidades crime de sodomia.
políticas entre a Companhia de Jesus e a monarquia portuguesa e, As penas que não são capitais têm finalidades corretivas, e para
num segundo momento, a espanhola também. Entretanto, os proces­ tanto são relevantes as perguntas sobre a “tenção e ânimo” com que
sos e o que ali se registra nãò deixam explícita a vinculação ideoló­ se cometeram tais crimes, um a vez que o reconhecim ento ou a resis­
gica dos depoimentos dos índios com o interesse do Estado portu­ tência em não reconhecer o erro podem atuar com o fatores atenuan­
guês em investigar melhor o poder político e econômico dos jesuítas tes ou agravantes, que deverão condicionar a form a e a intensidade
nessa parte norte do Brasil. Em verdade, esses missionários são ape­ com que será ministrada a pena. A exposição pública do transgressor
nas citados na rotina das vidas pessoais dos depoentes para que assim e do erro por ele cometido tem a força simbólica de reforçar o estig­
pudessem sustentar e legitim ar suas declarações a respeito de matri­ ma em que se acha envolvido. O açoite em local público e o degredo
mônios e batismos. por tem po limitado reatualizam dois momentos da exclusão: num
Esses índios comparecem diante do inquisidor como denuncia­ deles, tanto o transgressor quanto o público expectador reatualizam
dos, denunciadores e testemunhas, para prestarem informações so­ os códigos de comportamento consentido pelas representações de
bre a prática de delitos, em princípio completamente desvinculados poder de sua sociedade (um momento exemplar, ética e moralmente
da questão dos jesuítas. Eram estes delitos, principalmente os da instrutivo); noutro, consuma-se a punição não pela pena de morte,
bigamia e a feitiçaria, entendidos e previstos como crimes que cabia mas pela correção obtida mediante o isolamento e exclusão tempo­
ao Santo Ofício julgar. Há que considerar também a vigência de leis rária do transgressor.
que emancipavam os índios (a de 6 de junho de 1755 e o Diretório), Isto se passa entre penas corretivas. Nessas experiências de pu­
tornando-os vulneráveis à legislação que regia qualquer branco euro­ nição, ocorre um processo de aprendizado no qual é oferecida ao
peu situado em região ou país onde a Inquisição tinha poder de julga­ transgressor a oportunidade de recuperação. Isto é, busca-se verifi­
mento sobre tais crimes. car a consciência cristã que ele tem de seu crim e e a disposição que
Duas leis balizam a circunstância histórica da visitação do San­ demonstra de reconhecer o erro, processo em que invariavelmente o
to Ofício ao Grão-Pará; os Regimentos do Santo Ofício de 1640 e de réu era submetido a práticas violentas de obtenção de confissões.
1774 (não perdendo de vista o de Goa, de 1778, que segue de perto Não há possibilidade de o inquisidor m odificar sua concepção de
erro, com o também é mínima, quase inexistente, a oportunidade de
296 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 297

o réu poder defender e ter reconhecida a sua verdade ou, pelo me­ cias de investigação. A prim eira delas, a sessão de genealogia, visa
nos, afirmar que não errou, um a vez que as denúncias e as testem u­ reconstituir a biografia pessoal, a fim de investigar as origens étni­
nhas de acusação têm força decisória no julgam ento e podem perm a­ cas do réu (o exam e do sangue), além de rastreâr sua rotina e sua
necer ocultas. O único cam inho para o perdão, a absolvição ou o intimidade, para um a verificação das afinidades ideológicas. Inda­
abrandamento da pena é o reconhecim ento, pelo réu, de que errou e ga-se sobre o desem penho e a assiduidade em relação às práticas
tem uma culpa a confessar. O processo pode resultar em absolvição, cristãs. Se instruído, procura-se saber das atividades intelectuais,
prevendo-se, contudo, um a graduação progressiva da punição em viagens e relações com pessoas já penitenciadas pelo Santo Ofício.
casos de reincidência. O objetivo desta últim a indagação é estabelecer, por biografia, a rede
As penas e conceitos de erro exprimem a ética e moralidade da de relações que poderá desencadear ou subsidiar outros processos,
sociedade que legisla, como tam bém refletem suas distribuições e pois o que se objetiva, fundamentalmente, é a hegemonia do modelo
diferenciações internas. Em bora tenha sido burlada em determ ina­ de conduta civilizada, os sentimentos de fé cristã e a convicção de
das circunstâncias históricas, há um a norm a que escusa a pessoa estar portando a verdade.
nobre de cumprir pena vil por crim e de bigamia. Ao revés, a pessoa Exem plo cristalino é o crime de bigamia. Embora seja enten­
pertencente a esta categoria social estaria apenas sujeita ao degredo. dido como resultado de um não sentir-se bem no matrimônio, são
Para cada crime e categoria social, étnica, o envolvimento direto ou seus transgressores suspeitos de vacilar na fé, ficando assim sujeitos
secundário de pessoas tinha uma destinação específica, isto ê, o de­ às leis da Inquisição. Estes são alguns dos apontamentos que podem
gredo para partes do Brasil, lugares de África ou Ásia e até mesmo ser feitos de um a prim eira leitura do Regimento de 1640.
dentro de Portugal. Penas que poderíam originar-se da sim ples Na teoria, o Regimento de 1774 repete as conceituaçÕes e os
inobservância do jejum cristão não apenas exprimem um modelo de procedimentos judiciais do anterior. Na prática, mudanças conceituais
conduta e uma cosmovisão que se impunha a judeus, cristãos-novos, substantivas e favorecidas por um ambiente político receptivo já vi­
mouros, povos orientais, africanos, índios sul-americanos, com o tam­ nham apontando para o surgim ento de posturas mais tolerantes,
bém vinham articular-se ao projeto colonizador, viabilizando políti­ mesmo dentro dos rígidos esquemas de pensamento dos que compu­
cas de distribuição de populações socíalmente excluídas/ nham a Inquisição. Esta transformação só é possível de ser verificada
O procedimento, já o dissemos, é corretivo. Instrutivo. O réu é lendo-se os julgam entos finais, a sentença mandando prosseguir o
indagado em sua consciência sobre o erro nas mais distintas instân- processo ou absolvendo o acusado, a qual é documento fundamental
com que se exam inará a aplicação de conceitos jurídicos na avalia­
ção de delitos cometidos por réus de origem indígena.
1Temos aqui em vista uma caracterização feita por Foucault (1980), marcando Uma das poucas alterações apresentadas pelo Regimento de 1774
diferenças conceituais entre os sistemas de controle e correção do século XVIII e em relação ao anterior, de 1640, no que respeita à definição de deli­
os do século XIX. Ós primeiros teriam por fim uma reclusão da exclusão ( i n t e r ­ tos e correspondentes penas, foi a exclusão de duas categorias que
nar alguém que já estaria marginalizado). Os do século XIX, pelo menos em
princípio, tinham como objetivo fixar indivíduos em um “aparato de normaliza­ antes estariam sujeitas a julgam ento pela Inquisição: os que Iêem e
ção” (fábrica, escola, prisão) associando-os ao processo de produção, enfim, uma retêm livros de hereges ou de alguma seita ímpia (título XIX) e os
“inclusão por exclusão” (1980, pp. 127-128) A distinção estimula o exercício que disputam em matéria de fé nos casos por direito proibidos (títu­
comparativo, mas não está correlacionada apenas com as realidades históricas lo XI). Ou seja, duas situações em que ficava cerceada a liberdade
descritas por Foucault. Estamos lendo um Regimento de 1640, que articula fina­
de pensam ento e de expressão. Essas duas modificações acontecem
lidades de repressão ideológica (religiosa, étnica, moral) com políticas de migra­
ção e, portanto, já contendo as características do “modelo de verdade” {id, p. 33) em meio às reform as institucionais feitas durante o ministério do
descrito por Foucault para situações do século XIX, qual seja a “inclusão por M arquês de Pom bal, tornando a Inquisição portuguesa um tribunal
exclusão”. régio, não mais com o poder de censura literária, que teve como
O D iretório dos índios 299
298 Rita Heloísa de Almeida

eféito ura controle muito rigoroso sobre a entrada e circulação de tura reduzia-se a três pessoas (o visitador, o notário e o meirinho),
idéias em Portugal.2Sob a perspectiva de tais medidas e de leis como quando das visitações do Santo Ofício. Não houve estabelecim ento
a que abolia a distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos, a da Inquisição no Brasil — som ente comissários aqui aportavam em
Inquisição em Portugal se enfraquece, perde clientes e público, tor­ visitação. Foram três as visitações, A primeira ocorreu na Bahia, em
na-se, nas palavras de Oliveira Martins, um a “engrenagem subalter­ 1591. N esta m esm a viagem seguiu o visitador para Pernambuco, lá
permanecendo até 1594. A segunda retom a à Bahia, em 1618. E a
na do maquinismo político do Estado” (p. 33) e que julgaria o opo­
terceira é a do Grão-Pará. A historiadora Laura de M ello e Sousa,
nente imediato: os jesuítas.
lendo processos gerados nessas três visitações, analisa detidamente
O historiador Oliveira M artins está, neste aspecto, pensando no
casos envolvendo índios do Grão-Pará. Em termos quantitativos, con­
julgamento do padre M alagrida, que sim bolizou, por sua sentença
forme a historiadora, a visitação ao Grão-Pará resultou na apuração
de morte, o resultado de um embate em que essas duas poderosas
de 47 culpas, 21 casos de feitiçaria e 9 de curas mágicas (Sousa,
representações da doutrina cristã terminam por eliminar-se mutua­
mente (id, p. 26). 1987, p. 16). , „ i ... , .
N ão tenho uma visão panorâm ica em relaçao a totalidade dos
O pensamento desse historiador português eistá em sintonia com
casos de feitiçaria e, inclusive, de bigamia envolvendo os índios do
as explicações de Amaral Lapa, com respeito a um não disfarçado
G rão-Pará e Rio Negro nas malhas dos processos inquisitoriais de­
interesse do Estado português em conhecer as expectativas que a
sencadeados durante tal visitação. D e um total de apenas nove pro­
mudança propiciada pelo Diretório trouxe para os índios catequisa-
cessos consultados, observei a ocorrência eqüitativade casos de biga­
dos pelos jesuítas e outras ordens regulares expulsas na m esm a épo­
mia e de práticas de magia (em suas diversas manifestações, como
ca. A secularização das aldeias e da adm inistração sobre os índios
feitiçaria, adivinhação, pacto com o diabo, etc). Quase todos esses
teve uma repercussão bem mais significativa do que se podería supor
processos tiveram como final a soltura do réu, devido mesmo à sua
lendo somente a documentação de funcionários oficiais. As suble-
condição de índio. Veremos, adiante, algumas sentenças que são
vações no rio Negro, entre 1757 e 1758, e, agora, a visitação da
exemplos da jurisprudência da época aplicada aos índios — com
Inquisição, entre 1763 e 1769, desencadeando um a onda de terror
detalhe será examinado um processo de julgamento de um caso de
entre as populações indígenas aldeadas, dão mostras da impossibili­
dade de traduzir com fluência as intenções de ambas as partes, de bigamia.
H á insuficiências na apreciação desse material. Nem todos os
modo a verificar uma correlação entre a mensagem transmitida e a
processos estavam completos. Às vezes, apenas continham o início,
recebida pelos índios.
representado pelas denúncias. Este fator e outros mais desaconselham
A Inquisição portuguesa teve assento efetivo em Lisboa, Évora
um a avaliação genérica em torno da posição prevalecente da
e Goa, com passagem tem porária por Coimbra, Lamego, etc. Previa-
Inquisição diante das transgressões eventualmente cometidas por
se, na instalação deste tribunal, uma com posição complexa de fun­
ções preenchidas pelo inquisidor, o promotor, os notários, os procu­ índios. _
Haverá quem questione o uso deste material no presente traba­
radores dos réus, os qualificadores, os com issários, os escrivãos e
lho ainda em estado bruto e por ser melhor explorado. Entretanto,
até mesmo familiares dos que serviam ao Santo Ofício. Esta estru­
posso assegurar que sua prim eira leitura já fornece sugestões
metodológicas sobre como realizar um exercício de reconstituição
etno-histórica utilizando material desta fonte de pesquisa. Que re­
2 Neste aspecto, a Mesa Censória Real substitui a Inquisição, ao ser criada por sultado teria tal reconstituição? Teremos oportunidade de examinar
Alvará de 5 de abril de 1768 com atribuições de fazer a censura dos livros e de
autorizar publicações. Vigorou até 1787, sendo substituída pela Mesa da Comis­
quem vem revelar-se efetivamente: se o inquisidor ou o réu.
são Geral sobre o Exame e Censura dos Livros (Serrão, pp. 40-41). Alguns aspectos gerais, antes da discussão caso a caso.
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 301
300

O rito que encerra o processo de julgam ento repete-se com pre­ racterizado o delito, indicados o nome do acusado, de pessoas que
visão e objetividade, perm itindo desde logo supor que este procedi­ possam testemunhar, local, datas, etc. — este procedimento princi­
mento judicial assim elaborado tem por função preparar espaço para pia pelo juram ento sob os “santos evangelhos”; 3. o denunciante
a consecução de objetivos definidos. Primeiro, aplicar técnicas de retira-se, após ter assinado o compromisso de ter dito a verdade e
indagação e obtenção de verdade, verificando se efetivamente há ou guardar segredo sobre o que denunciara; 4. ainda na sala de audiên­
não falsidade nas declarações tomadas em depoimentos. Ocorre (e a cia, os padres ratificantes examinam o teor da denúncia, a falsidade
isto já nos referimos antes) que o denunciado se coloca diante do ou veracidade das informações, encerrando a sessão com assinatu­
tribunal com a culpa já incorporada à sua pessoa. Não há possibili­ ras, sem a presença do denunciante.
dade de o acusado de feitiçaria, por exemplo, alegar ausência de É digna de nota a repetição das perguntas. Ao final de uma ses­
erro ou crime em sua prática, exprimindo em defesa própria as inten­ são de perguntas, a estas se retom a repetidamente, para comparar as
ções que tivera a este respeito. Esta circunstância preenche a segun­ respostas e verificar contradições ou falhas que possam revelar men­
da função do rito, efetivada no aspecto da repetição sequencial, pela tiras ou desvendar verdades que se desejava m anter ocultas.
qual o réu será convencido da existência de erro em sua conduta. As perguntas ao denunciante sobre o denunciado querem saber
Este procedimento está previsto nos dois regimentos aqui comenta­ da saúde psíquica deste, de seus hábitos, por exemplo, de usar bebi­
dos. O ato de confessar e arrepender-se conclui o trabalho da Inqui­ da alcoólica, e da freqüência com que ele agia da maneira como fora
sição, pois, atuando em distinto nível, também evangeliza, coloniza, delatado. Estas perguntas têm o propósito de enquadrar o delito e o
transmite a cosm ovisão cristã, tal como os missionários. transgressor como objeto (ou não) de julgamento pela Inquisição,
Historiadores, de maneira geral, sublinham o aspecto político um a vez que o encaminhamento também pode ser o de considerar o
dominando as intenções das intervenções da Inquisição sobre os lu­ transgressor um louco. Àlém da caracterização da culpa (ou erro),
gares onde instala sua estrutura de tribunal. Isto talvez apresse a essas questões visam perscrutar a afinidade ideológica do denunci­
idéia de que a lista de culpados que se segue à instalação do tribunal ante. É evidente que a presença da Inquisição, em caráter permanen­
será a amostra com base na qual a Inquisição deverá elaborar idéias te ou provisório, em uma localidade, coloca em rebuliço as relações
de conduta e formas de exprimir a fé cristã em ambiente de outras e identidades de todos os moradores. Diante do inquisidor, o denun­
convicções religiosas. D aí a razão de serem relevantes (etapa inse­ ciante é passível de ser tomado um culpado. Os “Editais da Fé” afixa­
parável do processo inquisitorial) os atos públicos (autos-de-fé), quan­ dos em locais pú b lico s, ao definirem concepções de erro e
do o teatro vivenciado entre o inquisidor e o réu, a portas fechadas, conclamarem todos a participar de sua observância, fomentam uma
amplia-se ao extrem o, chamando a sociedade a participar do julga­
vigilância mútua, quase sempre cruel.
mento. Isto porque, no ato de assistir às penalidades impostas aos
Entram os na segunda fase dos processos inquisitoriais: a “to­
réus em locais públicos, a sociedade-expectadora admite, consente e
m ada dos testemunhos” . A recolha dos testemunhos suscitados pelo
reafirma em si, na form a de cada indivíduo, os valores definidos
relato do denunciante será precedida de breve levantamento biográ­
com o manifestação de erro.
fico (nom e, função, ocupação, idade, estado civil). Segue-se o jura­
É realmente um rito civilizador. Em que pese a forma extrema
mento, quando a testemunha coloca a mão direita sobre o Evangelho
de que realmente se revestem e devem revestir-se os ritos, em sua
e declara dizer a verdade e guardar segredo sobre tudo o que deve­
função de marcar sím bolos sociais pelo vivenciamento aos partici­
rá vivenciar. As assinaturas encerram cada depoimento das teste­
pantes do “teatro” de seus significados.
Vejamos as “denunciações” e as sequências do depoimento dos munhas.
Os mesmos procedimentos são observados na ratificação de cada
denunciantes: 1. o denunciante pede audiência ao visitador; 2. apre­
depoim ento, desta vez sem a presença das testemunhas. Note-se que
senta a denúncia m ediante circunstanciado relato, em que fica ca­
302 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 303

a ratificação é a cerimônia em que o testemunho obtido sob jura­ ín d io C orem a — Em 1735, um processo de denunciação
mento volta a ser colocado em questão. Nesta avaliação, entram em (Inquisição de Lisboa, nQ14.849) se form ava a partir do relato de um
consideração a pessoa, sua procedência étnica, sua ocupação e sua m issionário sobre o que assistira em um a aldeia dé localização ines-
posição social. Isto equivale a dizer que, quando a testem unha é ín­ pecífica (nos dias atuais). Em carta dirigida à Inquisição, o m issio­
dio ou índia, as considerações sobre o mérito do juram ento ê do nário capucho exagera ao delatar quase todos os moradores de prati­
depoimento prestado são motivadas pela reduzida confiança na tes­ car adoração ao demônio.
temunha: É singular esse processo, ainda que incom pleto e quase ininte­
ligível, pois registra um instantâneo da form ação de culturas em con­
Sendo p o r eles [os ratificantes] receb id o o ju ra m e n to resp o n d e­ fronto. O que aquele missionário presencia — e não parece ter bem
ram que sem em bargo da testem unha ser ín d io n ão te m razão com preendido — é a situação de im ensa confusão por que passam
particular para d u v id a r d a su a verdade e d e co m o assim ju rara.
os índios no contato com a civilização e no aprendizado da doutrina
cristã. Referências a aparições do diabo e rezas que m isturam práti­
Além desse aspecto social do testemunho, considerava-se verí­
cas católicas e exercícios mágicos de pajés atestam empréstimos de
dica uma informação quando esta se apresentava a m esm a nos rela­
linguagem cultural, de ambos os lados, para exprim ir sentimentos
tos de distintas testemunhas. Aqui se comprova, mais um a vez, o
novos para com esta interação.
valor de verdade atribuído ao que é repetido inúmeras vezes sèm
Em meio ao relato, o padre sugere que as crianças indígenas
alteração. As testemunhas dizem sempre o mesmo, com o tam bém se
sejam “separadas de seus pais [a partir dos cinco anos porque] nesta
há de convir que as mesmas perguntas induzem às m esm as respos­
idade o diabo as engana” . A lista de pessoas envolvidas no delito é
tas. O processo pelo qual é obtida a verdade revela-se, assim , gradu­
extensa, um a vez que quase todas foram tidas com o “dados ao dia­
almente persuasivo e tendente a triunfar pelo esgotam ento da resis­
tência em não concordar com o que desde o início fora estabelecido bo” . Uma aldeia inteira.
como certo e errado. Na terceira fase do processo inquisitorial, os Ao final da leitura deste processo, a pergunta (ao gosto de M a­
culpados comparecem perante o inquisidor, arrolam -se as “provas chado de Assis) é se o missionário não estaria também enlouquecido
documentais”, procedendo-se à fundamentação da culpa até a sen­ ou tão confundido com a situação de confronto cultural quanto os
tença. Estas seqüências serão m elhor apreciadas exam inando-se os índios que delatava. A criação fantasiosa sobre o desconhecido, ou
casos concretos. De posse destas noções, voltemos as vistas para o melhor, a verbalização da sensação de insegurança, em face do não
que figura na frente de tais documentos sob o nome de “processo” . saber, do não entender, recebe a tradução ou fala por meio dos signi­
Ao se examinar, entre os processos inquisitoriais, os casos en­ ficados impressos nas concepções de delito pela Inquisição:
volvendo índios, a primeira constatação é a de que o m aterial exis­
tente não diz respeito apenas aos períodos de visitações. U m exem ­ P o is as alm as co m o são todas d o d iab o q u an d o m orrem a in d a q u e
d izem q u e a la rg a m , eu m uito d u v id o , qu e andam com o s d iab o s
plo é o do índio Corema, cujo julgam ento data de 1735. Tampouco
no inferno v erd ad eiram en te p erd id o s e m u ito desconfio, q u e e s ­
tais processos restringem-se a áreas oficialmente reconhecidas como
tes erros se a la rg a m fora das ald eias, ao m en o s nos negros q u e
abrangidas pelas visitações da Inquisição. Foi o que ocorreu com o sem pre co n v ersa m com o s índios.
do índio Justo Antônio e de testemunhas constantes em seu proces­
so, os quais, na época, circulavam pela Vila de M agé, pela paróquia É o m edo das forças sobrenaturais, m as é, sobretudo, um a
de “Guapimeri” etc — lugares reconhecidamente situados no Esta­ preocupação estratégica considerar essas práticas mágicas uma am e­
do do Rio de Janeiro.
aça política unindo índios e negros contra os brancos.
R ita H e lo ís a d e A lm e id a
304 O D iretório dos índios 305

Que conseqüências teriam denúncias deste gênero? E por que


pela religião católica. Um a profanação. Muito fácil compreender que
pertencem ao corpo de processos judiciais, objeto da Inquisição?
logo em seguida fosse incriminado por delito maior.
Que tipo de procedimento judicial teve esse caso? Não teria sido
apenas um inform e estratégico sobre manifestações de fé e prática Conta-se, como agravante, que esse índio, em companhia de
religiosa no Brasil? A Inquisição instalou-se em Goa com a preten­ um a prim a que se im aginava ser sua “am ázia”, aparecendo durante a
são de m udar sistemas de crença tão ou mais antigos que o cristia­ quaresm a na igreja da freguesia de um a localidade chamada Fazen­
nismo. A presente denúncia parece cumprir a função de narrar senti­ da do Bananal,
mentos e experiências de confrontação cultural que orientavam as
co rreu logo vo z p ú b lic a que este hom em indo com ungar deixara
decisões em torno da vinda tem porária ou perm anente da Inquisição
c a ir d a b o ca a sa g ra d a partícula, [...] fingindo ter com ungado, e
para o Brasil.
não d izen d o o q u e fez d a sagrada partícula.

Justo A ntô n io — Este índio foi preso sob a acusação de ter


Justo Antônio compareceu perante o comissário do Santo Ofí­
proferido blasfêmias. O processo inicia com um a carta de um m ilitar
cio, negando as acusações e dizendo “que tudo que contra ele se
a outro, na qual esclarece estar remetendo preso o índio Justo A ntô­
propõem é de nenhuma verdade, [...] antes confessa ser católico e
nio devido a seu comportamento estranho, qual seja: “andàva dizen­
com a sua verdade pretende salvar-se”.
do publicam ente que já estava levado do diabo para um pecado m ui­
to grande” (id, nB 166.639).
O processo continua dando voz a testemunhas sobre o fato nar­
Indagado, conform e a carta, por um reverendo sobre a natureza
deste pecado, “respondeu que queria ir no m ato enforcar-se e que o rado pelo tenente que o aprisionara. Os testemunhos confirmam a
denúncia, repetindo-a monotonamente, palavra por palavra. Monó­
seu pecado j á não tinha mais rem édio”.
Justo A ntônio parecia confuso, temeroso de seus atos, e o m oti­ tona repetição seqüencial que, no entanto, revela os tipos sociais
vo ele contou, fora de confissão, a uma irm ã do mesmo reverendo que estavam formando a sociedade colonial: o tenente das ordenan­
que o mandou prender. Explicou que, ças da Vila de Magé e morador na Freguesia de “Guapemeri”, o
índio batizado da Aldeia da Vila Nova de São José de El Rei, um
e sta n d o n a su a F reg u esia um tro p eiro d e M in a s lh e d era u m b re­ m orador da fazenda de “Guapimeri” e que era natural do Alentejo,
ve, e q u e e le depois o ab rira, e achara d en tro o S .S .S acram en to um homem “pardo e liberto” que vivia de suas lavouras, e assim por
en tre u m p ouco de alg o d ão , e d izen d o -lh e o d ito R ev eren d o se a diante. Todos repetiram perante o comissário a mesma informação,
p a rtíc u la não seria co nsagrada, ele in sto u afirm an d o q u e era: e confirmando a ocorrência do fato e a crença sobre sua caracteriza­
q u e torn an d o a fixar o brev e com o S .S. d en tro fizera co m o u m a ção com o delito, ou, talvez fosse melhor dizer, a subserviência em
c a ix in h a d e folha-de-flandres, e esta m al feita, p o r não se r o fic i­ considerar a prática descrita um a forma de erro.
al, n e la m etera o breve, e q u e d epois foi no m ato , e fizera em um Este aspecto é fundamental para o entendimento do contexto
p au u m b uraco à im itação de nixo [?], e n ele m etera a caix in h a, e
social em que se instalava o tribunal do Santo Ofício. Já foi dito por
q u e ta p ara, e pregara, e veio p a ra este lu g a r e q u e d eix ara lá ficar.
O liveira M artins (e também por Luís da Cunha, cf. cap. 3, “Falando
de tolerância”) que, onde há tribunais, há culpados ou idéias precon­
O caso correspondia a um delito grave: blasfem ar contra Deus e
cebidas sobre culpas a serem julgadas. Só existem tribunais onde há
demais representações sagradas, proferindo proposições heréticas,
público e crença no modelo de verdade que vai ser defendido e man­
sujeitava a pena rigorosa, que variava conform e o sexo e a posição
tido, ainda que sob a opressão do terror. O modelo de verdade de­
social do transgressor. Justo Antônio havia praticado um feitiço usan­
fendido pelo inquisidor, bem assim os antimodelos de feitiçaria, blas­
do objetos alusivos a representações reverenciadas como sagradas
fêm ia e sexualidade que daí decorrem só existem porque há crença
«Si 306 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 307

pública de que existam com o concepções mutuamente distintas, nas­ que compartilhavam da crença nos poderes de cura e adivinhação
cidas da negação e do princípio de rebeldia. Penso, aqui, nos efeitos que ela detinha.3
desencadeados pela chegada de um comissário do Santo O fício a Talvez este universo de crenças e práticas fortem ente enrai­
uma terra em colonização (Belém, Ormuz, Cochim, Rio de Janeiro), zadas no pensam ento e no cotidiano das pessoas do Brasil colonial
com a fixação de editais em locais públicos definindo delitos e tenha contribuído para minimizar os efeitos da presença da Inquisição.
conclamando a população a observar-se mutuamente. Seguem -se os Algo a ser indagado ao material pertinente. Quanto a Goa, forte­
procedimentos inquisitoriais. A formação de denúncias e a tom ada m ente constituída por crenças contrárias às práticas cristãs, justifi­
de depoimentos que levam, em cada caso, à formação de redes de cou a perm anência da Inquisição em seu território. O Brasil não ju s­
relações sociais que acabam por colocar em julgam ento toda a socie­ tificaria a m esm a m edida, ainda que ponto de desem barque de
dade hospedeira. Situação inusitada, pela eficácia com que tal má­ europeus hereges degredados pelo Santo Ofício e de escravos afri­
quina de terror transpõe o oceano e se instala em lugares de po­ canos igualmente portadores de outras crenças, além de habitado
pulações com crenças bastante arraigadas e distintas do cristianismo. por índios adeptos do xamanismo e de outras mais convicções e prá­
ticas mágico-religiosas.
Sabina — Esta índia foi presa durante a visitação do.Santo Ofí­ A instalação temporária, as visitações, quase sempre relaciona­
cio ao Pará (id, nfl 13.331). Suas práticas também seriam atribuídas a das ou provocadas por questões da.circunstância política da locali­
pacto com o diabo. Depoimentos foram unânimes em destacar que a dade, tiveram a finalidade de fazer valer conceitos de bem e de mal,
índia Sabina “tinha virtudes para descobrir e fazer feitiços” . Cham a­ pela normatização dos delitos e respectivas penalidades.
da á atender desconfortos dè doença e infortúnios inexplicáveis, ela Lições de conduta e assimilação de valores. As anotações no
promovia a solução parà os males mediante a encenação da desco­ processo de Sabina suscitam esta observação. Geralmente, os depo­
berta de feitiços, caracterizados como embrulhos contendo objetos imentos começam pela justificação da denúncia, ou seja, não teria
estranhos (como cabeças de cobra jararaca), supostamente escondi­ sido motivada por ódio ou vingança e, sim, pela obrigação maior,
dos por uma terceira pessoa desejosa de provocar malefícios ao dono superior ao indivíduo, de “descarregar a consciência”, prestando
da casa. contas de um conhecimento que necessariamente cabia ao Santo
No atendimento aos doentes, Sabina atuava com o curandeira. Ofício deter. Vê-se o efeito simbólico desta convicção autoritária,
De posse de um cachimbo, tabaco e fogo, cachimbava um pouco, causado por uma m inoria itinerante e que resulta em consternação e
lançando “borichos pelas ventas” do paciente, daí vomitando bichos perplexidade para a sociedade hospedeira.
supostamente saídos do corpo doente. A restauração da saúde do Quem sabe o reconhecimento do universo de crenças e de sua
paciente parecia assim garantida pelo espetáculo visual da retirada potencialidade bélica tenha sido a m otivação ideológica para os
da doença, materializada em bichos quase sempre descritos com re­ muitos casos de absolvição de delitos pretensamente cometidos por
pugnância. Com outro doente, Sabina utilizou água benta e fez índios e negros escravos — duas representações num ericam ente
beberagens com um a erva chamada “camará”. Um terceiro cliente majoritárias da população colonial. Neste aspecto, o enfraquecimento
dela recebeu uma m istura de água ardente, água natural e canela político da Inquisição, já em curso na Península Ibérica, apenas viria
picada. As virtudes de Sabina eram conhecidas e testem unhadas por
todos, indistintamente, desde os mais simples, até as autoridades 3Laura de Mello e Sousa discute o processo de Sabina (1987, pp. 172-175). Aqui,
constituídas. De fato, diretores, soldados e, inclusive, um ouvidor para caracterização do procedimento ritual da feitiçaria, temos em vista o clássi­
co estudo de L évi-Strauss sobre o feiticeiro (1975, pp. 193-213), que se
chegaram a necessitar de sua assistência. Todos os que a denuncia­
complementa com o artigo em que o mesmo autor trata da “eficácia simbólica"
ram haviam sido seus clientes, ou poderíam tê-lo sido, na m edida em das práticas mágicas (id, pp. 215-236).
308 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 309

confirmar uma postura essencialm ente estratégica de um a entidade assistiram ao delito: os sacerdotes que celebraram o matrimônio, as
repressiva que agora atuava, de m odo exclusivo e subalterno, a ser­ testemunhas, os filhos e conhecidos. É, por este motivo, o delito que
viço de Estados monárquicos e colonizadores. Como exemplo, o ín­ melhor exprime os princípios da organização social dó colonizador,
dio Justo Antônio sustentou ser alvo de acusações falsas e contou, a agora aqui colocado n a figura do inquisidor.
seu favor, com declarações de populares que sustentavam ser ele O “auto sum ário” referente à poligamia é peça que prova a
dado a “embriagar-se”. Este aspecto parece ter afrouxado as amar­ singularidade do processo de um julgamento em que os réus são
ras que poderíam condenar definitivamente esse índio. A sentença índios. Em verdade, índios com relativo domínio dos hábitos civili­
final contida em seu processo prom ove uma reversão das condições zados, por serem moradores de povoações ribeirinhas fundadas des­
criadas pelas denunciações. O argum ento utilizado na sentença é de os tempos em que os missionários eram quase os únicos repre­
que falta fundamento às denúncias, ou, então, estas acabaram por sentantes europeus ou, pelo menos, os mais constantes nos domínios
perder valor, dada a declaração de um presbítero secular da região territoriais do Grão-Pára. Este “Auto Sumário” acusa a índia Florência
onde ocorreu o delito de que “não há lembrança [registro] sobre o Perpétua de praticar “poligam ia” com o índio Antônio Lima. Quem
sucedido que justifique conservar o índio em rigorosa prisão” . Seria preside a inquirição das testem unhas é o reverendo doutor José
repreendido por “haver falhado ainda que o tal tudo nega e, [manda­ Monteiro de Noronha, oficialmente visitador e vigário da Capitania
do] pôr em soltura”. Foi o julgam ento do comissário Felipe Rois do Rio Negro. N o primeiro depoimento introduz-se a informação de
Ferreira, assinado no Rio de Janeiro a 19 de maio de 1799. que a índia Florência já era casada em Vila de Borba com o índio
Explicações como a que é “dado a bebidas” e tem um tosco Julião e que, muito em bora estivesse este vivo, decidiu “ausentar-se
entendimento da doutrina cristã argumentam em favor da inocência da companhia de seu marido recolhendo-se ao lugar de Poyares onde
do réu e colocam em evidência a emergência, no contexto de proces­ passa a viver com Antônio de Lima em consórcio marital”.
sos inquisitoriais, do conceito de tutela como intervenção justificada O segundo papel, dirigido ao reverendo visitador, certifica que
a índia Florência vivia com o índio Julião em casa do índio Leandro
pela condição de menoridade e decorrente incapacidade do índio de
e de sua mulher, a índia Domingas. Este é o primeiro informe sobre
assum ir crimes.
um defeito que a ré tinha em um a das pernas, que a tornava manca.
Examinando um processo inquisitorial completo, passo a pas­
A prim eira testem unha é um cristão-velho, solteiro, natural de
so, tem-se a oportunidade de observar todos esses aspectos que envol­
Beja, soldado granadeiro da Companhia (a Companhia do Grão-Pará
vem julgamentos de delitos com etidos por índios.
e Maranhão). Ele informa que, estando a serviço em Vila de Borba,
conheceu a índia Florência, de pouco mais de 28 anos, coxa de uma
Florência — As peças deste processo (id, nL>225) estão com­ das pernas, vivendo na com panhia de Julião, em casa de Leandro e
pletas, propiciando-nos uma visão global da seqüência do procedi­ Domingas, sendo Leandro pescador do comandante e juiz do lugar.
mento judicial. Na capa, os dados da identidade pessoal da ré, nume­ Disse que o índio Julião, marido de Florência, “padecia de um can­
ração administrativa e caracterização da pena. Tudo a m ostrar que a cro no rosto e tinha já o nariz há muito corroído pela moléstia”. Essa
Inquisição tinha um poder de arbitrar institucionalizado. O auto de testemunha, que viu Florência em companhia de Julião, algum tem­
entrega relativo a vários presos, inclusive a Florência Perpétua, marca po depois tería notícia da m esm a casada com Antônio no Lugar de
o início — 2 de abril de 1768 — de um processo que term ina em 12 Poyares.
de outubro de 1768. Curto, com julgam ento concluído, este proces­ A outra testemunha, também cristão-velho, soldado, natural de
so forma-se sob a acusação de bigam ia, delito que prevê pena de Ponte de Lima, assegura ter tido conhecimento do mesmo caso quan­
açoites e degredo para os culpados diretos, mas que envolvia consi­ do esteve em Vila de Borba levando socorro de farinha a alguns
derações sobre a cumplicidade e a predisposição das pessoas que índios que remariam as canoas para o Mato Grosso.
310 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 311

A terceira testemunha, um índio por nome Luís Freire, disse a qual nada se dirá durante todo o processo). Florência não ficaria
que, quando esteve em Poyares, na companhia de um soldado, a muito tempo em Thomar. Contou que “na sua menor idade fugira
serviço do governador, conheceu a notícia de que Florência havia em companhia de seus pais para o rio M aiuuixi-que deságua no rio
sido “roubada” de Borba pelo índio Antônio. Este índio se casaria Negro”. De lá descera novamente, com outros índios, “em com pa­
com ela na presença do reverendo do mesmo lugar. A mesma teste­ nhia do jesuíta Padre Antônio José o qual os recolheu a vila de Borba
munha acrescenta novos dados, m as fica evidente sua intenção de a nova que então se cham ava Aldeia dos Trocanos”. Seu pai, a mu­
negar ou desconhecer várias pessoas que estariam implicadas em lher com quem casara depois e o irmão George faleceram nessa vila,
seu relato. Imagine-se algo que se desdobra, crescendo, ganhando mas nada explicou nem lhe foi perguntada a causa (provavelmente
novas proporções. vítimas de epidemias de sarampo, como tantos outros índios aldea­
É justamente este o efeito dos testemunhos. Cada um desenca­ dos). Tudo foi dito sem precisar data, pois disse que não sabia num e­
deia nova série de testemunhos e, com certeza, a descoberta, a reve­ rar os anos. Assegurou, todavia, ser o tempo em que o missionário
lação de novos delitos. Já comentamos que o denunciante é a testemu­ jesuíta Antônio José assistia à vila, “até o verão próximo passado”,
nha são potencialmente culpados. D aí se explicar que, na confirmação quando certam ente conheceu a ordem régia de deixar o Brasil.
do delito, aquele que fornece o testemunho ocular sobre a prática de Indagada de sua vida conjugal, informou que em Borba se casara
bigamia tenha sempre como argum ento o desconhecimento da exis­ com o índio Julião, na presença de um padre, do qual não recordava
tência de outro casamento, pois de outra forma estaria imputando a o nome. Tampouco lem brava dos nomes do casal de índios que fo­
si um a atitude de conivência e cumplicidade que também incrimina, ram testemunhas do matrimônio, embora, em seguida, sem qualquer
tanto quanto condena. Perante o inquisidor, é inevitável para a teste- nova pergunta, os desse ao inquisidor (possivelm ente convencida
munhá admitir o conhecimento do delito (o primeiro matrimônio), por meios violentos, suponho, apesar do ritm o da narrativa não re­
inocentando-se todavia na condição passiva que a resguarda de “ter velar muito). Florência confirmaria a m orada em casa de seu tio
ouvido contar”, embora não tivesse visto com os próprios olhos. Leandro e, sobre seu casamento, disse que
Interessante é a anotação do processo, de que o depoente fez o
juramento e prestou declarações na “língua geral dos índios”. O mes­ sem pre vivera em consórcio m arital com seu m arido o índio Ju lião
mo acontecia ao índio, que em seguida veio prestar depoimento. Este ain d a q u e este j á d e m uito tem po a e sta p arte não usava d o m a tri­
dado confirma a força da língua geral como instrumento de comuni­ m ônio p o r causa de um a grande enferm idade e um a chaga cancroza
cação, em que pese as leis proibindo seu uso e as declarações minimi­ [cancerosa] e h o rro ro sa qu e lhe tem co rro íd o q uase todo o rosto.
zando sua disseminação entre os índios.
A peça seguinte constitui o “A uto de perguntas”, feitas à ré pelo M esmo assim ainda lhe perguntaram qual motivo tivera para
visitador e vigário da Capitania de São José do Rio Negro, no dia 30 fugir e se seu marido ainda era vivo. Contou que um índio por nom e
de maio de 1766, em Barcelos (antiga Mariuá). Este depoimento Antônio, morador do Lugar de Poyares, estando em Borba, com
aconteceu dois anos antes da data da prisão, que, segundo consta no
processo, ocorreu em abril de 1768. É provável que esta última data alg u m a d em o ra se concubinara com e la resp o n d en te e a p ersu a­
oficializando a prisão esteja relacionada com a confirmação da cul­ d ira a q u e fu g isse com ele para a su a p o v o aç ão m otivo p o rq u e e
em razão do afeto q u e ela resp o n d en te tin h a ao nom ead o índio.
pa e encaminhamento do processo à Inquisição.
Primeiras perguntas: “nome, pátria e pais” . Florência deu o nome
completo, disse que nascera na vila de Thomar, que em outro tempo Florência e Antônio não fugiram, ao contrário, continuaram a
se chamava Aldeia de Bararoá, onde fora batizada. Seus pais, já fa­ trilhar os mesmos caminhos da civilização. Foram viverem Poyares,
lecidos, foram o índio Diogo e um a índia infiel (isto é, pagã, e sobre onde se casaram perante o reverendo e vigário do mesmo lugar, ten-
O D iretório dos índios 313

