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Nosso

Senhor
aparecido
na Floresta
Lucio Mortimer

A minha mãe que me ensinou


Com o nome de Jesus
É quem nos mostra esta verdade.
É quem nos dá a Santa Luz.
( O Cruzeiro 83,3)
Nosso Senhor Aparecido
Na Floresta

Prefácio

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epois de ouvir críticas favoráveis ao meu estilo de
escrever, fiquei incentivado a seguir na carreira de
escritor produzindo o segundo livro. Espero não de-
cepcionar. Também não posso negar que a vida sedentária,
motivada pelo precário estado de saúde, favoreceu muito
esta realização. Precisava me ocupar para melhor conviver
com uma doença forte como é um câncer linfático.
Este livro é o símbolo de uma vitória, pois o iniciei num
momento crítico da doença. A vontade de concluí-lo era
um apelo forte para revigorar a força de vida e de cura. Gra-
ças a Deus estou vencendo.
No momento em que escrevo este prefácio comemoro o
fato de não mais precisar de quimioterapia. A doença está
controlada. Estou recuperando as energias gastas na dura
batalha pela saúde. Posso afirmar com convicção: a melhor
coisa que existe é o próprio bem-estar, proporcionado por
um corpo que funciona direito. Graças a Deus estou inteiro
e com todas as possibilidades.
Por tudo que se passou eu agradeço pois, desta forma,
pude tornar concreta esta vontade de me expressar, de con-
tar histórias. “Nosso Senhor Aparecido” quer mostrar a for-
ça de uma doutrina cabocla, capaz de tocar diferentes pes-
soas, desde a gente rude da floresta até educados e cultos
moradores de grandes centros urbanos.
Ter fé costuma ser uma prova difícil. Eu muitas vezes
viajei num oceano de dúvidas. Por exemplo, a respeito do
sacramento da eucaristia. Poderia mesmo Jesus se manifes-
tar numa hóstia? Hoje em dia vislumbro o sentido da oni-
presença do Cristo e estou escrevendo a respeito do Jesus
negro. A ligação com Nossa Senhora Aparecida veio depois
de uma estadia em São Paulo, junto com os irmãos daimis-

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tas. Eu entendi que a melhor forma da Virgem Mãe socorrer


seus filhos sofredores, numa época de escravidão, era se ma-
nifestando numa estátua negra.
No momento em que faço a revisão do texto, que a Ana
Cristina (Tininha) carinhosamente digitou, vejo anunciar
na televisão a novela “A Padroeira”. Achei muita coincidên-
cia o fenômeno da estatueta de barro estar sendo mostrado
em rede nacional pela TV Globo. Não costumo ver novelas,
mas fiquei curioso com os primeiros capítulos e neles cons-
tatei que havia coerência com a proposta do livro. A Sobera-
na Mãe deixando de lado o luxo das catedrais para estar no
meio do povo simples, injustiçado e sofredor.
Felizmente vivemos, neste 2001, no momento político
em que refinados ladrões do patrimônio público estão sen-
do desmascarados. O próprio Acre, palco dos acontecimen-
tos relativos ao Santo Daime, abrigava um poderoso grupo
de bandidos que comandava o Estado. O exemplo maior
é o do coronel Hildebrando Pascoal que, depois de eleito
deputado federal, teve cassados os direitos políticos. Havia
praticado abundantes crimes, como assassinatos, tráfico de
cocaína, entre outros.
No meio de injustiças sociais, corrupção e bandidagem, a
beleza da flor e o sentido amplo da vida, regidos pelo amor,
também despontam fortalecidos.
Porém, não poderíamos imaginar que nesta virada do se-
gundo para o terceiro milênio assistiríamos a perseguições
religiosas na velha Europa. Pessoas de vida exemplar sendo
presas apenas por participarem de rituais com o Santo Dai-
me. Isto na Alemanha, Espanha, França e Holanda. O Cris-
to veio trazer uma espada, por isso a doutrina do Santo Dai-
me precisa reviver antigas lições. Precisa enfrentar tribunais
para mais uma vez provar que a verdade é limpa e clara.
Quem está com o Mestre age de forma correta, de acordo
com os Dez Mandamentos da Lei de Deus. Na Holanda, a
Santa Doutrina foi legalizada. Pode-se louvar a Deus, receber
curas, resgatar a vida espiritual, fazer a religação ou religião.