do como testemunhas um casal de índios, Thom é e Mariana. Indagada companhia, da Vila de Borba, para vir casar-se em Poyares. A fuga
Florência se sabia se seu prim eiro marido estava vivo ou morto, dis­ tem com o referencial o ter ocorrido na véspera da festa de São João
se “que não sabia que estivesse falecido” . Batista. Sob um a série de perguntas a respeito de sua passagem por
E voltaria a repetir que ele “há m uitos anos não usava do Borba, informou que, enquanto ali esteve, dormia na canoa. Fazia
matrimônio com ela em razão de seus achaques”. visitas diárias à casa de Leandro, “em razão do concubinato” que
Questões que investigam a cum plicidade dos padres jesuítas logo se estabeleceu entre ele e Florência. Perguntado se sabia que a
fariam Florência responder que o padre de Poyares não lhe pergun­ índia já era casada, negou conhecimento prévio, “respondeu que
tara de onde vinha nem como vivia. Assim, om itia sem m entir ou nunca soubera de tal nem vira ou conhecera em casa do índio Lean­
incriminar um terceiro. Perguntaram-lhe, ainda, se era natural da dro alguém de quem se afirmasse ser marido de índia Florência”.
vila de M oura. Negou veementemente que houvesse tratado de se­ Ao contrário, tinha ouvido de Florência que realmente já havia
melhante m atéria com o padre de Poyares. Tal pergunta, que no sido casada com alguém que falecera no Pará (Belém). Inquirido
momento parece desconexa e fora de lugar, procurava esclarecer a mais incisivamente, o réu seria constrangido a responder por qual
dúvida sobre se não se tratava de poligamia. No correr do processo, motivo “roubou” Florência, deixando de casar na mesma Vila de
esta seria esclarecida, confirmando-se a bigamia com o índio Antô­ Borba, já que era supostam ente livre e desembaraçada. Antônio
nio. O depoim ento termina com a repetição, várias vezes, das mes­ incrim inaria Florência, dizendo que ela o persuadira a viver em
mas questões e a ratificação de cada um a com o contendo a verdade, Poyares, onde desejava reencontrar parentes. A dúvida em tomo da
a que o escrivão daria fé porque, segundo expressou, fora dita “iima e relação de Florência com a Vila de M oura é aqui esclarecida. Em
muitas vezes respondendo sempre sem embaraço, sobressalto, medo M oura vivia José, irm ão de Antônio, por haver casado com a índia
ou temor” . Rita, entendendo o reverendo vigário inquisidor, por esta vinculação,
Com estas declarações, o escrivão encam inha a narrativa para a que a índia Florência tam bém era natural do mesmo lugar.
conclusão, citando os nomes presentes para as assinaturas, dentre as As questões dirigidas a Antônio insistiam em confirmar sua
quais figura a de Florência, feita pelo inquisidor, pelo fato de ela não cumplicidade com Florência, o que Antônio sempre negou, ainda
saber ler e escrever. que envolvendo outros parentes. Indagado por que não advertira o
A próxima peça a folhear é o “Auto de perguntas”, que o visitador padre sobre a origem de Florência, disse que teria sido aconselhado
José M onteiro de Noronha fez ao índio Antônio de Lima, em 2 de por um índio a não mencionar esta informação. Perguntado, final­
junho de 1766, também em Vila Barcelos. Antônio aparentava cerca mente, quando e com o soube que Florência já era casada, disse que
de “vinte e cinco a trinta anos pouco mais ou menos” . Indagado um soldado trouxe esta notícia ao passar em Poyares e a transmitiu
sobre “nome, pátria e pais”, confirmaria uma trajetória de vida seme­ ao diretor Bento José, enquanto Antônio estava fora, em viagem. Ao
lhante à de Florência. Nascido e ainda morador de Poyares, Antônio retomar, Antônio já encontrou Florência presa.
era filho de um índio chamado João Canao e de úma índia “infiel” O depoimento termina. É discutido o teor do depoimento pelo
(mas não assegurou ser o pai batizado, embora deixe em evidência escrivão, que o considerou duvidoso, pois dado com “receio e
que sua mãe não o era). As perguntas que perscrutavam seus movi­ titubeação” .
mentos entre as povoações respondeu que sempre morou em Poyares As folhas seguintes tratam das “provas do delito” . O documento
e que “não tivera assistência dilatada em qualquer outra povoação” . certifica o matrimônio de Antônio de Lima e Florência Perpétua,
Era solteiro e, depois que passou a festa do Natal próximo passado, confirmando ser esta índia moradora de Borba e pertencente à nação
casara com a índia Florência sob o testemunho do padre e de um Baré. De um segundo documento transpira a movimentação das pes­
índio carpinteiro, Thomé, e de sua mulher, Mariana. Sobre Florência, soas em tom o do caso. Seu autor, o vigário da igreja de Borba, afir­
revelaria que esta não era natural de Poyares. Havia fugido, em sua ma ser real a ocorrência de “refinada poligamia” no caso de Florência
Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 315
314

e considerou o estado terminal da doença de Julião a m aior motiva­ onde conheceu as mudanças trazidas pelo Diretório e, muito prova­
ção para o desencadear das ações. Qualifica, mais de um a vez, a velmente, assistiu — e talvez até vivenciou diretamente — as suble-
ação, chamando Antônio de Lima de raptor. O burburinho das vizi­ vações em Thomar, antiga Bararoá, vindo a fugir, tomando a direção
nhas, as índias Angela Pires e Teresa de Jesus, com a m ulher de da subida dos rios, inversa à da civilização que corria fixando em­
Leandro, Valentina Moniz, comentando a situação, tudo isso demons­ preendimentos colonizadores às margens das principais vias fluviais.
tra a plena operacionalidade dos códigos relativos ao comportam en­ M as Florência retom aria em um desses descimentos, que em ne­
to civil, moral e cristão — já à época datando de quase dois séculos nhum m om ento da história colonial do Brasil foram realm ente
a presença européia no norte do Brasil. O docum ento é de 30 de suspensos. Vivendo em Borba, conheceu Antônio, com quem fugiu,
junho de 1766, ou seja, um mês após a tom ada dos depoim entos de desta vez para outra povoação, cum prindo novamente os mesmos
Florência e Antônio. O terceiro documento certifica o matrimônio ritos matrimoniais já realizados em Borba com Julião e, possivel­
de Florência com Julião e confirma lugar, igreja, testemunhas, além mente, sob pressão do vigário do Lugar de Poyares, onde foram vi­
de corrigir o sobrenome (apelido) M artins em lugar de Perpétua, ver. Não parecia haver alternativa m elhor para quem já havia nasci­
que se introduziu desde o início erroneamente. N este documento é do em m eio a um a experiência de civilização e evangelização. Era
assegurado que Antônio tinha ciência do matrimônio e que, portan­ filha de pais já falecidos. Seu pai morreu no rio M adeira, nas mãos
to, deveria ter consciência do que este representava com o "impedi­ dos índios M ura. De sua mãe, assim como dos avós paternos e ma­
mento o qual não obstante se casara com a mulher do referido Julião tem os, não chegou a “ter notícia, nem conhecim ento algum” . Àque­
Coelho”. la altura, um a ruptura com o mundo exclusivam ente indígena já es­
Este material chega ao inquisidor Geraldo José de Abranches tava em evidência, desde que ao fugir não foi além dos domínios do
em julho de 1766. Submetido o processo a exame pela “mesa da mundo civilizado.
visita do Santo Ofício”, Florência e Antônio são condenados a aguar­ Florência agora diz ter certeza de que se casou, pela primeira
dar sentença definitiva em prisão a ser cumprida na cadeia pública vez, “na presença do padre Feliciano e não de um padre da Compa­
da cidade do Pará (Belém). As peças seguintes são o “inventário”, a nhia [de Jesus] chamado Ignácio Antônio, como duvidara na sua
"genealogia” e encaminhamentos diversos e arrazoados, em que a confissão” .
questão é analisada conforme a jurisprudência da época. Acom panhando (de 1994) a formação destas primeiras conclu­
A “genealogia”, um a das últimas peças do processo, traz à cena sões, mesmo levando em conta a época e os valores que fundamen­
o inquisidor Giraldo Abranches com nova série de perguntas a tavam procedimentos dessa natureza, a sensação é que parece im­
Florência. São utilizados os mesmos procedimentos, a partir dos quais possível entender a validade e a razão de ser destes processos, que,
a respondente jura dizer a verdade e guardar segredo. São os mes­ efetivamente, apenas esclarecem pontos mínimos, cobrindo falhas
mos procedimentos, desta vez anunciando a fase final do processo e nas informações. Só é possível entender, avaliar a eficácia e a funcio­
por este motivo com funções reiteradas de m arcar significados do nalidade deste procedimento se se levar em conta a finalidade do
rito. A ré é indagada da consciência que possui sobre a culpa e dos processo inquisitorial, de rito marcando símbolos que serão absorvi­
movimentos internos que fizera para o arrependim ento dos erros
dos como referências ao comportamento e ao modo de pensar espe­
cometidos. Impressiona perceber a convicção de Florência, passa­ rados.
dos meses sob a circunstância desses interrogatórios, para ainda di­
As visitas pastorais têm especificidades em relação às visitações
zer que não tivera outra “tenção do que a que tem declarado”. Pelo
da Inquisição. Ambos os procedimentos, entretanto, revelam em sua
que o inquisidor voltaria a indagar questões que dizem respeito à
ocorrência temporária u m período de caráter ritual, em que são implan­
sua biografia, fazendo-a repetir seqüências de sua trajetória como
tadas ou renovadas idéias básicas da cultura ocidental. Os diários
índia já nascida dentro de uma missão administrada por jesuítas,
Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 317
316

de visitas pastorais estão repletos de descrições sobre a rotina do tuíam nomes indígenas e católicos por nomes de lugares de Portugal
visitador ao chegarem cada povoação. Eram rezas, procissões, falas (v. figs 35 e 36), como também um movimento cultural imprimindo
ao povo, catecism os para meninos e meninas, missas, crismas, casa­ a feição desejada pelo conquistador, desta vez em condição dura­
mentos e batismos (BNL, 6321, Brandão, D iário das visitas pasto­ doura, passada a fase bélica da conquista (IHGB, arq. 1.2.4., pp.
rais... , 1784/1806). A característica básica desta catequese itinerante 244-245). Penso, aqui, em certos documentos que nos permitem ve­
era a preocupação em realizar um trabalho de conversão cristã e de rificar que os brindes, ou presentes, que serviam, nos descimentos,
reorientação m oral. A intervenção do relig io so no sentido do para atrair e fazer amizade com os índios também podiam ser dotes
reendereçamento ao estado de normalidade acéito pela Igreja Cató­ matrimoniais, sendo candidatos naturais a esses casamentos os pró­
lica promoveu situações como a que é narrada a seguir: prios soldados, cabos-de-esquadra. Um ofício datado de 1759 e assi­
nado pelo mesmo governador atesta que os povoadores europeus
A q u i en c o n trei um escândalo p ú b lico d o s m ais odiosos, e detes­ que se casavam com índias recebiam machado, foice, ferro de cova,
táveis ao s o lh o s d a religião, o co n c u b in a to do p rincipal com sua serra de enchó, peças de bretanha ordinária, saia de ruão, etc (IHGB,
p ró p ria filha. E sta v a o m onstro fora d o lugar, cham ei a cúm plice, 1.1.3). Neste caso, o funcionário do rei, o militar, o conquistador
co n fesso u logo, adverti-a, e com o tin h a ju s to casam ento, p ro cu ­
teriam a id éia de casam ento que defendiam o m issionário, o
rei q u e se efe tu asse antes d a cheg ad a d o b árb aro pai.
inquisidor, o pároco — todos europeus, católicos, de uma mesma
nação e cultura? Aparentemente é a mesma concepção cristã de
Do m esm o modo como os primeiros povoadores conquistaram
matrimônio que rege seus comportamentos e ações relativas aos ín­
terras prom ovendo ritos de fujndação com a instalação de um a cruz
dios. E, por coincidência, verificamos ser efetivamente a mesma, ao
(Eliade, 1990), um pelourinho, uma sede adm inistrativa (Câmara) e
observar o inquisidor visitador da Capitania do Rio Negro, José
um a igreja, atribuindo-lhes um nome que lembra sua origem, sua
M onteiro de Noronha, já em outro contexto e três anos depois do
cidade ou seu país, assim também procedeu o mesmo colonizador,
processo de Florência, informar ao governador Francisco Xavier de
na figura do religioso (missionário ou inquisidor), convertendo a
gente que habita a terra conquistada, prom ovendo batismos com M endonça Furtado sobre um número otimista de matrimônios, que
nomes cristãos, reorientando-a a um comportam ento cristão e civil interessavam pelo aspecto do aumento das populações identificadas
com o domínio português e vivendo em lugares situados nas faixas
esperados.
Em circunstâncias especiais, essas duas ações eram efetuadas de fronteira com a Espanha (AHU, carta assinada em Barcelos, 20
por uma m esm a pessoa, isto é, um funcionário com instruções ré­ de abril de 1769).
gias, apoiadas em idéias grandiosas, de construir um novo mundo Pergunta-se se a concepção de matrifnônio é a mesma, porque
usando o material do antigo, que lhe era familiar. Isto, a partir da nos interessa saber como esta foi absorvida pelos índios. Vemos,
construção de fortalezas, da conquista de novos territórios ou da assim, que o trabalho missionário não parou em 1757, quando é cri­
criação de sedes de administração colonial. O poder nascido dessa ado o Diretório dos índios, ou em 1759, com a secularização das
transitoriedade, com atribuições soberanas de instaurar um a ordem missões e a expulsão dos jesuítas. Toda a experiência começada com
social, tanto perm itiu ao governador M endonça Furtado promover os jesuítas é incorporada pelos índios em todos os aspectos, ou seja,
casam entos entre brancos e índios quanto dar nomes portugueses a com o moradores de povoações, como civis e católicos, como traba­
missões e elevá-las a vilas e lugares (AHU, cx. 1, doc. 24). lhadores. Este é o público do tribunal do Santo Ofício. O modelo de
G randes listagens de topônim os am azônicos inform ando a verdade que a Inquisição defendia já tería um reconhecimento, uma
transformação histórica de missões e aldeias em vilas e cidades indi­ tradução entre os índios civilizados na segunda metade do século
cam não somente um movimento de secularização, no qual se substi­ XVffl.
R ita H e lo ísa d e A lm e id a O D ir e tó r io d o s índios 319
318

Estas considerações dão legitimidade ao material da Inquisição Esta sessão acontecia em setembro de 1766, quatro meses após
como fonte de reconstituição das concepções indígenas sobre a civi­ o prim eiro interrogatório. É evidente que Florência aprendería, com
lização. a dureza do castigo e os dois anos de prisão em cárcere da cidade do
De volta à genealogia de Florência, seu comparecimento diante Pará, as implicações de uma ofensa às convicções da Igreja Católica
do inquisidor Giraldo Abranches não acrescenta informação. É um sobre a monogamia.
momento decisivo do julgamento que, na ótica da Inquisição, pre­ Bigam ia — ofensa religiosa e moral. Não há que perguntar se a
tende uma progressão no reconhecimento da culpa. bigamia era percebida como erro por Florência. Seu silêncio, pela
Florência já não confessa a culpa, o ato em si. Agora expõe em reiterada declaração de que já havia dito tudo, não deixa dúvida.de
suas declarações um a identidade cristã. Disse que ainda não tinha que o diálogo ali estabelecido tinha, por aquele rito, confirmado o
triunfo do modelo de verdade defendido pelo inquisidor. Todavia, é
sido...
o próprio inquisidor que acaba por modificar-se. É o que iremos
crism ada, nem aprendeu ciên c ia algum a [...] D epois q u e v eio do
constatar ao ler as últimas páginas.
sertão em tenra idade não saiu d esta vila d e B o rb a exceto q uando O processo foi examinado pela Inquisição, em Lisboa, em 5 de
se retirou com o ín d io A ntônio d a M ay a e L im a... N u n c a fora outubro de 1768 — dois anos depois. Considerou-se agravante o
presa nem penitenciada p elo Santo O fício. fato de a ré parecer ciente do crime de bigamia, qual seja, estar casa­
da conform e o Sagrado Concilio de Trento e casar-se pela segunda
O aprendizado vem em seguida: “Foi-lhe dito que tomou bom vez conform e os mesmos ritos, sem esperar a dissolução do primei­
conselho em principiar a confessar as suas culpas pelas quais está ro casam ento pelo falecimento do cônjuge.
presa por pertencer o seu conhecimento ao Santo Ofício” . As considerações que vêm a seguir indicam as mudanças pro­
Pelo que narra o escrivão, Florência não reconhecia erro a con­ fundas no pensamento da Inquisição. Discute-se a gravidade do delito
fessar. Reclamava o inquisidor, e o escrivão registrava que e relativiza-se a pena, tendo em vista as condições pessoais da ré:

a confissão que tem feito não satisfaz a inform ação d a ju stiç a [...] P o rém não obstan te a q u alidade de cu lp a d a ré, pelo escân d alo
porque não confessa todas as culpas nem declara a v erd ad eira q u e ela deu p ú b lica satisfação, por ter in ju ria d o ao sacram ento
tenção co m que com eteu e que tem confessado. P elo q u e ad m o ­ d o m a trim ô n io in d o c o n tra a su a in s titu iç ã o q u e p e d e u m a
estam d a parte de C risto N osso S enhor e acab e de co n fe ssar toda in d ivíd u a união en tre o s contraentes [...] o q u e tam b ém é co n fo r­
verdade e a verdadeira tenção qu e teve em com eter as d itas cu l­ m e ao s sen tim en to s d e d ireito natural.
pas.
Eis que se abre uma brecha. Pondera-se que a gravidade do de­
O inquisidor usaria de misericórdia se a ré correspondesse ao lito deve ser medida pelo nível de consciência do transgressor. Ora,
que desejava ouvir. Entretanto, parecia distante sua conversão, pois a “barbaridade da ré”, bem com o a dificuldade de explicar-se na
a ré já havia confessado tudo, mas para o inquisidor faltava algo que língua portuguesa, “faz com que conserve a lem brança daquela na­
certamente era a convicção do erro: tureza bárbara e selvagem em que foi nascida e criada no sertão”.
Com base neste argumento, os examinadores asseguram ausência de
E p or torn ar a d izer q u e tin h a confessado tudo, e q u e n ad a m ais “m alícia” na realização do ato. Por fim, consideram que a pouca
tinha q u e confessar nem tivera ou tra ten ção além d a q u e d ec la­ instrução em religião, pela ré, também produz um entendimento con­
rou, foi o u tra vez ad m oestada em form a e m andada p ara a prisão. fuso sobre os significados e implicações das ações definidas como
delito pela Inquisição. Tomam como referência a genealogia, pela
320 Rita Heloísa de Almeida

qual ficam caracterizados os poucos e rudimentares conhecimentos


de religião transmitidos pelos missionários à população indígena das
povoações de que fazia parte Florência (aqui a crítica à administração
m issionária é coetânea). Em face destas considerações, julgou-se
que não se devia impor “a pena de abjuração” tampouco “as corpo­
rais” (que, conforme vimos, estão previstas nos regimentos de 1640 C on clu são
e 1770), ficando “o bastante castigo, a prisão de mais de dois anos
que tem tido no Pará” . Segue-se a “dispersão”, que é um ato em que
se exim e de culpa o transgressor. Registra-se, porém, que a ré seria
“asperamente repreendida na mesa”, “advertida a fazer vida com o
Poderiamos prolongar a leitura dos processos inquisitoriais exa­
seu marido, declarando por nulo o segundo matrimônio” e, final-
minando outros casos em que réus foram condenados ou absolvidos.
mente, colocada em liberdade.
M arcelina Teresa, m ulata escrava de um reverendo, fazia
As duas últimas folhas surpreendem: momentos finais do pro­
advinhações, utilizando um balaio e tesoura. Denunciada, inquirida
cesso demonstram que Florência respondia perante a Inquisição de
e, finalmente, julgada, teve como fatores atenuantes não represen­
Lisboa. É um termo de segredo, assinado em 12 de outubro de 1768,
tar, com suas práticas de advinhação, dano maior à religião católica,
do qual constam as decisões jurídicas então tomadas e sobre as quais
além de só contar com denunciantes e testemunhas igualmente de
Florência prometia cum prir debaixo do juram ento dos Santos Evan­
pouco crédito: um adolescente e dois negros (ANTT, Inquisição de
gelhos. Foi um “caso extraordinário de absolvição” como bem expri­
Lisboa, maço 23, doc. 210).
miu o arrazoado, assinado por três pessoas* que a liberou das penali­
Outros casos exemplificam a condenação. Foi o caso de Ale­
dades extremas impostas a essa transgressão:
xandre, preso sob acusação de bigamia, em Vila de Souzel, Grão-
Pará, justamente quando transcorriam as sublevações nas então dis­
tantes povoações da Capitania de São José do Rio Negro. A indicação
de que foi condenado consta no trecho em que se delibera que o
índio Alexandre fosse

preso e remetido com o traslado de sua culpa ao Tribunal do San­


to Ofício [o que se praticaria também com a sua companheira, a
índia Josepha), por mostrar-se igualmente cúmplice na malícia
de casar e fazer vida [com ele] sem embargo de ser viva a primei­
ra mulher [ANTT, id, na 12.891].

Um terceiro caso a comentar caracteriza um processo inacabado:


M aria Teresa, “mamecula” processada por bigamia, estava em plena
fase de interrogatório quando foi encontrada morta em sua cela pelo
meirinho. O trecho deixa dúvidas sobre o que teria causado sua re­
pentina morte: “falecida a noite antecedente com os sacramentos da
Igreja de um cancro que padecia em o peito esquerdo” (id, nQ2.699).
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios
322 323

Das três situações, um a m ostra que índios como Florência e nossa existência social. Pareceu-me, contudo, inconcluso e por ex­
negros como M arcelina poderíam ter suas penas atenuadas medi­ plorar esse entendimento, na medida em que toma por empréstimo
ante um julgamento da Inquisição que minimizava os efeitos da trans­ os valores do presente para tradução do que se fez e pensou e que
gressão, atribuindo-lhe falta de m alícia no cometimento do delito. pertence ao passado. Trazer trechos inteiros de documentos antigos
Parece claro que uma experiência colonizadora de longo curso ha­ para dentro de meu texto teve, assim, o propósito de permitir a expo­
via transcorrido, garantindo m esm o a instituições repressivas como sição de discursos do passado com os quais poderiamos conhecer as
a Inquisição fazer avaliações favoráveis ao convívio com diferenças explicações dadas pelos protagonistas parà suas ações tomadas histó­
culturais. Não se trata de nos apressarmos em dizer que noções de ricas.
justiça amadureceram e, sim, saber o que as pessoas pensavam a Outros obstáculos ao entendimento tom aram -se evidentes no
respeito das normas e sanções impostas a elas mesmas, o que fize­ correr da análise, como constatar que os registros existentes não
ram a favor ou contra e qual seu nível de consciência e de vontade permitem um conhecimento eqüitativo das explicações dadas por
quanto a obedecer ou modificar a ordem em que viviam. Poderia ser todas as categorias e grupos sociais que integram a realidade históri­
argumentado que escolhi aleatoriam ente um dos três casos para afir­ ca estudada. Temos amostras por meio das quais entrevemos outras
m ar que um processo histórico transcorreu, modificando conceitos mais ocultas que não foram expressas ou que não puderam exprimir
de delito, relativizando julgam entos e punições, suavizando as leis suas concepções em seus próprios termos. Refiro-me, especifica­
de convivência em nome de um ideal de felicidade comum e geral. mente, às razões dadas para as ações colonizadoras e para o possível
Pois era esta a intenção do Diretório, expressa em outros termos no entendimento que delas tiveram a massa de colonizados, os colonos
seu último parágrafo, o dê nB95. de origem européia, os índios, e os negros, que não deixaram regis­
O Diretório foi um projeto arrojado, porque anunciava idéias tros próprios. Estes são como que pontos locais de um a análise ge­
ilum inistas décadas antes, criado e executado por um E stado ral, que tem com o material apenas um lado das explicações sobre o
monárquico para administração das populações nativas de um a de que estudamos.
suas colônias, que teve a característica de exemplificar um a maneira
de organizar socialmente as pessoas em nome de benefícios comuns. A propósito, escreveu Hobsbawm:
Como analisar este contexto, que ângulos verificar e como transmi­
tir os resultados da pesquisa? N ão tem n ad a d e novo v er o m undo através d e um m icro scó p io e
Foram estes os aspectos que m ovim entaram a pesquisa do não co m um telescópio. N a m edida em qu e aceitam os q ue estam os
Diretório, tomando-se a discussão sobre o procedimento, muitas estu d a n d o o m esm o co sm o s, a e sc o lh a e n tre m ic ro co sm o s e
m acro co sm o s é assunto de selecionar a té cn ica ap ro p riad a [1986,
vezes, a própria matéria em estudo. Trabalhar com dados opostos
P- 12].
(como liberdade e escravidão) abria a possibilidade de trazer instru­
mentos analíticos da Antropologia para o debate de um aspecto da
O historiador não viu dificuldade na escolha do instrumento
história da colonização do Brasil que tem sido exam inado somente
analítico, julgando, por certo, que a opção por um substitui plena­
pelo ângulo que focaliza e registra seus efeitos funestos. É justo e
mente o outro. Lévi-Strauss foi menos otimista, ao afirmar que
necessário que se faça este registro, assim com o análises que
enfatizem o aspecto sombrio da colonização para os índios. O que a o p o sição en tre cu ltu ras p ro g ressiv as e cu ltu ras inertes p a re c e
aconteceu neste momento e em outros da História do Brasil já sabe­ assim , resultar, inicialm ente, d e u m a d iferen ç a d e focalização.
mos — temos claramente concluída esta apreciação como matéria P ara qu em o b serv a ao m icroscópio, q u e se co lo co u num a c e rta
que pertence ao passado e que pode ser analiticamente separada de d istân c ia m ed id a a p artir d o o b jetivo, o s co rp o s situados aq u ém
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 325
324

ou além , m esm o que ô afastam ento seja d e centésim os d e m ilím e­ são discutidos os meios de fazê-los produzir, a fim de que possam
tros, aparecerão con fu so s ou em baçados, ou até não aparecerão: pagar as despesas com os serviços a eles destinados.
estão fora d o cam po d e visão [1987, p. 345]. Em 1803, não mais sob a vigência do Diretório, mas ainda vi­
vendo na transição para novas formulações políticas, discutia-se a
Lévi-Strauss percebia que a escolha do foco é imperativa não dívida dos índios a ser paga com uma utilidade futura para a civili­
por um a deliberada opção do pesquisador, mas porque a adoção de zação. Assim, o Conde dos Arcos declara que, até que o rei não
um foco exclui a contemplação de outro (ou outros). Ao se focalizar ordene o contrário, fará às custas da Fazenda Real
um ponto menor, perde-se a visão do todo, mas, se o foco é campo
geral, descuidamos de suas particularidades. Uma rara oportunidade as despesas d e su sten to e d a hab itação destes hom ens p ara que
permitiu-nos, entretanto, verificar como um a biografia pode espelhar p o ssa assim estab e lec ê-lo s m ais p erto das vilas p o p u lo sas fican­
um processo social. Mas foi preciso conhecer separadamente o que do p o r isso m ais d istan tes dos sítios seus conhecidos d onde re­
sultará o d uplicado p ro v eito d e fam iliarizá-los sensivelm ente com
cada foco permite enxergar para que, enfim, fosse possível reco­
os usos da gente m ais polida ficando-lhes mais difícil os frequentes
nhecer que Florência vivenciava exatamente o que se passava à sua
p rojetos d e fu g id a: de mais a mais sendo para mim verdade
volta. demonstrada que com algum tempo, jeito e assiduidade ainda
O enfoque deste trabalho sempre foi o geral. Estudar o Diretório estes mesmos indenizarão a Real Fazenda pelo aumento da agri­
dos índios implicou a opção de situá-lo cultural e historicamente em cultura, hipoteca em que eu confio reembolso da presente despe­
uma tradição colonizadora. Tal ópção pedia a contemplação de lar­ sa [IH G B, arq. 1.1.4., p. 308].
gos períodos da formação cultural dos colonizadores e a indagação
sobre a condição anterior em que foram os colonizados e aprendizes. Um a hipoteca paga com a civilidade, com a transformação dos
A adoção de um foco que abarca o geral tem mais uma explica­ hábitos, língua e crenças. Um triunfo da civilização, pretender e aca­
ção. Se, de um foco dirigido a um ponto particular, tomamos como bar por conseguir mudar tão radicalmente a natureza desse indiví­
referência a biografia de indivíduos e a sequência de gerações, pela duo a quem é dirigido um projeto de transformação. Uma contabili­
focalização do geral, temos o transcorrer do processo e a percepção dade da ação civilizadora, tal como expressa nesse documento, é
de se estar observando movimentos ainda em curso. Proponho, para raro encontrar-se tão claram ente. Em geral, encontramos avaliações
term inar este trabalho, falar da experiência do Diretório a partir dos quantitativas contemporâneas, que permitem leituras restritas à or­
dois focos, começando pelo particular, o local, de onde a leitura do dem espaço-temporal da circunstância em que ocorreu o fato, ou
processo é vista ao tempo da experiência. seja, os “mapas”, as “relações” — detalhados estudos estatísticos
A carta do Conde dos Arcos ao Visconde de Anadia, de 27 de sobre o movimento das populações indígenas entre as povoações e
outubro de 1803, é um documento relevante, por mostrar como os dentro destas.
assuntos relacionados com os índios já estavam institucionalizados. O primeiro aspecto a observar nesses dados estatísticos é a pre-
Apresenta informes e opina sobre a convivência com os índios, de­ cocídade com que logo se form a a idéia de fracasso do projeto
monstrando claramente haver incorporado seguidas experiências his­ Diretório no âmbito das experiências civilizadoras com os índios.
Um pessimismo que tem origem na verificação coetânea de muitas
tóricas. Narra um recente descim ento conduzido por um “principal”
baixas populacionais causadas por doenças epidêmicas trazidas pe­
dos “M undrucús” (M undurucu) e dois parentes, mas a expressão
los europeus. Um exemplo: no período de três anos, entre 1779 e
dada ao fato foi diferente, teve outra tradução, isto é, são os
1781, o Pará perdeu cerca de quinze mil índios, mortos por bexiga,
M undurucu oferecendo “oito ou dez mil índios seus subordinados”,
sarampo e sarampo grande (BNRJ, 21.1.1., numero 10).
que pedem a proteção de S.A.R. e da Igreja Católica. Em seguida
3 26 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 327

A outra explicação para o fracasso está ligada às “deserções”. Em outros casos, o descimento traduz uma decisão voluntária ou,
Palavra de uso militar empregada para denotar fuga de índios, “de­ melhor dizendo, ocorre um acordo de paz e amizade entre determi­
serção” exprime a situação de conquista territorial em pleno curso. nada nação indígena e representações locais do govemò colonial.
Voluntária, individual ou feita em pequenos grupos, tais atos permi­ Dentre os membros da nação, seus líderes natos (ou não) são reco­
tiam dupla interpretação: para os índios, a deserção podería corres­ nhecidos e recebem patentes, passando, com seus vassalos, a súditos
ponder a movimentos internos, próprios de um a econom ia nômade do rei (IH G B , arq. 1.1.3, p. 232). N esses casos, o registro do
de caça e pesca ou da condução cultural dada a suas relações polí­ descimento está associado à notícia de seu aldeamento em determi­
ticas e matrimoniais; para os colonizadores, estas movimentações, nada povoação, para aumento das populações já existentes ou início
próprias da cultura dos índios que estavam sendo aldeados, talvez de um novo núcleo. Anotei a expressão que descreve a ação de ter
estivessem sendo confundidas com uma m esm a categoria de fuga. “descido povoações” para enfatizar que “descer” índios, “descer”
O que condiz com a situação destas povoações, que, na verdade, povoações, civilizar índios, colonizar suas terras eram ações sinôni­
começam como frentes de conquista territorial, tom ando-se postos mas, um a vez que aconteciam simultaneamente (IHGB, arq. 1.1.3.,
de vigilância com a construção de fortalezas (casa-forte, forte), ar­ p. 373).
raiais e, só com o tempo, ao longo da conquista e colonização, trans- N o correr da leitura destes informes estatísticos, fica evidente
formam-se em povoados, aldeias, lugares, vilas e cidades. que na m aioria das vezes os “principais” não são líderes dos índios
As notícias tratadas nos mapas anunciam apenas fracassos. As descidos, mas pessoas com trânsito entre os colonos brancos e auto­
perdas populacionais tinham ressonância na produção das povoa­ ridades do governo colonial. Liderança fundada no domínio da lín­
ções, aumentando a demanda por mão-de-obra. Operários para o Real gua portuguesa e da “língua geral” e no tino comercial para essa
Serviço em obras de construção de fortalezas, guias, remeiros, car­ atividade. D aí não lograrem esses descimentos a duração suficiente
regadores para expedições ao sertão e comunicações entre capita­ para contribuir para o aumento das povoações, por faltar esponta­
nias eram uma necessidade constante. E logo tom ariam nulas as in­ neidade a essas “transmigrações” , com o se dizia na época estudada.
tenções recomendadas no Diretório com respeito a iniciar os índios Ainda comprovando a artificialidade desta form a de povoamen­
nas escolas públicas, fixar-lhes turnos de trabalho e assegurar-lhes to, há documentos que registram os descimentos de determinados
horas destinadas a seus interesses particulares. Deserção adquire o grupos que estariam sendo “de novo descidos”, numa alusão a fugas
sentido de desgosto. índios afastados de suas fam ílias por muito tem­ e resgates contínuos para o que pareciam ser efetivamente acampa­
po, sem autonomia para produzir a própria subsistência, rompem a mentos ou presídios militares (AHU, caixa 12, doc.l ; caixa 9, doc. 1).
amizade e confiança que porventura tenham nutrido pelos brancos, E sta breve leitura sobre os dados quantitativos corrobora análi­
tomando-se exemplos que desaconselhavam a aproximação àqueles ses históricas, como a de Regina A lm eida (1990), que mostram que,
que ainda não haviam experimentado o convívio com os civilizados se houve aum ento das populações indígenas do Norte do Brasil,
(IHGB.arq. 1.1.3., p. 316). deveu-se este fato muito mais ao suprim ento contínuo e artificial de
As antigas expedições de resgate, conhecidas pelo nome de índios descidos do que a um crescim ento natural e espontâneo (1990,
“descimentos” , ganham força e tomam-se frequentes com o solução pp. 12-13) (AHU, 1760, caixa 1, doc. 24).
para as demandas progressivas por novas levas de mão-de-obra. Em Faltavam “índios para as muitas obras” (AHU, 1760, caixa, 1,
geral, os “descimentos” adquirem o sentido de atividade comercial doc. 24). O s mapas com dados sobre os habitantes das povoações e
(um tráfico), envolvendo representantes do governo colonial e índi­ os seus rendim entos revelam , sobretudo, as pretensões econôm i­
os “principais”, cujo pagamento por tais resgates se dá sob a forma cas em relação aos índios. Os itens inventariados relativos à pro­
de artigos da civilização (pentes, miçangas, espelhos, agulhas, tesou­ dução agrícola foram: nome (da pessoa que responde pela produ­
ras, pólvora, chumbo, pregos, verruma, limas — AHU, cx. 9, doc.l). ção), qualidade (sinônim o de procedência étnica), estado civil,
328 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 329

emprego (lavrador, funcionário do governo, oficial de carpinteiro, ver com os colonizadores, pois, como habitantes de terra firme, afas­
“principal”), localização da produção, demais trabalhadores que tados dos grandes rios ou vivendo nas cabeceiras destes, ao serem
porventura participam da produção (índios e pretos) e, finalmente, a trazidos para os núcleos de colonização, foram literalmente “desci­
produção (pertencente à pessoa que encabeça o inventário) mensurada dos”. Esses “habitantes de terra firme” não são os mesmos índios
segundo os padrões da época (alqueire, paneiro, etc) e avaliada pela que, vivendo às margens dos grandes rios, conheceram o desenvol­
moeda corrente. Por esses mapas os diretores controlavam a produ­ vimento mediante a prática de uma agricultura intensiva (Roosevelt,
ção local (le sua povoação e deviam obrigatoriamente repassar tais 1992, p. 32). Alcançando níveis complexos de organização em che­
informações aos governadores, em períodos regulares, uma vez que fias centralizadas, é mais provável que esses “habitantes de várzea”
com estes dados era avajiado o recolhimento dos dízimos (AHU, (Ribeiro, 1990, p.82), agricultores experimentados, tenham sido mais
Rio Negro, caixa 11, doc. 4). combatidos e vencidos do que preservados e incorporados à colo­
Foi a primeira e talvez a única vez, no período colonial, que se nização.
formulou uma política de estímulo à produção agrícola para o Grão- Por estes motivos, fundamentalmente a ausência de habilitação
Pará e Rio Negro, introduzindo, pioneiramente, um a atividade agrí­ para a atividade (e, sem dúvida, uma vocação extrativista que cres­
cola para fins comerciais até então inexistente no ambiente ama­ ceu condicionada pelo que o meio ambiente oferecia), seriam funes­
zônico. tos os resultados da implantação da agricultura na Amazônia, se­
Pioneiramente — volto a realçar — para as populações às quais gundo as práticas e os padrões de organização da produção então
se dirigia esse program a agrícola: soldados que vinham ao Brasil em conhecidos pela civilização ocidental, sendo frequentes os informes
serviços militares e que, sob o estímulo de políticas de povoamento, a registrar uma inexplicável e permanente carestia de alimentos bá­
resolviam perm anecer casando-se com índias, recebendo terras e sicos, não obstante as leis que obrigavam o seu cultivo (AHU, cx.
ferramentas para se dedicarem à agricultura, mas sem ter prática 14, doc. 3).
anterior da atividade; ou colonos brancos, como os de Mazagão, vin­ Por fim, vale relancear os olhos sobre mapas panorâmicos, com
dos de uma “praça” de mesmo nome implantada pelos portugueses indicações sobre as populações existentes em todos os povoados das
no continente africano, e cuja experiência de perm anente luta para capitanias do Pará e São José do Rio Negro. Em primeiro lugar,
conservar a conquista territorial os tornaria menos hábeis no manu­ reportemo-nos às classificações internas, às classes de idade da cul­
seio de ferramentas de trabalho. Mas estes são apenas dois casos de tura européia: crianças de sexo masculino e feminino de até 7 anos;
imigração. Há outros, como o dos colonos das ilhas da Madeira e, rapazes de 7 a 15 e raparigas de 7 a 14 anos; homens de 15 a 60,
principalmente, Açores, que já estavam fam iliarizados com a vida mulheres de 14 a 50; finalmente, a faixa de idade mais idosa, que
rural ao virem para o Brasil (Reis, 1960). Quanto aos índios, estes, para ambos os sexos começa a partir de 90 anos. Por este levanta­
genericam ente, foram registrados pelas adm inistrações coloniais mento, feito em 1778, assim como por outros do mesmo gênero,
com o sendo nômades e com algum princípio de agricultura de raízes. torna-se evidente que o período de vida economicamente ativa é o
Estes índios que entraram em contato e conviveram com os coloni­ referencial básico para a seleção de índios nos descimentos, o que
zadores provavelmente são os que, segundo os estudos arqueológi­ condiciona e mesmo determina o avanço ou retrocesso das povoa­
cos, se inseriríam na categoria de “habitantes de terra firme”, sobre ções.
os quais ficam confirmadas as características descritas nos docu­ Documentos que exprimem claramente a idéia de que as povoa­
mentos coloniais, quanto à organização em pequenos grupos dom és­ ções eram alimentadas com descimentos são os que tratam do anda­
ticos, ausência de chefias centralizadas e hábitos de um a agricultura m ento da colonização no Rio Branco, com a construção de fortale­
de raízes e itinerante (Ribeiro, 1990, p. 81). A expressão “descimento” zas e povoações nas proxim idades. Os dados relativos a esses
parece aqui reforçar a suposição de que esses índios vieram a convi­ movimentos mostram que a faixa de 15 a 60 anos é a mais procurada
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 331
330

nos descimentos. Em 1786, João Bem ardes Borralho retrata a se­ governos constituídos por índios. Sugeriu a redução do número de
guinte situação: de 693 índios existentes em quatro povoações (N.S. vilas. E, sintomaticamente, só concordou em persistir num a idéia,
do Carmo, Lugar de Santa M aria, Lugar de São Felipe, Lugar de N. qual seja, a de que os privilégios dos “principais” fòssem mantidos
S. da Conceição), 178 eram homens de 15 a 60 anos e 198, mulheres (AHU, id).
de 14 a 50 anos; os demais èram crianças, sendo 83 do sexo m ascu­ Que tendências conceituais orientavam o que parecia estar-se
lino e 86 do sexo feminino. Os rapazes e “raparigas”, também em delineando como um procedimento exatamente inverso ao anterior?
menor número, foram calculados em 66 e 44, respectivamente. Fínal- M emória sobre o governo do Rio Negro é atribuída a Lourenço
mente, havia 12 homens com mais de 60 anos e 26 mulheres de mais Pereira da C osta e teria sido escrita depois de 1762 (Carvalho,
de 50 anos. A confirm ar o fato de que os descim entos foram subs- Cedeam, 1983, p. 39). Este autor, comentado por Ribeiro Sampaio,
tancialmerite mais eficazes para o povoam ento do que os nasci­ estava assistindo à experiência do Diretório em sua fase inicial e já
mentos, temos este mesmo levantamento por João Bernardes Borra­ anunciava, com suas agudas observações, que o emprego abusivo da
lho, segundo o qual 24 pessoas nasceram nessas povoações. Este força de trabalho indígena seria o fator a determinar, em data prematu­
número avulso não confirm a se houve crescim ento espontâneo das ra, que o Diretório fracassasse em regulamentar as condições de tra­
populações indígenas aldeadas, por faltarem dados referentes aos balho entre índios e brancos (AHU, Rio Negro, cx. 1, doc. 37; id, cx.
anos anteriores, mas é visivelmente menor que o de 255 índios que 2, doc. 38).
“de novo acresceram”, isto é, foram para as povoações mediante E sta observação de Lourenço Pereira da Costa m otivou Ribeiro
descimentos (AHU, Caixa 12, doc. 2 — fac-sím ile na fig. 25). Sam paio a fazer propostas de modificação radical do sistem a, enten­
Há descontinuidades nestes dados do dia-a-dia da experiência dendo, por certo, que a inversão do procedimento fosse perm itir sa­
do Diretório. Tudo a demonstrar que a política sugerida por este nar os erros da tentativa anterior. Observe-se que estam os tratando
regimento fracassara prematuramente. As opiniões dos representan­ de papéis produzidos no espaço de duas décadas, mas um a lembran­
tes do governo colonial são a expressão maior dessa descontinuidade. ça ao que aqui foi dito no primeiro capítulo confirm a este exemplo e
Eles representam governos e executam programas. Há intermitências m ostra como a história da legislação sobre os índios é um a constru­
entre as intenções do m inistério de Pom bal (quando é criado o ção sobre experiência e erro, a qual, às vezes, nega o imediatamente
Diretório) e as do gabinete constituído pelo novo reinado. Entre o anterior para retom ar exemplos antigos, que já teriam sido por este
reinado de D. José I e o da Rainha Maria I e Príncipe D. João form a­ suplantados. Isto nos transmite um a imagem cíclica do processo em
ram-se distintas gerações de políticos e funcionários de governo. que program as têm a duração das gerações que os criam , sendo cir­
Ribeiro Sampaio nos dá o exemplo, ao escrever um texto que cunstancialmente avaliados pelo que os números do dia-a-dia per­
pretende corrigir e atualizar um outro, de duas décadas antes, m item julgar. Este é o momento para entender que as idéias não são
intitulado Memória sobre o governo do Rio Negro. Em um a leitura percebidas como tendo uma existência contínua. No espaço de gera­
crítica deste texto, Ribeiro Sampaio enumera sugestões que repre­ ções, questiona-se o anterior imediato, idealiza-se o m ais distante,
sentariam exatamente o oposto do que pensou fazer o ministério de tem -se a ilusão de estarem promovendo grandes m udanças. M omen­
Pombal, quando as aldeias indígenas e m issões foram secularizadas to para concordarmos com a caducidade de projetos e de suas inten­
e se implantou o Diretório. Para mencionar algumas de suas suges­ ções, quando transmitidos de um a geração a outra, e constatar as
tões, ele considerou “inútil” o matrimônio entre índios e brancos, grandes lacunas entre o ideal e o real, a teoria e a prática. M elhor
porque “os europeus pretenderam civilizar índios, mas que os índios retom ar ao foco que permite a verificação ampla do Diretório, con­
siderando o espectro de sua aplicação ao Brasil e reconhecendo-o
barbarizam os europeus” (AHU Rio Negro, 1780, cx 2, doc. 38).
com o instrumento jurídico entre outros já experimentados, a partir
Também julgou necessária a separação do espaço social dos ín­
dos quais faria sua tentativa, deixando aos próximos um a experiência.
dios em relação ao dos brancos. Propôs anular a intenção de form ar
332 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 333

Em 1750, Portugal renovava-se com o program a de governo de maio de 1758 fica assegurada a decisão régia de restituir aos ín­
apresentado pelo gabinete pombalino. M uitas idéias colocadas em dios do Brasil a inteira liberdade de suas pessoas, bens e comércio.
prática na form a de lei já correspondiam a um desejo social por O princípio da menoridade e a decorrente justificação para o empre­
mudanças que se avizinhavam de Portugal, vindas de países que não go da tutela intervém aqui, definindo que os índios sejam protegidos
tiveram a mesma experiência de opressão cultural, religiosa — pelo e favorecidos antes que fossem “todos constituídos na mansa e pací­
menos, na mesma intensidade de Espanha e Portugal. Mas estas idéias fica posse das referidas liberdades” . Tal condição implicava garan-
só seriam realmente absorvidas pela sociedade a longo praz», pelo tirrlhes terras por meio de “cartas de sesmaria”, para que pudessem
fato de, ao tempo do gabinete pombalino, ainda representarem am eaça formar suas lavouras e estabelecer comércio nas povoações em que
às estruturas vigentes e a seus esquemas tradicionais, fundados em fossem habitar. Estas povoações teriam nomes de lugares e vilas de
monopólios, no uso de mão-de-obra escrava e num tratam ento às Portugal e um a forma de governo civil representado pelas câmaras
colônias que apenas permitia desenvolvimentos parciais, com ple­ de Justiça e da Fazenda. A vida política local seria movimentada
mentares ao sistem a colonial como um todo. pelas próprias pessoas ali moradoras, ficando proibida a ingerência
Ainda que libertadora a intenção relacionada com os índios, bem de religiosos sobre os governos desses projetos de cidades. As deli­
com o renovadora, quanto à criação de um a econom ia agrícola berações desse alvará term inam como quase todo documento aqui já
diversificada, e duradoura, ao fincar administrações e fom entar m i­ visto: “o que tudo executareis nesta conformidade de plano, sem
grações européias e casamentos com índias, estas idéias remetiam figura de juízo, e sem admitires recurso algum que não seja para a
m uito menos ao projeto iluminista (a acontecer) do que às experiên­ minha real pessoa” (IHGB, arq. 1.3.8).
cias colonizadoras de Portugal realizadas em épocas anteriores à do No caso, tratava-se de um a carta do rei dirigida ao governador
Brasil, tal como na índia, por Afonso de Albuquerque, no início do e capitão-general da Capitania do Rio de Janeiro e M inas Gerai?.
século XVI. Talvez por este motivo, visto deste ângulo, o D iretório, O Diretório tomara-se lei geral, incorporando todas as demais ins­
suas idéias e seus efeitos fossem ainda observados e sentidos nas truções dirigidas aos portugueses que desde o início vieram ao Bra­
políticas e leis seguintes respeitantes aos índios, com o, no geral, em sil com esta mesma deliberação. Aqui descrevemos esta deliberação
program as de ocupação territorial que à sua volta passam a ser cada para destacar do tempo e do espaço o modelo constituído na própria
vez mais frequentes e numerosos. experiência de unificação territorial e formação do Estado ocorrida
Sua divulgação faz justiça à relevância política que teve para a na história de Portugal. Talvez por este referencial, fortemente esta­
situação histórica em que foi criado. Para fins de visualização, cita­ belecido e continuamente utilizado, todas as modificações intro­
m os, a propósito, um ofício de 1759, assinado por M endonça Furta­ duzidas sobre o tratamento dispensado aos índios no período colo­
do e que anuncia a distribuição, aos diretores, de trezentos exem pla­ nial se tenham efetuado somente em torno do agente que atuava
res do Diretório (IHGB, arq. 1.1.3, p. 167). Parece claro, mas é sobre o índio. Ou dito de outra m aneira, a mudança ocorria nos ato­
necessário repisar, que tal distribuição ocorre na Amazônia, nos m ea­ res que representavam o mesmo personagem. As intenções, os meios,
dos do século XVIII, supostamente entre poucas pessoas com dom í­ os fins, entretanto, eram os mesmos.
nio da leitura e da escrita, o que reforça a idéia do Diretório como, É o que se observa no texto Informação sobre a civilização dos
acim a de tudo, instrumento de controle e vigilância sobre quem fos­ índios do Pará, escrito por Francisco de Sousa Coutinho e datado de
se adm inistrar índios, mas também referencial para quem viesse ou 2 de agosto de 1797 — documento em que o autor rascunhou as
j á estivesse no Brasil querendo iniciar empreendimentos econômicos. idéias que viriam a subsidiar a carta régia que, em 12 de maio de
Os efeitos do Diretório chegam a todos os índios habitantes do 1798, aboliu o Diretório. Nele o diretor é alvo de todas as críticas e
então denom inado "continente do Brasil”, isto é, os que habitavam descrito por Francisco Coutinho como um “senhor absoluto” da po-
as demais regiões fora do Grão-Pará e M aranhão. Pelo Alvará de 8 voação e dos índios que administrava. O retrato do diretor como um
O Diretório dos índios 335
334 R i ta H e lo ísa d e A lm e id a

qu e estes nem são n em foram , isto é: infalíveis em todas as suas


“tirano” parece ter-se generalizado. Na descrição de Coutinho, o di­
d isp o siçõ es e in acessíveis a fraudes, a m alícia e ao en g a n o ? [id,
retor evitava que os índios se instruíssem e se comunicassem com
p. 235],
moradores brancos, im pedia que promovessem suas lavouras, fizes­
sem expedições ao sertão, ou se dedicassem ao serviço real, apenas
Essa discussão terá o curso próprio das legislações e políticas
consentindo que servissem ao próprio, segundo seus interesses. Ser­
indigenistas e segue o comando das percepções que a civilização
viço quase sempre retribuído com castigos físicos, em vez de salá­
ocidental foi adquirindo sobre os índios e que deverão perm itir cada
rios (IHGB, arq. 1.1.4., p. 232).
vez m ais pensar num a convivência futura pautada por condições
Ao tecer estas críticas aos diretores e, de m aneira geral, ao
eqüitativas.
Diretório, Francisco Coutinho levanta questões de plena atualidade.
Importa-nos reter o conteúdo cultural que sustenta o Diretório.
Embora, àquela altura, estivesse refletindo sobre novos procedimen­
Francisco de Sousa Coutinho quis eliminar a figura do diretor, reti­
tos que viabilizassem a definitiva abolição da escravidão dos índios,
rando-lhe as prerrogativas que em verdade sempre couberam aos
suas idéias deverão contribuir para a formação do conceito de tutela.
juizes. A mesma figura retom aria meio século depois pelo Decreto
No caso, o texto a seguir traz à tona questões geradas em uma
n° 426, de 1845, que organizou o serviço de catequese e civilização
situação de controle e vigilância levada ao extremo oposto das in­
dos índios. Na ocasião, a figura do diretor desdobrou-se nas funções
tenções de restituir a liberdade dos índios. O que nos sugere, como
de “diretor-geral” e “diretor de aldeia”, situação esta que reproduz
exercício analítico, com parar as questões por ele levantadas com as
conceitualmente as ramificações do poder, entrevistas no Diretório
ambigüidades que afloram em uma situação de menoridade e tutela.
nas relações entre “governadores” e “diretores de aldeias” .
Convém destacar que Francisco Coutinho estava contribuindo para
U m a anotação curiosa e rica para um a reflexão sobre os m ovi­
formar um conceito e um a instituição a partir da crítica a um a situa­
m entos cíclicos subjacentes nos significados dos conceitos é a que
ção que só se acentuaria, e paradoxalmente, pois, ainda que tal situ­
provém da leitura de ofício escrito por um diretor-geral dos índios
ação fosse sendo suavizada por novos métodos, o objetivo que se
da Província do Ceará, já no início do século XIX. Nele, aquela
perseguia continuava a ser a transformação dos índios (ou a sua con­
autoridade discorre sobre a dureza de sua tarefa e pede o retom o da
versão, civilização, conform e a terminologia usada em cada época).
gratificação que os diretores parciais (de aldeias) recebiam , isto é,
O problema é que esta transformação redundava em dependência,
“a sexta parte de todos os frutos, que os índios cultivarem, e de to­
fundada numa eterna m enoridade construída pelo próprio tutor. É o
dos os gêneros que adquirirem”, excluindo os de consum o pessoal
que se depreende do trecho a seguir:
(D iretório, parágrafo 34). Desde o Decreto de 25 de fevereiro de
1819, os índios estavam desonerados desta obrigação, implantada
Por m ais rústico q u e se considere ele não p o d e se r m ais d estitu í­
ao tem po do Diretório. Nesse papel considerava razoável o retorno
do de co nhecim entos d o que é um a cria n ça e esta, contudo, n a
sua educação tem c e rto term o, e a m e sm a ju risd iç ão p atern al o desse tributo pago pelos índios e que tinha sido uma das justificati­
tem até aquele q u e a lei reGonheceu e estab eleceu p a ra a m aio ri­ vas da abolição do Diretório (BNRJ, 1.31.24.26).
dade em que in te iram e n te pode disp o r d e si, e fica en treg u e aos Entre decisões e retrocessos sobre qual postura assumir, foi re­
efeitos de sua b o a o u m á educação. P o rq u e m otivo p o is não h á d e passado e instituído um procedimento econôm ico— e creio ser este,
isto m esm o p ra tic a r-se com o índ io ? Como há de apreender a exatam ente, o que enfim sintetiza o Diretório : uma carta de orienta­
tratar sem lhe ser jamais livre o trato do que é e com quem bem ção guiando empreendimentos, em que a participação do índio é ne­
lhe parecer? P o rq u e h á d e errar; p o rq u e h á de ser en g an ad o , q u e cessária devido ao conhecimento e dom ínio que detém sobre as ter­
im porta? quando e c o m o jam ais foi p o ssív el a alguém d eix ar d e o ras a serem colonizadas. H á um a troca de favores sem elhante à que
ser, sem o ter sid o ? A caso os índios só p o d em ser adm itidos aos
se verificava entre reis e empreendedores para exploração sobre
direitos que as leis co n ced em aos m ais vassalo s, q u an d o forem o
Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 337

domínios coloniais, tal como aconteceu na exploração das ilhas atlân­ D. João, príncipe regente de Portugal, para “catequização, civili­
ticas e na divisão do Brasil em capitanias hereditárias (Nunes Dias, zação e arranjam ento” dos índios da Capitania de M inas Gerais
1980). Comparando estes procedimentos colonizadores com o que (id, p. 692). Segundo o docum ento, as vantagens para o rei seriam
se passa nas experiências de civilização dos índios brasileiros, há a transform ação de índios tidos com o “selvagens e rudes” em
que observar ganhos políticos beneficiando ambos os lados: os dire­ “cristãos”,’’cidadãos utéis” e “vassalos” que “se acrescentariam ao
tores recebem privilégios de exploração (monopólios), e a Coroa Império” . Para o requerente, o benefício seria receber o monopólio
portuguesa ganha novos vassalos com a pacificação dos índios e a sobre a negociação do tabaco e fumo de toda a Capitania de Minas
sua civilização, adquirida mediante o treinamento para o trabalho Gerais, durante dez anos, além de proteção real, auxílios diversos e
prestado ao colonizador e expressa civil e politicamente na obriga­ em préstimos junto à Real Fazenda. O empreeendimento consistia na
ção de pagar tributos (dízimo) e de prestar lealdade ao rei (como construção de engenhos de farinha, local para fiação, moinhos, ser­
aliados, povoadores, defensores). Intervém nesta comparação a alu­ raria, celeiros, capela, escola, igreja, bem como compra de escravos
são a instituições que são básicas, mas que só podem ser vistas no e de ferram entas de trabalho. Em suma, os empréstimos eram desti­
contexto da constituição cultural e política de Portugal. Não há um a nados à instalação de um a unidade de produção rural organizada a
transposição literal destas instituições portuguesas para o contexto partir de uma base populacional, que incluía os índios e a força de
da administração colonial do Brasil. Há, sim, um a permanente alu­ trabalho integrada pelos escravos negros (id, pp. 692-718). Por aí
são a estas mesmas instituições como referências para o que no Bra­ não há dúvida de que o Diretório relativo ao Pará foi inteiramente
sil se constituiria segundo outros condicionamentos e determinações transplantado para experiências correlatas entre os índios de Minas
históricas e culturais. Parece-nos, contudo, importante reter os sím­ Gerais. H á que questionar inclusive se a carta régia que aboliu o
bolos de lealdade e de compromisso civil presentes no conceito de Diretório no Pará, em 1798, abrangia todo o país. Se a decisão de
“vassalo” e no que por seu intermédio se exprim ia como uma colo­ abolir o Diretório foi m esm o geral, cabería pensar em desconti-
nização conduzida por um Estado monárquico realmente soberano nuidades de uma colônia com dimensões continentais, como tam­
em relação a todos os empreendimentos coloniais, em que pese a bém em tendências autônom as nos processos sociais desencadeados
aparência descentralizadora e feudal de que estes muitas vezes se pelo Diretório em cada situação regional.
revestiam (Faoro, 1958/1976). O texto é de fato um a cópia do Diretório do Pará. Há, porém,
O caso que melhor exemplifica como o Diretório seguia a tradi­ peculiaridades no Diretório de M inas Gerais, as quais são ditadas
ção de carta de orientação para os empreendimentos coloniais vem por condicionamentos e determinações próprias de uma região de
de onde não se esperava encontrar qualquer documento tratando espe­ interesse econômico central para a Coroa portuguesa. Por exemplo:
cificamente de ações civilizadoras sobre os índios: Minas Gerais. foi fundamental, para o deferimento do referido requerimento, que
Em geral, os índios habitantes de regiões de mineração ficam ocul­ este se amparasse na justificativa de estar contribuindo com a Coroa
tos, dada a ausência (certamente deliberada) de notícias onde a admi­ portuguesa para solucionar os problemas de defesa das vias de comu­
nistração colonial não desejava apresença de ordens regulares. Há, nicação e comércio ligando M inas Gerais ao Rio de Janeiro. Sua
entretanto, um documento curioso, intitulado Diretório que se deve proposta era justamente prom over a pacificação dos índios que tran­
observar nas povoações dos índios da Capitania de Minas Gerais, sitavam por estas rotas (id, pp. 686-687).
enquanto Sua Alteza Real não m andar o contrário (1801/1897). Desconheço, além deste deferimento ao projeto, desdobramen­
Este docum ento segue junto a um requerimento feito pelo padre tos seguintes que confirmassem que tais idéias saíram do papel para
Francisco da Silva Campos e tramitou no Conselho Ultramarino em um ensaio sobre a realidade dos índios de Minas Gerais. Tais desdo­
1801, quatro anos depois que o Diretório do Pará havia sido abolido bramentos deveríam ser melhor verificados em pesquisas específicas.
pela Carta R égia de 12 de maio de 1798. O padre pede autorização a Projetos com o o do padre Francisco da Silva Campos, ou, então, o
338 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 339

projeto de João M oura para os índios do M aranhão, elaborado no Ou seja, retom a à mesma legislação que um pouco antes criti­
século XVU (aqui examinado no capítulo 4), foram vistos, no correr cara, sugerindo modificações. O documento finaliza com um a espé­
da presente pesquisa, com o exemplos conceitualmente próximos ao cie de autorização dos índios e também um a solicitação destes no
Diretório. sentido de que Domingos Alves Branco M uniz Barreto fosse o esco­
Outro requerimento de mesm a natureza permite-nos observar lhido para conduzir o plano de civilização entregue juntamente com
como foi a experiência do Diretório para os índios da Bahia. Intitula- dito requerimento.
se Plano sobre a civilização dos índios do Brasil e principalmente Este papel registra um momento histórico de peculiar im portân­
para a Capitania da Bahia (13 de outubro de 1788). cia. Um documento em que os índios nom eiam como seu procurador
É um longo texto que discorre sobre a história geral das experiên­ aquele mesmo que entrega o requerimento contendo as solicitações.
cias colonizadoras e civilizadoras no Brasil, a fim de com elas justi­ E estas solicitações, especificamente referentes aos índios, são cita­
ficar as solicitações contidas no requerim ento a ele anexado. As pre­ das ao final do documento, a saber: que a rainha mandasse elevar à
tensões do citado requerimento não são menores que as verificadas
condição de vila todas as aldeias que se encontravam sob a jurisdi­
no documento de Minas Gerais, posto que tam bém contempla o pro­
ção e o domínio temporal dos missionários; que fossem “repartidas
blema da civilização dos índios existentes na Bahia. Seu autor, um
as terras místicas” (adjacentes) às vilas e aldeias, sendo preferidos
capitão de infantaria do regimento de “Estrem ôz” , chamado Domin­
os índios, como “primários e naturais senhores” das mesmas; que
gos Alves Branco M oniz Barreto, apresenta um requerimento em
fossem dadas ferramentas para o trabalho durante os dois prim eiros
nome dos índios domesticados da Capitania da Bahia. O documento
anos e ficasse concedido o perdão real (isenção dos tributos) das
é simples e, ao mesmo tempo, amplo como proposta de utilização
dívidas, a fim de que pudessem sair da “indigência e pobreza” em
dos edifícios e da experiência m issionária já absorvida pelos mes­
que viviam. Assina o documento o próprio Domingos A. B. M.
mos índios a que se refere o requerimento. Solicita, por exemplo, a
Barreto.
nomeação régia de m issionário para continuação do trabalho de
É inegável a necessidade de uma pesquisa para verificar as con­
catequese, pede auxílio para edificar e reformar templos existentes
dições em que foi elaborado esse requerimento, bem assim a consciên­
nas aldeias e sugere a nomeação de um diretor e de um procurador-
cia e a participação dos índios na decisão de prepará-lo conforme os
geral, assim como a abolição da sexta parte paga pelos índios ao
termos aqui analisados. Questões difíceis de serem respondidas, ten­
primeiro. O requerimento referia-se tanto aos índios e às missões
do-se apenas em mãos o requerimento.
quanto a questões como o aproveitamento do colégio dos jesuítas e
Entretanto, os desenhos de aldeias e vilas habitadas por índios
a nomeação de professores destinados ao sem inário. É m esm o
na Capitania da Bahia perm item algumas suposições. O interessante
ambivalente, quando se considera ter sido escrito por um proponente
a civilizar índios que ao mesmo tempo afirma estar escrevendo em é que as legendas destes desenhos informam a procedência dos da­
nome deles. Entretanto, apesar de sugerir a abolição da sexta parte dos como sendo do capitão de infantaria Dom ingos Alvares Branco
paga ao diretor pelos índios, ao final retom a à questão, para solicitar M oniz Barreto. A data, porém, é um poüco posterior ao requerim en­
to: 1794. Em bora tais desenhos tenham sido produzidos posterior­
uns módicos direitos sobre suas lavouras e manufaturas pagas m ente, as legendas e “observações” escritas no verso provam que
na mesma espécie e não a dinheiro, p ara su sten tação do m esm o seu autor conheceu bem os índios de que trata o documento, quando
sem inário ou dar. o u tra p ro v id ên c ia q u e fo r serv id a na fo rm a do em visita a suas aldeias e vilas (v. as figuras 26 e 27).
diretório dado p ara o s índios d o G rão -P ará e M aran h ão [1788/ P or estes dados, conhecem-se as principais atividades econôm i­
1856, p. 97). cas. As plantações mais referidas são a m andioca, o algodão e o
arroz. Há tam bém referências a atividades de extração de m adeira,
340 Rita Hc*°'sa de Almeida O Diretório dos índios 341

fabricação de canoas, cordoaria, tecelagem , olaria, serraria, abertura letras indicadas na legenda representam estradas que levam a outras
de estradas e criação de gado, e de outros animais de m enor porte, povoações e feiras de gado. N a época, tais estradas eram os primei­
como ovelhas. Não há fome e m iséria nas aldeias visitadas, como ros caminhos que se abriam às comunicações e ao comércio com
também não há um a única situação de índios em relação ao trabalho, outras localidades; hoje (se esse traçado ainda permanece) são mas
pois tanto são observados os hábeis, peritos e conhecedores das ati­ que cortam a grande praça (fig. 27).
vidades que exercem, como também os que não trabalham, os dados O requerim ento e estes desenhos encontravam-se em arquivos
à embriaguez, os que desertam e são de volta recolhidos. As observa­ distintos. Aqui se complementam para nos darem uma idéia dos meios
ções e os desenhos são com o um instantâneo de cada lugar que Do­ empregados à época no preenchimento das funções, antes exercidas
mingos Barreto visitou e têm o mesmo efeito das páginas de diários pelos jesuítas. M aterial que oferece a rara oportunidade de verificar
em que cronistas viajantes deixavam registradas as impressões. e comprovar a continuidade de procedimentos que aparentemente se
Pelas atividades nessas aldeias, infere-se que a cultura da civili­ contradiziam.
zação ocidental se misturou aos conhecimentos e habilidades indí­ Os desenhos das aldeias da Bahia recordam as plantas proje­
genas. Exemplo positivo constitui a referência do autor aos índios tadas para os índios da Capitania de Goiás. Embora sem o rigor e a
de Santarém, quando observou que eram precisão do risco do arquiteto (tal como as aldeias goianas), o molde
das vilas e aldeias baianas é o mesmo, revelando-se predominante
robustos para o trabalho do campo, insignes conhecedores de como o traçado seguido pela maioria das cidades brasileiras nasci­
madeira de construção, peritos trabalhadores dos reais cortes e das no período colonial, ou seja: um recorte retangular onde estão
abridores de novas estradas para condução dos paus a borda de ordenados os edifícios básicos da administração pública e da prática
água. religiosa.
Desenhos de aldeias missionárias trazem sempre este riscado.
Outra referência mostrando esse entrelaçamento de conheci­ M esmo aquelas que figuram diminutas como pontos geográficos em
mentos e técnicas vem das índias da aldeia de São Fidélis (fíg. 26). plantas maiores que focalizam o Brasil ou dada capitania. Nestes
Estas índias faziam “panos de algodão” chamados “tipóias” que, casos, as missões e aldeias indígenas estão representadas por malocas
sustentados por cordas, constituíam as “camas ordinárias” (redes) em form a de cone, dispostas de maneira a formar um retângulo com
de uso geral dos índios da Capitania da Bahia. um cruzeiro ou um pelourinho no centro (fig. 28).
Os desenhos destas aldeias não variam muito. Observemos, por Pequenos retângulos ou quadrados formando um tabuleiro —
exemplo, a aldeia de São Fidélis (fig. 26). Duas mas paralelas, com este é o princípio de toda cidade planificada. Na Amazônia, o exem­
um a igreja no centro. É curiosa esta representação espacial, pois na plo é Vila Nova de Mazagão, criada para acolher colonos vindos,
legenda indica-se o inverso, isto é, a perm anência de traços culturais com seus escravos, da praça de mesmo nome situada no continente
indígenas na disposição das habitações “em círculo” e no costume africano (desenhos 29 e 30). Comparando uma e outra planta, não se
de viver m uitas famílias em uma só casa sem paredes internas sepa­ constata somente um mesmo nome para as duas experiências de con­
rando-as. quista. Noções de cidade e civilização estão impressas, no que a
O outro desenho (27) é da Vila de Abrantes. Está melhor deline­ olho nu constitui um mesmo molde, um mesmo padrão de habitação
ado. Tem um centro já fechado, cham ado “grande praça” (G), onde e de convívio urbano.
estão localizadas a igreja matriz (A), a habitação do vigário (B), a A planta da Vila de Serpa (fig. 31), criada por Felipe Strum ao
casa de câm ara (C), a casa de olaria (D), o cartório, onde reside o tempo do governo de Joaquim de Mello e Póvoas, também confirma
escrivão-diretor (E), e a casa do capitão-m or índio (F). As demais um princípio geométrico ditado pelo molde que tem um centro de
onde se irradia o crescimento urbano. Na observação desta praça
342 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 343

pública, convém saber se sua form a hexagonal é um m odelo animada por distintas configurações, não teríamos simplesmente uma
construído sobre um terreno vazio ou foi uma solução que se subme­ transição, mas um a sobreposição de experiências em que, de formas
teu às estruturas preexistentes, isto é, habitações indígenas dispos­ arredondadas a expressões mais retilmeas do espaço, se manteve o
tas em forma circular. É o que nos sugere este plano de Serpa — riscado em tom o da idéia de um centro. No caso, um modo de habi­
praça de concepção originalm ente circular delineada com traços tação indígena preexistente manteve-se subjacente às modificações
retilíneos. Esta mesma questão se aplica à aldeia de Sãõ Fidélis (ftg. e aos crescimentos.
26). O que nos leva a perguntar se já não estaria nesta concepção a Esta questão se apresenta, ao se verificar que as aldeias e vilas
manutenção da referência espacial indígena determ inando todas as de origem indígena na Amazônia têm o m olde diferente. Nelas desa­
demais experiências seguintes de organização do espaço social. parece o centro, ou toma-se este longitudinal em relação ao rio que
O desenho da aldeia dos índios “Barbados” sugere a mesma passa adiante, estabelecendo as comunicações e sugerindo ativida­
questão, vista de outra perspectiva (ou melhor, de dentro) (fig. 32). des produtivas associadas à vida fluvial. Ou seja, o rio é o único
Trata-se de um desenho do século XVII, o qual registra a transfor­ ponto realmente central para os moradores dessas aldeias e missões
mação de seu espaço social. Sua localização no M aranhão, entre os ribeirinhas que foram erigidas vilas no tem po de Pombal. Os dese­
rios Itapicuru e M earim, perm ite identificar estes índios “Barbados” nhos 34 e 35 registram duas soluções de ocupação. O de n° 34 indica
com os de nossa atualidade, especialmente com os que têm o hábito o tempo em que a cidade de Airão foi Aldeia de Jaú, missão carmelita
de construir aldeias circulares nas quais o espaço interno é destina­ onde viviam os índios “Aroaqui”. O desenho 35 flagrou duas formas
do às atividades públicas, sendo também o local onde se encontram de ocupação ocorrendo simultaneamente: a aldeia de Pauxis, admi­
as casas dos rapazes solteiros (a propósito, um artigo de Julio Melatti, nistrada pelos capuchos de São Boaventura, talvez tenha atraído e
intitulado “Por que a Aldeia Krahó é redonda?” , de 1974, traz su­ assegurado a construção de um forte em terreno contíguo. As duas
gestões de pesquisa a partir desta questão). experiências somaram-se, tomando-se a Vila de Óbidos — nome
Neste desenho da aldeia dos índios “Barbados” há um número que hom enageia a cidade portuguesa que cresceu dentro dos muros
exagerado de casas, completamente irreal, se levarm os em conta os de um castelo medieval.
Passando os olhos ao longo dos principais cursos da Am azônia
modos de habitação dos índios de hoje. Talvez este exagero possa
(figuras 36 e 37), visualizamos claramente a adoção de um a form a
ter explicação, se pensarmos que essas casas constituem a represen­
de ocupação que se amoldou ao ambiente, combinando povoações
tação gráfica de “fogos”, denominação predom inante nos séculos
ribeirinhas com populações que já viviam da pesca e da extração de
XVU e XVIII para casais ou famílias.
espécies nativas. Tendo em vista estes mapas panorâmicos dos prin­
O desenho da aldeia do M aranhão (fig.32) narra uma incursão
cipais rios, fica mais fácil entender que os prim eiros colonizadores
em que os donos do lugar estão sendo obrigados a ceder. Esta mes­
d a Am azônia adotaram o comércio fluvial, daí fundando povoações
ma questão é detectada no exame da aldeia do “principal Majuri”
nos barrancos dos principais rios, já que estas funcionavam com o
(fig. 33), também registro visual de um evento bélico que realmente
p o n to s de suprim ento das em b arcaçõ es e, ao m esm o tem po,
aconteceu. Observando esses dois últimos desenhos que registram o
entrepostos com erciais (empórios). A experiência recorda a dos
momento da transformação do espaço, fica a vontade de saber até navegantes portugueses do séculos XV e X V I, em suas viagens de
que ponto representam o que deveríam ser as habitações construídas reconhecim ento pela costa africana à procura do caminho para as
pelos índios antes da colonização. O que é genuinam ente indígena e índias. Os prim eiros estabelecimentos nessa rota foram, em princí­
o que foi transplantado e absorvido. pio, pontos de “aguada e refresco” dos navios.
Em todos os casos até aqui vistos, o centro tem o significado de Este é um bom motivo para supor que os prim eiros colonizado­
começo de tudo. Se fôssemos dispor estes desenhos em uma série res assim o fizeram, adotando esta form a de penetração e ocupação
344 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 345

da Amazônia, por também concordarem com as sugestões e solu­ M encionam-se, inclusive, instruções aos diretores para que estives­
ções oferecidas por seus primeiros habitantes para os problemas de sem sempre preparados a transmitir, com brevidade, avisos a povoa­
adaptação àquele ambiente sui generis. ções superiores e inferiores do rio Negro e do rio Solimões, por meio
Estudos de Anna Roosevelt (1992) revelam que na pré-história das referidas “canoinhas”.
recente da Amazônia existiam povoações populosas e contínuas, ao O mesmo é estabelecido para a defesa da “Fronteira do Rio Bran­
longo dos principais rios. Como mencionamos antes, suas populações co” . Ali, os condutores de notícias, instruídos pelo comandante da
já detinham conhecimentos complexos que permitiram a estruturação fortaleza de São Joaquim, deveríam, no seu trajeto usual, transmitir
de organizações sociopolíticas centralizadas e estratificadas em hie­ notícias aos diretores das povoações de Senhora do Carmo, Carvo-
rarquias (1992, p. 27). O que parece confirm ar que a forma de eiro e Poyares, como também ao administrador do Pesqueiro Real.
interação do homem no meio amazônico tem sido repassada, mais Por sua vez, o diretor de Carvoeiro deveria retransmitir tais avisos
do que imposta, em experiências sucessivas, em que vencedores as­ aos diretores das povoações de M oura e Airão e também ao coman­
seguram seus movimentos de conquista territorial tomando de em­ dante da fortaleza da Barra do Rio Negro. Quanto à “Fronteira do
préstimo conhecimentos e práticas adaptativas das populações nati­ Javari” , o comandante do Posto de Tabatinga deveria ordenar que
vas vencidas. “as canoinhas de aviso tomem todos os postos e todos os portos das
povoações que na passagem lhes ficassem à mão”. Há também uma
M apas panorâmicos como o elaborado por d ’Anville, em 1748
recom endação especial ao diretor de Vila de Ega, para que repassas­
(fig. 36), e o de Seraphim José Lopes, em 1813 (fig. 37), exprimem
se os avisos por ele recebidos aos lugares de Nogueira, “Alvellos” e
dois m omentos da colonização na Amazônia. O prim eiro foi predo-
de Santo Antônio do M aripi, no rio Japurá. Os condutores deveríam
minantemente missionário, enquanto o segundo começou por propi­
continuar este mesmo trabalho (refere-se, agora, aos “portadores de
ciar a form a atual do território brasileiro, fixando, mediante a secu-
cim a”) até chegar à fortaleza da Barra do Rio Negro, para daí se
larização das missões, uma configuração urbana e municipal até hoje
com unicarem com os pesqueiros reais e as vilas de Silvis, Serpa e
existente (Dias, 1983, p. 365).
Borba. O prescrito para o comandante do “Posto e da Fronteira de
Um último documento que vale a pena referir neste texto, para Tabatinga” deveria ser também observado pelo comandante do “Posto
finalizar nossos estudos sobre o Diretório, é o conjunto de instru­ da Boca do Rio Içá”, sendo que este, em caso de “maior novidade”,
ções dirigidas a governadores interinos da Capitania do Rio Negro deveria expedir outro aviso para o mesmo comandante de Tabatinga.
pelo governador João Pereira Caldas, em setembro de 1783 (AHU, Estes esquemas foram criados pelos portugueses para agilizar
Rio N egro, caixa 7, doc.12). Interessou-nos especialmente este do­ as comunicações, em casos de urgência e de necessidade de os avi­
cum ento p o r descrever o sistem a de com unicação m antido por sos chegarem simultaneamente às três fronteiras então defendidas
“canoinhas” . Assim, as instruções rezam que os comandantes fizes­ contra índios hostis, franceses, ingleses, holandeses e espanhóis. Estes
sem “noticiar novidades” com relativa segurança e agilidade me­ esquem as de comunicação mostram que as aldeias e missões erigidas
diante o esquem a que passamos a descrever (para m elhor visua­ em vilas no tempo de Pombal não eram propriamente povoações e,
lização, fíg. 37). sim, começos de colonização, pontos de parada necessários ao rea­
No caso da “Fronteira do Rio N egro”, o com andante da for­ bastecim ento das embarcações, numa época em que as solicitações
taleza de São José de M arabitenas deveria comunicar-se com o co­ prim eiras ainda eram de caráter exploratório e defensivo. Neste sen­
mandante da fortaleza de São Gabriel por meio desses “condutores tido houve uma apropriação de estratégias nativas de ocupação da
de canoinhas” , os quais, por sua vez, estariam instruídos a repassar Am azônia. As mudanças dos topônimos, tal como mostram as figu­
notícias aos diretores de Santa Isabel, Lam alonga, Tomar e Moreira. ras 36 e 37, assinalam mudanças nos rearranjos de poder, que nada
m ais representam senão experiências cumulativas.
346 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 347

movendo mudanças. Acresce salientar a situação política favorável,


O estudo do D iretório dos índios abriu um leque de possi­ bem assim a especial circunstância de a sociedade ou os segmentos
bilidades para realização de pesquisas breves e localizadas sobre dela representativos terem-no materializado. Ao longo 3a pesquisa,
temas variados e inter-relacionados. Cada capítulo segue um desen­ a identificação de aspectos que formam a base conceituai do Diretório
volvimento próprio e goza de indepedência em relação ao conjunto. permite inferir a antiguidade de propósitos que ele supunha, muito
Não obstante, cada capítulo constitui-se, também, em um posto de embora, paradoxalmente, estivesse representando a novidade de es­
observação, do qual se pode refletir sobre a experiência do Diretório tar regulamentando a situação civil de liberdade dada aos índios a
a partir de múltiplos enfoques. O fio condutor parece ser o delinea- partir de então.
mento da experiência com o um todo. A prim eira parte do presente trabalho (As Idéias) identifica
Esse modo de expor os resultados coincide com a form a pela raízes, reconstitui tradições, situando o D iretório neste contexto.
qual se direcionou a própria pesquisa: desde o início, considerou-se O gesto cultural de implantar ou dar continuidade a hábitos e cren­
a totalidade de aspectos do D iretório, fossem estes extrem os e ças de indivíduos que deixam a terra, adotando outra com o sendo
conflitantes. Na verdade, os principais pontos de abordagem foram sua, foi neste momento exaustivamente explorado m ediante a metá­
identificados justam ente onde a conceituação comportava significa­ fora da constituição da bagagem que leva o viajante. Isto permitiu
dos múltiplos, como é a circunstância de o Diretório proceder de relacionar experiências remotas, como são os forais e o sistema de
experiências colonizadoras milenares e, ao mesmo tempo, consti­ lealdade entre rei e vassalos, com o que propunha estabelecer o
tuir-se em instrumento de implantação de mudanças que sinálizam, Diretório com o regimento que instruía os colonizadores sobre o modo
inclusive, a preparação para o- encerramento dos vínculos coloniais. de governar os índios em povoações que reproduziam aldeias e vilas
Tal delineamento estim ulava a postura de considerar cada documen­ européias.
to identificado um a peça pertinente da composição final. Parece fundamental reter não tanto a ocorrência de transplantes
O momento do inventario e o que se destina a apresentar os literais de instituições, hábitos, crenças e sim a internalização de
resultados da pesquisa são vivenciados com níveis distintos de per­ seus significados, pois esses formam a base de sentimentos de iden­
cepção do objeto de estudo. No inventário, a própria atitude de bus­ tidade e nacionalidade, constituindo a força m otriz de grandes esfor­
ca e exercício de problem atização são suficientes para o pesquisa­ ços de construção de novos mundos, que são os movimentos migra­
dor deixar em aberto o campo de investigação. N a sistematização, o tórios e as políticas de redistribuição territorial de populações étnica
recorte é imperativo. Há pontos comuns, entretanto: nos dois mo­ e culturam ente distintas.
mentos foi adotado um mesmo procedimento de dialogar com as E studar o Diretório permitiu visualizar a situação em que a fron­
fontes segundo as questões colocadas, desde o prim eiro capítulo, teira setentrional brasileira estava sendo definida por negociações
quanto a estimar qual a natureza e a direção que tomam os processos políticas (é certo), mas, também, por um povoamento em que con­
sociais. As perguntas que daí emergiram tiveram por objeto verifi­ correram índios, africanos e europeus, principalm ente portugueses.
car o peso das ações conscientes tomadas por indivíduos e grupos no Desse m odo, o que visualizamos são processos espontâneos ocor­
sentido de modificar ou influir sobre os processos. A intenção era rendo condicionados ou independente e paralelamente às delibera­
avaliar em que medida essas ações intervinham sobre o curso natu­ ções políticas.
ral dos acontecimentos, condicionando-os a adotar a direção e senti­ Estas questões foram discutidas principalm ente nos três prim ei­
do desejados. ros capítulos, mas foi no espaço do quarto capítulo que se abordou a
Acredito que o Diretório é exemplificativo da ação de indiví­ intervenção consciente de indivíduos e grupos sociais sobre a dire­
duos e grupos sociais que agem com a consciência de estarem pro- ção dos processos sociais em que se acham envolvidos. A form a­
348 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 349

ção da opinião, a convicção de que os projetos podem viabilizar a nidade que encerra esta pesquisa, ao ter reexaminado uma lei que
implantação de utopias sociais, a separação dos poderes do Estado e propunha uma transformação social de cunho libertário, hoje passí­
da Igreja formam o ambiente conceituai de reformas políticas de vel de ser conceitualizada exatamente como seu inverso: a escra­
que o Diretório faz parte. vidão.
Estas mesmas linhas dé trabalho são seguidas na segunda parte Pergunto, finalmente, se a posição relacionai e processual de
(As Transposições), que abrange os capítulos 5 e 6. D aí em diante, o quem analisa a história não constitui uma limitação ao seu entendi­
trabalho orienta-se para o estudo do Diretório por ele mesmo, em m ento objetivo como conjunto de conhecimentos. A questão tem em
termos de suas normas explícitas e de sua aplicabilidade. A expecta­ vista a experiência de quem manuseia um caleidoscópio e vivência a
tiva foi a de lançar a diversidade dos dados levantados na pesquisa sensação de estar continuamente formando diferentes composições
para o entendimento do Diretório, segundo seus princípios e à luz a partir das mesmas peças. A maneira como enfrentei os dilemas
das circunstâncias históricas que o cercam. desta questão foi trazer as falas do tempo ao texto analítico. É evi­
O início da terceira parte (As Traduções) retransm ite as impres­ dente que tal cautela metodológica não responde às muitas dificul­
sões re g is tra d a s p elo s v iaja n te s, e stu d io so s, re lig io so s que dades que suscita a questão anteriormente colocada, todavia garante
vivenciaram experiências com os índios ao longo do período colo­ que não haja monólogos pela ausência de referências a se buscar e
nial. Esse inventário permitiu apreciar a riqueza de detalhes sobre a ouvir.
pessoa do índio, seus sentimentos e valores — observações’essas
comumente inexistentes nos papéis administrativos e oficiais. A essa
altura, a necessidade da fala do índio transmitindo suas percepções,
tal qual fizeram os brancos, atinge expressão máxima. Foi neste
contexto que julguei oportuno introduzir o material da Inquisição.
A princípio, este material parecia um tanto desarticulado e mesmo
destoante com o tipo de documentação até então aqui apresentada.
Entretanto, foi a leitura dos depoim entos tomados pela Inquisição
que permitiría visualizar como as idéias contidas nos planos, proje­
tos e programas foram internalizadas pelos índios.
Afinal, o que dizer de todo este material levantado a partir de
indagações colocadas ao D iretóriol O melhor saldo foi verificar a
amplitude e justeza do conceito de “processo” desenvolvido por
Norbert Elias. O estudo do Diretório dos índios foi a passagem en­
contrada para refletir sobre a constituição cultural dos processos
sociais. A percepção de um encadeam ento processual é quase
vivenciada pelo pesquisador, na m edida em que o conceito de Elias
sugere com o procedimento metodológico o estudo de um a dada ins­
tituição acompanhando o curso de sua formação. Tal perspectiva
não conduz a um termo final e conclusivo, mas a possibilidade de se
conseguir esclarecer aspectos que só podem ser claram ente com­
preendidos no curso de sua existência social. Penso aqui na oportu­
Lista de ilustrações

1. Malaca
2. Rotas marítimas dos portugueses
3. Tzaffin
4. Mascate
5. Rio de Janeiro
6. Madã
7. Damão
8. Chaul 4
9. Negatapatam
10. São Tomé
11. Manora
12. Theodore de Bry Americae Tertia Pars Francofort
13. Kleedinghe van M aragnan
14. Asserim
15. Goa
16. Salvador
17. Cochim
18. Apontamentos de estratégia militar
19. Elevação das casas e alçadas [...] para os moradores
soldados casados nesta vila de Barcelos
20. Vila de Barcelos antiga aldeia de M ariuá
21. Planta da vila de Silvis
22. Planta da aldeia de S. José de Moçâmedes
352 R ita H elo ísa d e A lm e id a

23. Plano projetivo de um novo estabelecimento


de índios da nação Caiapó
24. Ancient mission o f exaltacion (Mamoré)
25. M apa estatístico
26. Aldeia de São Fidélis
27. Vila Abrantes da Comarca do Norte
Fontes e bibliografias
28. Caert Van Spiritu Santo
29. Planta da Vila Nova de Mazagão
30. Praça de M azagão. Século XVIII
I. FONTES
31. Planta de Vila de Serpa
32. Aldeia indígena dos fin s do século XVII. Maranhão A. Fontes manuscritas
33. M apa da aldeia do principal M ajury
1. In stitu to H istórico e G eográfico B rasileiro — IHGB
34. Prospecto da aldeia chamada Jau,
administrada pelos religiosos carmelitas Arq. 1.1.3 — Oficio de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, dc 14 de fevereiro de 1754
e documento anexo 12 de fevereiro de 1754 a respeito dc índ io s alforriados que
35. Prospecto do fo rte e da aldeia de Pauxis
vagueiam p e lo s po v o a d o s , fls. 87-89.
36. M apa da região amazônica, por d ’Anville, 1748 Arq. 1.1.3 — Ofício de F.X. de Mendonça Furtado para Thomé Joaquim da Costa Real, de
19 de fevereiro de 1759, a respeito de casamentos entre índias e brancos, fls. 161-
37. M apa da região amazônica, por Seraphim José Lopes, 1813 162.
38. M apa das canoas [...] Dom Francisco Requena Arq. 1.1.3 — Ofício de 12 de fevereiro de 1759 de F.X.M. Furtado. Trata da divulgação do
Diretório dos índios, fls. 168.
Arq. 1.1.3 — Ofício de João Pereira Caldas para Martinho de Melo e Castro, d e '7 de abril
de 1773. Trata da deserção de índios e importação de escravos negros, fls. 316-318.
Arq. 1.1.3 — Ofício de 29 dejulho.de 1773, de J.P. Caldas paraM . Meio e Castro a respeito
dos salários pagos aos índios, fls. 320-322.
Arq. 1.1.3 — Offcio de 6 novembro de 1775 de J.P. Caldas para Martinho de Melo e Castro
a respeito de turnos de trabalho, fl. 357.
Arq. 1.1.3 — Ofício de J.P.Caldas para M. de M. e Castro, de 12 de junho dc 1777, relativo
aos descimentos, fl. 371.
Arq. 1.1.3 — Ofício de 30 de julho de 1764; Ofício de 5 de novembro de 1760, fls. 232-
233; Oficio de 30 de julho de 1764, fls. 293-294. Comunicações de descimentos.
Arq. 1.1.4 — In form ação sobre a civilização d o s índios do Pará, de D. Francisco de Sousa
Coutinho, de 2 de agosto de 1797, 55 parágrafos, fls. 224-255.
Arq. 1.1.4 — Carta do Conde dos Arcos ao Visconde de Anadia, de 27 de outubro de 1803.
Discorre sobre a utilidade futura dos índios, fls. 307-308.
Arq. 1.1.9 — Projeto p o rq u e se apontam m eio s proporcionados porque se po d erá reduzir
a f é o inu m erá vel g en tio dos sertõ es d o grande estado do M aranhão p o vo a r aquele
grande estado, que Jo ã o de M oura p õ e o s reais p é s de S.M. que D eu s guarde, [sécu­
lo XVII] (ou Lata 45, pasta 12).
Arq. 1.1.19-— Conde D. Marcos de Noronha encaminha a o ie i pedido de permanência de
padres idosos que estavam sujeitos a pena de expulsão pela carta de 19 de maio de
1759, fls. 99-101.