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Na Espanha, a irmandade também está autorizada a se


reunir e legalmente tomar o Daime.
Na França, deparamos com um retrocesso e uma grande
resistência por parte de certas autoridades de velha menta-
lidade. Como se pode esperar que um país evoluído aceite
uma doutrina da Floresta Amazônica, lugar de onças e ma-
cacos? É assim que pensam os materialistas estultos, dizen-
do que a religião é o “ópio do povo”. As pessoas podem ir
a um bar, encher a cara de álcool e cometer loucuras. Mas
não podem se reunir e, harmoniosamente, cantar louvando
a Deus, pois este é o cerne de um ritual com o Daime.
A expansão da doutrina, levada pelo Padrinho Sebastião
e seus sucessores, reunindo irmãos de diversos países, tem
despertado o ciúme de outras igrejas independentes que uti-
lizam a mesma bebida. Neste 2001, temos presenciado uma
investida contra o Cefluris, sigla da organização que tem no
Padrinho Alfredo Gregório de Melo a autoridade maior, o
líder espiritual. Certamente é um alerta para se caprichar na
organização. O povo precisa corrigir alguns maus costumes
para mostrar a transparência de uma doutrina que trabalha
na linha do bem, buscando harmonia, amor, verdade e justi-
ça entre todos.

Belo Horizonte, julho de 2001

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Agradecimentos

O que melhor dispomos em nosso conjunto de senti-


mentos é a gratidão. Ela vem sempre acompanhada do
amor e da humildade que emanam deste lado divino da
existência. É com esse recurso que desejo me referir a diver-
sas pessoas que estão me ajudando. Estou alegre, vivendo e
agradecendo a Deus e aos irmãos.
No caso deste livro, eu destaco em primeiro lugar a Ma-
ria Eugênia, estimada companheira de todos os momentos
da vida, incentivadora do meu trabalho e revisora de todo
o texto. O Glauco, da igreja Céu de Maria, em São Paulo,
é meu conselheiro. Dele me veio o toque do “Nosso Se-
nhor Aparecido”. Orlandinho, seu irmão, foi o artista que
fez o texto ganhar forma de livro. Paulo Cortezzi cuidou
da multiplicação dos exemplares, e eu, feliz, posso compar-
tilhar esta leitura com todos vocês. Agradeço ao Guta, ve-
lho amigo do Rio de Janeiro que, com muita competência,
caprichou na capa do livro, tornando-o atraente à primeira
vista. Quero registrar também o empenho da Neide, sua es-
posa, que deu uma boa força no andamento do trabalho de
revisão e capa. Agradeço ainda à Ana Ruttiman, profissional
de revisão, que deu um trato no texto. E ao Adriano Ramos,
companheiro dos tempos de estrada, hoje conceituado res-
taurador, que me forneceu dados relativos à imagem e à his-
tória de Nossa Senhora Aparecida.
Envolvido com esse sentimento de gratidão, reconhe-
ço que sou um bem agraciado filho de Deus, pleno de ir-
mãos muito queridos. Daí comecei a preparar uma relação
de nomes especiais para publicar e mais uma vez constatei
que são muitos. A lista ia crescendo de forma surpreenden-
te, por isso achei que ia ficar cansativo citar muitas pessoas e
talvez acabar por esquecer algumas.

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Nosso Senhor Aparecido
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Quem não me conhece pode pensar que sou um preten-


sioso. Porém, a verdade é que faço parte dessa corrente que
vem da floresta, com a doutrina do Santo Daime e seu elo
de amor, que vai ligando as pessoas pelo mundo afora.
Assim, vou agradecendo a meus irmãos mineiros e con-
terrâneos com quem tenho convivido mais intensamente
nestes últimos três anos, membros das igrejas Flor de Ja-
gube, Céu do Monte, Estrela Brilhante e outros pontos. De
Rio de Janeiro, Mauá, Brasília, Friburgo, São Paulo, Floria-
nópolis, Rio Grande do Sul, me vem o carinho dos irmãos
do Céu do Mar, Virgem da Luz, Céu da Montanha, Céu do
Planalto, Divina Luz, Céu da Lua Branca, Céu de Maria,
Céu de Midam, Céu da Nova Era, Céu da Lua Cheia, Céu
da Mantiqueira, Céu do Vale, Rainha do Céu, Céu do Pa-
triarca, Céu de São Miguel, Chave de São Pedro e outros.
Também agradeço aos espanhóis, holandeses, alemães,
italianos, austríacos, franceses, belgas, ingleses, america-
nos, argentinos, uruguaios e chilenos que me prestigiam.
Enfim, a todos que vão ter coragem de ler este meu novo
livro. Tenho todos esses irmãos pelo mundo afora, gente
que com muita satisfação desfrutei da convivência. Encer-
rando o propósito deste texto, vai o meu maior reconhe-
cimento aos irmãos do Norte, ou seja, do Acre, do Ama-
zonas, e deste ponto especial da floresta chamado Céu do
Mapiá, que vi nascer e crescer.
Aproveito também para dizer que sou muito grato aos
meus familiares e aos amigos de fora da doutrina. Sempre
pude contar com pessoas maravilhosas. Só me resta agra-
decer por esta existência tão bem compartilhada.

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Nosso Senhor Aparecido
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Capítulo i

Em busca dos
auasqueiros acreanos
“Sou pequeno e tenho amor
Bem-aventurado filho do Pai Criador”

D
epois de um ano de andanças pelo Nordeste do Bra-
sil, pelas praias e pelo sertão e de muitas aventuras,
segui para o Amazonas fazendo a rota de conquista
da imensidão verde trilhada há muitos anos pelo povo nor-
destino, desbravador dos velhos seringais. Os tempos são
outros. Não mais se arregimentam as pessoas para ir pro-
duzir borracha. Na verdade, eu não tinha nenhum compro-
misso com o trabalho. O destino era só caminhar sem se
preocupar com o dia da chegada.
Foi no começo de 1975, naqueles tempos memoráveis em
que os jovens rompiam com os compromissos institucionais,
botavam uma mochila nas costas e saíam pelo mundo “ca-
minhando contra o vento, sem lenço e sem documento”, na
onda da contracultura e do ripismo. Estou indo para a flo-
resta na busca de algo especial. Quero conhecer a ayahuasca.
Nos primórdios da década de 1970 ouvi falar da velha bebida
indígena. Bastou-me uma única referência para ser tomado
de grande curiosidade que finalmente vou desvendar.
Há dois anos estou pelas estradas comungando o gran-
de Brasil, vivendo a emoção de ser um peregrino. Primeiro
no Sul, depois o Nordeste e finalmente na rota do Norte, do
Amazonas. A princípio, o objetivo ou o sonho era alcançar
o México. Chegar à terra de Don Juan, mestre de Carlos
Castañeda, autor de best-sellers que aguçavam a curiosidade
dos jovens para a magia das primitivas religiões da América.
Eu possuía alguma bagagem intelectual, pois havia feito o

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Em busca dos auasqueiros acreanos