. .V . '

■pplí.
354 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 355

Arq. 1.2.4 — Carta de Luís Pinto Sousa em que comunica acatamento da ordetn de estabe­ 2. Biblioteca N acional do R io de Ja n e iro — BNRJ
lecer domínio das terras deste continente com apelidos das cidades, vilas e lugares de
Portugal, de 15 de junho de 1769, fls. 244-255.
21.1.1., n“ 10 — Memória sobre as causas da diminuição dos índios no Estado do Pará.
Arq. 1.2.10 — Cartas relativas à elevação de aldeias em vilas, fls. 143-144.
21.1.1.14 — Observações sobre os índios escritas por Alexandre Rodrigues Ferreira em 28
Arq. 1.2.10 — Carta de Diogo de Mendonça Corte Real a F.X. Mendonça Furtado. Documen­
de agosto de 1787.
to que assinala a transição entre os dois modelos de administração de índios.
21.1.1, n“ 24 — Informação de Antônio José da Silva a respeito do emprego de índios na
Arq. 1.2.10 — Carta de Mendonça Furtado em que trata da preparação de mantimentos
para as pessoas ocupadas em trabalhos de demarcação, fls. 218 defesa militar das vilas.
21.1.1, n= 11 — D etalhe do s serviço s em que atualm ente existem em pregados o s índios da
Arq. 1.1.3 — Ofício de F.X. Mendonça Furtado, de 4 de junho de 1758. Trata da sublevação
Vila de B arcelos , 30 de outubro 1786.
dos índios do Rio Negro, fls. 144-147:
21.2.10, n“ 1 — Relação de índios empregados no Serviço Real
Arq. 1.3.8 — Carta dirigida ao governador da Capitania do Rio de Janeiro e Minas Gerais
estendendo a lei de liberdade aos índios do Brasil, de 8 de maio de 1758, fls 184- I. 31.24.26 — Ofício do diretor-geral dos índios da Província do Ceará, Joaquim José Bar­
185. bosa, ao ministro e secretário de Estado dos Negócios do Império, M arcelino de Brito
Arq. 1.3.8 — Carta dirigida ao Revdo. Bispo do Rio de Janeiro a respeito da nomeação de [1846],
sacerdotes seculares para vigararias nas novas vilas, de 8 de maio de 1758, fls. 186 e II. 32.17.1 — Carta Régia ao governador da Capitania do Maranhão de 19 de junho de
segs. 1760, referente aos índios Timbira
Lata 58, pasta 13 — Instruções qu e deve seguir o capitão d e dra g õ es Antônio P into C ar­ 11.33.29, n“ 44 — Ofício dé Thomé Joaquim da Costa Corte Real ao Conde dos Arcos
neiro nos ajustes dos ín d io s que se alugarem a o s m oradores deste continente e na instruindo a respeito da substituição dos jesuítas pelos clérigos seculares nas aldeias
fo rm a lidade das suas lavouras, p o r Jo sé C ustódio d e S á e Faria. de índios e recomendando que seja prestado todo auxílio ao arcebispo da Bahia como
Lata 278, livro 3 — M em ória d o M aranhão e Pará. reformador da ordem dos jesuítas, 19 de maio de 1757
Lata 278, livro 1 — Carta Régia de 12 de maio de 1798, em que fica extinto do Diretório
dos índios. Há duas outras cartas régias que tratam da liberação da navegação do rio
Tocantins e da criação da capitania de São José do Rio Negro. 3. A rquivo H istórico de G oiás — AH G
Lata 283, pasta 1 — Ofício de F.X. de Mendonça Furtado. Trata do levante ocorrido em
Tomar, de 4 de julho de 1758. Prateleira 38, sala 5 — Carta do capitão de dragões José Pinto da Fonseca ao limo. e Exmo.
Lata 283, pasta 5 — Carta circular do governador e capitão do Pará José de Nápole Telo de Sr. Tristão da Cunha Menezes de 13 de janeiro de 1788.
Meneses aos diretores das aldeias dos índios, de 4 de junho de 1780.
Lata 283, pasta 10 — Ofício de Fernando da Costa de Ataíde Teive a Pedro Maciel Parente,
diretor da vila de Santarém, com instruções sobre com o estabelecer comércio com
4. B iblioteca N acional de L isboa — BNL
índios e fazer os pagamentos, de 3 de outubro de 1769.
Lata 284, livro 2 — Ofício de Martinho de Sousa e Alburquerque a D. Martinho de Melo e
Estampa 1, mss. 33, n“ 40 — A p o ntam entos de estra tég ia m ilita r [século XVIII].
Castro. Sobre as comunicações entre as capitanias do Grão-Pará e Rio Negro, 16 de
agosto de 1788. Cod. 51 — M áxim as sobre a reform a da agricultura, com ércio, milícia, m arinha, tribunais
Lata 284, livro 2 — Carta do governador do Rio Negro para o tenente comandante do e fá b ric a s de P ortugal representadas e dirigidas a o sereníssim o Sr. D. José, P rín ci­
destacamento que o mesmo governador mandou postar na feitoria que os espanhóis p e d a B eira p o r D. L u ís d a Cunha, em baixador d e P o rtu g a l em F rança.
tem em Cupacá. Barcelos, 21 de maio de 1791. PBA-626 — Instruções a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 30 de maio de 1751.
Lata 284, livro 2 — Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a D. Martinho de Melo e Cod. 33 e 34 (microfilme: F78.782) — N otícias do R ein o de M a la b a r e b reve relação da
Castro, de 23 de setembro de 1790. cristandade S .T om é apóstolo em M alabar. Cópia do século XVIII.
Lata 284, livro 2, doc. 29 — Sobre o desamparo das povoações dos índios do Pará, 23 de Cod. 6321 — Diário das visitas pastorais do Exmo. e Revmo. Senhor D. Fr. Caetano Brandão.
setembro de 1790. Pb A. 51 — M o n ita Secreta. Instru çõ es secretas que d evem g u a rd a r todos o s relig io so s da
Lata 285, livro 1 — Documentos sobre a Capitania do Pará copiados do códice 39-36 Or­ C om panhia d e Jesus.
dens e Correspondência d e 1751-1807 da seção de manuscritos da Biblioteca Naci­ Cod. 475 — G eog ra fia histó rica do Brasil, África, Á s ia e P o rtu g a l [século XVIII].
onal do Rio de Janeiro. Cod. 788 — N o tícia s d a s cid a d e s e v ila s de E sp a n h a e de P ortu g a l tira d a s d e vá rio s
Lata 343, doc. 29 — P lano p a ra civilização d o s índios na C apitania do Pará. autores e expostas com a m a io r brevidade que se p o d e reza r ju n ta m en te co m o m apa
Lata 358, doc. 25 — Ofício de F.X. de Mendonça Furtado de 19 de junho de 1761. Trata das g e ra l d eles recopilado p o r um curioso.
providências relativas aos índios Timbira. Cod. 11202 — E m que se d á n o tícia d a cidade de L isb o a D ’E l R ei D om A fo n so H enriques
prim eiro que restaurou este reino de P ortu g a l d o p o d e r d o s m ouros. E scrito p o r
F ranc isca Teodora do P atrocínio em 1785.
356 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 357

Cod. 770 F.3770 — D escrip tio n de la ciu d a d de U m a d el reino d e l P eru. Cx. 4, doc. 1 — R elação de todas a s p e sso a s empregadas na R eal Demarcação da parte do
norte, n a A m érica M erid io n a l p o r p a rte de su a M ajestade católica, declarando
Cod. 11158 — M aravilhas e antigiiidades da cidade de R om a em que se trata da s igrejas,
graduações, soldados, e gratificações, núm ero d e criados, pagos pela Real Fazenda
estações e relíquias do s santos que nela h á com a guia para o s estrangeiros, nom es
na razã o de d e z pares cada um. n a fo r m a que partiram de Cadiz em 13 de ja n eiro de
d o s papas, im peradores e outros prín cip es cristãos e m uitas coisas m ais dignas de
1754. D ada p o r Apolinário D ia s d a Fonte, que na m esm a expedição veio emprega­
se saberem , expostas em português p o r P .F D .O .L , Fronteira, 1789.
do em g eó g ra fo e guarda-instrum entos de sua partida. Tabatinga, 4 de agosto de
1781.
5. A rquivo H istórico U ltram arino, Lisboa — AHU Cx. 5, doc. 7 — M a p a s das canoas e de todas as pessoas nelas embarcadas de que se
(docum entos relativos ao Rio Negro) com põe a expedição da A ugustíssim a R ainha Fidelíssim a que destinada à dem arca­
ção de se u s R ea is dom ínios n a fro n te ira d o Rio N egro se dirigiu a o reconhecimento
Caixa 1, documento 8 — Informações sobre os rios Negro, Branco e Japurá e seus habitan­ do rio A p a p o ris com andadas p e lo Tenente Coronel e Primeiro Comissário da D ivi­
tes indígenas, março de 1755. são, Teodósio Constantino de C h erm o n t e da f o z do dito R io Apaporis partiu em 22
Caixa 1, doe. l i — Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Sebastião José de de ju n h o de 1782.
Carvalho e Melo pela qual encaminha p a p e l que f e z fu n d a d o n a s doutrinas do Padre Cx. 6, doc. I — Cartas do governador João Pereira Caldas para os diretores de Fonte Boa e
A ntônio Vieira e nas que sem pre seguiu a C om panhia acerca da liberdade e resgate Castro de Avellans.
dos índios, de 2 0 de abril de 1755. Arraial de Mariuá, 8 de julho de 1755. Cx. 6, doc. 4 — Instruções aos diretores, assinada por José Antônio de Avillar. Pará, 2 de
Cx. 1, doc. 18 — Carta de Joaquim de Melo e Póvoas dirigida a Thomé Joaquim da Costa setembro de 1776.
Corte Real em que trata da criação de vilas, 21 de dezembro de 1758. Cx. 7, doc. 3 — Relação dos gêneros que se devem remeter do Pará para a partida ocupada
Cx. 1, doc. 24 — Carta de 4 de novembro de 1760 que informa casamentos e descimentos nas demarcações do rio Negro e para satisfação dos salários dos índios.
realizados pelo padre Manoel das Neves; carta de J.M. Póvoas a F.X.M. Furtado de Cx. 7, doc. 12 — Correspondência entre o tenente-coronel Theodózio Constantino de
16 de janeiro de 1760; carta de J. de M ello e Póvoas a F.X. de M. Furtado, de 20 de Chermont e o comissário e capitão-general João Pereira Caldas. Para os governado­
janeiro de 1760 em que trata da fa lta de índios p a ra a s m uitas obras. res interinos da Capitania de São José do Rio Negro, assinado por João Pereira Cal­
Cx. 2, doc. 30 — M apa contendo informações sobre índios aldeados discriminados por das em 12 de setembro de 1783.
sexo e idade, atividades econômicas, rendimentos e respectivas povoações das capi­ Cx. 8, doc. 2 — Relação de pessoas que acompanharão o coronel Manoel da Gama no giro
tanias do Rio Negro e Pará, assinado por J. Pereira Caldas, ano de 1778, que fez saindo do rio Negro pela boca do rio Xié e tomando o mesmo rio Negro pela
Cx. 1, doc. 31 — Carta do ouvidor e intendente Lourenço Pereira da Costa, de 5 de feverei­ boca do [?] Thomon, 22 de abril de 1784
ro de 1761. Cx. 8, doc. 3 — Cartas de João Pereira Caldas para o tenente-coronel João Batista Manoel
Cx. 1, doc. 37 — Carta de Lourenço da Costa, de 2 de setembro de 1762; M em ória sobre o e coronel Manoel da Gama Lobo de Almada, 22 de abril de 1784.
governo do R io N egro, do mesmo autor e provavelmente escrita em 1762. Cx. 9, doc. I — Cartas do sargento-mor segundo comissário Henrique João Wilckens paia
Cx. 2, doc. 21 — Viagem que em visita e correição da s povoações d a capitania d e São do João Pereira Caldas, de 17 de maio de 1781; R elação das pessoas que fo ra m da
R io N egro f e z o O uvidor e Intendente-G eral da mesm a, F rancisco X avier Ribeiro povoação de Santa Bárbara d a n a çã o Peravílhana, novamente reduzidas, Fortale­
Sam paio no a n o de 1774 a 1775 exo rn a d o co m a lg u m a s n o tíc ia s g e o g rá fica s e z a de S. Jo a q u im do Rio B ranco [s.d.j.
h idrográficas d a d ita capitania com o u tra s concernentes à história civil, política e Cx. I I , doc. 2 — Cartas com informações sobre os índios Mura e Peralviana.
natural dela; a o s costum es e diversidade da s nações de índios seu s habitadores e a Cx. 11, doc. 3 — Alexadre Rodrigues Ferreira narra sublevação dos índios de Thomar ocorrida
su a população, agricultura e com ércio. em 1757. Texto assinado em Thomar, 30 de agosto de 1785.
Çx. 2, doc. 38 — Texto assinado por Francisco Ribeiro Sampaio em 30 de março de 1780 Cx. II, doc. 4 — Alexandre Rodrigues Ferreira narra o mesmo levante ocorrido em Moreira
no qual faz críticas à M em ória sobre o g overno do R io Negro. na mesma ocasião. Contém mapa da quantidade e qualidade de gêneros cultivados e
Cx. 1, doc. 42 — M a p a g e ra l dos índios da C apitania do R io Negro. A n o de 1763. colhidos pelos moradores brancos e índios aldeados no lugar de Moreira, 30 de agos­
Cx. 1. doc. 45 — M apa do estado efetivo em que se a ch a a tropa que fo rn e ce a C apitania to de 1785.
de S ã o J o sé d o R io Negro de que é go vernador Joaquim Ttnoco Valente; M apa dos Cx. II, doc. 8 — Correspondência entre João Batista Mardel e João Pereira Caldas com
índ ios e fa m ília s que h á na C apitania d e São J o sé do R io N egro nesse a n o de 1764. informações sobre os Mura.
Cx. 2, doc. 17 — Carta de Joaquim Tinoco Valente a Francisco Xavier de Mendonça Furta­ Cx. II, doc. 11 — Instruções que regulam o método porque os diretores das povoações de
do, de 6 de agosto de 1769. índios d a s C apitanias do Grão-Pará, se devem conduzir no modo de fa z e r as sem entei­
Cx. 2, doc. 30 — M a p a em que separadam ente de m ais se m anifesta o núm ero de p essoas ras, e pla n ta çõ es, que do com um d a s m esm as povoações que lhe estão positivam en­
d o s d o is d ife r e n t e s s e x o s d e ín d io s a ld e a d o s ta m b é m n a s s u a s r e s p e c tiv a s te determ inadas, 28 de junho de 1776.
p o vo a çõ es...e d o qu e pelo com um d elas de rendim ento tiveram em o m esm o ano de Cx. 12, doc. 2 — Notícias sobre os índios do Rio Branco. Contém mapa de populações
1778. indígenas aldeadas e descidas e está assinado por João Bernardes Borralho, janeiro
Cx. 3, doc. 17 — M apa de todos os índios empregados na demarcação pertencentes à Capi­ de 1786.
tania de São José do Rio Negro, ano de 1781.
358 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 359

Cx. 12, doc. 8 ■ Instruções de João Pereira Caldas para os diretores de Thomar, Moura, 7. A rquivo N acional da T orre do Tombo — ANTT
Poyares, Carvoeiro, 23 de março de 1786.
, Cx. 12, doc. 13 — Cartas João Pereira Caldas para os governadores interinos c para o Livro 1096, fls. 3743 — Projeto em q u e se m ostra com o f o i passado, e.o presente e será o
diretor da vila de Thomar, 26 de junho de 1786.
fu tu r o o E stado d o B rasil... [s.d].
Cx. 12, doc. 11 — Carta de João Bemardes Borralho a João Pereira Caldas de 2 de maio de Manuscritos da Livraria, livro 1116, fls. 593-598 — M em o ria l que apresentam o s religio­
1785.
so s capu ch o s q u e estão n o Pará, o s quais pedem a S. M aj. lhes m ande d a r resolução
Cx. 12, doc. 14-A — Notícias sobre os Muras. de com o se h ão d e h a ver no serviço d e D eus so b re a lg u m a s d ú vidas que se lhes
Cx. 14, doc. 3 Correspondência entre João Pereira Caldas e o capitão comandante da oferecem a s q u a is sã o a s seguintes.
fronteira do Rio Branco e Fortaleza de São Joaquim, João Bemardes Borralho de 3 de Manuscritos da Livraria, liv. 1116, fls. 604 — P arecer so b re ín d io s d o Brasil.
fevereiro de 1787.
Manuscritos da Livraria, fls. 610 — M athias d e A lbuquerque. C apitão G eral e G overna­
Cx. 15, doc. 7 Notícias de rios e populações indígenas; cartas com informações sobre d o r de P ernam buco, d á conta a S. M aj. p o r su a ca rta de 19 de setem bro de 1625,
índios Mura. que sobre o s índ io s que se tom aram d o s que esta va m rebelados co m o s holandeses
na B ahia d a Traição e sobre a serra d e Capoaba.
Manuscritos da Livraria, fls. 620-31 —-P roposta a S. M aj. sobre a escravaria das terras da
6. Biblioteca d a A juda — BA conquista d e P ortugal [s.d.].
F.1631, fl. 103 — C onsulta d o C onselho U ltram arino sobre 3 casa is de irlandeses.
51-VÜ-3!(83) — Tratado da P ro vín cia do B rasil n o qual se co n tém a inform ação das Manuscritos da Livraria, n” 51, fls. 17 e 18 — Carta de M endonça Furtado dé 25 de junho
coisas que h á na terra a ssim d a s capitanias e fa ze n d a s d o s m oradores que vivem de 1760.
pela costa, e de outras particularidades que aqui se contam , com o tam bém da co n ­ Manuscritos da Livraria, n“ 51, fl. 55 — Carta de M endonça Furtado de 22 de abril de
dição e bestiais costum es d o s índios da terra e de outras estranhezas de-, bichos que 17611. Sobre a origem dos povoadores do Brasil.
há nestas p a rtes oferecida à N. alta e sereníssim a Sra. D o n a C atarina R ainha de Manuscritos da Livraria, fls. 1 0 2 - 1 0 4 — Carta de Mendonça Furtado, 17 de junho de 1761.
Portugal... dc Gaspar Alvarez de Sousa, 7 de maio de 1622. Sobre povoadores do Brasil.
51-V-39 — Roteiro da viagem da cidade do P ará a té as últim as co lônias d o s dom ínios Manuscritos da Livraria, n“5 1 , fls. 68 — Carta de S. Maj. a Manoel Bernardo de Melo e
portugueses. Castro, de 11 de junho de 1761. Trata de educação para filhos de principais das
51-VII-31(103) •— Fidalgos, ou cavaleiros do conselho. aldeias altas.
51.VI1.31(107) — D iscurso sobre que coisa é vassalo. Manuscritos da Li vraria, n” 51, fls. 91 -93 — Carta de 17 de junho de 1761. Contém lista de
54-XI-27, n“ 16 [169], p. 9. — C arta do M arquês de Penalva, p o r ordem de S. M a f, p a ra paróquias e vigararias do Estado do Pará.
o Conselho do U ltram ar p a ss a r as pa ten tes ao índio A lb e rto Coelho, do P rincipal Manuscritos da Livraria, fls. 31 — Carta do limo F. X. de M endonça Furtado ao Sr. Manoel
da nação Aruã, no teor da o utra patente que se passou a In á cio M anajabora, seu Bernardo de Melo e Castro, de 15 de junho de 1760. Sobre as novas vilas e seus
avô, p o r s e r fa le c id o se u irm ã o Inácio Coelho, a cujo f a v o r se havia p a ssa d o a nomes.
outra patente, e a outro índio L u ís de M iranda, de Sargento-m or da mesma nação, Manuscritos da Livraria, n“ 51, fls. 104 — Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado
no teor d a qu e lhe p a s s o u o G o v ern a d o r e C apitão G e n e r a l do G rã o -P a rá e de 9 de junho de 1761 em que trata da doação de quatro índios práticos à Companhia
M aranhão. Paço, 15 de março de 1755. Geral do Grão-Pará.
54.XI.27, n” 17 — R elação p o r m apa do s governadores capitães g e n era is e do s capitães Inquisição de Lisboa, n“ 12891 — Traslado da culpa do índio Alexandre que resultou na
mores que governaram o M aranhão e P ará e depois esta ú ltim a distinta e separada­ visita que tirou o Revdo. Dr. e Visitador José Monteiro Noronha na vila de Souzel e
mente a té 1782. também da índia Josepha. 11 de outubro de 1757.
54.XIH-4, n” 58 — R elação de Igrejas paroquiais do B ispado d o Pará. Inquisição de Lisboa, nQ2699 — M aria Tereza mamecula. Vila de Cintra, 8 de junho de
54-XIII.16 (162) — Sobre os tapuias que os paulistas aprisionaram n a guerra e m anda­ 1763.
ram vender ao s m oradores do [? ] Pto. do m ar sobre as razões de j á se fa z e r a guerra Inquisição de Lisboa, n“ 14850 — Sobre o casamento da m ulata Eleutéria e o índio Pedro.
aos ditos.
Inquisição de Lisboa, maço n“ 23, doc. 210 — Marcelina Teresa, mulata escrava do Revdo.
54-XIII-16 (136) — M áxim as, propostas a S. M aj. para m elhor go vern o d o Brasil. Lisboa, Mestre-escola Philippe Joaquim Rodrigues, 8 de outubro dc 1762.
4 de janeiro de 1780. (P ersuade o a utor [D .R odrigo J o sé de M eneses, G overnador Inquisição de Lisboa, ntt 13331 — índia Sabina, 17 de outubro de 1763.
de M inas G erais] que se d êem m a is am plos poderes aos governadores).
Inquisição de Lisboa, n“ 14849 — índio Corema, 1735.
51 -Xlíl-24, n° 114 - Carta do Conde de Oeiras de 27 de outubro de 1759, cm que comuni­
Inquisição de Lisboa, n” 166639 — Justo Antônio, 1 de m arço de 1799.
ca o envio da coleção de breves pontifícios, leis régias, instruções e mais papéis de
ofício que saíram das secretarias do estado. Instrui sobre a numeração e o arquiva­ Inquisição de Lisboa, processo n“ 225, n« 24 — Florência Martins Perpétua.
mento.
360 Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 361

B. Iconografia e cartografia P LAN TA da Vila N ova d e Silvis erigida p e lo lim o. Snr. Joaquim d e M elo e Póvoas, governa­
d o r desta capitania. D esenho de F elipe Strum . BNL, Iconografia, D. 199.A [784]
P LAN TA redigida n o R eal Arquivo M ilitar. Lisboa: Gabinete de Estudos Arqueológicos de
ADONIAS, Isa. M apas e p la n o s m anuscritos relativos ao B rasil co lo n ia l conservados no Engenharia Militar, 1817 (9993)
M inistério d a s R elações E xteriores e descritos por...para as com em orações d o quin­ Q U E S T IO N des lim ites du B résil e t d e la G uyane A hglaise soum ise a V arbitrage de S. M.
to centenário da m orte do Infante D om H enrique. Rio de Janeiro: MRE/Setviço de L e R o i dTtalie. A tlas accom pagnant l e p re m ie rm em óiredu B résil [S.l.]. Du Courtioux
documentação, i960. V. I.
et Huillard, Graveurs-Imprimeurs, 1903.
----------. A carto g ra fia da região am azônica (1500- J96I). Rio de Janeiro: CNP/INPA, SCHOWEBEL, João André. M apa g eo g rá fico do rio das Am azonas a té onde conserva este
1963. 2 v.
nom e, e tom a o d o rio d os S o lim õ es cham ado assim pelas nações que nele habitam
A LD E IA d e S ã o Fidélis. AHU [ca. I794J, Ms. Av. ju n ta m en te com a grande p a rte d o rio Negro a té a cachoeira grande, com preen­
A L D E IA indígena do s fin s do século X V II. Maranhão. AHU, 846 (438). dendo-se neste últim o todas as m issõ es que adm inistram o s P. P. carmelitas. Com os
A T L A S H istórico. Brasília: MEC/Departamento Nacional de Educação, 1960. prospectus d o s lugares m ais fa m o s o s circunvizinhos dos ditos rios. Executado pelo
C apitão E ngenheiro— . Lisboa: Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia
BARATA, Fiiomena, CORREIA, Susana. M iróbriga no m undo rom ano. Santiago do Cacém:
Gráfica Santiago, 1992. Militar, 1758
B R A S IL n a s v é s p e ra s d o m u n d o m o d e rn o . Lisboa: C om em orações D escobrim entos
SILVEIRA, Luís. E nsaio d e iconografia das cidades portuguesas do Ultramar. Lisboa:
Português, 1992. Ministério do Ultramar, 1955. 4v.
E LE V A Ç Ã O da s casas e alçadas qu e se estão fa z e n d o em um d o s lados da nova p raça p a ra VILA A b ra n tes d a Comarca d o N orte. AHU [ca 1794], Ms. Av.
o s m oradores soldados casados nesta vila de B arcelos. Desenho de Felipe Strum.
BNL, D.200. A [786}.
A E N G E N H A R IA militar no Brasil e no Ultramar português. Lisboa: Biblioteca.Nacional
de Lisboa, 1960 (Catálogo de Exposição •—• SA. 23 201V) C. Legislação
GALLUZI, Henrique Antonio. M apa g e ra l do B ispado do P ará repartido n a s suas fre g u e ­
sia s qu e n e le fu n d o u e erigiu o E xm o R evm o S r D.Fr. M ig u el de B ulhões III B ispo do
Pará. C onstruído e reduzido á s regras d a geografia com observações geom étricas BRASIL. Constituição, 1988. C onstituição R epública Federativa do Brasil. Brasília: Cen­
p e lo a ju d a n te engenheiro... Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1759 (ARC 25-4- tro Gráfico do Senado Federal, 19.88.
32). BRASIL. Leis e decretos. Decreto n“ 9.214, de 15 de dezembro de 1911. Regulamento do
K L E E D IN G H E van M aragnan. BNL, Iconografia, estampa 1667 P. Serviço de Proteção aos índios e Localização de Trabalhadores Nacionais. Em:
Oliveira, Humberto de. C oletânea d e leis, atos e m em oriais referentes ao indígena
LIV R O d a s p la n ta s da s fortalezas, cidades e povo a çõ es do estado da India O riental com
brasileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947, p. 112-129.
a s d escriçõ es d o m arítim o d o s reinos e províncias onde estão situ a d a s e outros p o r­
to s p rin c ip a is daquelas partes. C ontribuição p a ra a história d a s fo rta le za s do s p o r­ ----------. Decreto n° 736, de 6 de abril de 1936, aprova, em caráter provisório, o regulamento
tu g u eses no Ultramar. Lisboa: instituto de Investigação Científica Tropical, 1991. do Serviço de Proteção aos índios a que se refere a lei n° 24.700, de 12 de julho de
1934. Em:01iveira, Humberto de. Coletânea de leis, atos e memoriais referentes ao
MAPA d a A ld eia d o prin cip a l M ajury. ÁHU, 773 (371)
indígena brasileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947. p. 148-170.
NIMUENDAJÚ, Curt. M apa etno-histórico de C urt N im uendaju. Rio de Janeiro: IBGE/
---------- . L ei 6.001 de 19 de dezem bro de 1973. Brasília: Ministério do Interior, 1975.
Fundação Nacional Pró-Memória, 1981.
C O L E Ç Ã O de breves pontifícios e leis rég ia s que fo ra m expedidas e publicadas desde o
A P IN TU R A no m undo; geografia portuguesa e cartografia do s séculos X V I a X V III. Por­
ano 1741, sobre a liberdade d a s pessoas, bens e comércio dos índios do Brasil, dos
to: Biblioteca Pública Municipal do Porto, 1992 (Catálogo de Exposição).
excesso s que naquele estado obraram o s regulares d a Companhia de Jesus. Lisboa;
P L A N O p ro je ctivo d e um novo estabelecim ento de ín d io s d a n a ção C a ia p ó situado na
Imprensa da Secretaria de Estado, 1759.
m a rgem d o rio F artura e denom inado A ldeia M aria A P rim eira, e tendo p o r oráculo
COSTA, Vicente José Ferreira Cardozo da. C om pilação sistem ática das leis extragantes de
a s u a igreja N. Sra. da G lória. Vila Boa. AHU, cartografia anexa doc. Goiás, 1782 ,
P ortu g a l oferecida ao P rincipe R egente Nosso Senhor. Lisboa: Imprensa Régia, 1806.
dezembro 18.
FURTADO, Francisco Xavier de Mendonça. Diretório que se deve observar nas povoa-
PLANTA d a A ld e ia de S ã o J o s é de M oçam edes [ileg ív el] d o s ín d io s A cruâs, que com
ç õ es d os índios do Pará, e M aranhão enquanto Sua M ajestade não m andar o con­
in co m p a rá vel zelo da f é católica e aum ento do s va ssalos de S.M.F. reduziu a c iv ili­
trário. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues, 1758.
za çã o o lim o S r [ilegível] Jo sé de A lm eida e Vasconcelos de S e v e ra l e C arvalho no
a n o d e 1774. A um entando-se esta povoação do s d ia 15 de novem bro d o ano de 1774 R E G IM E N T O d o Santo O ficio da Inqu isiçã o d o s Reinos de Portugal ordenado p o r m anda­
em q u e s e m arcou o seu term o a té 28 de a b ril d e 1778. BNL, Iconografia, D.1I7 R d o d o lim o e R evm o Sr. B ispo D. Francisco d e Castro Lisboa, nos estados, p o r
[1116] M a n u el d a Silva, 1640. (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, SD 671 CF.)
PLANTA d a Vila N ova d e M azagão. Século XVIII. AHU, Pará 822 [ca 1830]. R E G IM E N T O d o Santo O ficio da Inqu isiçã o dos reinos de Portugal ordenado com o real
beneplácito e régio auxílio p e lo lim o e Revm o Sr. Cardeal da Cunha. Lisboa: Ofici­
PLANTA d e Vila d e S erpa erigida p e lo lim o Sr. Joaquim d e M elo e P óvoas. P rojetado pelo
C ap itão E ngenheiro Filipe Strum . BNL, D.201 A [788] na de Miguel Menescal da Costa, 1774.
.362 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 363

REGIMENTO do Santo Ofício da Inquisição de Goa ordenado com a autoridade real, e BERTHET, Michel. Uma via g em d e m issã o . São Paulo: Centauro, 1982. (M em órias
régio beneplácito d a Rainha Fidelíssim a Nossa Senhora. Pelo Em inentíssim o e Goianas, 1.)
Reverendíssimo Senhor Cardeal da Cunha, dos conselhos de Estado e Gabinete de BITTENCOURT, L.F.F. “Dois tipos de colonização portuguesa; feitorias e capitanias". R e ­
Sua Majestade e Inquisidor Geral neste Reino de Portugal e em todos seus dombiios vista da Sociedade de G eografia d o R io de Janeiro. Rio de Janeiro, vol. 2, pp. 24-35,
no ano de 1778. In: Ú ltim o regim ento e o regim ento da econom ia da Inquisição de 1944.
Goa. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1983. (Série Documental) BLOK, Anton. The mafia o f a Sicilian village (1860-1960): a stu d y o f violent peasant.
SILVA, Antonio Delgado (org). C oleção de legislação portuguesa d o desem bargador A n ­ New York: Harper Torchbooks, 1975.
tonio Delgado d a Silva. Lisboa: Tipografia de Luís Correia da Cunha, 1825. 9v. BLOCH, Marc. Introdução à história. Mira-Sintra: Publicações Europa-América, 1976.
B O LE TIN S de P esquisa d a Com issão de D ocum entação e E studos da A m azônia. Manaus,
vois. 1-4, 1982/1985.
BOXER, C.R. R e la ç õ e s ra c ia is n o im p é rio c o lo n ia l p o r tu g u ê s (1 4 1 5 -1 8 2 5 ). Porto:
H. BIBLIOGRAFIA
Afrontamento, 1988.
BRAUM, João Vasco Manoel de. “Descrição corográfica do estado do Grão-Pará”. R evista
ABBEVILLE, Claude d '. H istoria da m issão d o s padrps capuchinhos na ilha d o M aranhão do Instituto H istórico e G eográfico B rasileiro, vol. 46, pp. 35-321, 1873.
e terras circunvizinhas, em que se trata d a s singularidades adm iráveis e dos costu­ BUBER, Martin. D o diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982.
m es estranhos d o s ín d io s habitantes d o país. São Paulo: Martins, 1945. Vol. 15. CAMPANELLA, Tomás. A cidade d o sol. Lisboa: Guimarães, 1990.
ABREU. João Capistrano de. C am inhos a n tig o s e povoam ento d o Brasil. Rio de Janeiro: CAMPOS, Francisco da Silva. “Catequese e civilização dos indígenas da capitania de Mi­
Civilização Brasileira, 1975. nas Gerais". Revista do A rquivo Público M ineiro. Ouro Preto, vol. 4, pp. 685-733,
______ . Capítulos da h istó ria colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. out-dez, 1897.
AB’SÁBER, Aziz Nacib. “A cidade de Manaus” . B oletim P aulista de G eografia, São Pau­ CARDOSO, Ciro Flamarion. Econom ia e sociedade em á reas coloniais; Guiana F rancesa
lo, n“ 15, pp. 18-45, out., 1953. e P ará (1750-1817). Rio de Janeiro: Graal, 1984.
AGOSTINHO, Pedro. "Incapacidade civil relativa à tutela de índio”. Em: Santos, Sílvio ______ . “O trabalho indígena na Amazônia portuguesa” . H istó ria em Cadernos. Rio de
Coelho dos(org.). O índio p e ra n te o D ireito. Florianópolis: Universidade Federal de Janeiro, vol. 3, n“ 2, pp. 4-28, setVdez., 1985.
Santa Catarina, 1982, pp. 61-89. CARNAXIDE, Visconde de. O B rasil na adm inistração pom balina. São Paulo: Compa­
ALENCASTRE, J.M.P. A n a is da P rovíncia d e G oiás. Goiânia: Sudeco, 1979. nhia Editora Nacional, 1940. (Brasiliana, 192.)
ALMEIDA, Maria Regina Celestino. O s va ssalos d 'e l rei nos confins da A m azônia — 1750/ CARVALHO, Laerte Ramos de. A s reform as pom balinas d a instrução pública. São Paulo:
1798. Niterói: Universidade Federal Fiuminense, 1990 (dissertação de mestrado). Saraiva, 1978.
ANDRADE, Antônio Alberto. Vernei e a filo s o fia portuguesa. Braga: Livraria Cruz, 1946. CARVALHO, Sérgio Luís. C idades m ed ieva is portuguesas: um a introdução ao seu estudo.
______ . Vernei e a cultura do seu tem po. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1966. Lisboa: Horizonte, 1989.
AZEVEDO, Aroldo de. “Embriões de cidades brasileiras”. B oletim P aulista de Geografia, CASCUDO, Luís da Câmara. A ntologia d o fo lclo re brasileiro. São Paulo: Martins, 1952.
n“ 25, pp. 31-69, 1957. Vol. 1.
______ . “Arraiais e corrutelas”. Sep. B oletim P aulista de G eografia, n“ 27, pp. 3-26, 1957. CATÁLO G O d a exposição de história d o B rasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional do
---------- “Aldeia e aldeamentos de índios” . Sep. B oletim P aulista d e G eografia, o” 33, pp. Rio de Janeiro, 1881.
24-40, 1959. C A TÁ LO G O d a exposição histórico-docum ental luso-brasilelra. Lisboa: Arquivo Históri­
AZEVEDO, Fernando. “Formação e expansão das cidades”. Em: Fernandes, Florcstan (org.). co Ultramarino/Instituto de Investigação Científica Tropical, 1982.
Comunidade e sociedade no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975, CHA1M, Marivone Matos. Os aldeam entos indígenas na capitania de G oiás; su a im p o r­
pp. 143-155. tância n a p o lítica de povoam ento. Goiânia: Oriente, 1974.
BAENA, Antonio Ladislau Monteiro. E nsaio corográfico sobre a P rovíncia do Pará. fs.l.J: CORBUSIER, Roland. Form ação e p roblem a da cultura b rasileira. Rio de Janeiro: MEC/
Tipographia de Santos e Menor, 1839. • Instituto Superior de Estudos Brasileiros, 1958. (Textos Brasileiros de F ilosofia.).
BARRETO, Domingos Alves Branco. “Plano sobre a civilização dos índios do Brasil e CORREIA, J.E. Horta. “Vila Real de Santo Antônio levantada em cinco meses pelo Mar­
principalmente para a Capitania da Bahia”. R evista Instituto H istórico e Geográfico quês de Pombal”. Em: P om bal revisitado. Lisboa: Estampa, 1984, pp. 79-89.
Brasileiro, vol. 19, pp. 33-98, 1856. COUTINHO, J. J.da Cunha Azeredo. “Análise sobre a justiça do comércio do resgate dos
BENTHAM, Jeremy. “ Uma introdução aos princípios da moral e da legislação”. Em: escravos da costa da África”. Em: O bras econôm icas. São Paulo: Companhia Nacio­
Bentham. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Pensadores.) nal, 1966, pp. 241-307.
BEOZZO, José Oscar. L e is e regim entos d a s m issões; política indígena no B rasil. São ----------. C oncordância d a s leis de P ortu g a l e das bulas po n tifícia s d as quais um as p e rm i­
Paulo: Loyola, 1983. tem a escravidão d os p reto s de A frica e outras p roibem a escravidão d o s ín d io s do
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido d esm ancha no ar; a aventura d a m odernidade. Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1988.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
364 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 365

CRIPPA, Adolfho. “O conceito de filosofia na época pombalina”. Em: Paim, Antonio (org.). FERNANDES, Florestan. Investigação n o B ra sil e outros ensaios. Petrópolis: Vozes, 1975.
P om bal e a cultura brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1982, pp. 16-119. ______ . “As vilas”. Era: Fernandes, Florestan (org.) Comunidade e sociedade no Brasil;
CUNHA, Manuela Carneiro. H istória dos índio s no B rasil. São Paulo: Companhia das leituras b ásicas de introdução a o estu d o m acrossociológico d o Brasil. São Paulo:
Letras, 1992. Companhia Nacional, 1975, pp. 81-85.
DAMATTA, R. A casa e a rua. Rio de Janeiro : Guanabara, 1987. FERRARI, Celso. C urso d e p la n eja m en to m u n icip a l integrado; urbanism o. São Paulo:
DIAS, Manuel Nunes. "O sistema das capitanias do Brasil”. Sep. do B oletim da B iblioteca Livraria Pioneira, 1977.
d a U niversidade d e C oim bra, vol. 24, pp. 5-31, 1980 (3apartc). FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filo só fica pela s capitanias do Grão-Pará, Rio
---------- “Estratégia pombalina de urbanização do espaço amazônico”. Em: C om o interpre­ Negro, M ato G rosso. Cuiabá: CFC, 1974.
ta r P om bal. Lisboa: Brotéria. 1983, pp. 5-31. ______ .Viagem filo só fic a a o rio Negro. Belém: MPEG, 1983.
DUMONT, Louis. Prom M andeville to M arx. Chicago: University o f Chicago Press, 1977. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. N ovo dicionário d a língua portuguesa. Rio de
----------. O individualism o: um a perspectiva antropológica da ideologia m oderna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.
Janeiro: Rocco, 1985. FERREIRA, C. A. Inventário dos m a nuscritos d a Biblioteca da A juda referentes à A m éri­
DURKHEIM, Emile. L as fo r m a s elem entares de la vida religiosa; e l sistem a totém ico en ca d o Sul. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1946.
A ustrália. Buenos Aires: Schapire, 1978. FLORES, Luís F.B .N. O com bate d o s sold a d o s d e Cristo n a terra d o s papagaios; colonialis­
EDELWEISS, Frederico. “O ensino do tupi e do português nas missões do Brasil, segundo m o e repressão cultural. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978.
os documentos jesuíticos e a palavra de Pombal”. Revista Instituto H istórico e G eo­ FONSECA, José Gonçalves da. C o n q u ista recu perada e liberdade restituida. Lisboa:
g rá fico B rasileiro. Rio de Janeiro, vol. 4. pp. 181-202, 1963. Biblioteca Nacional, 1759 (PBA 139).
ELIADE, Mircea. O m ito do eterno retorno. Lisboa: Edições 70, 1990. FONSECA, Luís Adão. “O imaginário dos navegantes portugueses dos séculos 15 e 16”.
ELIAS, Norbert. "Processes o f state formation and nation building". Em: Transactions o f R evista de E studos A vançados. São Paulo, vol. 6, n° 16, pp. 35-51,1992.
7th W orld Congress o f Sociology. Genebra: International Sociological Association, FOUCAULT, Michel. Vigiar e p unir; nascim ento d a prisão. Petrópolis: Vozes, 1977.
1972, pp. 274-284.
______ . La verd a d y las fo rm a s ju ríd ica s. Barcelona: Gedisa, 1980.
______ ■L a sociedad cortesana. México: Fondo de Cultura Econômica, 1982. ______ . M icrofísica d o poder. Rio de Janeiro: Graal, 1982.
______ ■ A condição hum ana; considerações sobre a evolução da hum anidade, p o r oca ­ FRAZER, J.G. La ram a dorada. México: Fondo de Cultura Econômica, 1982.
siã o d o quadragésim o aniversário do fim de um a guerra (g de m aio de 1985). Lis­
boa: bifei, 1985. FREISCHMANN, U., ASSUNÇÃO M R.. Z1EBELL-WENDT, Z. “Os Tupinambá: reali­
dade e ficção nos relatos quinhentistas”. R evista B rasileira de H istória. São Paulo,
______ O p rocesso civilizador: U m a história dos costum es. Rio de Janeiro: Zahar, 1990
n“ 21, pp. 125-145, 1991.
Vol. 1.
FREUD, S. “O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização” . Em: Obras psicológicas
______ ■N o rbert Elias p a r lui-m êm e. Paris: Fayard, 1991.
com pletas. Rio de Janeiro: Imago Editora, [19-—?], vol. 21, pp. 14-69, 75-171.
FREYRE, Gilberto. C asa-grande e senzala; fo rm a çã o d a fa m ília brasileira so b o regime
______ • O processo civilizador: F orm ação do estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, da econom ia patriarcal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.
1993. Vol. 2.
FURTADO, Francisco Xavier de Mendonça. “Viagem que fez o IInio. Exmo. Sr.(...)". R e­
E N C IC LO P É D IA D elta Laurousse. Rio de Janeiro: Editora Delta, 1980 vista do Instituto H istórico e G eográfico B rasileiro. Rio de Janeiro, vol. 67, pp. 251-
E N C IC LO P É D IA Luso B rasileira de C ultura. Lisboa: Verbo [19— ?]. 281, 1906 (parte I).
E N C IC LO P É D IA do s M unicípios B rasileiros. Rio de Janeiro: IBGE, 1957. GANDAVO, Pero de Magalhães. "Tratado da terra do Brasil, história da Província de Santa
E N C IC LO P É D IA U niversal Ilustrada. Barcelona: Espasa [19— ?]. Cruz”. Em: C ronistas e viajantes. São Paulo: Abril, 1982, pp. 24-36.
ERASMO. A civilidade p u eril. Lisboa: Estampa, 1978. GEERTZ. Clifford. A interpretação d a s culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
EVANS-PRITCHARD, E.E. A nthropology an d histo ry in social anthropology a n d other GINZBURG, Carlo (1989). O queijo e o s verm es: o cotidiano e a s idéias de um moleiro
ensays. New York: New York Free, 1964, pp. 172-191. perseg u id o pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
FALCON, Francisco José Calazans. A época pom balina; política econôm ica e monarquia GLUCKMAN, Max. O rder a n d rebellion in tribal A frica. Londres: Cohen e West, 1963.
ilustrada. São Paulo: Ática, 1982. GOMES, Plínio Freire. “O ciclo dos meninos cantores (1550-1552); música e aculturação
______ - Ilum inism o. São Paulo: Ática, 1986. nos primódios da colônia". R evista B rasileira d e História. São Paulo, n“ 21, pp. 187-
---------- D espotism o esclarecido. São Paulo: Ática, 1986. 198, 1991.
FAORO, Raymundo. O s donos d o poder; fo rm a ç ã o do patronato po lítico brasileiro. Porto G R A N D E E nciclopédia P ortuguesa e Brasileira. Lisboa/Rio de Janeiro: Editorial Enciclo­
Alegre: Globo, 1976. 2 vols. pédia, [s.d.].
FEBVRE, Lucien. O problem a da descrença no sécu lo X VI; a religião de R abelais. Lisboa: HAUBEKT, Maxime. ín d io s e je su íta s no tem po das missões. São Paulo; Companhia das
Editorial Início, 1970. Letras, 1990.
Rita Heloísa de Almeida O D iretório dos índios 367
366

HOBSBAWM, E. J. “El renacim iento de la historia narrativa; algunos com entários” . ______ . “Pombal na perspectiva de....” Em: M em órias secretíssim as d o M arquês d é P o m ­
Historias. México, n" 14, pp. 9-13, 1986. b a l e outro s escritos. Mira-Sintra: Publicações Europa-América, [19— ?], pp. 15-36.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Visão do paraíso; os m otivos edênicos n o descobrim ento e MARTIUS, Friedrich Philipp Von, Spix, Johann Baptist Von. Viagem p élo B rasil. Edições
colonização do B rasil. SSo Paulo; Companhia Editora Nacional, 1969 (Brasiliana, Melhoramentos, 1968.
333). MARX, Karl. O 1 8 Brum ário de L u ís B onaparte. Rio de Jaheiro: Vitória, 1946.
______ . R aízes do B rasil. Rio de Janeiro; José Olympio, 1981. ______ . O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. Vol. 1.
HOORNAERT, Eduardo. H istória da Igreja no B rasil. Petrópolis: Vozes, 1979. Tomo 2 MAUSS, Marcei. “La nación”. Em: S o cied a d y ciências sociales. Barcelona: B anal edito­
(História Geral da Igreja na América latina — Ia Época). res, 1972.
KANT, E. “Réponse à Ia question: qu’est ce que les lumiéres?” Em: O euvres philosophiques. MAXWELL, K.R. “Pombal and nationalization of the luso-brazilian economy” . The H ispanic
Paris: Gallimard, 1985. T.2. A m erica n R eview . Duke, vol. 48, pp. 600-631, 1968.
KELLER, Franz. The A m azon an d M adeira rivers; sketches a n d d escriptions fr o m the note­ MCGRANE, Bernard Daniel. B eyo n d Europe: an a rch a eo lo g y o f anthropology fr o m the
book o f an explorer w ith sixty-eight illustrations on w ood. Londres: Chapman and 16th to the ea rly 20th century. Nova York: New York University, 1976 (tese de dou­
Hall, 1874. torado).
LE GOFF, Jacques. “A história do quotidiano”. Em: H istória e nova história. Lisboa: Teore­ MEGGERS, B.J. A m azônia: a ilusão de um p araíso. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
ma, 1989, pp. 73-82. 1977.
LE LLO Universal. Porto: Livraria Chardron, [s.d.J. MELATTI, Júlio Cezar. “Por que a aldeia krahó é redonda?” Inform ativo F unai. Brasília,
LEVANTAMENTO das denúncias de trabalho escravo em imóveis. Brasília: Ministério da vol. 3, n"* 11, 12, pp. 34-42, 1974.
Reforma e Desenvolvimento Agrário/Coordenadoría de Conflitos Agrários,-1986. ______ . “De Nóbrega a Rondon: quatro séculos de política indigenista”. R evista d e A tu a li­
LÉVÍ-STRAUSS, Claude. A ntropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. d a d e Indígena. Brasília, vol. 1, n” 3, pp. 38-46, 1977.

______ . Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987. MELO, Sebastião José Carvalho. M em órias secretíssim as do M arquês d e P o m b a l e outros
escritos. Lisboa: Europa-América [s.d.].
LIV R O da visitação d o Santo O fício da Inquisição ao E stado do G rão-P ará. Rio de Janei­
ro: Vozes, 1978. MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A A m a zô n ia na era pom balina. Rio de Janeiro: Im­
prensa nacional, 1963. 3 vols.
LOCKE, John. Carta acerca da tolerância. São Paulo: Abril Cultural, 1973. pp. 9-33 (Co­
leção Pensadores, 18). ______ . R a ízes d a fo rm a çã o ad m in istra tiva d o B ra sil. Rio de Janeiro: IHGB/Conselho
Federal de Cultura, 1972.
LUXEMBURGO, Rosa de. C amarada e am ante; cartas de...a L e o Jogiches. Rio de Janei­
ro: Paz e Terra, 1983. _______ Sécu lo XVIII: século pom balino do Brasil. Rio de Janeiro: Bibliografia Reprográfica
Xerox, 1989.
MACEDO, Jorge Borges. A situação econôm ica no tem po de P om bal: alguns aspectos.
Lisboa: Moraes, 1982. MONTEIRO, J.M. “Escravidão Indígena e despovoamento na América Portuguesa: São
Paulo e Maranhão”. Em: B rasil na s vésperas do M u n d o M oderno. Lisboa: Comemo­
MACLACHLAN, Colin M. “The indian labor structure in the Portuguese Amazon (1700-
rações dos Descobrimentos Portugueses, 1992, pp. 137-169.
1800)”. Em: Alden, Dauril (ed.). C olonial roots o f m odern B razil. Berkeley: University
of California Press, 1973, pp. 199-230. MOREIRA, R. F. Domingues. “Uma utopia urbanística pombalina: o ‘Tratado de reação’
de José de Fígueredo Seixas". Em: P om bal revisitado. Lisboa: Estampa, 1984, pp.
MALINOWSKI, B. Argonautas do Pacífico. São Paulo: Abril Cultural, 1976 (Coleção Pensa­
131-145.
dores).
MOREIRA NETO, C. de A. índios d a A m azônia, de m aioria a m inoria (1750-1850). Petrópo­
MALHEIRO, Perdigão. A escravidão no B rasil. Petrópolis: Vozes/ 1NL, 1976. 2 vols.
lis: Vozes, 1988.
MANHE1M, Karl. “Impacto dos processos sociais na formação da personalidade". Em:
MORSE, Richard M. “Cidades latino-americanas: aspectos da função e estrutura”. A m éri­
Cardoso, Fernando H „ Ianni, O. (org.). H om em e sociedade. São Paulo: Companhia
ca L a tina. Rio de Janeiro, vol. 5, na 3, pp. 35-63, 1962.
Editora Nacional, 1980, pp. 285-303.
______ . B ra zil's urban developm ent: co lo n y a n d empire. Yale: Yale University Institution
MAPA geral da população dos índios aldeados em todas as povoações das capitanias do
for Social and Policy Studies, 1972.
estado do Grão-Pará e São José do Rio Negro no'prim eiro de janeiro de 1792. Em:
A C TA S Çolóquio In tern a cio n a l de E studos Luso-B rasileiros, 5. Coimbra, Soc.de ______ . O espelh o d e Próspero. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
Geografia de Lisboa, 1965, vol. 1, pp. 281-285. MORUS, Thomas. A Utopia. São Paulo: Atena [s.d.].
MARCUS, G.B.; FICHER, Michael. A nthropology a s cultural critique; a n experim ental MOURÃO, José Augusto. “Teatro e pedagogia da fé em Anchieta". B oletim d a Sociedade
m om ent in the hum an sciences. Chicago: Chicago University Press, 1986. d e G eografia de Lisboa. Lisboa, vol. 99, n“ 7/12, pp. 275-290, 1981.
MARTINHEIRA, José J.S. Tipologia docum ental no s arquivos — um caso: tipologias docu­ ______ . “A geografia do além (figuratividade e representação)” . Boletim d a Sociedade de
m entais produzidas p e la adm inistração central no A ntigo R egim e. Lisboa: Universi­ G eografia de U sb o a . Lisboa, vol. 102A, n“ 7-12, pp. 113-121, 1984.
dade de Lisboa, 1992. MOURÃO, J. Martins. M unicípios; su a im portância p o lítica n o Brasil co lo n ia l e no B rasil
MARTINS, J.P. Oliveira O B rasil e as colônias portuguesas. Lisboa: Antonio Maria Perei­ reino. Rio de Janeiro: Congresso de História Nacional, 1916, pp. 299-318.
ra Livraria Editora, 1904.
368 Rita Heloísa de Almeida O Diretório dos índios 369

NANTES, Martinho. R elação de um a m issão no rio São Francisco. São Paulo: Companhia ROOSEVELT, Anna Curtenius. “Sociedades pré-históricas do Amazonas brasileiro”. Em:
Editora Nacional, 1979 (Brasiliana, 368). B ra sil n a s vésperas d o m undo m oderno. Lisboa: Comemorações Descobrimentos
NASCENTES, Antenor. D icionário etim ológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Portugueses, 1992, pp. 17-49.
Francisco Alves, 1932. ROSALDO, Renato. Ilongot headhunting (1883-1974). Stanford: Stanford University Press,
NORONHA, J. Monteiro. “Roteiro da viagem da cidade do Pará até as últimas povoações 1980.
dos domínios portugueses em Amazonas e Rio Negro”. R evista d o instituto H istóri­ ROUSSEAU, Jean. J. “Do contrato social” . Em: Rousseau. São Paulo: Abril Cultural, 1975,
co e G eográfico B rasileiro. Rio de Janeiro, vol. 67, pp. 281-295, 1906 (Parte 1). pp. 21-145 (Coleção Pensadores).
NORONHA, Magalhães. D ireito penal. Belo Horizonte: Saraiva, 1982.Vol. 1. SAID, Edward W. O rientalism o: o O riente com o invenção d o Ocidente. São Paulo: Com­
NOVAIS, Fernando A. P ortugal e B ra sil na crise do antigo sistem a co lo n ia l (1777-1808). panhia das Letras, 1990.
São Paulo: Hucitec, 1986. SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Tratado de conservação da saúde dos povo s. Com.
OLIVEIRA FILHO, João Pacheco. O nosso governo: os Ticuna e o regim e tutelar. Rio de apêndice: Considerações sobre terremotos. Paris/Lisboa: Bonardet/Du Beux, 1756.
Janeiro: Marco Zero, 1988. ______ .C artas sobre a educação da m ocidade. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1922.
OMEGNA, N. “A fisionomia da cidade colonial”. Em: Fernandes, F. (org.). C om unidade e . O rigem d a denom inação d e cristão-velho e cristão-novo. Lisboa/ Porto: Tipogra­
so ciedade no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975, pp. 86-95. fia Sociedade de Papelaria, 1956.
PARK, R.E. “A comunidade urbana como configuração espacial e ordem moral”. Em: SARAIVA, J.H. H istória concisa de P ortugal. Mira-Sintra: Publicações Europa-América,
Pierson, D.(org.). E studos de ecologia humana. São Paulo: Martins, 1948, pp. 127- 1988.
142. SENNETT, Richard. O declínio do hom em público: a s tiranias d a intimidade. São Paulo:
PE1RANO, M arizaG. S. “A antropologia de Florestan Fernandes”. Em: Peirano. Uma antro­ Companhia das Letras, 1989.
p o lo gia no plural: três experiências contem porâneas. Brasília: UnB, 1992, pp. 51- SERGIO, Antônio. Breve interpretação da história de Portugal. Lisboa: Livraria Sá da
85. Costa, 1989.
PEREIRA, J.E. O p en sam ento p o lític o em P ortugal no século X V III. Lisboa: Imprensa SERRÃO, Joel. D icionário de história de Portugal. Lisboa: Editoriais Iniciativas [19— ?).
Nacional/Casa da Moeda, 1983 (Temas Portugueses).
SILVA, Luís Diogo Lôbo. “ Uma instrução inédita do governador de Pernambuco acerca da
PLATÃO. A república: diálogos. Mira-Sintra: Europá-América. elevação das aldeias dos índios à categoria de vilas no nordeste do Brasil” . Em: A nais
PONDÉ, F.de P. e Azevedo. "A defesa das fronteiras terrestres (1750-1780)’’. A defesa do Congresso C om em orativo do Bicentenário d a transferência da sede do governo
nacional. R evista de A ssu n to s M ilitares e E studo de P roblem as B rasileiros. Rio de d o B ra sil d a cid a d e d o Salva d o r p a ra o Rio d e Janeiro. Rio de Janeiro: IHGB/Im-
Janeiro, n“ 716, pp. 153-170. prcnsa Nacional, 1967, vol. 4.
PRADO JUNIOR, Caio. H istória econôm ica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1970. SOARES, Alvaro T. O M arquês de Pom bal. Brasília: UnB, 1983 (Coleção Temas Brasilei­
______ . F orm ação do B rasil contem porâneo: colônia. São Paulo: Brasiliense, 1976. ros).
______ . “Organização da sociedade colonial”. Em: Fernandes, F. (org.). Com unidade e SOUZA, André Fernandes. “Notícias geográficas da Capitania do Rio Negro no grande rio
sociedade no Brasil. São Paulo: Nacional, 1975, pp. 322-342. Amazonas”. R evista Trim ensal de H istória e G eografia. Rio de Janeiro, vol. 10, pp.
RAVAGNANI, O. M. A experiência X avante com o m undo dos brancos. Tese de doutoramen­ 411-504, 1973.
to. São Paulo: Escola de Sociologia e Política, 1978. SOUSA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de S a n ta Cruz; feitiça ria e religiosidade
REIS, Artur César Ferreira. A sp e cto s d a experiência portuguesa na A m azônia. Manaus: po p u la r n o B ra sil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
Governo do Estado do Amazonas, 1966. STEINEN, Karl Von Den. E ntre os aborígenes do B ra sil Central. Sep. da Revista d o A rqui­
______ . “Os tratados de limites”. Em: Holanda, S.B. (org.). H istória g e ra l da civilização vo, São Paulo, n“ 34-63, 1940.
brasileira. São Paulo: Difel, 1976. Tomo l, vol. 1, pp. 364-379. ______ . O B ra sil central: expedição em 1884 pa ra a exploração do R io Xingu. São Paulo:
R E L A Ç Ã O da conquista do gentio X avante conseguida p elo lim o Exm o.Sr. Tristão da C u­ Nacional, 1942 (Brasiliana, 3).
n ha M eneses, governador e capitão general d a C apitania de G oiás, oferecida ao TAVARES, L. H. Dias. "Aspectos da criação de vilas em 1758” . Cartaz. Lisboa, vol. 2, n“. 9,
ilustríssim o e excelentíssim o se n h o r L uís P into de Sousa C outinho, Senhor da Casa pp. 50-52, 1966.
d e Balsem âo. M inistro e S ecretário de E stado e N egócios E strangeiros e da Guerra. VAINFAS, Ronaldo. Trópico d o s pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio
Lisboá: Tipografia Nunesiana, 1790. de Janeiro: Campus, 1989.
RIBEIRO, Berta G. A m azônia urgente: cinco séculos de história e ecologia. Belo Horizon­ VASCONCELOS, J. L. de. C lasses de p o vo a çõ es po rtu g u esa s. Lisboa: ISCEF, 1931, pp.
te: Itatiaia, 1990. 7-39.
RIBEIRO, Renato J. “ Da moral da história às histórias científicas: uma revolução no conheci­ VELHO, Gilberto. Individualism o e cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
mento”. A nálise e C onjuntura. Belo Horizonte, vol. 4, n“ 2/3, pp. 227-243, 1989. VELHO, Otávio G. C apitalism o autoritário e cam pesinato (um estudo com parativo a p a r­
RICOEUR, Paul. D u texte à P action: essais d'herm éneutique. Seuil: Collection Esprit, tir d a fro n teira em movimento). São Paulo: Difel, 1976.
1986.
VERÍSSIMO, I. J. P om bal, o s jesu íta s e o B rasil. Rio de Janeiro: Imprensa do Exército,
1961.
370 Rita Heloísa de Almeida

VERNEY, L.A. Verdadeiro m étodo de estudar. Lisboa: Sá da Costa, 1952 (Coleção de clássi­
cos).
VEYNE, Paul. Inventário das diferenças. São Paulo: Brasiliense, 1976. .
VIEIRA, Antônio. C artas. São Paulo: Livraria Magalhães, 1912.
______ . “Regulamento das aldeias indígenas do Maranhão e Grâo-Pará (1658-1661)”. Em:
Beozzo, J.O. L eis e regim entos da s m issões. São Paulo: Loyola, 1983, pp. 188-209.
WALLERSTE1N, Immanuel. The m o d e m w orld system capitalist agriculture a n d the origins
o f the 16th century. Nova York: Academic Press, 1974.
WEBER, Max. “Comunidades étnicas” . Em: E conom ia y sociedad. México: Fondo de Cul­
tura Econômica, 1964, pp. 315-327.
. “Conceito e categorias da cidade". Em: Velho, O. (org.) O fen ô m en o urbano. Rio
de Janeiro : Zahar, 1967, pp. 73-96.
Apêndice
______ . Sobre a teoria da s ciências so cia is. Lisboa: Editorial Presença, 1974.
WEHLING, Arno. A dm inistração p o rtuguesa no B rasil de. P om bal a D. João (1777-1808).
D ire tó rio q u e se d eve o b se r v a r nas
Brasília: Fundação Centro de Formação do Servidor Público, 1986 (História Adminis­ p o v o a ç õ e s d o s ín d ios d o Pará e do
trativa do Brasil, 6).
WERMERS, M.M. O estabelecim ento da s m issões carm elitanas no rio N egro e n o s Solim ões M aranhão e n q u a n to su a m a jesta d e
(1675-1711 ). Coimbra: Sociedade de Geografia Brasileira, 1965.
n ão m a n d a r o c o n tr á r io
DIRECTORIO,
CLU E
S E D E V E O B S E R V A R

NAS POVOAÇOENS DOS ÍNDIOS


D O

PARÁ, E MARANHAÕ
Em quanto Sua M ageftade naó mandar o con­
trario.

LISBOA?
N a O f f i c in a de M I G U E L R O D R I G U E S
Impreffor do EminentilBmo Senhor Cardial Patriarca.

M. DCC. LVKI.
(O

D IR E C T O R IO ,
Q U E SE D E V E O B S E R V A R N A S
Povoacoens dos índios do Para, e M aranhao
em quanto Sua M ageftade nao mandar o
contrario.

E N D O S u a M a g e f ta d e fe r v id o pe­
lo A l v a r á c o m f o r ç a d e L e y d e 7 d e
Junho de 1755. a b o li r a a d m in if *
tra ça o T e m p o r a l, q u e o s R e g u la r e s
o x e r c ita v a ô n o s ín d io s das A ld e a s
d e it e E f t a d o ; m a n d a n d o - a s g o v e r ­
n a r p e lo s íe u s r e f p e & i v o s P r i n c i p l e s ,
com o e f t e s p e l a l a f t im o f à r u f t i c id a -
^ d e , e ig n o r â n c ia ,c o m q u e a t é a g o ­
r a f o r a o e d u c a d o s , n a d t e n h a d a n e c e f lá r ia a p t i d a d , q u e f e re­
q u e r para o G o v e r n o , íc m q u e h a ja q u e m o s p o lia d ir ig ir , p ro ­
p o n d o -lh e s n a d í d o s m e io s d a c i v i l i d a d e , m a s d a c o n v e n i ê n ­
c ia , e p e r f u a d in d o - lh e s o s p r o p r io s d ic c a m e s d a r a c i o n a l i d a d e ,
d e q u e v iv ia o p r iv a d o s , p a r a q u e o r e fe r id o A l v a r á te n h a a fu a
d e v i d a e x e c u ç ã o , e í e v e r i f iq u e m a s R e á e s , e p iif lim a s i n t e n -
o e n s d o d ito S e n h o r , h averá e m c a d a h u m a d a s fo b r e d ita s
f 'o v o a ç o e n s , e m q u a n t o o s í n d i o s n a d t iv e r e m c a p a c i d a d e p a ­
ra fe go vern a rem , h u m D i r e & o r , q u e n o m ea rá o G o v e r n a d o r ,
e C a p i t a ó G e n e r a l d o E f t a d o , o q u a l d e v e fe r d o t a d o d e b o n s
c o ftu m e s, z e l o , p r u d ê n c ia , verdade , í c ie n c i a d a lin g u a , e
d e t o d o s o s m a is r e q u ifito s n e c e i la r io s p a r a p o d e r d i r ig ir c o m
a c e r t o o s r e fe r id o s í n d i o s d e b a i x o d a s o r d e n s , e d e t e r m i n a ç õ e s
íè g u in te s , q u e i n v io la v e lm e n t e fe o b fe r v a r á ô e m q u a n to S u á
M a g e f t a d e o h o u v e r a f lim p o r b e m , e n a d m a n d a r o c o n t r a r io ;
a H avendo o d ito S e n h o r d e c la r a d o n o m e n c io n a d o
A lv a r á , que os í n d i o s e x if t e n t e s n a s A l d e a s , q u e p a lia r e m a
f e r V i l l a s , f e j a o g o v e r n a d o s n o T e m p o r a l p e lo s J u i z e s O r d i n á ­
r io s , V eread ores, e m a is O f f i c i á e s d e J u f t i ç a j e d a s A ld e a s

A in d e -
O )
a o s m o r a d o r e s , e a o E f t a d o : E f t e s d o u s v ir t u o f o s , e im p o r ­
in d e p e n d e n t e s d a s d it a s V i l l a s p e l o s fe u s r e f p e & i v o s P r in c ip a e s ;
ta n te s f in s , q u e fe m p r e f o i a h e r ó ic a e m p r e z a d o in c o m p a r á ­
C o m o f ó a o A l t o , e S o b e r a n o a r b ít r io d o d i t o S e n h o r C o m p e ­
vel z e lo d o sq n o ir o s PC a t h o l i c o s , e F id e i'fi.m o s M on arcas,
te o d a r jü r is d ic ç a ò a f t p í ia n d o - a , o u lim ita n d o ^ a c o m o lh e
f e r á õ o p r in c ip a l o b j e a o d a r e fle x a ó , e c u id a d o d o s D i r e -
p a r e c e r j u f t o . , n a o p o d e r á ó o s f o b r e d it o s D i r e & o r e s e m c a f o
a lg u m e x e r c ita r jü r is d ic ç a ò c o a â iv a nos ín d io s , m a s »m|_
a ° T P a r a f e c o n f e g u i r p o is o prim eiro f i m , qual hc o
c a m e n te a q u e p e r te n c e a o íè u m in ifte r io , q u e h e a d i r e f t i-
c h r iftia n iz a r o s í n d i o s , d e ix a n d o e ft a m atC Tia, p o r le r m e r a -
v a ; a d v e r tin d o a o s J u iz e s O r d i n á r i o s , e a o s P r in c ip a e s , n o m e n t e e f p ir i t u a l, á e x e m p la r v ig ilâ n c ia d o P r d a d o d e f t a D i e -
c a f o d e h a v e r n e lle s a l g u m a n e g l i g e n c i a , o u d e í c u i d o , a in d if-
c e í è ; r e c o m e n d o u n ic a m e n te a o s D u e â o r e s , q u e d a íu a p a
p e n fa v e l o b r ig a ç a o , q u e te m p o r c o n ta d o s fe u s e m p re g o s, d e te d em to d o o f a v o r , e a u x ilio , p a ra q u e a s u e t e r n u n a ç o e n s
c a ít ig a r p s d e lié lo s p ú b lic o s c o m a f e v e r i d a d e , q u e p e d i r a d e ­ d o d i t o P r e la d o r e fp e é liv a s á d ir e c ç ã o d a s A l m a s , t e n h a o a lu a
fo r m id a d e d o i n f u l t o , e a c i r c u m f t a n c ia d o e f c a n d a l o ; p e r f u a - d e v id a e x e c u ç ã o ; e q u e o s í n d io s tra tem a o s fe u s P á r o c o s
d in d o -lh e s , q u e n a i g u a l d a d e d o p r ê m i o , e d o c a f t i g o , c o n f i jf com a q u e lla v e n e r a ç a o , e r e f p e i t o , q u e f e d e v e a o le u a lt o
t e o e q u ilí b r i o d a J u ftiç a , e bom govern o d a s R e p u b lic a s . c a r a é l e r , f e n d o o s m e f m o s D i r e & o r e s o s p rim e ir o s , que com
V e n d o p o rém o s D ir e é lo r e s , q u e fa ô i n f r u & u o í à s a s lu a s a d ­ a s e x e m p la r e s acçoen s da fu a v id a lhes p e r f u a d a o a o b f e r -
v e r t ê n c ia s , e q u e n a ó b a ila a e íH c a c ia d a f u a d i r e c ç ã o p a r a v a n c ia d e fte P a r a g r a fo
q u e os d ito s ju iz e s O r d in á r io s , e P r in c ip á e s , c a ílig u e m ex em ­ 5 Em q u a n to p o r é m á c iv ilid a d e d o s í n d i o s , a q u e íe
p l a r m e n t e o s c u l p a d o s ; p a r a q u e n a o a c o n t e ç a , c o m o r e g u la r ­ red u z a p r in c ip a l o b r i g a ç a o d o s D i r e é t o r e s , p o r f e r p r ó p r ia
m e n t e fiic c e d e , q u e a d iíB m u la ç a õ d o s d e lic lo s p e q u e n o s l è - d o fe u m i n i f t e r i o ; e m p r e g a r á ó e fte s h u m e íp e c ia lif lim o c u id a ­
ja a c a u fa d e í è c ô m e t t e r e m c u lp a s m a y o r e s , o p a r tic ip a r a ô do em lh e s p e r íu a d ir t o d o s a q u e lle s m e io s , q u e p o f l a ó íè r
lo g o ao G overn ador do E fta d o , e M in iftr o s d e J u f t i ç a , q u e c o n d u c e n te s a ta ó u t i l , e in t e r e íf a n te f im , q u á e s f a o o s q u e
p r o c e d e r ã o n e fta m a te r ia n a fo r m a d a s R e á e s L e y s d e S . M a - v o u a referir.
g e f t a d e , n as q u a e s r e c o m e n d a o m e ím o S e n h o r , q u e n o s c a fti- 6 S e m p r e f o i m a x im a in a lte r a v e lm e n te p r a tic a d a e r a
g o s d a s r e f e r i d a s c u lp a s í è p r a t i q u e t o d a a q u e l l a f u a v i d a d e , e to d a s a s N a ç o e n s , q u e c o n q u if t á r a õ n o v o s D o m í n i o s , in tr o ­
b r a n d u r a , q u e a s m e í m a s L e y s p e r m it t ir e m , p a r a q u e o h o r r o r d u z ir l o g o n o s P ó v o s c o n q u i f t a d o s o feu p r o p r io i d i ô m a , p o t
do c a f t i g o o s n a o o b r i g u e a d e f à m p a r a r a s lu a s P o v o a ç o e n s , f e r i n d i í p u t a v e l , q u e e f t e h e h u m d o s m eio s m a is e f f ic a z e s p a r a
t o r n a n d o p a ra o s e íc a n d a lo fo s erro s d a G e n t ilid a d e . d e fte r r a r dos P óvos r u ftic o s a b a r b a r id a d e d o s fe u s a n t i g o s
3 N ao fe p o d e n d o n e g a r , q u e o s ín d io s d e fte E fta d o íè c o f t u m e s ; e t e r m o f t r a d o a e x p e r i e n c ia , que a o m e fm o p a flo ,
c o n íè r v á r a ò a t é a g o r a n a m e fm a b a r b a r id a d e , c o m o lè v iv e f- q u e l è in t r o d u z n elles o u f o d a L in g u a d o P r in c ip e , q u e os
íè m n o s in c u lto s S e r t o e n s , em q u e n a íc ê r a ò , p r a t ic a n d o o s c o n q u ifto u , fe lhes r a d ic a ta m b é m o a f f e é t o , a ven eraçao , e

p e flim o s , e a b o m i n á v e i s c o f t u m e s d o P a g a n i f m o , n a o f ó p ri­ a o b e d iê n c ia ao m e ím o P r in c ip e . Ò b fe rv a n d o p o is to d a s

v a d o s d o v e r d a d e i r o c o n h e c i m e n t o d o s a d o r a v e i s m y ft e r io s d a a s N a ç o e n s p o lid a s d o M u n d o e f t e p r u d e n t e , e f ó lid o í y f t e m â ,

n o lfa S a g r a d a R e lig iã o , m a s a té d as m e f i n a s c o n v e n iê n c ia s n e f t a C o n q u i f t a íè p r a tic o u t a n t o p e lo c o n tr á r io , q u e ÍÓ c u i d á -


xaó o s p rim e ir o s G o n q u i f t a d o r e s e fta b e le c e r n e lla o u ío d'
Tem poráes , q u e f ó í è p o d e m c o n f e g u i r p e l o s m e io s d a c iv ili­
L í n g u a , q u e c h a m a r á ó g e r a l ; in v e n ç ã o v e r d a d e i r a m e n t e r*
d a d e , d a C u l t u r a , e d o C o m m e r c i o : E f e n d o e v i d e n t e , q u e as
m in a v e l, e d ia b ó lic a , p a r a q u e p r iv a d o s o s í n d i o s ò '
p a ie r n á e s p r o v i d e n c i a s d o N o ílò A u g u f t o S o b e r a n o , f e diri­
a q u e lle s m e i o s , q u e o s p o d i a ó c iv iliz a r , p e r m á n e
g e m u n ic a m e n t e a c h r i f t i a n i z a r , e c i v i l i z a r e f t e s a t é a g o r a in -
r u ílic a , e b a r b a r a f u j e i ç a ó , e m q u e até a g o r a f e
fe h c c s, c m ií è r a v e is P ó v o s , p a r a q u e í à h i n d o d a ig n o r â n c ia >
A 2
e r u ftic id a d o , a q u e l è a c h a ó r e d u z i d o s , p o f l a ó lè r u teis a ü >
aos
( 4 ) (s )
O iH ciaes das P o v o a ç o e n s , fè m e m b a r g o dos h o n ra d o s e m p r e ­
P a r a d e fte r r a r e f t e p e r n ic io f if fim o a b u f o , fe r á h u m d o s p r i n -
gos que e x e r c ita v a o , m u itas v e z e s era o o b r ig a d o s a rem a r
c ip á e s c u id a d o s d o s D i r e â o r e s , e f t a b e l e c e r n a s fu a s r e f p e f t i -
as C a n ô a s , o u a fer J a c u m á u h a s , c P ilo to s d ellas , c o m e íc a n -
vas P o vo a ço en s o u íb d a L in g u a P o r tu g u e z a , n a õ c o n fe n -
d a lo ía d e fo b ed ien cia á s R e á e s L e y s d e S u a M a g e f t a d e , q u e
t in d o p o r m o d o a l g u m , q u e o s M e n in o s , e M e n in a s , q u e
f o i fervid o reco m en d ar a o s P a d r e s M iflio n a r io s p o r C a r t a s d o
p e rte n ce re m ás E fc ó la s , e t o d o s a q u e lle s í n d i o s , q u e -fo r e m
J . , e. 3 . d e F e v e r e ir o d e 1 7 0 1 . firm adas p e la íu a R e a l M a o ,
c a p a ze s d e in fir u c ç a õ n e f t a m a t e r ia , u fe m d a L i n g u a p r o p r ia o g r a n d e cu id ad o q u e d e v ia õ te r em g u a r d a r a o s ín d io s a s h o n ­
d a s lu a s N a ç o e n s , o u d a c h a m a d a g e r a l ; m a s u n ic a m e n t e d a ras , e os p riv ilé g io s c o m p e te n te s a o s feu s p ó f t o s : E te n d o
P o rtu g u e za , na fo r m a , q u e S u a M a g e f t a d e te m r e c ó m e n d á i co n fid era çaÕ a q u e nas P o v o a ç o e n s c iv is d e v e p r e c ií i m e n t e
d o e m r e p e tid a s o r d e n s , q u e a té a g o ra f e n a ó o b fe r v á r a ó c o m h a v e r d ive rfa g r a d u a ç a ó d e P e ílo a s a p ro p o r ç ã o d o s m in iíle -
to ta l r u in a E íp ir itu a l, e Tem poral do E fla d o . rio s q u e ex ercita ó , a s qu áes p e d e a r a z a ó , q u e í c ja ó tr a ta d a s c o m
7 E c o m o e f t a d e t e r m i n a ç ã o h e a b a f e fu n d a m e n t a l d â a q u elía s h o n r a s , q u e íè d e v e m a o s íèu s e m p r e g o s : R e c o m e n ­
C iv ilid a d e , que íè p e rte n d e , h a v e r á e m to d a s as P o v o a ç o é s d o a o s D ir e & o r e s , q u e aflim e m p u b lic o , c o m o e m p a r tic u la r ,

d u a s E f c ó la s p u b lic a s , h u m a p a r a o s M e n i n o s , n a q u a l l e lh e s h o n r e m , e c ftím e m a to d o s a q u e lles ín d io s , q u e fo r e m J u i ­


z e s O rd in á rio s , V e r e a d o r e s , P r in c ip le s , o u o c c u p a r e m o u tr o
e n íi n e a D o u t r i n a C h r i í l a a , a le r , e f c r e v e r , e c o n t a r n a fo r ­
q u alq u er p o fto h o n o r íf ic o ; e ta m b e m a s fu as fa m ília s ; d a n d o -
m a , q u e fe p r a t i c a e m t o d a s a s E f c ó l a s d a s N a ç o e n s c i v i liz a ­
lh e s a ftè n to n a íiia p r e íè n ç a ; e tr a ta n d o -o s c o m a q u e lía d iftin -
d a s ; e o u tr a p a r a a s M e n i n a s , n a q u a l , á le m d e f e r e m in f lr u i -
ç a õ , q u e lhes f o r d e v id a , c o n fo r m e a s fu as r e f p e & iv a s g r a d u a -
d a s n a D o u tr in a C h r i í l a a , í è lh e s e n íi n a r á a l e r , e f c r e v e r , li­
ç o e n s , e m p r e g o s , e c a b e d a e s ; p a r a q u e , v e n d o - í è o s d ito s í n ­
a r , fa z e r r e n d a , c u ílu r a , e to d o s o s m a is m in ifté r io s p r ó ­
d io s eftim ad os p ú b l i c a , e p a r tic u la r m e n r e , c ü id e m e m m e re ce r
p r io s d a q u e lle í è x o . c o m o íèu b o m p r o c e d im e n to a s d i f t i n â a s h o n r a s , c o m q u e í â o
8 P a r a a í u b f i f t e n c í a d a s fo b r e d it a s - E í c ó I a s , e d e h u m tratad os ; fe p a r a n d o -lè d a q u e lle s v í c i o s , e d e fte r r a n d o a q u e l-
M e ítr e , e hum a M e ftra , que devem íè r P e ílo a s d o ta d a s d e ias baixas im a g in a ç o e n s , q u e in fe n fiv e ím e n te o s r e d u z ir ã o a o
b o n s c o f l u m e s , p r u d ê n c i a , c c a p a c id a d e , d e í b r t e , q u e p o í l â ó p refen te a b a t im e n t o , e v ile z a .
d e fe m p e n h a r as i m p o r t a n t e s o b r i g a ç o e n s d e fe u s e m p r e g o s ; 1o E n tr e o s ia ftim o fo s p r in c íp io s , e p e m ic io f o s a b u fo s ,
f e d e f t in a r á ó orden ados fu flk ie n te s , p a g o s p e lo s Pays dos d e q u e te m re íu lta d o n o s í n d i o s o a b a tim e n to p o n d e r a d o , h e
m e f in o s í n d i o s , o u p e la s P e fT o a s , em c u j o p o d e r e lle s v i v e ­ fo m d u vid a h u m d e lles a in ju fta , e e íc a n d a lo íà in t r o d u e ç a ó d e
r e m , c o n c o r r e n d o c a d a h u m d e lle s c o m a p o r ç a ó , q u e f e lh e s lh es ch am arem N eg ros ; q u e r e n d o t a lv e z c o m a i n f â m i a , e vi-?