curso de Ciências Sociais e os assuntos da antropologia cul-


tural embasavam a minha curiosidade.
Entrei na faculdade em 1968, na época da efervescência
estudantil que acontecia em diversos países. Aqui era uma
verdadeira guerra com o poder constituído. Vivíamos o
tempo da ditadura militar e os estudantes resolveram enca-
rar os “homens” com greves e passeatas cuja palavra de or-
dem era “Abaixo a ditadura”. Paralelo a isso outra revolução
estava em curso com a bandeira de “Paz e Amor”. Enquanto
um pessoal sonhava com a luta de classes, com o proletaria-
do organizado, tomando o poder e instalando o comunis-
mo, o outro viajava no sonho da harmonia com a natureza,
sem violência nem destruição.
Um movimento que começou na América do Norte em
protesto contra a guerra do Vietnã. Esse pessoal, concomi-
tantemente, apreciava fumar um baseado, cigarro feito de
cannabis e, vez por outra, tomar um ácido lisérgico (L.S.D.).
Tudo debaixo do céu universitário. Como possuía uma na-
tureza calma, optei pelo segundo grupo. Resumindo a histó-
ria, nesse reboliço todo acabei virando hippie. Pulei fora das
pautas de comportamento e fui fazer uma coisa que deseja-
va muito: conhecer o mundo, livre das amarras que a vida
civilizada impunha. Sem pressa fui conviver com o povo e
aprender a sabedoria das coisas.
Importa que agora estou indo para a floresta em busca de
algo muito especial que vai coroar essa minha temporada de
peregrino. Nesse longo caminho, me recordo da infância e
revejo o antigo interesse que tinha pela Amazônia. Nas pri-
meiras lições de geografia ficava imaginando ser um lugar
encantado, com árvores gigantescas, animais ferozes e cau-
dalosos rios. Pensava comigo mesmo: um dia ainda vou lá.
Nessa lembrança também incluía uma ponta de inveja pela
vida ótima de um índio na natureza, caçando e pescando li-
vre de tanta coisa maçante como os deveres escolares.
O destino agora é o Estado do Acre, difícil de ser alcan-
çado pelo sistema de caronas. Segundo informações, é na

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sua área florestal que se encontram os auasqueiros.


Estou viajando com Maurílio Reis. Somos mineiros e es-
tamos curtindo juntos nossa caminhada como autênticos
noviços franciscanos medievais, que saíam em peregrina-
ção sem levar dinheiro. Também nós, sempre com uma boa
palavra, não tínhamos ganas materiais. Tirava-se o sustento
com bijuterias artesanais ou algum trabalhinho esporádico.
Carregava-se na mochila o material para o “trampo”: arame,
miçanga, peça de relógio, araldite, pigmentos que rapida-
mente se transformavam num adorno feminino, facilmente
negociável. Só uma vez fomos obrigados a pedir um prato
de comida, que nos foi negado. Dava de sobreviver com di-
ficuldade, mas nosso viajar era na santa paz e no bom en-
tendimento com todas as pessoas. Tudo era muito razoável
pois tínhamos dois fortes aliados: a saúde e a juventude.
Para chegar ao Acre, saímos de Manaus até Rondônia pelo
rio Madeira, de carona, num barco regatão que levava mer-
cadorias e passageiros. Não havia a menor pressa em che-
gar, pois o caminho também era importante. Por esse moti-
vo, quando chegavávamos numa cidadezinha a gente descia
e passava uma temporada até conseguir outra carona. Ainda
estão bem guardados na memória os detalhes da convivência
com a gente simples e hospitaleira dessas beiras de rio.
Chegando em Porto Velho, mudou o panorama da via-
gem, que agora seguiria por estrada de terra em precárias
condições de tráfego. É curioso notar que não sabíamos ser
possível encontrar ali o que parecia exclusividade do Acre.
Em Rondônia estava a sede da “União do Vegetal” (U.D.V.),
uma sociedade religiosa que utiliza ayahuasca com o nome
de “Vegetal”. Tinha também o seu Virgílio, que seguia a li-
nha do Mestre Irineu. Descobertas posteriores à nossa pas-
sagem. Tudo providencial porque o importante encontro
deveria acontecer em Rio Branco.
Foi uma batalha seguir em frente. Nós ficamos quatro
dias de plantão na saída da cidade num posto de gasolina,
caminho obrigatório de quem ia para o Acre. Um cami-

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nhoneiro prometeu dar carona, mas acabou nos deixando.