a r b itr a r , o u em d in h e ir o , ou em e ífe ito s , q u e fe r á f e m p r e le z a d e fte n o m e , p e r íiia d ir -lh e s , q u e a n a tu r e z a o s tin h a , deftè*


n a d o p a ra eferavo s d o s B r a n c o s , c o m o r e g u la r m e n te f e i m à g k
c o m a tte n ç a ó á g r a n d e m ife r ia , e p o b r e z a , a q u e e lle s p r e l e n -
n a a re fp eito d o s P r e to s da. Ç o f t a d e A f r i c a . É p o r q u e , a lé m d e
te m e n te fe a c h a ó r e d u z id o s . N o c a fo p o r é m de naó haver nas
P o v o a ç o e n s P e lT o a a l g u m a , q u e p o l i a f e r M e l l r a d e M e n i n a s ,
p o d e r á ó e fta s a t é á i d a d e d e d e z a n n o s f e r e m in ítr u id a s rta E f -
le r preju d icialiífim q á c iv ilid a d e d o s m e fh tô s í n d i o s e f t e a b o -
m m a v e l a b u fo , fe r ia in d e c o r o íò á s R e á e s L e y s d e S u a M á
g e l t a d e c h a m a r . N egros a h u n s h o m e n s , q u e o m e f i n o S e n h o r
4
c ó la dos M e n in o s , o n d e ap ren d erão a D o u tr in a C h r i í la a , a
f o if e r y t d p n o b i h t a r , re d e c la r a r p o r ife n to s d e t o d à ,
le r , e e f c r e v e r , p a r a q u e j u n t a m e n t e c o m a s in fa lliv e is v e r d a ­
des d a n o ífa S a g r a d a R e lig iã o a d q u ir a o c o m m a io r f a c ilid a ­
d e o u fo d a L i n g u a P o r t u g u e z a . e N egros a o s í n d i o s , n e n í q u e e i e s m è f m o f
9 C on corren do m u ito p a r a a r u ílic id a d e d o s ín d io s a
e n tr e
V ile z a , e
m e fin o s 1
o a b a t im e n t o , e m q u e t e m f id o e d u c a d o s , p o is a t e os
-r in c ip a e s , S a r g e n t o s m a io r e s , C a p ita e n s , e m a is
O ffic i-
(<0

e n t r e íi d e f t e n o m e c o m o a t é a g o r a p r a t i c a v a o ; p a r a q u e c o m - te v ic io . P ara d e ftr u ir p o is d i e p o d e ro fo in im ig o do bem


p reh en dcn do d i e s , q u e lh e s n a ó c o m p e t e a v i l e z a d o m e fm o com m u m do E fta d o , e m p r e g a r ã o o s D . r d l o r e s t o d a s a s lu a s
n o m e , p o f l a ó c o n c e b e r a q u c i l a s n o b r e s i d e a s , q u e n a t u r a lm e n - f o r c a s e m f a z e r e v i d e n t e a o s m e fin o s Í n d io s a. d e f o r m id a d e
t e in f ii n d e m n o s h o m e n s a e í l i m a ç a õ , e a h on ra. d c ífe v ic i o ; p e r f u a d in d o -lh e s com a m a io r c fh c a c .a o quan­
ii A ‘ C l a l l è d o s m e í m o s a b u f o s f è n a ô p ó d e d u v id a r , t o f e r á e f c a n d a l o f o , q u e , a p p lic a n d o S u a M a g e f t a d e t o d o s o s
que p e r t e n c e t a m b é m o i n a l t e r á v e l c o f t u m e , q u e í è p r a tic a v a m e io s p a r a q u e e lle s v i v a ó c o m h o n r a , e e íb m a ç a o , m an d an ­
e m t o d a s a s A l d e a s , d e n a ó h a v e r h u m f ó í n d i o , q u e t i v e f l è fo~ d o - l h e s e n tr e g a r a a d m i n i f t r a ç a ó , e o g o v e r n o T e m p o r a l d a s
bren om e. E para íè e v ita r a g r a n d e c o n fiiíà ó , q u e p r e c iía - fu a s r e f p e é íiv a s P o v o a ç o e n s ; a o m e fm o te m p o , em q u e Io
m e n t e h a v i a d e r e f u lt a r d e h a v e r n a m e l i n a P o v o a ç a ó m u it a s d e v i a ó c u id a r e m f e f a z e r b e n e m e r ito s d a q u e lla s d iítin ò r a s h o n ­
P e ífo a s c o m o m e fm o n o m e , e aca b arem d e co n h ece r o s ín ­ ras , f e in h a b ilite m p a r a e l l a s , c o n t in u a n d o n o a b o m in a v c l

d io s c o m to d a a e v id e n c ia , q u e b u íc a m o s t o d o s o s m e io s d e os v i c i o d a s íiia s c b r ie d a d e s .
h on rar, e t r a t a r , c o m o f e f o f l è m B r a n c o s ; t e r á ó d a q u i p o r d i­ 14 P orém com o a r e fo r m a d o s c o f t u m e s , a in d a e n tr e

a n te to d o s o s ín d io s fo b r e n o m e s , h a v e n d o g r a n d e c u id a d o hom ens c i v i l i z a d o s , h e a e m p r e z a m a is a r d u a d e c o r if e g u i r - íè ,

n o s D i r e é t o r e s e m lh e s i n t r o d u z i r o s m e í m o s A p p e J i í d o s , q u e o s e íp e c ia lm e n t e p e lo s m e i o s d a v io lê n c ia , e d o r ig o r ; e a m e f-

d a s F a m í lia s d e P o r t u g a l ; p o r í è r m o r a lm e n t e c e r t o , q u e te n ­ m a n a tu r e z a n o s e n íi n a , q u e f ó í è p ó d e c h e g a r g r a d u a lm e n ­
te a o p o n to d a p e r f e iç ã o , v e n c e n d o pouco a p o u co o s o b fta -
d o e lle s o s m e í m o s A p p e i l i d o s , e S o b r e n o m e s , d e q u e u í à ó òs
c u lo s , q u e a r e m o v e m , e a d if fic u lt a ó : A d v i r t o a o s D i r e é í o r e s ;
B r a n c o s , e a s m a is P e í f ô a s q u e í è a c h a o c i v i li z a d a s , c u id a r á ó
q u e p a r a d e fte r r a r n o s í n d i o s a s e b r i e d a d e s , e o s m a is a b u f o s
e m p r o c u r a r o s m e io s lic ito s , e v ir t u o f o s d e v i v e r e m , e í è tr a ­
pon d erad os, u f e m d o s m e io s d a f u a v i d a d e , e d a brandu ra ;
ta re m á íu a im ita ç a ó .
p ara q u e n a ó f u c e e d a , q u e d e g e n e r a n d o a re fo r m a c m d e fe f-
12 Sendo ta m b é m in d u b ita v e l, q u e p a ra a in c iv ilid a -
p e r a ç a ó , í è r e tir e m d o G r ê m i o d a I g r e j a , a q u e n a t u r a lm e m e
d e , e a b a t i m e n t o d o s í n d i o s , t e m c o n c o r r i d o m u it o a i n d e c ê n ­
o s c o n v id a r á d c h u m a p a r t e o h o r r o r d o c a f t i g o , e d a o u tra a
c ia , com que fe tr a ta õ e m fu a s ca fà s , a íliftin d o d iv e r fà s F a -
c o n g e n i t a i n c lin a ç a ó a o s barbaros c o ftu m e s , q u e fe u s P ays
m ilia s em h u m a fó , na qual v iv e m c o m o b r u to s ; fa lta n d o
lh e s e n f m â r a ó c o m a i n f t r u c ç a ó , e c o m o e x e m p lo .
á q u e lla s L e y s d a h o n e f t i d a d e , q u e í è d e v e á d i v e r f i d a d e d o s í è -
15 F i n a lm e n t e , f e n d o a p r o f a n id a d e d o l u x o , q u e c o n -
xos ; d o q u e n e c e íía r ia m e n te h a d e r e f u lt a r m a i o r r e l a x a ç a ó
íif t e n a e x c e f f i v a , e fu p e r f lu a p r e c io íid a d e d a s g a l a s , h u m v i ­
n o s v íc i o s ; fe n d o t a lv e z o e x e r c ic io d e l l e s , e fp e c ia lm e n te o
c i o d o s c a p i t á e s , q u e t e m e m p o b r e c id o , e a r r u in a d o o s P o ­
da to r p e z a , o s p r im e ir o s e le m e n to s com q u e os P a ys de F a ­
v o s ; h e la ít im o íb o d e í p r e z o , e t a ó e f c a n d a lo f a a m if e r ia , c o m
m íli a s e d u c a ó a í e u s f ilh o s : C u i d a r á ó m u it o o s D i r e é í o r e s e m
q u e o s ín d io s c o ftu m a ó v e f t i r , q u e f e f a z p r e c i í o in t r o d u z ir
d e fte r r a r d a s P o v o a ç o e n s e fte p r e ju d i c í a li f li m o a b u fo , p er-
n e lie s a q u e lla s i m a g i n a ç o e n s , q u e os p o ílà ó c o n d u z ir a h u m
íiia d in d o a o s ín d i o s q u e fa b r iq u e m a s fu a s c a f a s á i m i t a ç a ó
v ir tu o fo , e m o d e ra d o d e fe jo d e u fa r e m d e v e ftid o s d e c o r ó -
dos B ra n co s; fa z e n d o n e lla s d iv e r fo s r e p a r tim e n to s , onde
fo « , e d e c e n t e s ; d e ft e r r a n d o d e lle s a d e f n u d e z , q u e fe n d o
v iv e n d o as F a m ilia s c o m fe p a r a ç a ó , p o íT a ó g u a r d a r , com o
e fr e ito n a o d a v ir tu d e , m as da r u ftic id a d e , te m r e d u z id o a
R a c io n a é s , as L e y s d a h o n e ftid a d e , e p o li c ia .
t o d a e f t a C o r p o r a ç ã o d e g e n t e á m a is la m e n t á v e l m iíè r ia . P e
13 M a s con corren d o t a n t o p a r a a in c iv ilid a d e d o s í n ­
Io q u e o r d e n o a o s D ir e & o r e s , q u e p e rfu a d a ó a o s ín d io s o s r
d io s o s v íc i o s , e a b u f o s m e n c i o n a d o s , n a o í è p ó d e d u v id a r ,
, o s h a t o s d e a d q u ir ir e m p e l o fe u t r a b a lh o c o m q u e í è r
q u e o d a c b r i e d a d e o s t e m r e d u z i d o a o u l t i m o a b a t im e n t o ; vi-
v e f t i r á p r o p o r ç ã o d a q u a li d a d e d e fu a s P e íT o a s , e d a s
c ío e n tr e c-llc-s t a ó d o m i n a n t e , e u n iv e r f à l , que apenas k
çoen s d e íè u s p ó f t o s ; n a o c o n í è n t i n d o d e m o d o a '
co n h ecera hum lú í n d i o , q u e n a ó e f t c j a f u j e i t o á to r p e z a d e i­
( 8 ) (9)
an dem n ü s , e f p e c i a jm e n t e a s m u lh e r e s emquafi f e d a s * * » , * ,
n e ld a d e " " ekaR < M o * * « “ » » ^ iio r r o r d a r n e f i n S ^

p i n g m d o - f e to d a s . a s R e á e s L e y s , q u e a t é a g o r a v ilc g io s , e nos em p re go s, na 4
em an arao d o T h r o n p , a o b o m r e g im e n d o s ín d io s ^ a o l e m
de" % D e p o is q u e o s D i r e f l o r e s t iv e r e m oos
e fo m tu a l, e te m p o r a l d e fie s : E q u e r e n d o o s n o ífo s A u c u fto s
M on arcas, q u e o s m e f in o s í n d i o s p e l o m e i o d o í è u h o n e fto í n d i o s e fta s f o i i d a r , e im e r e d a m e s

t r a b a l h o , f e n d o u t e i s a, l i , e o n c o r r a ó p a r a o fó lid o e fta b e -
í : e x a m in a r
J e q m e n to d o E f t a d o , f a z e n d o - f e e n tr e e í l e s , e os M oradores
r e c ip r o c a s a s u t i l i d a d e s , e c o m m u n ic a v e is o s in t e r e íf e s , cò m o
ja f e d e c la r o u n o § . I X . d o R e g im e n to d a s M iftb e n s ; para
v e m fe r as a d ja c e n t e s á s fu as r e f p e a i v a s P o v o a ç o e n s ) f a o c o m ­
? fe iv id o o m e ím o S e n h o r m a n d a r e n tr e g a r ao s P a­
p e te n t e s p a ra o f u f t c n t o d a s fu a s c a f a s , c f iim ih a s ; e p a r a n e l
d res M i f f í o n a n o s a a d m in if t r a ç a o E c o n ô m i c a , e P o l i t i c a d o s
fa z e r e m a s p la n t a ç o e n s , e a s la v o u r a s ; d e f o r t e , q u e c o m a a b u n -
n r eím o s í n d i o s ; c u j o s i m p o r t a n t e s fin s f ó í è p o d ia ó c o n fe -
d a n c ia d o s g e n c r o s p o f t a ó a d q u ir ir a s c o n v e n iê n c i a s , d e q u e a t e
g n ir p e lo s m e io s d a C u l t u r a , e d o C o m m e r c i o : D e t a l lo r t e í è
a g o r a v iv ia ó p r i v a d o s , p o r m e io d o c o m m e r c i o e m b e n e n c i o
e x e c u t a r ã o e fta s p i i í f i m a s , e R e á e s D e t e r m i n a ç o e n s , q u e a p p íi-
co m m u m d o E fta d o . E a ch a n d o q u e o s ín d io s n a o p o llu e m
p a d o s o s í n d i o ? u n ic a m e n t e á s c o n v e n iê n c i a s p a r t ic u la r e s , naó
terra s fu ffic ie n tc s p a r a a p l a n t a ç a o d o s p r e c io f o s f r a é t o s , que
A ° m ,,ttÍ o m e i o a{g u m o s fe p a r a r d o C o m m e r c i o , e d a
A g r ic u lt u r a . P a r a c o n f è g u i r p o i s e ft e s d o u s v i r t u o í ò s , e i n t e -
1
p r o d u z e f t e fe r tiliífim o P a i z ; o u p o r q u e n a d if tr ib u iç a ó d e l -
w s c n aó o b íè r v a r a ó a s L e y s d a e q u id a d e , e d a ju ftiç a ; o u

I7
r e la n te s f i n s , o b íè r v a r a õ o s D ir e & o r e s as o rd en s lè g u in te s .
E m p r im e ir o l u g a r c u id a r á ó m u it o o s D i r e é l o r e s e m
m e s p e r fu a d ir o q u a n t o lh e s í è r á u t i l o h o n r a d o e x e r c í c io d e
p o r q u e as te r r a s a d ja c e n t e s á s f u a s P o v o a ç o e n s ío r a o dadas
e m íefm a rias á s o u tr a s P e f i o a s p a r t i c u l a r e s ; le r a o o b r i g a d o s o s
D i r e & o r e s a r e m e tte r l o g o a o G o v e r n a d o r d o E fta d o hum a
c u ltiv a r e m a s fu a s t e r r a s ; p o r q u e p o r e f t e i n t e r e íf a n t e t r a b a -
lifta d e to d a s a s terra s fitu a d a s n o c o n t i n e n t e d a s m e f m a s P o v o ­
mo n a ó fó t e r a ó o s m e io s c o m p e t e n t e s p a r a fu f t e n t a r e m c o m
a ç o e n s , d e c la r a n d o o s í n d i o s , q u e í è a c h a ó p r e ju d ic a d o s n a
a b u n d a n c ia a s fu a s c a f a s , e fa m ília s ; m a s v e n d e n d o o s g e n é -
d iftr ib u iç a ó , para fe m an d a rem l o g o r e p a r tir n a f ô r m a q u e
ros, q u e a d q u ir ir e m p e lo m e io d a c u ltu r a , fe a u g m e n ta rá ó
S u a M a g e fta d e m anda.
n e lle s o s c a b e d á e s á p r o p o r ç ã o d a s l a v o u r a s , e p la n t a ç o e n s *
ao C o n l i f t i n d o a m a io r f e l i c i d a d e d o P a i z na abun-
q u e fiz e r e m . E p a ra q u e e fta s p e rfu a fo e n s c h e g u e m a produ­
d a n c ia d e p a Ô , e d e t o d o s o s m a is v í v e r e s n e c e f ik r io s p a r a a
z ir o e ffè ito , q u e fe d e fe ja , lh e s f a r á ó c o m p r e h e n d e r o s D i r e -
c o n fe r v a ç a ó d a v id a h u m a n a j e lè n d p a s te r r a s , d e q u e f e c o m -
«ores, q u e a fu a n e g lig e n c ia , e o fe u d e í c u i d o , t e m fid o a
p o e m e f t e E f t a d o , a s m a is f e r t e i s , e a b u n d a n t e s , q u e í e r e c o ­ ii
c a u f a d o a b a t i m e n t o , e p o b r e z a , a q u e f e a c h a o r e d u z id o s ;n a Ó
n h e c e m n o M u n d o ; d o u s p r in c íp io s t e m c o n c o r r i d o ig u a lm e n -?
°m ittin d o f in a lm e n t e d i l i g e n c i a a l g u m a d e i n t r o d u z ir n e lle s
te para a co n fte m a ç a ó , e m ile r ia , q u e n e lle l è e x p e r i m e n t a i
a q u e lla h o n e f t a , e lo u v á v e l a m b iç a ó , que d e ft e r r a n d o d a s O p r im e ir o h e ã o c io f id a d e , v i c i o q u a í i i n f e p a r a v e l , e congê­
^ p u b lic a s ° p c r n ic io íb v ic io d a o c io fid a d e , as c o n ftitü e p o - n it o a to d a s a s N a ç o e n s in c u lt a s , q u e fe n d o ed u cadas n a s d e n -
jfàs t r e v a s d a í u a r o f t i c i d a d e , a t é m e fa lt a ó a s lu z e s d o n a tu ­
qU C o n l è q u e n t e m e n t e lh e s p e r f u a d ir á ó o s D i r e â o r e s , r a l c o n h e c i m e n t o d a p r o p r ia c o n v e n i ê n c i a . Q íè g u n d o h e o
cm n re y1' ^ - l,a M a g e f t a d e d e o s h a b i li t a r p a r a t o d o s o s errad o - u f ò , q u e a t é a g o r a f e f e z d o t r a b a lh o d o s m e lm o s l n -
P bOSi u n io r ijic o s , t a n t o o s n a ó in h a b ilita r á p a r a efta s o c c u -
B d io s ,
paçoen s’

u
O *) ( *3 )

v ic fc ík , e z e lo dos D ir e & o r e s , f e n d o m a is p o d e r o f o , q Ue a s r e fe r id o s í n d i o s o b f e r v e m ,I | d o o f i E
íu a s p r a c h c a s , o in im ig o c o m m u ra d a fr o x id a ó , e n e g L e n n iffim o P r e la d o d e l i a D r e c e f e
eia[ d<w í n d i o s , que com a fu a a p p a r e n te fu a v id a d e os tem
r a d ic a d o n o s fe u s p e ífim o s c o f t u m e s c o m a b a t i m e n t o to t a l d o
í n t e r e lje p u b lic o : P a r a q u e o G o v e r n a d o r d o E f t a d o , fe n d o in « d i f f i c u lt o íà ,e m q u a n to

r p r m a d o d a q u e lle s í n d i o s , q u e e n t r e g u e s a o a b o m in á v e l v ic io r a c i o n a v e l , e f ix o , p a r a f e “ X R eal; a . t e a d e n -
d a o c i o ü d a d e fa lt a r e m a im p o r t a n t i f lim a o b r i g a ç a ó d a C u l t u ­ to dos Lavradores, nem prejui o a desfazer intem*
ra d a s lu a s te r r a s , p o f l à d a r a s p r o v id e n c i a s n e c e lfa r ia s p a r a re­ d o por ^ f a S S d e s ; e
m e d ia r ta o í e n f iv e is d a m n o s ; feraÓ o b r i g a d o s o s D i r c & o r e s a p e ftiv a m e n te as K o l i a s p a r a i o n ic g , ía r is fa z e r
r e m e t t íir t o d o s o s a n n o s liu m a lifta d a s R o í T a s , q u e f e fiz e r e m p o r o u t r a a o p o u c o e f c r u p u lo , c o m q u e E c c le f ia f t i -
e f t c p r e c e i t o , p o r ig n o r a r e m a flim a s G e n í u r a s L c a e n a i u
d e c la r a n d o n e lla o s g e n e r o s , q u e f e p la n t á r a o ,p è la s fu a s q u a lid a -
c a ° , Pe m q o e i n c o r r e i o s r r a n s g r c lf o r c s d e l l c ; c o m o « s orro-
des | e o s q u e fe r e c e b e r ã o ; e t a m b é m o s n o m e s a flim d o s L a -
r o fo s c a ftiffo s , q u e o m e f m o S e n h o r lh e s t e m fu lm in a d o , fe -
» ^ u e c u lt l v a rf o o s d i t o s g e n e r o s , com o dos que naô
r a ó o b r ig a d o s o s ^ D i r c a o r e s n o t e m p o , q u e ju lg a r e m m a is o p -
t ia b a lh a r a o ; e x p lic a n d o á s c a u f a s , e o s m o t i v o s , q u e tiv e r a o
p o r t u n o ^ a e x a m in a r p c íT o a lm e n te t o d a s a s R o lT a s n a c o m p a ­
ç a r a la lt a r e m a t a d p r e c if a , c i n t e r e í f e n t e o b r i g a ç a ó ; p a r a q u e
n h ia d o s m e f m o s í n d i o s , q u e a s f a b r i c a r a o ; le v a n o com g
a v ií t a d a s r e fe r id a s c a u fa s p o í l à o m e f m o G o v e r n a d o r lo u v a r
dous L o u v a d o s , q u e fe ja ó p e flb a s d e fid e lid a d e , e u t t q r e u ,
^ ° t r a ^ a ^® .» e a a p p l i c a ç a ó 5 e c a í i i g a r e m o u tr o s a
hum p o r p a r te d a F a z e n d a R e a l , q u e n o m e a r a o o s D i r e t t o -
o c io lid a d e > e a n e g lig e n c ia .
re s : e o u t r o , q u e o s L a v r a d o r e s n o m e a r á ó p e la í u a p a r t e .
a r ^ e n d o in ú t e is t o d a s a s p r o v id e n c ia s h u m a n a s ,- q u a n - %o A o s d it o s L o u v a d o s r e c o m e n d a r ã o o s D i r e d o r e s ,
d o n a o fa o p r o te g id a s p e lo p o d e r o fo b r a ç o da O m n i p o tê n c ia
d e p o is d e lh e s d e fe r ir o j u r a m e n t o , q u e fe n d o c h a m a d o s p a ra
n in a ; p a r a q u e O c o s N o /!<> S e n h o r f e l i c i t e , ” e a b e n ç ô e o
a v a lia r e m t o d o s o s f r u e t o s , q u e p o u c o m a is , o u m enos p o d e­
t r a b a lh o d o s í n d i o s n a C u l t u r a d a s fuas te r r a s ,T e r á p r e c if o d e f ­
r ã o r e n d è r n a q u e lle a n n o a s d i t a s R o í T a s ; d e ta l í o r t e l e d e ­
eri a r d e t o d a s d i a s P o v o a ç o e n s ò d i a b ó li c o a b u ío d e fe n a ó
v e r a d ir ig ir p e lo s d i â a m e s d a e q u i d a d e , q u e f e a t t e n d a íe m p r e
pagarem D íz im o s . Em f ig n a l d o f u p r c m o d o m ín io r ê íe r v o u
á n o t o r ia p o b r e z a d o s í n d i o s j f a z e n d o - f e a d it a a v a l i a ç a o a fa ­
t f ^ J ra “ > ° P a r a « fe u s M i n i í l r o s , a d é c im a p a r t e d e t o d o s
v o r d o s A g r ic u lt o r e s . C o n c o r d a n d o o s d i t o s L o u v a d o s n o s v o ­
o s m ic r o s , q u e p ro d u z a. te r r a , c o m o A u t o r u n i v e r fa l d e to -
to s , fe f a r á l o g o a f le n t o e m h u m c a d e r n o , d e <jue a v a lia n d o
a o s e iie s b e n d o e fta o b n g a ç a o c o m m u a a to d o s o s C a th ó íic o s ,
o s L o u v a d o s F . , e F . a R o f l á . d e t a i í n d i o , j u l g á r a ó u n ifo r m e ­
c f o e lc a n d a lo la a r ü ftiC id a d e , com q u e te m lid o ed u ca d o s
m e n t e , q u e r e n d e ria n a q u e lle a n n o t a n t o s a lq u e ir e s , d o s q u a e s
os In d ie s , q u e n a o fó n a o r e c o n h e c i a ó a D e o s c o m e f t e lim i-
p e r t e n c e m t a n t o s a o D i z i m o : C u j o a f l e n t o d e v e f e r a f lig n a d o
t a t 1. u n o tr ib u to , m as á te i g n o r a v á ó a o b r i g a ç a ó q u e t in h a ó
p e lo s D i r e í í o r e s , L o u v a d o s , e jpelos m e f m o s L a v r a d o r e s . N o
J 0 :,l,s m z e r . P a r a d é f t e i r a r p o i s d o s I n d i ó s e f t e p e r n ic io íií-
c a io p o ré m d e naó co n co rd arem n o s v o t o s , . n q m earáó as C a ­
i n i o , c o f t u m e , q u e n a r e k ii d a d e í è d e v e r e p u t a r p o r a b u í o , p o r
m e r a s n á s ,P o v o a ç o e n s , q u e p a l i a r e m a í è r V i l l a s , e n a s q u e f i-
m a t é r i a , q u e , c o n i o r m e o D i r e i t o , n a ó 'a d m i t t e p r e íc r ip ç a ó ;
c a r e m f e n d o L u g a r e s o s f e u s r e f p e f t i v o s P r in c ip a e s 7 te r c e ir o
'I u e D e< )s N o l T o S e n h o r f e l i c i t e o s fe u s t r a b a l h o s , e a s
X t m V ã d ó j f aquém ^ o s D i r e R o r e s d a r a ó t a m b é m o ju r a m e n t o
zim i»"' >l,ras : o b r ig a d o s d a q u i p o r d ia n te a p a g a r os D i ­ p a r a q u e q e c id a ó a d ita a v a lia ç a o p e la p a r t e , q u e lh e p a rece r
q u e s u itiv ^ n a d é c im a p a r te d e t o d o s o s fr u é è o s , jü fto , d é q u è £e f a r á à i f e n t o n ó r e f e r id o c a d e r n o .
c x c e p c a ó al r*1* ’ ° ^ ° . t o ^ o s o s g e n e r o s , q u e a d q u i r i r e m , fem 30 C o n c lu íd a d é fte m o d o a a v a lia ç a o d o r e n d im e n to
g u m a j c u i d a n d o m u i t o o s D i r e é l o r e s , em que os
das
r e fe -
(*5 )
O f)
c i o n a d o li v r a T e r m o d e d e f p e z a ,
das R o ílà s , m an daráô o s D i r e d o r t s e x fta h ir d o ca d e m
m é n c io r iá d o h u m á F o l h a p e l o E í c r i v a ô d a Ç a n u s s í
que fe declara no da Receita; com a ' er c *• * P„ , **Oqa e
a u f e n c i a , o u i m p e d i m e n t o , p e l o d o P u b l i c o / p d a q iia l f e § Ü
obrigados a fazer o dito traníporte com pe Pinandòlhe a^f-
íegurança; efcoíhendoa mcUiOT a o ’ rno Vclla áquelía
v è f a z e r ^ c o b r a n ç a d o s D í z i m o s ; c u ja u n p o iita h a ^ liq u id a fe
lo c a r á em h um liv r o , q u e h a v e r á em to d a s a s ? X Ç! ^ “ T ^ c r m a i S capaz de dar conta «.m horrm .
d e ftin a d o u p íc a m e p te p a r a e f t e m in if t è r io , è r u b r i c a d o b e t ó
P r o v e d o r d a F a z e n d a R e a l : D e c la r a n d ò -f e n e lle e m o T itü lq
a d “ m 1 ^
d a R e c e i t a a íf im a.s d i f t i n í b s p a r c e l a s q u e f e receberão co - e p r o c e d e n d o d e ft a c u lp a v e l o m i lla o ou n a u fr a g a r a C a n ô a ,
m o^os nom ps d os L a v r a d o r e s , q u e a s e n t r e g a r ã o : C o fic liu m ou p a d e c e r a im p o r t â n c ia d o s D í z i m o s outro q u a lq u e r d e t n -
2 m o T fic a r á õ c o m a in d if p e n f a v c l o b r i g a ç a õ d e í a ü s f a z e r a
m o E fç r iv a o , e a ffig n a d o p e lo D i r e & o r , c o m o R e c e b e d o r d ds Fazenda Real todo o damno, que h ou ver. . ..
r e fe r id o s D i z u n o s . A d v e r tin d o p o rém q ü e nem h u m , nem ou­ , , F i n a lm e n t e , fe n d o p r e c ifa t o d a a c a u t e l a , e v i g i l â n ­
tr o , p o d e r á ô l e v a r e m o l u m e n t o s a lg u n s p e la s r e f e r i d a s d ilig e n ­ c ia , n a b o a a r r e c a d a ç a o d o s D i z i m o s ; c d e v e n d o e v ita r -le n e i-
c i a s , p o r f e r e m d i r ig id a s á b o a a r r e c a d a ç a ó d a F a z e n d a R e a l , t a im p o r ta n te m a t e r ia q u a lq u e r d e f o r d e m , c co n fu fa o ; ape­
a q u al p e rte n ce m e m to d a s a s C o n q u ifta s os D íz im o s n a c o r i- n a s fe fiz e r real e n t r e g a d e lle s n e f t e A l m o x a r i f a d o , o s m a n d a r á
fo n m d a d e d a s B u lla s P o n tifíc ia s ,

,3 f : ? P ara q u ç o s d ito s D ir e é lo r e s naÔ e x p e r im e n te m


p r e ju íz o a l g u m n a a r r e c a d á ç á ô d o s r e fe r id o s g e n é r o s , q u e l h e s
o P r o v e d o r da F a z e n d a R e a l ca r reg a r c m R e c e i t a v iv a a o A l -
m o x a r i f e ; d e c la r a n d o n e lla o n o m e d a V i l l a , d e q ü e v i e r a o o s
ta e s D i z i m o s , e o D i r e c t o r , q u e o s r e m e t t e o ; d e c u ja R e c e ita
n cao carregados em R e c e ita ; h a v e r á e m to d a s a s P o v o a ç o e n s m an d ará e n tr e g a r o d ito M in iftr o h u m a C e r t id ã o a o C a b o d à
num A r m a z é m , em q u e t o d o s e ft e s e ffè it o s fe p o í I a o c p n íè iv - C a n o a , p a r a q u e f ir v a d e d e f e a r g a a o d i t o D i r e c t o r ; e para
v a r liv r e s d e c o r r u p ç ã o , o u d e o u t r o q u a lq u e r d e t r i m e n t o ; f i - q u e a t o d o o t e m p o , q u e f o r r e m o v id o d o f e u e m p r e g o , p o íla
c a n d o p o r c o n t a d o s m e ír n o s D i r e i t o r e s o b e n e f ic ia r e m o s d i - d a r c o n t a s n e f ta P r o v e d o r i a p e la s m e f m a s C e r t i d o e n s d o li q u i ­
to sg e n e ro s , de íb r te , q u e p o r e f t e p r in c ip io n a ô òadeçaô a d o , q u e r e m e tt e o p a t a e lla . E dada que íe ja a d ita c o n ta n à
m e n o r d a m n ific a ç a ô , a t e ferem r e m é t t id o s p a r a e f t a P r ô v e d ò - fo r m a fo b r e d it a , o Provedor da F a zen d a R eal Lhe m a n d a r á
r ia . O q u e o s D ir e ilo r e s e x e c u ta r á ô n a fô r m a Íe g u ín te . p a f l a r p a r a fu a d e f e a r g a h u m a Q u i t a ç a ó g e r a l , q u e a p r e fe n ta -
S2 Em p r im e ir o l u g a r , m a n d a r á ô f a z e r d u a s g u i a s a u - r á a o G o v e r n a d o r d o E f t a d o , p a r a lh e f e r c ô n f t a n t e a f id e li d a ­
t h e n tic a s , q u e d e v e m í ç r e x t r a h i d a s fie !m ,e n te a í l i m do liv r o d e , e in t e ir e z a , c o m q u e e x e c u t o u a s l u â s o r d e n s .
^ l z ^n io s ? c o m o d a s F o l h a s d a s a v a l i a ç o e n s , q u e r e m e tte - 34 E fu p p o fto q u e d e v o e fp e ra r d a C h r i f t à n d a d e , e z e ­
r a o j tin ta m e n t e c o m o s e f f è i t o s a o P r o v e d o r d a F a z e n d a R e a l ; lo d o s D ir e fto r e s , a in v io lá v e l o b fe r v a n c ia d e to d o s o s P a r a -
fic a n d o ta m b é m com a o b r i g a ç a o d e i n v ia r â o G o v e r n a d o r d o g r a f o s r e f p e é liv o s á C u ltu lr a d a s te r r a s , p la n ta ç o è n s d õ s g e *
E fta d o as c o p iá s de hum a, e o u t r a li f t a . M as com o pôde n e r o s , e c o b r a n ç a d ó s D i z i m o s ; |k>r c o n f i a r d e lle s '; q ü e r ê p u f
u ic c e d c r , q u e a Ç a n ô a d o t r a n s p o r t e e x p e r i m e n t e i ie f t e s c a u - t a r á ô p e lo m a is e f t i m a v e l p f e m i o a i n c o m p a r á v e l h ò ü f a d e 1í è
d a lo fo s rio s a l g u m n a u f r a g i o , e lè r ia e n c a r g o n a ô f ó p e n o f o , em p re g a rem n o R e a l' fe r v iç b d e S u a M a g ê f t a d è : G ó m O
a s l e y s . d a J u f t i ç a ; - - q ú e ^ n d t í f e d p r o c o s ó s t r a b a l h e s ; :éiii<ro^

3
d s f ! ni ‘ P r o r t a v e I a o s D i r e é t o r e s ,
f e , a r A,) ^ a< l lc *la p e r d a ,
o f ic a r e m o b r i g a d o s á
q u e in c u lp a v e lm e n te a c o n t e c e r , p o r
fa -
m odos , d e v e m f é r c o m m ú a s a s u t ilid a d e s ; e ' o s in t é r é f lè s y p er^
t e n c e r á a o s D i r e & ô r è s a fe ir ta : p a r t e d e t ò d o s ó s f r ü t o S y q ú e ò s
c d in o t? 1. 'a toc?a a *“ n m de D ir e ito p a d ece r a p e n a q u em nap
z im o s iia a / ' ll ^a ’ r a n t o q u o o s D i j e i t o r e s e m b a r c a r e m o s D i- í n d i o s c u lt iv a r e m , !è d è t o d o s ò s g e n e r ò s - , q u e ã t íq ã ir i r ê m ;
ano;x d o t r a n s p o r t e , m a n d a r á ô lo g o f a z e r n o m en-
'• o n a d o
( I d )
(*7)
fe n d o c o m e f t iv e ís : E íè n d o c o m e f t iv e ís , f ô d a q u e lle s , queoí d o te r m ,n a ç o e n s a b a i * » d e c la r a d a s , a s q u a c s d e ^ £
m e fm o s ín d io s v e n d e r e m , o u c o m m ie f iz e r e m o u t r o q u ak rn er
n e g o c i o : P a r a q u e a n im a d o s c o m e f t e j u f t o , e r a c io n a v d L p r e -
m io , d e í è m p e n h e m c o m o m a i o r c u i d a d o a s im p o r t a n te s o b a -
c o m m e r c ia n te s .
haverá em to d a s a s P o v o a ç o e n s ,
g a ç o è n s d o f e u m in ifte r io ; e a m e f i n a c o n v e n ie n c ia q > a r tic u la r 38 P r im e ir a m e n te
lh e s f e r v i r á d e e f t i m u l o p a r a d i r ig ir e m o s í n d i o s c o m a p ó fliv e l q u a e s f e n a ó p ó d e c o n fe r v a r o e q i u -
P e z o s , e M e d id a s , f e m as
e r c io . E m t o d o e fte E f t a d o t e m fe i­
e f f ic a c ia n o i n t e r e í l k n t i ü i m o t r a b a l h o d a A g r i c u l t u r a . r lib r io n a B a l a n ç a d o c o m m
o s p crju d icia liiT im o s d a m n o s , que
35 . S e n d o p o i s a C u l t u r a d a s t e r r a s o f o l i d o p r in c ip io d o
c o m m e r c i o j, e r a in fa líiv e l c o n f e q u e n c ia , q u e é f t e f e a b a te íT e
á p r o p o r ç a õ d a d e c a d ê n c i a d a q u e l l a j e q u e p e l o t r a f t o d o s tem ­ r e flè s p ú b l i c o s , e parriculares; p o rq u e c o ftu m m t^ fe ven d

p o s v x eíT em a p r o d u z ir e f t a s d u a s c a u fa s o s l a f t i m o í õ s e íF e ito s d a em to d a s e f t a s P o v o a ç o e n s a F a r in h a , A tro s, e r « J f° Ç™


t o t a l r u in a d o E f t a d o . P ara re p a r a r p o is t a ô p r e ju d ic ia l, e P a n e ir o s , fe m q u e fo fT em a lq u e i r a d o s , p re e fa m e n te h a v ia o

fe n íiv e l d a m n o , o b fe r v a r á o o s D ir e ílo r e s a e f t e r e íp e i t o a s d e fe r r e c íp r o c o s o s p r e ju ifo s p e la f a lt a d e f e p u b l i c a , que he


o rd e n s fe g u in te s . r a b a f e fu n d a m e n ta l d e t o d o o n e g o c io . P a r a r e m e d ia r e l t a p e r
n ic io fiílim a d e f o r d e m , o r d e n o a o s D i r e f t o r e s c u id e m l o g o ,
z6 E n t r e o s m e i o s , q u e p ó d e m c o n d u z ir q u a lq u e r R e ­
e m q u e n as íu a s P o v o a ç o e n s h a ja P e z o s , e M e d i d a s , a s q u a e s
p u b lic a a h u m a c o m p le ta f e l i c i d a d e , n e n h u m h e m a is e f f i c a z ,
devem f e r a ffe rid a s p e la s r e fp e £ liv a s C a m e r a s j porq u e d e fte
q u e a i n t r o d u c ç a ó d o C o m m e r c i o , p o r q u e e íle e n r iq u e c e o s P o ­
m o d o , n e m o s í n d i o s p o d e r á ó f a lfific a r o s P a n e ir o s n a d e i m -
v o s , c iv iliz a a s N a ç o e n s , e c o n fe q u e n te m e n te c o n ftitu e p o d e -
n u iç a ó d o s g e n e r o s j n em as p e fíò a s , q u e c o m m e r c e iá o c o m
r ó z a s a s M o n a r q u i a s . C o n f i f t e e í lè n c i a lm e n t e o C o m m e r c i o n a
d i e s e x p e r im e n ta r ã o a v i o lê n c i a d e o s ía t is f a z e r .c o m o a lq u e i­
venda , o u c o m u ta ç a ó d o s g e n e r o s , e n a c o m m u n ic a ç a o c o m
res n a o o í è n d o n a r e a l i d a d e : E f t a b e le c e n d o - f e d e f t e m o d o
a s g e n t e s j e í e d e f t a r e íi ilt a a c i v i lid a d e , d a q u e lla o i n t e r e f l è ,
e n tr e h u n s , e o u t r o s a q u e lla m u t u a f i d e l i d a d e , f e m a qual
e a r iq u e z a . P ara q u e o s í n d i o s d e lt a s n o v a s P o v o a ç o e n s lo^
n e m o c o m m e r c io f e p ó d e a u g m e n t a r , n e m a in d a fu b liftir .
r e m a í o l i d a f e li c i d a d e d e t o d o s e í l e s b e n s , n a ó o m ittir á ó o s
Í í ir e f t o r e s d i l i g e n c i a a l g u m a p r o p o r c i o n a d a a i n t r o d u z ir n e lla s
39 E m lè g u n d o lu g a r , r e c o m e n d o a o s d ito s D i r e é l o -
res, ,'q u e p o r n e n h u m m o d o c o n f i n t a ó , q u e os í n d i o s , c o m m e r -
o C o m m e r c io , f a z e n d o l h e s d e m o n f t r a t i v a a g r a n d e u t il id a d e ,
c e ie m ào fe u ip le n o a r b ítr io $ p o r q u e n a ó p o d e n d o n e g á r - f e -
q u e lh e s h a d e r e f u lt a r d e v e n d e r e m p e l o f e u j u f t o p r e ç o a s d r o ­
Ih e s a lib e r d a d e d e v e n d e r e m , ó u co m m u ta re m os fr u & o s ,
gas , q u e e x t r a h ir e m d o s S e r t o e n s , o s f r u t o s , q u e c u lt i v a r e m ,
que tiv e r e m .c u ltiv a d o , â q u e lla s p e f f o a s , e n a q u e lla s p a r te s
e t o d o s o s m a is g e n e r o s , q u e a d q u ir ir e m p e lo v ir tu o íò , e lo u ­
d ò n d e lh e s p o f la r e fu lta r m a io r u t i l i d a d e ; n e m d e v e n d o pro-
v á v e l m e io d a fu a in d u ftr ia , e d o fe u tr a b a lh o .
h ib ir fe a o s m o r a d o r e s d o E f t a d o o c o m m e r c ia r c o m o s d ito s
37 H e c e r to in d iíp u ta v e lm e n te , q u e n a lib e r d a d e c o n -
í n d i o s n a s íu a s m e fin a s P o v o a ç o e n s ; p o r q u e d e fte m o d o f e
li f t e a a l m a d o c o m m e r c i o . M as fe m e m b a r g o d e íè r e fta a
f ic a r ia c o n f e r v a n d o á o d i o f a í è p a r a ç a ó , q u e a t é a g o r a f e p r a T
p r im e ir a , e m a is f u b f t a n c ia l m a x i m a d a P o l i t i c a ; co m o os ín ­
t i c o u e n tr e h u n s e o u tro s c o n tr a a s R e a e s in te n ç o e n s d e
d io s p e la f u a r u f t i c i d a d e , e i g n o r â n c i a , n a o p ó d e m c o m p r e h e n -
S u a M a g e fta d e , com o j á f é d e c la r o u n o § . I X . d o R e g i m é n - r
der a v e r d a d e ir a , e le g itim a r e p u ta ç a ó d o s íè u s g e n e r o s ; n em
t o idas M i f f o e n s ; » c o m o f u b p o f t o d a p a i t e d o s í n d i o s o d e í è n -
a pa n Ça }' ° j u f t o p r e ç o d a s f a z e n d a s , q u e d e v e m com prar p a ra
te r e flè , e a ig n o r q jic ia 5 e d a p a r t e d o s m o r a d o r e s , 0 çonhè^-
? c u u. * ° : P a r a í è e v i t a r e m o s i r r e p a r á v e is d o l o s , q u e a s p e f-
c i m e n t o , :.e a m b i ç a o j f ic a n d o a v e n d a d o s g e n e r o s a o a r b it r ip ,
lll' a ^ 'na<j o c n s d o s C o m m e r c i a n t e s d e f t e P a i z te m f e it o
e c o n v e n ç ã o d a s p a r te s , fa lt a r ia n o m e f in o ç o m m e rc ip . a i g u a l -
p a r a v e is d o s fe u s n e g o c i o s j o b fe r v a rá o o s D ir e é f o r e s as.
d e te r - C dade;
(* 8 ) ( 19 )
d a d e ; na6 p o d e r á ó o s í n d i o s a t é l è g u n d a o r d e m d e S ü a M a - , « a lt o d o a í n d i o s d a f u a e f q o i p a ç a d s o q o e f c - r a ^ “
g c f l a d e f e z e r n e g o c i o a l g u m f e m a a flif t e n c ia d o s fe u s D i r e é f ô - m e fin o s C a b o s , d e b a i x o d e j u r a m e n t o ,_ q u e j h e , d J ^ r a o o s
r e s , p a ra q u e r e g a l a n d o e l l e s r a c lo n a v e lm e n t e o p r e ç o d o a D ir e é lo r e s * p a r a f e a c a u t e la r e m o s i r r e p a i a \ u s d a m n o s , qu
fr u é lo s , e o v a lo r d as fa z e n d a s , fe ja o r e c ip r o c a s as, u tilid a ­ S d ^ ã b ís p d d e m c a n fa r m a s
d e s e n tr e h u n s , e o u t r o s c o m m e r c ia u t e s . te prcjudiciahfluno commerce , cm qm ô r e m d e p o iito
40 F i c a n d o p o i s n a l i b e r d a d e d o s í n d i o s o u v e n d e r lè u s r e m n a q u c ít e s P o r t o s m a n d a r a o o s U i t , P ,, r ____
f iu é lo s p o r d i n h e i r o , ou c o m u ta lo s p o r fa z e n d a s , na fô r m a
q u e c o ftu m a o a s m a is N a ç o e n s d o M u n d o $ f e n d o i u n e g a v e l -
c o m n ü u iü d u u ) » y ro
m e n te c e r t o , q u e e n tr e a s m e f m a s f a z e n d a s , h u m a s í à o n o c i­ c o n t in u a r a f u a v i a g e m ^ f i g n a n d o te r m o d e n a o c o n t r a t a r e m c
vas aos ín d io s , c o m o h e a a g u a r d e n t e , e o u t r a q u a lq u e r h e - o r e fe r id o g e n e r o , a ffim n a q u e l l a , c o m o e m o u t r a P o r o j g f t .
b id a f o r te ; e o u t r a s f e d e v e m r e p u t a r í u p e r f l u a s , a t t e n d e n d o 4 , Ío m e fm o te m p o , q u e p ara la v o r e c e r a h b e r d a d e
a o m ife r a v e l e f t a d o a q u e f e a c h a ó r e d u z i d o s ; n a o c o n íè n t ir á o d o c o m m e r c io , p e r m itto , q u e o s ín d io s p o íla o v e n d e r n a
o s D ir e é lo r e s , q u e e lle s c o m u t e m o s fe u s g e n e r o s p o r f a z e n ­ as, e em o u tr a s q u a e f q u c r - P o v o a ç o e n s o s g e n e r o s , que ad­

d a s , q u e lh e n a o f e j a o u t e i s , e p r e c if a m e n t e n e c e ft a r ia s p a r a q u i r ir e m , e o s f r u é l o s , q u e c u lt iv a r e m , e x c e p tu a n d o u n ic a ­
o fe u d e c e n t e v e ftid o , e d a s fu a s fe m ilia s , e m u ito m en o s m e n t e o s q u e f o r e m n e c e i lá r io s p a ra a l h f t e n t a ç a o d e lu a s c a -
p o r a g u a rd e n te q u e n e f t e E f t a d o h e o íim in a r io d a s m a io r e s fa s , e f a m íli a s : o q u e f ó p o d e r á o f e z e r a c h a n d o - f e p r e f e n t e o s
m iq u id a d e s , p r e t u r b a ç o e n s , é d e lb r d e n s . fe u s D i r e c lo r e s n a f o r m a a f lim a d e c la r a d a . O r d e n o a o s m e u s

• j- 4 * ^ c o m o P a r a e x t in g u i r t o t a l m e n t e , o i n j u f t o , e p r e ­
j u d i c a i c o m m e r c io da a g u a rd e n te , n aõ b a fta r ia í ó p r o h ib ir
D ir e é lo r e s d e b a ix o d a s p e n a s c o m in a d a s n o § . 8(>.., que nem
p o r f i , n e m p o r in r e r p o f ta p e f l o a p o í l à p e f f o a l m e n t e c o m p r a r
a o s ín d io s o c u m u ta r e m p o r e l ia o s f e u s e f f e it o s , n a o f e co m b - a o s í n d i o s o s r e ffe r id o s g e n e r o s , n e m e f t ip u ia r c o m e lle s d i r e -
n an do pena g r a v e a t o d o s a q u e lle s q u e c o ftu m a Õ in t r o d u z ir é la , o u in d i r e é la m c n t e n e g o c i o , o u c o n t r a t o a l g u m p o r m a is
n a s P o v o a ç o e n s e f t e p e r n ic io íi/ Iim o g e n e r o : O r d e n o a o s D i - r a c io n a v e l, e ju fto , q u e pareça.
r e & o r e s , q u e a p e n a s c h e g a r a o P o r t o d a s lu a s r e f p e & i v a s P o - 44 E para, q u e o s D ir e c lo r e s p o ffa o d à r h u m a e v i­
v o a ç o e s a lg u m a C a n ô a , o u o u t r a q u a lq u e r e m b a r c a ç a ô , a v a ó d e n te d e m o n ftr a ç a ó d a fu a f id e lid a d e , e d o fe u z e lo , e os ín ­
J o g o e x a m in a r p e í lo a lm e n t e , l e v a n a o n a íiia c o m p a n h ia o P r in ­ d io s p o f l a õ v e n d e r o s fe u s g e n e r o s liv r e s d e t o d o s o s e n g a n o s ±
c ip a l , e o E fc r iv a b da C am era ; e n a f e i t a d e lle s a P e f l o a , com q u e a t é a g o r a fo r a ó t r a t a d o s ; lo g r a n d o p a c iíic a m e n te a
q u e j u lg a r e m d e m a io r c a p a c i d a d e ; e a c h a n d o n a d ita em b a r- fo m b r a d a R e a l p r o te ç ã o d e S u a M a g e f t a d e , a q u e lla s c o n v e ­
c a ç a ó a g u a rd e n te ; ( q u e n a o f e j a p a r a o u f o d o s r a e ím o s í n ­ n iê n c ia s , q u e n a tu r a lm e n te lh e s p o d e m r e f u it a r d e h u m n e g o ­
d i o s q u e a r r e m a o n a f o r m a a b a i x o d e c la r a d a ) , p ren d erão lo ­ c i o li c it o , j u f t o , e v ir tu o fo : h a v e rá e m to d a s as P o v o a ç o e n s
g o o C a b o d a d ita C a n ô a , e o r e m e t t e r á õ a e f t a P r a ç a a or-, h u m liv r o , cham ado d o C o m m e r c io , r u b r i c a d o 'p e l o P r o v e ­
dem d o G o v e rn a d o r d o E fta d o ; to m a n d o p o r p e r d id a a d ita dor da Fazen da R e a l, n o q u a l os D ir è é lo r e s m a n d a r á ô la n ç a t
a g u a r d e n t e q u e l e a p p lic a r á p a r a o s g a f t o s d a m e í m a P o v o a - p e l o s E lc r iv a e n s v d a C a m e r a > o u d o p u b l i c o , e n a fa lta d e lle s
ç a o , d e q u e íe f a r á t e r m o d e t o m a d i a n o s liv r o s d a C a m e r a p e lo s M e ft r e s d a s E fc ó la s a flim o s f r u é l o s , e g e n e r o s , que
a f iig n a d a p e lo s D i r e é l o r e s , e m a is p e í l o a s q u e a p r e íe n c ia r e m . f e v e n d e r ã o , c o m o as fa ze n d a s p o r q u e fe c ó m u ta r a ó ; e x p li-

a!o 4 " M as, p o r q u e p ó d e f u c c e d e r , q u e f a z e n d o v ia g e m c a n d o -fe a re p u ta ça o d e fta s ,


o n o m e das p e ílo a s ,
e o p r e c o d a q u e lla s , e ta m b é m
q u e c o m m e r ç ia r a ó < c o m o s I n d i o s , d e c u ­
p a i t c >a C a n o a s p a r a o S e r t ã o , o u p a r a o u t r a q u a lq u e r
j o s a l f e i i t o s , q u e í e r á ó a f i g n a d o s p e lo s a n e ím o s D i r è é l o r e s , e
m a s frai'K í ^ a ' n d e fp e n fa v e lm e n te n e c e f l a r i o c o n d u z ir a lg u -
^ Ucn as a g u a rd e n te ; ou p a r a r e m e d io , o u p a ra . c o m m e r c i a n t e s , e x tr a h i u d o - í e h ü m a l i f t a e m f o r m a a u t e n t i c a ,
g a ft o
(21)

v e r d a d e ir a s m a x i m a s : P r im e ir a , q u e e m t o d o o n e g o c i o c r e f lè
a r e m e te r ã o to d o s o s a n n o s a o G o v e r n a d o r d o E f t a d o , pajr»
a u t ilid a d e a o m e f m o p a í l o , a q u e d e m in u e a d e íp e z a , en o
que f e p o f là e x a m in a r c o m a d e v id a e x a c ç a q a p u r e ía ., c o m -
e v id e n te m e n te c e r to , que a q u e lle g e n e r o , q n c p u d e r t a b n -
q u e e l le s í è c o n d u z i r ã o e m m a t e r i a t a p i m p o r t a n t e c o m o e f t a d é
c a r - f e c m m e n o s t e m p o , c c o m m e n o r n u m e r o d e t r a b a lh a d o ­
q u e d e p e n d e fe m d u v id a a fu b fifte n c ia , e a u g m e n to d o E f .
res, t e r á m e lh o r c o n í i i m o , e c o n f c q u e n t c m c n t e fera m a i s b e m
ta d o .
r e p u ta d o : S e g u n d a , q u e íe r ia í u n i n ia it ic n t e , ic ,a > S 111"
45 M a s c o m o t o d a s e f t a s p r o v i d e n c i a s f e d ir ig e m p ri­
to d a s as P o v o a ç o e n s d e q u e fc co m p o cm hum a M o n a r c h ia »
m e ir a m e n te , a m a io r u tilid a d e d o s í n d i o s ; e v e n d e n d o -íç o s
o u h u m E f t a d o , a p lic a n d o - f e á fa b r ic a , o u á e x t r a c ç a ó d e h u m
g e n e r o s n a C i d a d e f i c a r á í è n d o p a r a e lle s m a i s v a n t a j o f o , e u t i l
f ó e ffe ito , c o n f e r v a íle m o m e fm o ra m o d e c o m m e r c io ; nao
o c o m m e r c io ; a t t e n d e n d o p o r n u m a p a r te a m a io r r e p u ta ç ã o ,
f ó p o r q u e a a b u n d a e c i a d a q ü e lle g e n e r o o r e d u z ir ía a o u lt im o
p e h a d d e te r n e lla j e p o r o u tra a o lim ita d o d iíp e n d io , que

2e f a r á n o s t r a n lp o r t e s p o r f e r e f t e P a i z c e r c a d o p o r t o d a a p a r ­
te de R i o s , p e lo s q u a e s f e p ó d e j n t r a n í p o r t a r o s g e n e r o s c o m
a b a t im e n t o c o m t o t a l p r e ju ilb d o s c o m m e r c ia n t e s ; m a s ta m ­
b é m p o r q u e a s referiría s P o v o a ç o e n s n a o p o d e r ia o m u t u a t n e n -
t e ío C c o r r e r íè , c o m p r a n d o h u m a s o q u e lh e s fa lta , e v e n d e n ­
m u it a f a c i l i d a d e , e p o u c a d e íp e z a j recom en do aos D ir e t o ­
d o o u tr a s o q u e l h e í b b e ja .
res , q u e p e r f u a d a o o s í n d i o s p e lo s m e i o s d a f u a v i d a d e , q u a e s 48 N a in t e li g ê n c ia d e ft a s d u a s f u n d a m e n t a e s , e in te -
là õ n e fte c a f o , o p r o p o r lh e s a fiia m a i o r c o n v e n i ê n c i a , que r e ílà n t e s m a x i m a s , r e c o m e n d o m u it o a o s D ir e é f o r e s , q u e e f-
co n d u fa o p a ra a C id a d e to d o s o s g e n e r o s , e fru to s , q u e a liá s t a b e . e ç a ó o c o m m e r c i o d a s fu a s r e f p e t iv a s P o v o a ç o e n s , p e r f u -
p u d e r ia o v e n d e r n a s fu a s P o v o a ç o e n s ;o b íe r v a n d o o s D i r e t o r e s a d in d o ao s í n d i o s , a q u e lle n e g o c i o , q u e lh es f o r m a is u t il n a
n e f t a m a t é r i a a q u e lla m e í i n a f o r m a , q u e í è d e te r m in a n o s p a - fo rm a , que ten h o p o n d e ra d o , e a in d a m a is c la r a m e n t e e x p li­
r a g r a f o s í u b í è q u e n t e s a r e í p e i t o d o c o m m e r c io d o S e r t a ó . c a r e i. S e a s d it a s P o v o a ç o e n s e f t iv e r e m p r ó x im a s a o m a r , o u
46 N ao p o d e n d o d u v id a r -íè , q u e e n tr e o s ram os d o fitu a d a s n a s m a r g e n s d e R i o s , q u e fe ja o a b u n d a n te s d e p e ix e ,
n e g o c i o d e q u e í è c o n f t i t u e o c o m m e r c io d e ft e E f t a d o j n e n h u m í è r á a fe ito r ia d a s í à l g a s o r a m o d o c o m m e r c i o , d e q u e r e íu lt a -
h e m a is i m p o r t a n t e , n e m m a is u t i l , que o do S e r t a ó o qual r á m a io r u t ilid a d e , a o s i n t e r e llà d o s . S e porém o s R i o s , e as
n a o f ó c o n íifte n a e x tr a c ç a ó d a s p r ó p r ia s D r o g a s , q u e n e lle terra s a d ja c e n t e s á s fu a s P o v o a ç o e n s p r o d u íir e m c o m a b u n d a n -
p r o d u s a n a t u r e z a ; m a s n a s fe it o r ia s d e m a n t e i g a s d e ta rta ru ­ p ia c a c á o , fa lfa , cravo, o u o u t r o q u a lq u e r e f f e it o j e m p r e g a -
ga, f a lg a s d e p e ix e , o le o d e c u p a iv a , a z e ite s d e a n d ir o b a , e r á o o s D i r e & o r e s t o d o o fe u c u i d a d o e m a p lic a r o s í n d i o s a ef­
d e o u t r o s m u it o s g e n e r o s d e q u e h e a b u n d a n t e o P a i s ; em pre- te r a m o , d e n e g o c i o .
g a rá ó os D ir e to r e s a m a is e x a t a v ig ilâ n c ia , e i n c e f l à n t e c u i­ 49 P a r a a n im a r o s d i t o s í n d i o s a fr e q u e n ta r g o fto fà -
d ad o em i n t r o d u z ir , e a u g m e n ta r o r e fe r id o c o m e r c io nas m e n t e Q .in te r e flà n te c o m m e r c i o d o S e r t a ó , Ih e s e x p lic a r á ó o s
íu a s r e f p e t i v a s P o v o a ç o e n s . E p a r a q u e n e f t a in te r e íT a n r iflim a D i r e t o r e s ; , ; q u e d a q u i p o r d i a n t e t o d a a u t i l i d a d e , .q u e r e f u í-
m a te r ia p o f l à ó o s D i r e t o r e s c o n d u z i r - l e p o r h u m a r e g r a fix a , t a r d o í è u t r a b a l h o , í è d e ft r ib u ir á e n t r e e l l e s m e í m o s j c o r r e f p b n -
e in v a r iá v e l, o b íè r v a r á ó a f o r m a , lc r e v e r .
q u e l h e v o u a p r e íc d e n d o a c a d a h u m .0 in t e r e f lè á p r o p o r ç ã o - d o m e f m o trab a lh o ^
4 7 E m p r im e ir o l u g a r f e i n f o r m a r ã o d a qqu
uaall i d a d e d a s E c o m o a u t ilid a d e .d o r e f e r id o n e g o c i o d e v e í c r i g u a l p a r a t o -
te r r a s , q u e íà o a d ja c e n te s , e p r ó x i m a s á s fu a s P o v o a ç o e n s d o s - , o b f e r v a r á o o s D i r e é f o r e s n a n o m e a ç a ó , que? fiz e r e m , d^
e d o s e ffè ito s , d e q u e fa ó a b u n d a n te s : e a ch a n d o , q u e d e lla s p a ra , o t m e n c io n a d o c o m m e r c i o a fo r m a ?í è g u i n t e . A*
f-' p o d a r á e x t r a h i r c o m m a i o r f a c i l i d a d e , e fte , o u a q u e lle g e - ® as fe c o n c lu ir .«ó t r a b a i h o d a c u ltu r a das, te r r a s ^ i q u e ''
nQl° > e f l e fe r á o r a m o d e n e g o c i o a q u e a p liq u e m t o d o o íèu
cuk ado; b em e n te n d id o , q u e to d o o c o m m e r c io p a ra íè au-
4 a s :a s t â r c u n í U n d a s d e v e f e n b p r im e i t e o b jè à o T d o s
dadQ^r>í c h a i E a r á ó ^ á fu a ;p r é ífe n ç a to d o s-o s- íP »
g m e n ta r , e tlo r e c e r , d e v e fu n d a r -fe n e fta s d u as ío lid a s , c
ver-
(* » )
m a is í n d io s d e q u e c o n f t a r a P o v o a ç a õ : E a c h a n d o q u e t o d o * ta im p o r ta n te m a te r ia ; íè m p r im e ir o a p a r t ic ip a r e m a o s íè ü á
e fle s d c f e j a õ ir a o n e g o c i o d o S e r t ã o , o s n o m e a r a õ j u n t a m e n - r e fp e è f iv o s D i r e a o r e s . M a s f u p p o f t o e n c a r r e g o a o z e l o , e c u i­
te , c o m os P r in c ip a e s , g u a r d a n d o in v io la v e lm e n te as L e y s d a d o d a s C a m e r a s , e P r in c ip a e s a e x e c u ç a Õ d e to d a s e fta s p ro ­
da a lt e r n a t i v a : P o r q u e d e fte m odo e x p e r i m e n t a r ã o to d o s v i d e n c i a s , l h e r e c o m e n d o q u e a n te s d e e x p e d u e m a s C a n o a s
i g u a l m e n t e o p e z o d o t r a b a lh o ; e a fu a v id a d e d o lu c r o ; b em re co r ra õ p o r p e tic a ó a o G o v e r n a d o r d o E f t a d o , e x p lic a n d o
e n te n d id o , q u e a d ita n o m e a ç a o f e f a r á u n i c a m e n t e d a q u e l- o n u m ero d o s ín d io s , d e q u e fe c o m p õ e m a e fq u ip a ç a o d e f ­
la p a r te dos Ín d io s q u e p e r te n c e r e m á d iftr ib u iç a ô d a s P o v o a ­ ie s ; a ffira p a r a f e lh e s d e c la r a r o m o d o c o m q u e d e v e m p r o c e ­
ç o e n s co m o a b a ix o f e d e c la r a r á . d e r n a f a é lu r a d o C a c á o ; c o m o p a r a f e f a t is f a z e r e m o s n o v o s,
50 M a s c o m o n a Ô fe r ia j u f t o , q u e o s P r in c ip a e s , C a - d ir e ito s n a r o e fm a f ó r m a q u e f e p r a t ic a c o m o u t r o q u a lq u e r
p ita e n s m ó r e s , S a r g e n t o s m ó r e s , e m a is O f f i c i a e s , d e que fe m orador.
com p õem o g o v e rn o das P o v o a ç o e n s , a o m e ím o te m p o q u e 52 E c o m o a s C a n ô a s d iftin a d a s p a r a o n e g o c i o , nao
S u a M a g e f t a d e t e m o r d e n a d o n a s f u a s R e a e s , e p iiílim a s L e y s f ó d e v e m le v a r o n u m ero d e ín d io s c o m p e te n te s a fu a e f q u i-
u e í è lh e s g u a r d e m t o d a s a q u e lla s h o n r a s c o m p e t e n t e s á g r a - p a ç a õ , m a s a lg u n s d e f o b r e c e lle n t e , para q u e n a ó fu c c e d a ,

3 u a ç a ô d e fe u s p ó f t o s , í è r e d u z i if e m
c iz a r e m a ir p e f t o a l m e n t e
a o a b a tim e n to d e í è p r e -
á e x tr a c ç a o das d r o g a s d o S e n ã o ; 2
u e f a le c e n d o , e n fe rm a n d o , o u f u g i n d o a lg u n s , f iq u e m
h n ô a s n o s S e r t o e n s , e x p o f t a s a o u lt im o d e í è m p a r o , c o m o
as

p o d e r á õ os d ito s P r in c ip a e s m a n d a r n a s C a n o a s , q u è fo re m r e p e tid a s v e z e s t e m f u c c e d i d o ; p o d e r á õ a s m e íin a s C a m e r a s ,

a o d i t o n e g o c i o fè is í n d i o s p o r f u a c o n t a , n a o h a v e n d o m a is e P r in c ip a e s d a r lic e n ç a p a r a q u e a s í ò b r e d i t a s C a n o a s l e v e m

q u e d o u s P r in c ip a e s n a P o v o a ç a õ : E e x c e d e n d o e f t e n u m e r o , d e z a t é d o z e í n d i o s a lé m d a f u a e f q u i p a ç a ó , que fa ç a õ o n e­

p o d e r á õ m a n d a r a t é q u a tr o , Í n d i o s cada hum ; o s C a p ita e r is g o c io para fi; ifto íè e n te n d e fe a c a íb o s h o u v e r ; e q u e d e

m óres, S a r g e n to s m ó re s q u a tro ; e o s m a is O f f i c i a e s d o u s ; o s fo r te n e n h u m a í è j a õ d o s q u e p e r t e n c e m á d i f t r i b u i ç a ô d o Po­


v o ; p o r q u e a e f t e d e v e f ic a r í è m p r e f a l v o o f e u p r e ju íz o .
q u a e s d e v e m íè r e x tr a h id o s d o n u m e r o da r e p a r tiç a õ d o P o v o ;
53 T e n d o e n f in a d o a e x p e r i e n c ia , q u e o s m e f m o s C a ­
f ic a n d o o s fo b i e d it o s O f f i c i a e s c o m a o b r i g a ç a õ d e lh e í à t i s f a -
bos , a q u e m fe e n tr e g a õ o g o v e r n o , e a d ir e c ç ã o das C a ­
zerem o s fc u s fe lla r io s n a fó rm a d a s R e a e s orden s d e S u a
M a g e fta d e . E q u e r e n d o o s d it o s P r i n c i p a e s , C a p ita e n s m ó ­ n o a s , d e v e n d o fu f t e n ta r a f é p u b lic a d e f t e C o m m e r c i o , a t e m
n a õ fó d e m in u id o , m a s t o t a l m e n t e a r r u in a d o ; p o rq u e a ttra -
res, e S a rg e n to s m ó r e s , v o l u n t a r i a m e n t e ir c o m o s ín d io s ,
h id o s d a u t ilid a d e p r o p r i a , fa z e m c o m 0$ m e li n o s Í n d io s ne-t
q u e f e lh e s d iftr ib u ir e m , á e x t r a c ç a o d a q u e lla s d r o g a s , o p o d e -
g o c i o s p a r t i c u la r e s ; b a f t a n d o fó e fta c i r c u m f t a n c ia para os
rá õ fa z e r a lte r n a tiv a m e n te , fic a n d o fe m p re m e t a d e d o s O f f i­
c o n ft it u ir d o l o f o s , e i n í q u o s ; t e r a õ g r a n d e c u id a d o o D i r e -
c ia e s n a P o v o a ç a õ .
é lo r e s e m q u e as C a m e ra s , é o s P r in c ip a e s fó n o m e ie m p a r a
51 G o n f i f t i n d o p o is n o a u g m e n to d e ft e c o m m e r c io o
C a b o s d a s r e fe r id a s C a n ô a s , a q u e lla s p e í f o a s q u e f o r e m de
f ó lid o e f t a b e le c im e n t o do E fta d o ; para q u e a q u e lle n a õ f ó
c o n h e c id a fid e lid a d e ; i n t e i r e z a , h o n r a , e verd ad e; c u ja .n o -?
fu b íifta m as f l o r e ç a , correrá p o r c o n ta d as C a m e r a s , nas P o ­
m eaçaõ íè f a r á p e la s m e f m a s C a m e r a s , e P r in c ip a e s , m ás.
voaçoens , que fo re m V i lla s , e n a s q u a e s f o r e m lu g a r e s p o r
fe m p r e a c o n t e n t o d a q u e lle s í n d i o s q u e f o r e m in t è r e f la d o s ..
c o n ta d o s P r in c ip a e s , a e x p e d i ç a õ d a s r e fe r id a s C a n o a s ; te n ­
I • 54 F e i t a d e fte m o d ò a f o b r e d it a n o m e a ç a Õ , fe íá o lo ­
d o a fe u c a r g o , o m a n d a lla s p r e p a r a r e m t e m p o h a b i l ; p ro-
g o ch am ad o s ás C a m e ra s o s C a b o s n o m e a d o s , p a ra a ífig n a -
veilas d o s m a n t im e n t o s n e c e f la r io s ; e d e tu d o o m a is , q u e fo r
rem te rm o d e a c e it a ç a õ ; o b r i g a n d o - f e p o r f u a p è f t b á ., e b é f ls ,
p r e c ifo - p a r a q UC p o í f a õ f a z e r v i a g e m a o S e r ta õ ; c u ja s d e l -
x n a õ f ó a d a r c o n t a d e t o d a , a im p o r t â n c ia q u e r e c e b e r e m p e r ­
& p e z a s Se la n ç a r ã o n o s liv r o s d a s m e l m a s C a m e r a s ; c o m a c o n -
4 t te n c e n te á q u e lla e x p e d iç a õ ; m a s á f a t i s f a ç ã õ d e .q u a lq u e r p r e r
O iç a o p o r é m d e q u e n a õ p o d e r á õ t o m a r r e l ò l u ç a õ a lg u m a n e f -
ta ju íz o ,
O *)
(* 4 )
Mó p A r í executar com effeito fem dar parte ao Governado,
ju iz o , q u e p o r fu a c u l p a , n e g lig e n c ia , o ü d e fc u id ò h o u v e r
do Eftado. D e todo o dinheiro, que liqu,da,nente importara
n o d ito n e g o c io . E c o m o f e m e m b a r g o d e t o d a s e fta s c a u te lla s
venda dor fobreditos genero, pagara 0_d.ro 1 h e W r r o em
p o d e r ã o fa lta r o s d ito s C a b o s á s c o n d iç o e n s , a q u e l e f u je i-
pr.me.ro lugar o , Dizimos á fazenda R ea l; emlTegundo ar
ta re m j o u p o r q u e e íq u e c id o s d a fid e lid a d e , com q u e fe d e v e
defpezas, que fe fizeraÓ naquella exped.çao, em terceno a
t r a t a r o C o m m e r c i o c o m p r a r a ó a o s í n d i o s p a r tic itla r m e n te o s
porcaõ , que fe arbitrar ao Cabo da mefma Canoa j em quar­
e ffe ito s ; o u p o r q u e o s v e n d e r ã o a o s m o r a d o r e s , a n te s d e ch e ­
to ^ a fexta parte pertencente aos Direcfores; deftnbumdo-fe
g a r á s fiia s P o v o a ç o e n s j O r d e n o a o s D ir e é fo r e s , q u e lo g o
finalmente o remanecente em partes iguaes por todos os Índi­
n a c h e g a d a d a s C a n o a s , tir e m h u m a e x a â a i n f o r m a ç a ó n e í -
os intereflados. r r
ta m a t e r i a ; e achan do que os Cabos c o m m e t t e r a ô c u lp a 57 E para que de nenhum modo poflà haver conrulao
grave , a lé m d e fo r e m o b r ig a d o s a là t i s f a z e r e m o p r e ju iz o n a f ô r m a c o m q u e fe d e v e m p a g a r o s D i z im o s d o s g e n e r o s , q u e
e in d o b r o , q u e f e d e s tr ib u ir á e n t r e o s m e f m o s i n t e r e f l a d o s , f e e x tr a e m d o s S c r t o e n s , d e c la r o , que em q u a n to a o C a c a o ,
o s r e m e tte r a ó p r e z o s a o G o v e r n a d o r d o E f t a d o , p a ra m a n ­ C a fé , C ravo, e S a l f a , p e r t e n c e e fta o b r i g a ç a ó a o s m e ím o s ^
d a r p r o c e d e r c o n t r a e lle s á p r o p o r ç ã o d e fe u s d e h é to s . q u e co m p r a r e m o s re fe r id o s g e n e r o s , d o s q u a e s f e c o f tu n ia o
55 F e lic ita n d o D e o s N o f l o S e n h o r o C o m e r c io das p a g a r o s D i z i m o s n a m e fm a o ç c a í ia ó d o e m b a r q u e . A r e f p e ito
r e f e r id a s C a n o a s , v ir á ó e fta s e m d ir e itu r a ás P o v o a ç o e n s a p o r é m d o s m ais g e n e r o s , c o m o f a õ M a n t e i g a s d e T a r t a r u g a s ,
q u e p e r t e n c e r : n e lla s f e f a r á l o g o o m a n if e f t o a u t e n t i c o d e e to d a a q u a lid a d e d e P e i x e s , o le o s d e C u p a u b a , a z e it e d e
t o d a a i m p o r t â n c ia d a c a r g a : m a n d a n d o o s D i r e é f o r e s , la n ­ A n d ir o b a , e t o d o s o s m aís e f f e i t o s , e x c e p t u a n d o u n ic a m e n ­
ç a r n o liv r o d o C o m m e r c io co m to d a a d i f l i n ç a Ó , e c la r e ­ t e os f r u é lo s , q u e p r o d ü s a te r r a p o r m e io d a c u lt u r a , fe n d o
za o s g e n e r o s d e q u e c o n fta r a d ita c a r re g a ç a o : o q u e tu ­ e lle s r e m e tr id o s p a r a e fta C i d a d e , n e lla f e p a g a r á ó o s D i z i m o s
d o fe E x e c u ta r á , n a p r e fe n ç a d o s O ffic ia e s d a C a m e r a , e d ir ig in d o -fe n e f ta m a te r ia o T h e f o u r e i r o g e r a l p e la s G u i a s ,
de t o d o s o s í n d i o s i n t e r e f la d o s . C o n c l u í d a e ft a d ilig e n c ia , q u e lh e f o r e m r e m e ttid a s . E f e a l g u m d o s d ito s g e n e r o s f e v e n ­
com a b r e v id a d e q u e p e r m it tir o t e m p o , c u id a r ã o l o g o os d e r nas P o v o a ç o e n s , ie r a ó o b r ig a d o s o s D i r e é f o r e s a c o b r a r
D i r e é f o r e s d e p o is d e jn a n d a r e m e x tr a h ir d u a s g u ia s e m fo r­ o s D iz im o s o b f e r v a n d o a f ô r m a , q u e f e lh e s p r e f e r e v e n o p a -
m a d e t o d a s a s p a r c e l l a s , q u e fe l a n ç a r á n o liv r o d o C o m ­ ra g ra fo 30.
m e r c io , r e m e tte r p a r a e fta C i d a d e o s r e fe r id o e f f e it o s ; o r ­ 58 F in a lm e n t e c o m o , f u p p o f t a a r u f t i c id a d e , e i g n o ­
den an do aos C a b o s d a s m e íin a s C a n o a s , q u e apenas ch e­ r â n c ia d o s m e fm o s í n d i o s , e n tr e g a r a c a d a h u m o d in h e ir o ,
garem a e fte P o r to , e n tr e g u e m lo g o hum a d a s g u ia s ao q u e lh e c o m p e t e , feria o f f e n d e r n a o fó a s L e y s d a C a r i d a d e ,
G o v e r n a d o r d o E fta d o ; e o u tr a a o T h e z o u r e ir o g e r a l. d o m as d a J u ft iç a , p e la n o t o r ia in c a p a c id a d e , q u e te m a in d a
C o m m e r c io d o s ín d io s : P a r a c u jo e m p r e g o , p o r m e p are­ a g o r a d e o a d m in iftr a r e m a o f e u a r b ít r io , f e r á o b r ig a d o o T e -
c e r i n d i f p e n f a v e l m e n t e n e c e f l a r i o , n a s c ir c im f t a n c ia s p r e f e n - fo u r e ir o g e r a l a c o m p r a r c o m o d in h e ir o , q u e lh e s p e r t e n c e r
te s, te n h o n o m e a d o in te r in à m e n te o S a r g e n t o m ó r A n t o n io n a p r e f e n ç a d o s m e fm o s í n d i o s a q u e lla s f a z e n d a s d e q u e e lle s

R o d r ig u e s M a r t in s , a tte n d e n d o á g r a n d e fid e lid a d e , e n o - n e c e f li t a r e m : E x e c u t a n d o - f e n e f t a p a r te i n v io la v e lm e n t e a q r

t o r io z e l l o d e q u e h e d o t a d o . Ia s o r d e n s c o m q u e te n h o r e g u l a d o n e fta C i d a d e o p a g a r

56 T a n to que os C á b o s das C a n ô a s e n tr e g a r e m ao d o s d ito s í n d i o s , e m b e n e f ic io c o m m u m d e lle s . D er

T h e f o u r e ir o g e r a l as g u ia s d a c a r r e g a ç a o , te r á e fte h u m e f- a c a b a n d o d e c o m p r e h e n d e r c o m e v id e n c ia e f t e s m>r
d io s a f id e li d a d e c o m q u e c u id a m o s n o s fe u s ir
p iciu l c u id a d o , c o n fe r in d o p r im e ir o a s c a r g a s c o m as m e f-
m a s g u i a s , d e v e n d e r o s g e n e r o s , q u e r e c e b e r , d a n d o -lh e s u tilid a d e s , q u e c o r r e íp o n d e m a o fe u tr a fic o

a m e h o r r e p u t a ç a o , q u e p e r m i t t i r a q u a l i d a d e d e lle s , o q u e D
nao
c* o 07)
q u e jja b o a f é d e q u e d e p e n d e a fu b íifte n d a , e a u g m e n to d a e fte m o d o e n tr e h u n s , e o u tr o s r e c íp r o c o s o s i n t e r e f t e s , d e

Commercio. . „ q u e fe m d u v id a r e fu lta r á õ a o E f t a d o a s p o n d e r a d a s f e h c i d a -
jp S e n d o a d e f t r i b u i ç a o d o s Í n d i o s , h u m d o s p rin ci­ oes. . . •
p a e s o b je é lo s a q u e f e d i r i g i r ã o f e m p r e a s P a t e m á e s p r o v i­ 62 P e l o q u e r e c o m m c n d o a o s D ir e c r o r e s , a p p li q u e m

d e n c ia s , e p iiílim a s L e y s d e S u a M a g e f t a d e : c o m o e m p re­ hum e fp e c ia liftim o a i i d a d o , a q u e o s P r in c ip a e s > a q u e m

ju íz o com m um d o s fe u s V a f l à l l o s , f e f a l t o u á o b fe r v a n c ia , co m p e te p r iv a t iv a m e n te a execuçaõ d a s O r d e n s r c íp c c liv a s

que e lla s d e v e r ã o t e r , com e íc a n d a lo fa ó ffe n fa n a õ fó das á d e ft r ib u íç a õ d o s ín d io s , n a ó f a lt e m c o m e lle s a o s m o r a ­

L e y s , d a J u f t i ç a , e P i e d a d e , m a s a t é d á q u e l l e m e f in o d e ­ d o r e s , q u e lh e s p r e fe n ta r e m P o r t a r ia s d o G o v e r n a d o r d o E A

c o r o , q u e fe d eve aos r e fp e ito fo s D e c r e t o s d o s n o ftb s A u - ta d o ; n a õ lh e s fe n d o Jicito e m c a f o a lg u m , nem ex ced e r


o n u m e r o d a r e p a r t i ç a õ ; n e m d e ix a r d e E x e c u t a r a s r e f e r i­
g u f t o s S o b e r a n o s : P a r a q u e a s d it a s R e a e s O r d e n s , t e n h a õ
d a s O r d e n s , a in d a q u e f e ja c o m d e tr im e n t o d a m a y o r u t ili­
a f u a d e v id a e x e c u ç ã o ; o b fe r v a rá o o s D ir e é lo r e s a s d e te r -
d a d e d o s m e f m o s ín d io s ; p o r f e r i n d i f p u t a v e lm e n t e c e r t o ,
m in a ç o e n s fe g u in t e s .
q u e a n e c e / íid a d e c o m m u a , c o n f t it u e h u m a L e y f u p e r io r a
60 D i & a õ as L e y s d a n a tu r e z a , e da r a z a õ , qu e a A
t o d o s o s i n c o m o d o s , e p r e j u i z o s p a r tic u la r e s .
lim c o m o as p a r te s n o c o r p o f y f i c o d e v e m c o n c o r r e r p a r a a
Ó3 E c o m o S u a M a g e f t a d e f o i f e r v id o d a r n o v o m e -
co n fe r v a ç a õ d o to d o , h e i g u a l m e n t e p e r c ií à e f l a o b r i g a ç a õ
t h o d o a o g o v e r n o d e it a s P o v o a ç o e n s ; a b o li n d o a a d m in iA
nas p a r te s , q u e c o n ftitu e m o to d o m o r a l , e p o litic o . Con­
ír a ç a õ tem p o ral , q u e os R e g u la r e s e x e r c i t a v a õ n e lla s ; e
t i a o s ir r e fr a g a v e ís d i é l a m e s d o m e ím o d ir e it o n a tu r a l , fe
cm c o n f e q u e n c i a d e lt a R e a l O r d e m , fic a c e f l a n d o a f ó r m a
fa lto u a t é a g o r a a e f t a i n d i f p e n f a v e l o b r i g a ç a õ ; a fF e é la n d o -,
d a r e p a r t iç a õ d o s í n d i o s ; o s q u a e s f e d e v i d i r á õ e m tres p a r ­
f e e í p e c io f o s p e r t e x t o s p a r a f e illu d ir a r e p a r t iç a õ d o P o v o ,
te s ; h u m a p e r te n c e n te aos P a d r e s M iflio n a r io s ; o u tr a ao
de q u e p o r i n f a lli v e l c o n f e q u e n c i a f e h a v ia d e í è g u ir a r u in a
íe r v iç o dos M o rad o res ; e o u tra á s m e fm a s P o v o a ç o e n s :
to ta l do E fta d o ; porque fa lt a n d o a o s m o r a d o ie s d eIJe os
O r d e n o a o s D i r e é l o r e s , q u e "o b fe rv e m d a q u i p o r d i a n t e in ­
o p e r á r io s de q u e n e c e llita ó para a f a b r ic a d a s L a v o u r a s ,
v io la v e lm e n t e , o p a ra g r a fo 15 . d o R e g im e n to , n o q u al o
e p a ra a e x tr a c ç a o das D r o g a s , p r e c if a m e n t e fe h a v ia de
d ito Sen hor m an d a , q u e , d iv id in d o -fe o s d ito s ín d io s e m
d im in u ir a c u ltu r a , e a b a te r o C o m m e r c io .
d u a s p a r te s i g u a e s , h u m a d e lta s f e c o n f è r v e íè m p r e n as fu a s
61 E f t a b e l e c e n d o - f e n e f t e f o llid o , e f u n d a m e n t a l prin-»
r e f p e f t iv a s P o v o a ç o e n s , a ílim p a r a a d e f e z a d o E f t a d o , com o
c ip io as L e y s d a d i f t r i b u i ç a ô , c la r a , e e v i d e n t e m e n t e c o m -
p a r a to d a s a s d ilig e n c ia s d o f e u R e á l í è r v i ç o , e o u tr a p a r a íe
E reh en d eráõ os D ir e & o r e s , q u e d e ix a n d o d e o b f e r v a r efta;
r e p a r tir p e lo s ^ M o r a d o r e s , n a õ f ó p a r a a e f q u i p a ç a o d a s G a -
ey , fe c o n f t it u e m R é o s d o m a is a b o m i n á v e l , e e fc a n d a -
nóas , q u e v a o è x tr a h ir D r o g a s a o S e r t a õ , m a s p a r a o s a j u d a r
lo z o d e lid o ; q u al h e em b a ra ça r o e fta b e le c im e n to , a con ­
na p la n t a ç a õ d o s T abacos, canas d e A fliic a r , A lg o d ã o , e
fe r v a ç a õ , o a u g m e n to , e to d a a fe lic id a d e d o E f t a d o , e
to d o s os g e n e r o s , q u e p ó d e m in r íq u e c e r o E f t a d o , e augm en-
fr u f t r a r a s p iiílim a s i n t e n ç o e n s d e S u a M a g e f t a d e , as quaes t a r o C o m m e r c io .
n a fó rm a d o A lv a r á d e 6 . d e J ü n h o d e 1755. P e r ig e m a
que a r e f e r id a d e f t r i b u i ç a õ , fè o b íè r v e co m
que os M oradores d e lle fe n a ó v e ja õ p r e c iz a d o s a m andar
a q u e i la r e é h d a o , e i n t e ir e z a , que pedem a s L e y s d a T u f tiç a
v ir o b r e i r o s , e t r a b a lh a d o r e s d e f ó r a p a r a o t r a fic o d a s fu a s
d ittr ib u tiv a , ceflTando d e h u m a v e z o s c la m o r e s d o s P ó v o s
L a v o u r a s , e c u lt u r a d a s f u a s terra s j e o s í n d i o s n a tu r a e s d o s
q u e c a d a d i a f e f a z i a õ m a is j u f t i f i c a d o s p e lo s a f f e é t a d o s p e r t e x ­
1>a)'s > n a õ fiq u e m p r i v a d o s d o j u f t o e f t i p e n d i o c o r r e íp o n d c n -
to s , c o m q u e f e c o n f i m d ia Ó e m ta Õ in te r e íT a n te m a t e r ia , as
tc f«u tr a b a lh o , qu e daqui p o r d ia n te fe lh e r e g u la r a
r e p e tid a s O r d e n s d e S u a M a g e f t a d e ; n a õ fe p o d e n d o c o m p r e ,
n a fó r m a das R e a e s O r d e n s d o d i t o S e n h o r : F a z c n d o - / ê p o r
e fte D a h en der.
(a 8 ) ( * 5>)
h e n d e r , f e e r a m a is a b o m i n á v e l a c a u f a ; f e m a is p r e ju d ic ia l te -n h a v i d o n a o b f e r v a n c ia d e l l a L e y , q u e f e d e c la r a n o p a ­
o efF eito ; h a v e r á d o u s liv r o s r u b r ic a d o s p e l o D e z e m b a r g a d o r ra g r a f o 5 . te m fid o a o r ig e m d c í è acharem q u a li d e fe r ta s as

1
J u iz de Fóra , em q u e f e m a t r ic u le m t o d o s o s í n d i o s c a p a z e s P o v o a ç o e n s , íe r a ô o b r ig a d o s o s D i r e é l o r e s , e P r in c ip a e s a
d e t r a b a l h o , q u e n a fó r m a d o § . X I L d o R e g i m e n t o f a õ to ­ r e m e tte r to d o s o s a n n o s a o G o v e r n a d o r d o E f t a d o h u m a L i í -
d o s a q u e lle s , q u e te n d o tre z e an n o s d e id a d e , n a ô p a flk r e m t a d o s tr a n fg r e flo r e s p a r a f e p r o c e d e r c o n tr a e lle s , im p o n d o -

d e f e f le n t a . fe llie s a q u e lía s p e n a s , q u e d e te r m in a a fo b r e d ita L e y n o r e fe­


6$ H um d e fi e s liv r o s f e c o n í è r v a r á e m p o d e r d o G o . r id o p a ra g r a fo .
vern ador d o E fta d o , e o u tro n o d o D e z e m b a r g a d o r J u iz de 68 H e v e r d a d e , q u e n a ô a d m itte c o n t r o v c r f i a , q u e e m
Fóra, c o m o P r e fid e n te d a C a m e r a : n o s q u a e s f è ir a ó m a tr i­ t o d a s a s N a ç o e n s c i v i l i z a d a s , c p o lid a s d o M u n d o a p r o p o r ­
c u la n d o os í n d i o s , que ch egarem á r e f e r i d a i d a d e ; r ifc a n d o - ção d a s L a v o u r a s , das m a n u fa c lu r a s , e do C o m m e r c io , fe

f è d e fte n u m e ro to d o s a q u e lle s , q u e c o n f i a r p o r C é r t id o e n s a u g m e n t» o n u m ero d o s C o m m e r c ia n te s , o p e r á r io s , e A g r i-

d o s fe u s P á r o c o s , q u e t iv e r e m f a l e c i d o , e o s q u e p e la r a z a Ó , c u i t o r e s ; p o r q u e c o r r e f p o n d e n d o a c a d a h u m o j u f t o , e r a c io -

d o s fe u s a c h a q u e s f e r e p u t a r e m p o r i n c a p a z e s d e t r a b a l h o : O n a v e l in tcre J fc p r o p o r c io n a d o a o fe u t r a f i c o , fe f a z e m r e c ip r o ­

q u e fe d e v e e x e c u ta r n a c o n fo r m id a d e d a s lifta s , q u e o s D ir e - c a s as c o n v e n iê n c ia s , e c o m m u a s a s u tilid a d e s . E p ara q u e as

é to r e s r e m e tte r á ó to d o s o s a n n o s a o G o v e r n a d o r d o E f t a d o , as Leys d i d if tr ib u iç a ó f e o b f e r v e m c o m r e c ip r o c a c o n v e n iê n c i a
dos m oradores, e d o s í n d io s , e e fte s f e p o ílh ó e m p r e g a r f e m
q u a e s d e v e m e f t a r n a fu a i n a ó a t é o f i m d o m e z d e A g o f l o ba­
v i o lê n c i a n a s u tilid a d e s d a q u e ílc s , d e íle r r a n d o - f e p o r e f t e m o ­
f a i li v e lm e n t e .
d o o p o d e r o fô in im ig o d a o c io f id a d e , fc r a ô o b r i g a d o s o s m o ­
66 S e n d o p o is a s r e fe r id a s lifta s o d o c u m e n to , a u te n ­
ra d o res, a p e n a s re ceb e re m o s í n d i o s , a e n tr e g a r a o s D ir e é lo r e s
tic o , p e l o q u a l í e d e v e m r e g u la r t o d a s a s o r d e n s r e f p e é liv a s á
t o d i a im p o r t â n c ia d o s fe u s f e l l a r i o s , q u e n a f ó r m a d a s R e á e s
m e ím a d e ílr ib u iç a ó , o rd e n o ao s D ir e é lo r e s , que as fk ç a ó to -
O r d e n s d e S u a M a g c f t a d e , d e v e m f e r a r b itr a d o s d e f o r t e , q u e
d o s os a n n o s, d e c la r a n d o n e lla s f id e liflim a m e n t e t o d o s o s í n ­
a c o n v e n iê n c ia d o lu c r o lh e s f u a v i í c o tr a b a lh o .
d io s , q u e fo re m c a p a z e s d e t r a b a lh o , n a fó r m a d o s p a r a g r a -
fo s a n te c e d e n te s , a s q u a e s fer á Õ a f li g n a d a s p e lo s m e f in o s D i -
6p M is p o r q u e d a o b f e r v a n c i a d e ft e p a r a g r a f o , fe p o ­
d e m o r ig in a r a q u e lia s r a c i o n a v e i s , e j u f t a s q u e ix a s , que a té
r e é lò r e s , e P r in c ip a e s , c o m c o m in a ç a õ d e q u e fa lta n d o á s L e y s
a g o r a F a zia ó o s m o r a d o r e s , de q u e d e ix a n d o f ic a r n a s P o v o a ­
d a verd ad e em m a t é r ia ta ó i m p o r t a n t e a o i n t e r e f le P u b l i c o ,
ç o e n s o s p a g a m e n to s d o s í n d i o s , a in d a q u a n d o e v i d e n t e m e n -
h u n s, e o u tro s fe r á ó c a ftig a d o s c o m o in im ig o s c o m m u n s d o
te r a o ílr a v a ó , q u e o s m e fm o s ín d io s d e fe r ta v a ó d e fe u f e r v iç o
E fta d o .
6y M a s a o m e fm o t e m p o , q u e reco m en d o aos D ir e ­ f è lh e s n a o r e ft.tu ia ô o s d it o s p a g a m e n t o s ; v i n d o p o r e fte m o ­
d o o s d e íè r to r e s a tir a r c o m o d o d o fe u m e f m o d e l i é l o , n a ô f ó
é lo r e s , e P r in c ip a e s a in v io lá v e l, e e x a é la o b fe r v a n c ia d e to ­
c o m ir r e p a r á v e l d a m n o d o s P ó v o s , m as co m t o t a l h a b a tim e n -
d a s â s O rd e n s r e f p e é li v a s á r e p a r tiç ã o do P o v o ; Ih eso rd e-
tq d o C o m m e r c io ; fe n d o t a l v e z e f t e o in iq u o f im a q u e f e deri-»
n o , q u e n a ô a p p f iq u e m í n d i o a l g u m a o f e r v i ç o p a r t i c u la r d o s
g i a t a ó p e r n ic io f o a b u f o ; p a r a f e e v it a r e m a s r e fe r id a s q u e ix a s ;
M o r a d o re s p a ra fó r a das P o v o a ç o e n s , f e m q u e e f t e s lh e a p r e -
O r d e n o ao s D ir e é lo r e s , q u e a p e n a s r e c e b e r e m o s f o b r e d it o s
fe n te m lic e n ç a d o G o v e r n a d o r d o E f t a d o , p o r e fc r ito ; nem
ie lla r io s e n t r e g u e m a o s í n d i o s h u m a p a r te d a im p o r t â n c ia d e l -
c o n lin ta ó , q u e o s d ito s M o r a d o r e s r e te n h a ô e m c a f a o s r e fe ­
Jes, d e i x a n d o fic a r a s d u a s p a r t e s e m d e p o iit o ; p a r a o q u e l i a *
r id o s í n d i o s a l é m d o te m p o p o r q u e lh e fo r e m c o n c e d id o s : O
vera em to d a s a s P o v o a ç o e n s h u m C o f r e , d e f t i n a d o ú n ic a *
q u a l fe d e c la r a r á n a s m e f m a s L i c e n ç a s , e ta m b é m n o s r e c ib o s ,
m e n t e p a r a d e p o f i t o d o s d it o s p a g a m e n t o s , o s q u a e s f e a c a b a -
q u e os M o r a d o r e s d e v e m p a lia r a o s P r in c ip a e s , q u a n d o lh es
e n tr e g a r e m o s í n d i o s . E c o m o a e íc a n d a lo fa n e g lig e n c ia , que o íc u u I É T ’ ■ co n a a n d o > S u e « vencêrao c o a ,
te m 70 Sue-
( 3° ) ( 3 1)

jo S u c c e d e n d o p o r é m d e íè r t a r e m o s In d to s d o fe r v íç o
ta deípeza dos traníportes, que f e arbitrará a proporção
dos m oradores a n te s d o t e m p o , q u e f e a c h a r e g u la d o p e la s
das dittancias das Povoaçoens a reípeito da meíina Cidade. E
quando os ditos Moradores pertcndao reputar as íuas fazen­
R e á e s L e y s de S u a M a g e fta d e , q u e n a fó r m a d o p a ra g r a fo
das , por exorbitantes preços , naó poderáo os D ireéfores
14 . d o R e g im e n to , a r e í p e i t o d e l t a C a p i t a n i a h e .d e í e i s m e -
aceitaUas em pagamento , com cominaçao de íatisfàzerem aos
z e s j e v e r e fic a n d o -fè a d ita d e íe r ç a ó , a q u a l o s m oradores d e -
meímos índios qualquer prejuízo, que fe lhe feguir do contra­
v e m ; f a z e r c e r t a p o r a l g u m d o c u m e n t o ; f ic a r á ó o s í n d i o s p e r­
rio. O que os meímos Direéfores obíèrvaraó em todos os ca-
d e n d o as d u a s p a r te s d o fe u p a g a m e n to , q u e l o g o f e e n tr e g a -
ío s , em que os Moradores concorrem por eíte modo com os
r á o a o s m e ím o s m o r a d o r e s . O q u e í è p r a t i c a r á p e l o c o n tr a r io
índios , ou feja fatisfàzendo-Ihes com fazendas o feu trabalho,
a v e r ig u a n d o - f e , q u e o s m o r a d o r e s d e r a o c a u ía - á d i t a d e fe r -
ou comprando-lhes os íèus generos.
çaó p o r q u e n e f t e c a l o n a o f ó p e r d e r ã o t o d a a im p o r t â n c ia d o
73 C o n liftin d o f in a lm e n te n a i n v i o l á v e l e x e c u ç ã o d e f *
p a g á m e n to , m a s o d o b r o d e lle . E p ara q u e os m oradores naó
te s P a rá g ra fo s o d e ft r ib u ir e m - íè o s í n d i o s c o m a q u e lla fid e li­
p o í l á õ a lle g a r i g n o r â n c i a a l g u m a n e f t a m a t e r i a , l h e s a d v i r t o
dade ; e in te ir e z a , que r e c ó m e n d a ó a s p iiílim a s L e y s d e S u a
jfin a lm e tite , q u e fa le íc e n d o -a lg u m ín d io n o m e ím o tr a b a lh o ,
M a g e fta d e , d ir ig id a s u n ic a m e n t e a o b e m c o m m u m d o s íè u s
o u i m p o í f i b i li t a n d o - f e p a r a e l l e , p o r c a u í a d e m o le f t i a , fe r á ó V a íla lio s , e a o ió iid o a u g m e n to d o E f t a d o : P a r a q u e d e n e ­
o b r i g a d o s a e n t r e g a r a o m e í m o I n d i o , o u a íè u s h e r d e ir o s o j u í - nhum m o d o íè p o íla ó illu d ir e fta s in t e r e íla n t ií lim a s d e t r e m i -
t o e f t ip e n d io , q u e t i v e r m e r e c id o . n a ç o e n s lè r a ó o b r i g a d o s o s D i r e é f o r e s a r e m e t t e r t o d o s o s a n -
71 E c o m o p e lo p a r a g r a fo 5 0 . d e ft e D i r e é f o r í o , fè n o s n o p r in c ip io d e J a n e i r o a o G o v e r n a d o r d o E f t a d o h u m a
c o n c e d e lic e n ç a a o s r r in c ip a e s , C a p ita e n s m ò r e s , S a rg e n to s lifta d e to d o s o s í n d i o s , q u e f e d e f t r ib u ir a ó n o a n n o a n t e c e ­
m ò r e s , e m a is O f f i c i a e s d a s P o v o a ç o e n s , p a r a m a n d a r e m a l ­ d e n t e ; d e c ía r a n d o -íè o s n o m e s d o s M o r a d o r e s , q u e os rece­
g u n s ín d io s p o r l u a c o n t a a o C o m m e r c io do S e r ta d , p o r lè r berão ; e em q u e t e m p o ; a im p o r t â n c ia d o s f e l l a r i o s , q u e fi-
ju fto , q u e í è lh e s p e r m i t t a ó o s m e i o s c o m p e t e n t e s p a r a í i i f t e n - caraó e m d e p o íito ; e o s p r e ç o s p o r q u e fo r a ó r e p u ta d a s as fa ­
t a r e m a s fu a s P e f t b a s , e F a m ília s c o m a d e c e n c ia d e v i d a a o s z e n d a s , c o m a s q u a e s f è f iz e r a Ó o s d i t o s p a g a m e n t o s ; p a r a q u e
í è u s e m p r e g o s , o b f è r v a r á o o s D i r e é f o r e s c o m o s r e fe r id o s O f ­ p o n d e r a d a s e fta s i m p o r t a n t e s m a té r ia s c o m a d e v i d a r e f le x ã o
f ic ia e s n a f ó r m a d o s p a g a m e n t o s , o q u e f e d e te r m in a a r e íp e i-*, f e p o f l à ó d a r t o d a s a q u e lia s p r o v i d e n c i a s , q u e í è j u l g a r e m p r e -
to dos M o r a d o r e s , e x c e p t u a n d o u n ic a m e n t e o c a f o e m q u e e l ­ c iía s , p a r a f e e v i t a r e m o s p r e ju d ic ia lif f im o s d ó l i o s , q u e f e ti-*
le s c o m o P e í l o a s m i í è r a v e is n a ó t e n h a ó d i n h e i r o , o u fa ze n d a s; nhaó in t r o d u z id o n o i m p o r t a n t i f lim o C o m m e r c i o d o S e r t a ó ,
com q u e p o í í à õ p r e f a z e r a i m p o r t â n c i a d o s S a la r io s , porqu e fa lta n d o -fe c o m e fc a n d a lo d a p ie d a d e , e d a razaó ás L e y s d a
n e f l e c a f o f e r á ó o b r i g a d o s a f a z e r h u m e f c r ip t o d e d i v i d a , a f f i g - J u ftiç a d e ftr ib u tiv a , n a r e p a r tiç a ó dos ín d io s , e m p r e ju iz o
n ad o por e lle s , e p e lo s m e í m o s D i r e é f o r e s , q u e fic a r a n o C o ­ c o m m u m d o s M o r a d o r e s , e á s d a c o m u ta t iv a fic a n d o p o r e f t e
fre d o d e p o fito , n o q u a l f e o b r i g u e m á f a t i s f à ç a ó d o s r e fe r id o s m o d o p r iv a d o s o s d ito s í n d i o s d o r a c i o n a v e l lu c r o d o í è u tra ­
S a lá r io s a p e n a s r e c e b e r e m o p r o d u é l o , q u e lh e s c o m p e t i n b a lh o .
j i D evendo a c a u te la r -fe t o d o s o s d ó l o s , que podem / r ■ -— ~ — i j ut i c d u m u i c u u z i o a s a s n r *
a c o n te c e r n o s p a g a m e n to s d o s í n d i o s , r e c o m e n d o m u ito a o s v o a ç o e n s d o s ín d io s , d e q u e fe c o m p õ e m e fte E fta d o ; h e d ig n a
D ir e é fo r e s , que no c a fo , q u e o s m o r a d o r e s q u e ír a o f a z e r o d e t a ó e íp e c ia l a t t e n ç a ó , q ü e n a ó d e v e m o s D ir e é fo r e s o m u tir
d ito p a g a m e n t o , e m f a z e n d a s ; a c h a n d o o s í n d i o s c o n v e n i ê n ­ d i lig e n o a a lg u m a c o n d u c e n te a o fe u p r e fe ito r e fta h e le c im e n -
c ia n e fte m o d o d e í a t i s f a ç a ó ; n a ó c o n íin ta ó d e nenhum m o­ t o . P e l o q u e r e c ó m e n d o a o s d ito s D i r e é f o r e s , que a p e n a s c h e ­
do , cjue e fta s í e j a ó re p u ta d a s p o r m a io r p r e ç o , d o q u e íè g a r e m a s f u a s r e f p e é h v a s P o v o a ç o e n s , a p p f iq u e m l o g o t o d a *
v e n d e n e fta C i d a d e ; p c r m i c t i n d o u n i c a m e n t e d e a v a n ç o a ju í-
as
(3 a ) (33)
a s p r o v id e n c ia s p a r a q u e n e lla s í è e f t a b e l e ç a d c a fa s d e C a m e ­ dos m c fín o s índios, que vivaócm Povoaçoens peque­
p o ra l
ra , e C a d ê a s p u b lic a s , c u id a n d o m u ito em q u e efta s fe ja d nas, fendo indifputavel, que á proporção do numero dos ha­
e r ig id a s e o m t o d a a f e g u r a n ç a , e a q u e lia s c o m a p o fliv è l gr a n ­ bitantes fc introduz nellas a civilidade, e Commeioo. E c o ­
deza. C o n f e q u e n t e m e n t e e m p r e g a r ã o o s D i r e é l o r e s h u m par­ m o p a r a fe executar efta Real Ordem ie devem reduz,r as A J -

t ic u l a r c u i d a d o e m p e r fu a d ir a o s í n d i o s , q u e f a ç a õ c a la s d e ­ d e a s a P o v o a ç o e n s p o p u lo fa s , in c o r p o r a n o- e , * - jj“ ,n
c e n t e s p a r a o s fe u s d o m ic illio s , d e ft e r r a n d o o a b u f o , e a v i - hum as a o u tr a s ; o q u e n a f ó r m a d a C a r t a d c ^ U n o r o
l e z a d e v i v e r e m c h o u p a n a s á i m i t a ç a ô d o s q u e h a b it a õ c o m o v e r c ir o d e ,7 0 1 . fir m a d a p e la R e a l m a o d c S u a M a g e f t a d e ,
b a r b a r o s o i n c u lt o l è n t r o d o s S e i t o e n s , f e n d o e v id e n te m e n t e fe n a i» p o d e e x e c u t a r e n tr e í n d i o s d e d iv e r fa s N a ç o e n s , le m

c e r to , q u e p ara o a u g m e n to d as P o v o a ç o e n s , c o n c o r r e m u i­ p rim eiro c o n f u lt a r a v o n t a d e d e h u n s , c o u tr o s ; orden o a o s

t o a n o b r e z a d o s E d if íc io s . D ir e c to r e s , q u e n a m e fm a lifta q u e d e v e m r e m e tte r d o s Í n ­

75- M a s c o m o a p r in c ip a l o r i g e m d o la m e n t á v e l e í la d o d io s n a f ó r m a a lf im a d e c l a r a d a , e x p liq u e m c o m t o d a a c la r e ­

a q u e a s d ita s P o v o a ç o e n s e f t a o r e d u z id a s p r o c e d e d e i è a c h a ­ z a a d i ít in c ç a d d a s N a ç o e n s i a d iv e r íid a d e d o s c o f t u m e s , q u e

rem evacuadas ; o u p o r q u e o s íè u s h a b i t a n t e s o b r i g a d o s d a s ha e n tr e e l l a s ; e a o p p o fíç a o , o u c o n c o r d ia em q u e v i­

v io lê n c ia s , que e x p e r im e n ta r ã o n e lla s , b u íc a v a o o r e fu g io vem ; para que, refleó U d a s t o d a s e fta s a r c u m f t a n c i a s , le

n o s m e f in o s M a t t o s e m q u e n a f e e r a o ; o u p o r q u e o s M o r a d o ­ p o lia d e te r m in a r e m J u n t a o m o d o , com q u e fe m v io lê n c ia

r e s d o E f t a d o u f a n d o d o i llic i t o m e i o d e o s p r a & ic a r , e d e ou­ d o s m e fin o s í n d i o s f e d e v e m e x e c u t a r efta s u tiliífirn a s r e d u c -

t r o s m u it o s q u e a d m in ift r a e m h u n s a a m b iç a ò , e m o u tr o s a çoen s.
m if e r ia , o s r e té m , e c o n f e r v a o n o f e u fe r v i ç o ; c u jo s p o n d e ­ 78 E m q u a n to p o rém a o s d e c im e n to s , fe n d o S u a M a ­

rados dam nos pedem h u m a p ro m p ta , e e ffic a z p r o v i d e n c i a : g e f t a d e í è r v i d o r e c o m m e n d a llo s a o s P a d r e s M if f i o n a r i o s n o sr

S e r ã o o b r ig a d o s o s D ir e f t o r e s a r e m e tte r a o G o v e r n a d o d o E f ­ § § . 8 . , e 9 . d o R e g i m e n t o , d e c la r a n d o o m e f in o S e n h o r
t a d o h u m m a p p a d e t o d o s o s í n d i o s a u fe n t e s , a ífím d o s q u e q u e c o n fia v a d e fie s e f t e c u i d a d o , p o r lh es te r e n c a r r e g a d o a

le ach aõ nos M a t to s , c o m o n a s c a íã s d o s M o r a d o r e s , para a d m in if t r a ç a á T e m p o r a l d a s A l d e a s ; c o m o n a c o n f o r m i d a d e

que e x a m i n a n d o - f e a s c a u ía s d a fu a d e f e r ç a õ , e o s m o tiv o s d o A lv a r á d c 7 d e ju n h o d e 1755. fo i o d ito S e n h o r fe r v id o

p o r q u e o s d ito s M o r a d o r e s o s c o n f e r v a o e m fu a s c a f a s , lè a p - rem o ver d o s R e g u la r e s o d ito g o v e r n o T e m p o r a l m a n d a n d o -o

p li q u e m t o d o s o s m e io s p r o p o r c io n a d o s p a r a q u e f e j a ó r e f t i t u í - e n tr e g a r a o s J u i z e s O r d i n á r i o s , V e r e a d o r e s , e m a is O í f i c i a e s

d o s á s f u a s r e íp e é f i v a s P o v o a ç o e n s . d e J u ftiç a , e a o s P r in c ip a e s r e f p e é l i v o s ; t e r a ó o s D i r e & o r e s

76 E co m o para c o n lè r v a ç a õ , e a u g m e n t o d e lla s n a o h u m a in c a n fa v e l v i g ilâ n c ia e m a d v e r t ir a h u n s , e o u tro s,

f e r ia p r o v id e n c i a b a f t a n t e o r e f t it u ir e m -f e a q u e lle s M o r a d o r e s , que a p r im e ir a , c m a is i m p o r t a n t e o b r i g a ç a o d o s íe u s p ó f í

c o m q u e fo r a õ e fta b e le c id a s , n a o f e i n t r o d u z in d o n e lla s m a io r t o s c o n f if t e em fo rh e c e r as P o v o a ç o e n s d e ín d io s p o r m e io

n u m e ro d e h a b ita n te s ; o q u e fó fe p o d e c o n fe g u ir , o u redu- dos d e c im e n to s , a in d a q u e fe ja á e u fta d a s m a io r e s d e f

z i n d o - f e a s A l d e a s p e q u e n a s a P o v o a ç o e n s p o p u l o f a s ; o u fo r ­ pezas d a R e a l F a zen d a d e S u a M a g e fta d e , c o m o à in im itá ­

n e c e n d o -a s d e ín d io s p o r m e io d o s d e fe im e n to s ; o b íè r v a r á ô vel , e c a t h o li c a p ie d a d e d o s n o lf ó s A u g u f t o s Soberan os,

o s D ir e é to r e s n e fta im p o r ta n te m a te r ia as d e te r m in a ç o e n s fe - te m d e c la r a d o em r e p e tid a s O r d e n s , p o r le r e f t e o m e io

g u in te s , a s q u a e s lh e s p a r t i c i p o n a c o n f o r m i d a d e das R e a e s m a is p r o p o r c i o n a d o p a ra f e d i la t a r a F é , e f a z e r f e refp eita -*

O rd en s d e S u a M a g e fta d e . d o , e c o n h e c i d o n e f te n o v o M u n d o o a d o r a v e l n ò m e d o n o f>
Io R e d e m p to r.
77 N o §. II. d o R e g im e n to o r d e n a o d ito S e n h o r ,
q u e as o v o a ç o e n s dos ín d io s c o n fte m a o m en o s d e 150 M o­ 79 E p a r a q u e o s d ito s J u i z e s O r d i n á r i o s , e P r in c ip a ls
r a i o res , pox n a o io r c o n v e n i e n t e a o b e m E í p i r i t u a l , e Tcm - p o íT a ó d e f e m p e n h a r c a b a lm e n t e t a ó a l t a , e im p o r t a n t e o b r f

que ^ gaçao*
(34) (35)

g a ç a ó , fic a r á p o r c o n t a d o s D i r e é l o r e s p e r fu a d ir -lh e s as g r a n ­ vencer de que aífiftindo naquellas Povoaçoens as referidas pcf-


d es u tilid a d e s E fp ir itu a e s , e T ê m p o r a es , q u e f e h a õ d e íè g u ir íoas, fc faraó fcnhoras das luas terras c le utihzaiaodo .
d o s d ito s d e c im e n to s , e o p r o m p to , e e ffic a z c o n c u r fo , que trabalho, c do feu Commercio; vindo por d i e n.odo a
a c h a r á o fe m p r e n o s G o v e r n a d o r e s d o E f t a d o , c o m o fié is e x e ­ bredita introducçaõ a produzir conn arios eneitos o
c u to r e s , q u e d e v e m fe r d a s e x e m p la r e s , c a t h o lic a s , e r e lio io -
tabelecimento das mefmas Povoaçoens ; ferao «bngados os
íiffim a s in t e n ç o e n s d e S u a M a g e f t a d e .
Direélores, antes de adnutnr as t-aes 1 eljoas, aa mnmmanifeftar-
lhes as condiçoens , a que ficao fujeitas , de que fe termo
——
8o M a s c o m o a R e a l i n t e n ç ã o d o s n o ft b s F id e liífim o s
nos livros da Camera afiignado pelos Dircctores , e pelas me.
M o n a r d ia s , e m m a n d a r fo r n e c e r a s P o y o a ç o e n s d e n o v o s í n ­
d io s fe d i r i g e , n a o f ó a o e f t a b e le c im e n t o d a s m e fm a s P o v o a ­
mas Peíloas admittidas. , lr. ^ ■
8a Primeira: Que de nenhum modo poderão polluir
çoens , e a u g m e n to d o E f t a d o , m as á c i y i li d a d e d o s m e fin o s
as terras, que na fórma das Reaes Ordens dc Sua Mageftade
ín d io s p o r m e io d a c o m m u n ic a ç a ô , e d o C o m m e r c io ; e pa^
fe acharem diftribuidas pelos índios , perturbando-os da pollc
r a e f t e v ir t u o ío fim p o d e c o n c o r r e r m u i t o a in t r o d u c ç a õ d o s pacifica delias, ou feja em fatisfaçaó de alguma divida , ou a
B r a n c o s n a s d ita s P o v o a ç o e n s , p o r te r m o f t r a d o a e x p e r ie n - titulo decontraélo,- doaçaó, difpofiçao, I cftamentaria , ou
c ia , q u e a o d io f a f e p a r a ç a ô e n tr e h n n s , e o u tr o s , em que de outro qualquer pretexto, ainda fendo apparen temente lici­
a té a g o ra fe c o n fe r v á v a Ô , te m f id o a o r ig e m d a in c iv iiid a d e , to , e honeflo.
a q u e f e a c h a ô r e d u z i d o s ; p a r a q u e o s m e fin o s í n d i o s f e p o f - 83 Segunda : Que feráô obrigados a confcrvar com os
í a o c iv iliz a r p e lo s fiia v iftim o s m e io s d o C o m m e r c i o , e d a c o m - índios aquella reciproca paz, e concordia, que pedem as Leys
m u n ic a ç á o ; e e fta s P o v o a ç o e n s p a i f e m a fe r n a o f ó p o p u l o - da humana Civilidade, confiderando a igualdade, que tem
f a s - ,m a s c i v i s ; p o d e r á o o s M o r a d o r e s d e fte E f t a d o , d e q u a l­ com elles na razao genérica de Valfallos de Sua Mageftade , e
q u e r q u a l i d a d e , o u c o n d iç ã o q u e f e j a o , c o n c o r r e n d o n e lle s tratando-íê mutuamente huns a outros com todas aquellas
a s c ír c u m fta n c ia s d e h u m e x e m p la r p r o c e d i m e n t o , a fliftir n a s honras , que cada hum merecer pela qualidade das fuas Peífo-
r e fe r id a s P o v o a ç o c n s , lo g r a n d o to d a s as h o n r a s , e p r i v ilé g i o s , as, e graduaçao de feus pólios.
q u e S u a M a g e f t a d e fo i fe r v id o c o n c e d e r a o s M o r a d o r e s d e lia s : 84 T e r c e ir a : Q u e n o s e m p r e g o s h o n o r ífic o s n a ô t e -

P ara o q u e a p r e fe n t a n d o lic e n ç a d o G o v e r n a d o r d o E f t a d o , n h a õ preferen cia a r e fp e ito d o s í n d i o s , a n te s p e lo c o n t r a r io ,

n a Ó f ó o s a d m it t ir á õ o s D i r e é l o r e s , m a s lh e s d a r a o t o d o o a u ­ h a v e n d o n eftes c a p a c id a d e , p re fer irã o fe m p r e a o s m e fm o s


B r a n c o s d en tro d as fu as re fp e é liv a s P o y o a ç o e n s , n a c o n fo r ­
x ilio , e f a v o r p o ftiv e l p a r a e r e c ç a ô d e c a f a s c o m p e t e n t e s á s
m id a d e das R e a e s O r d e n s d e S u a M a g e f t a d e .
fu a s P e if o a s , e F a m i l i a s ; e lh e s d iftr ib u ir á õ a q u e lla porção
85 Q u a rta : Q u e fe n d o a d m ittid o s n a q u e lla s P o v o a ­
d e terra q u e e lle s p o f i a ó c u l t i v a r , f e m p r e ju i z o d o d ir e it o d o s
ç o e n s p a ra civiliz a r o s í n d i o s , e o s a n im a r c o m o fe u e x e m p lo
ín d io s , que n a c o n fo r m id a d e d a s R e a e s O r d e n s d o d it o S e ­
á c u ltu r a d as terra s, e a b u íc a r e m to d o s o s m e io s l i c i t o s , e
n h o r fa o o s p r im á r io s , e n a tu r a e s fe n h o r e s dais m e fin a s ter­
v ir tu o fò s d e ad q u irir as c o n v e n iê n c ia s T e m p o r a e s , fe n a ò d e f-
ras; e d a s q u e aflim f e lh es d iftr ib u ir e m m a n d a r á ô n o t e r m o
p r e z e m d e trab a lh ar p e la s fu as m ã o s nas te r r a s , q u e lh e s f o ­
q u e lh e s p e r m it t e a L e y , o s d ito s n o v o s M o r a d o r e s tir a r fu a s
re m diftribuidas ; te n d o e n t e n d i d o , q u e á p r o p o r ç ã o d o trab a­
C a r t a s d e D a t a s n a f ó r m a d o c o f t u m e i n a lt e r a v e lm e n t e e f t a b e -
lh o m a n u a l, q u e fiz e r e m , lh es p e rm ittirá S u a M a g e f t a d e a q u e l­
le c id o . ........................ _
la s h o n r a s , d e q u e f e co n ftiru e m b e n e m e rito s p s q u e r e n d e m
EU ^ ^ P ortl u e o s í n d i o s , a q u e m o s M o r a d o r e s d e ft e fe r v i ç o ta õ im p o r ta n te a o b e m p u b lic o .
ad o rem r e p o f t o e m m á F é p e la s r e p e t id a s v i o l ê n c i a s , c o m 86 Q u i n t a : Q u e d e ix a n d o d e o b fe r v a r q u a lq u e r d as
c a õ d e llc a í í ra° a S ° ra J f i n a o p e r íu a d a o d e q u e a in t r o d u c - E 2 re fe -
es cs fer a fu m m a m e n te p r e j u d i c i a l ; d e ix a n d o - í e co n ­
ven cer
<30 ( 37 )
referidas condiçoens , feraõ logo expulfos das mefmas terras , pelos diéfames da reflexão , e da prudência, produzem muitas
perdendo todo o direito , que tinhaõ adquirido , aflim á pro­ vezes fins contrários, e póde íitcccdcr, que, contrahidos elles
priedade dellas , como a todas as Lavouras, e plantaçoens, matrimônios, degenere o vinculo cmdefprezo, c em diícor-
que tiverem feito. dia a mefma união ; vindo por efte modo a transforinarfe em
87 Para fe confeguirem pois os intereflantiffimos fins, inftrumentos de ruína os mefmos meios que deverão conduzir
a que fe dirigem as mencionadas condiçoens , que fao a paz , para a concordía ; recommendo muito aos Direéfores , que
a união, e a concordía publica , fem as quaes nao podem as apenas forem informados dc que algumas Pclloas , fendo ca­
Republicas fubfiftir, cuidaráo muito os Direéfores em appü- iadas, defprezao os feus maridos, ou as fuas mulheres, por
car todos os meios conducentes para que nas fuas Povoaçoens concorrer nelles a qualidade de índios, o participem logo ao
íè extingua totalmente a odiofa, e abominável diftincçaõ, que Governador do Eftado, para que fejao fecrctamcnte caftiga-
a ignorância, ou a iniquidade de quem preferia as conveni­ dos , como fomentadores das antigas difcordias, e pertuiba-
ências particulares aos incereífes públicos, introduzia entre os dores da paz, e união publica.
índios, e Brancos , fazendo entre elles quafi moralmente im- 91 Defte modo acabaráõ de comprehendcr os índios
poífivel aqnella uníaõ , e fociedade Civil tantas vezes recom- co:n toda a evidencia , que eítimanios as fuas pclloas} que nao
mendada pelas Reaes Leys de Sua Mageftade. dcfprczamos as fuas ailianças , e o íèu parentefeo que repu­
88 Entre os meios , mais proporcionados para tamos, corno próprias as fuas utilidades; c que deíèjamos,
fc confeguir tao virtuofo , util , e Tanto fim , nenhum he cordial, c fincéramente coníèrvar com elles aqnella reciproca
mais efficaz, que procurar por via de cafamentos efta im- uníaõ, em que fe firma, eeílabeiece afólidafelicidade das
portantiffima nniaõ. Pelo que recommendo aos Direéfores, Republicas.
que appjiquem hum inceflante cuidado em facilitar , e pro­ 92 Coníiftindo finalmente o firme eftabelecimento de
mover pela íiiaparte os matrimônios entre os Brancos, eos todas eftas Povoaçoens na inviolável, e exaéfa obíèrvancia
índios , para que por meio defte íàgrado vinculo fe acabe de das ordens, que ie contém nefte Direciono, devo lembrar
extinguir totalmente aqnella odioíiífima diftinçaõ, queasN a- aos Direéfores o inceflante cuidado, c mcanfavel vigilância ,
çoens mais polidas do Mundo abominaraó fempre, como ini­ que deyem ter em taõ util, e interelfante materia j bem enten­
migo commum do feu verdadeiro, e fundamental eftabele- dido , que entregando-lhes méramente a direcção , e econo­
cimento. mia deites índios , como fe foííèm feus Tutores, em quanto
85? Para facilitar os ditos matrimônios, empregarão fe confcrvaõ na barbara, e incivil rufticidade, em que até
os Direéfores toda a eíncacia do feu zelo em perfuadir a todas agora fo 1ao educados ; nao os dirigindo com aquelle zelo, e
as Peífoas Brancas , que aftiftircm nas íiias Povoaçoens , que fidelidade que pedem as Leys do Direito natural, e C ivil, fe­
os índios tanto nao fao de inferior qualidade a refpeito dellas , rao punidos rigoroíàmente como inimigos communs dos Jõli-
que dignando-fe Sua Mageftade de os habilitar para todas dos mterefles do Eftado com aquellas penas eftabelecidas pelas
aquellas honras competentes ás graduaçoens dos feus póftos , Reaes Leys de Sua Mageftade , e com as mais que o mefmo
coníequentemente ficaõ logrando os meímos privilégios as Pef- Senhor for íèrvido ixnpor-fhes como Reos de dehétos tao pre-
foas que caiarem com os dittos índios ; defterrando-fe por ef- judiciaes ao commum, e ao importainiílimo eftabelecimento
tc modo as prcjudicialiílimas imaginaçoens dos Moradores def- do mefmo Eftado.
te Dtado , que fempre reputáraõ por infâmias finulhantes P3 Mas ao mefmo tempo, que recommendo aos D i­
matrimônios. reéfores a inviolável obfervancia deltas ordens, lhes tomo a
P° Mas como as providencias, ainda fendo reguladas advertir a prudência, a fuavidade, e abrandura, com que
pelos
devem
(3^)
( 39)
devem executar as fobreditas ordens, efpecialmente as qnc U E L R E Y . Fuço faber aos que efte A l­
diíTercm rcfpcito á reforma dos abuíbs , dos vicios , c dos coí- vará dc confirmação virem : Que fendo-
tumes defies Póvos , para que nao íiicceda que, eftimulados me p r e fe r : tc 0 Regimento , que baixa in-
da violência , tomem a bufear nos- centros dos Mattos os tor­ clajb , c tem por titulo : Direétorio ,
pes , e abomináveis erros do Paganifmo. que fe deve obiervar nas Povoaçoens dos
94 Devendo pois executnrfe as referidas ordens com índios do Pará, cMaranhao, em quan­
todos os índios, de que fe compoem eftas Povoaçoens, com to Sua Mageftade nao mandar o con­
aqueila moderaçaó , e brandura , que diétaó as Leys da pru­ trario : deduzido nos noventa e cinco
dência ; ainda fe faz mais preciía efta obrigaçaõ com aquelles, P a r agrafos , que nelle Je content , c publicado em tres de
que novamente defeerem dos Scrtoens , tendo eniinado a ex­ Mayo do anno proximo precedente de m il fetecentos e cinco-
periência , que fó pelos meios da fuavidade he que eftes mife- enta e fite por Francifco Xavier de Mendoça Furtado , do.
raveis rufticos recebem as fagradas luzes do Evangelho, e o meu Ccnfelbo, Governador, e Capitao General do mcfmo E f­
utílilfimo conhecimento da civilidade, e do Commercio. Por tado , e meu Principal Commijfario , e M hvftro Plenipoten-
cuja razao nao poderão os Direétores obrigar aos fobreditos ciario nas Conferênciasfibre a Demarcaçao dos Lim ites Septem-
índios a ferviço algum antes de dous annos de afliltencía nas trionaes do Eftado do B r a fil : E porque fendo vifto , e exami­
íiias Povoaçoens ; na fórma , que determina Sua Mageftade nado com maduro confelho, e prudente deliberação por P ejfias
no §. XIII. do Regimento. doutas, c timoratas , que mandei confultar fobre efta materia
95 Ultimamente recommendo aos Direct ores, que fe acbort por todas uniformemente , ferem muito convenientes pa­
efquecidos totalmente dos naturaes fentimentos da propria ra 0 ferviço de D eo s , e m e u c para 0 Bem-Commum , e f e ­
conveniência, fó empreguem os feus cuidados nosinterelles licidade daquelles Índios , as Difpofiçoens conteúdas no dito
dos índios ; de forte que as fuas felicidades poííàó fervir de Regimento : Ilcy por bem , c me praz dc confirmar 0 mefmo
eftimulo aos que vivem nos Scrtoens, para que abandonando Regimento em g era l, e.cada hum dos feus noventa e cinco Pa-
os laftimofos erros, que herdámó de feus progenitores, buf- ragrafos em particular , como f e aqui por extenfo foffem infer-
quera voluntariamente neftas Povoaçoens C ivis, por meio das tos, e iranjeriptos : E por efte A lvará 0 confirmo de meupró­
utilidades Temporaes, a verdadeira felicidade, que he a eter­ prio M atu , certa Sciencia , poder R e a l , e abfoluto ; para que
na. Deite modo fe confeguiráó fem duvida aquelles altos , vir- por efte fe governem as Povoaçoens dos ín d ios , que j á fe achao
tuofos, e fantiflimos fins, que fizeraó íèmpre o objecto da afftjciados , e pelo tempo futuro fe ajfociarem , e reduzirem a
Catholica piedade, e da Real benificencia dos noffos Augtiftos viver civilmente. Pelo que : Mando ao Preftdcnte do Confilbo
Soberanos; quaes faó; a dilataçaó da F é ; a exrincçaó do Ultramarino •, Regedor da C a fi da. Snpphcaçoo , Preftdcnte
Gentilismo ; a propagaçaó do Evangelho; a civilidade dos ín­ da Mefta da Conjciencia, e Ordens; V ice-R ey, e Capitai Ge­
dios ; o bem commum dos Vaííãllos ; o augmento da Agricul­ neral do Eftado do RraJU, e a todos os Governadores, e Ca-
tura ; a introdueçaó do Commercio; e finalmente o eítabele- pitacns Generaes delle ; como também aos Governadores das R e-
cimento , a opulência, e a total felicidade do Eftado. Para, la^ocns da Rabia , e R j o de Janeiro ; Jun ta do Commercio
3 de Mayo de 1 7 5 7 . =* Francifco Xavier de Mendoça Fut- defies Reynos, e fin s Dominios; Ju n ta da Adminiftracao da
lado. =5 Companhia Geral do Grab Pará , c Maranbao.; Governado­
res das Capitanias do G r ao P a rá , e Maranbao, de S. Jofeph
do R io N egro, do P iauhi, r de quaeftquer outras Capitanias;
Dejcmoargtuiores, Ouvidores, Provedores, Intendentes, e D i-
EU reFlo-
(40 ( 40
A
reFlores das Colonias ; e a iodos os M nújiros , J u izes ' , J tif- L v a rá , porque V. Mageftade há por bem confirmar o Regi­
mento , intitulado : D ireciorio, que fe deve obfervar nas Po­
liç a s, e mais. P ejfo a s , a quem o conhecimento defte pertencer , voaçoens dos Índios do P ará , e MaranhaÕ , em quanta Sua M a­
o cumprao , e guardem , e o façau cumprir , e guardar tad l
i geftade naõ mandar o contrario*. N a fórma aíTima declarada.
hiteiramente , como nelle fe contém ; fem embargo, nem duvida
Para V. Mageftade ver.
alguma j e nao objlantes quaefquer L e y s , Regim entos, silva­
ras 2 Provi/oens, Extravagantes , Opinioens, e Glojfas de Dou­
FiJippe J o fe p h da Gama o fez.
tores j coflmnes, e ejlylos contrários : Porque tudo H ei por dc-
rogado para cjle ejfeito fom ente, ficando aliás fempre emfeu vi­
gor. E Hey outrofim por bem , que ejle A lvará fe reg:fie com
o mefmo Regimento nos livros das Camet'as , onde pertencer,
depois de haver fido publicado por Editaes : E que valha como
Carta feita em meu N om e, pajfada pela Chanccllaria , efella - Regiftado na Secretaria de Eftado dos Negocios do R c y n o ,
n o livro da Companhia Gera! do Graó P a rá , e M aranhao,
da com os Sellos pendentes das minhas Arm as j ainda que pela
a foi. iao . Belem a 1 8 deA gofto de 1 7 5 #.
dita Chancellaria nao faça tranfto > e ofeu effeito bafa de du­
rar mais de hum anno, fern embargo das Ordenaçoeus em con­
trario. Dado em Belem , aos dezafete dias do ?nez de A goflo FiJippe J o f epb da Gama.
de m il fetecentos e cincoenta e oito.

J.
í
i
l
O derá o Im p r e ílb r M ig u e l R o d r ig u e s e fta m p a r o R e g i ­

P m e n to , : D ireélorio , que f e deve obfervar nas


in titu la d o
Povoaçoens dos índios do P a r á , e Maranbao , em quanto Sua
Mageftade nao mandar o contrario : P o r q u e p a r a eíTe e f f e i t o
or e fte D e c r e t o fo m e n te , lh e c o n c e d o a lic e n ç a n e c e íía r ia .
Ítelem , a d e z a fe te de Agofto de mil fe te c e n to s e c in c o e n ta
coito.
Sebnflino Jofeph de Carvalho e Mello.
Com a Rubrica de Sua Mageftade.

Rígiftado.

Alva-

Jfi

Você também pode gostar