Saiu calado, muito antes da hora que havia combinado. No
quarto dia tomamos uma decisão heroica: vamos enfrentar
a pé os quinhentos e tantos quilômetros que nos separam de
Rio Branco. Hoje em dia tornou-se fácil vencer essa distân-
cia. Naquele tempo não tinha asfalto. A natureza forte des-
ses rincões, com suas chuvas torrenciais, tornava as estradas
bem precárias e pouco movimentadas.
Depois de andar um tempinho de umas duas horas, che-
gamos a um posto de fiscalização com uma guarita do Exér-
cito. Fizemos uma pausa, indo conversar com o soldado de
plantão. O rapaz, bem camarada, acabou nos ajudando a pe-
gar uma carona num caminhão que vinha chegando e se des-
tinava a Guajará-Mirim, localizada na metade do percurso.
É curioso recordar que a gente nem levava em conside-
ração pegar um ônibus e pagar uma passagem. O dinheiro
era pouco demais, mal dava para comer. A vontade de an-
dar para frente, de desbravar e conhecer, dava a determina-
ção necessária. Lá no íntimo uma certeza ia amadurecendo:
o Acre seria o último lugar da peregrinação. Há quase três
anos caminhava sem ter um paradeiro. Estava ficando can-
sado. Pensava até em voltar para casa e reassumir a vida ur-
bana. Porém, antes de qualquer nova atitude, precisava co-
nhecer a ayahuasca. Considerava ser esta a grande novidade
de todo meu percurso, de toda a jornada hippie. Até aquela
data não tinha encontrado nada digno de um bom comen-
tário, de uma boa recordação no futuro. Toda minha espe-
rança estava na “poção amazônica”.
Chegamos em Guajará-Mirim e pouco tempo depois fo-
mos detidos por suspeita de envolvimento com drogas. Es-
tava na rodoviária quando a polícia chegou. Maurílio tinha
ido tomar um refrigerante. Então avisei: “Vocês precisam
prender meu companheiro também porque esta mochila
aqui é dele”.
Assim, fomos direto ao bar.
Avisei da porta em voz alta:

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“Maurílio, nós fomos presos”.


Ele respondeu com tranquilidade:
“Tá legal, só preciso de um minuto para pagar a conta.”
Os homens da lei haviam dado o bote errado pois, além
de estarmos bem documentados, nada devíamos. Por si-
nal, fazia um bom tempo que não sentíamos nem o cheiro
de um “baseado”. Depois de revistarem tudo e da nossa boa
conversa, fomos liberados. Um dos policiais nos indicou um
bom local onde se hospedar, ou melhor, atar as redes. A ida
à delegacia acabou se tornando benéfica.
Passados uns dias nessa cidade, que faz fronteira com a
Bolívia e tem no rio Mamoré o complemento de uma bela
paisagem, resolvemos seguir em frente. Quando chegamos
no posto de gasolina da saída, lá estava um fusquinha com
placa de Rio Branco, dois passageiros e um banco de trás li-
vre. Com toda diplomacia, enquanto o carro era abastecido,
apresentamos o pedido de carona que foi imediatamente re-
cusado. Com mais um pouco de conversa, conseguimos um
empurrão de uns poucos quilômetros, até chegar na estrada
principal. Melhor que ficar ali parado.
Depois que o carro saiu da cidade e andou uns três qui-
lômetros, o pneu furou. Os dois homens fizeram o maior
esforço para afrouxar os parafusos da roda e não consegui-
ram. Não era falta de força. A “coisa” estava emperrada. Por
sorte, há uns 500 metros, tinha passado um galpão que pa-
recia ser uma oficina. Como eles já haviam tentado de toda
forma e sem sucesso, resolveram buscar recurso, encontrar
pelo menos uma talhadeira para ajudar no serviço.
Nós, como meio indesejáveis, ficamos de fora, acom-
panhando calados. Quando os dois viraram as costas, no
rumo do galpão, corremos a testar nossa capacidade de bor-
racheiros. Com grande surpresa, soltamos os parafusos sem
o menor esforço e rapidamente o serviço estava feito. Os
homens ainda estavam na metade do caminho de ida. Cor-
remos atrás chamando e acenando. O pneu estava trocado.
Eles ficaram tão impressionados com o mistério dos parafu-

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sos que resolveram nos dar a carona completa, com direito


ao almoço na parada do meio-dia.
Em todo o caminho não faltou uma proteção divina. Eu
poderia encher muitas páginas de relatos ilustrando isso,
mas acredito que apenas esses momentos finais da jornada
são o suficiente para mostrar como o anjo da guarda fun-
cionava. Nessa magia de vida, devo registrar que minha mãe
rezava diretamente. Ela era muito católica. Ia à missa todo
amanhecer do dia na Igreja do Carmo. Era devota de Nossa
Senhora. Começava o dia rezando. Fazia novenas e promes-
sas em minha intenção. Estou pensando que isso funciona-
va como um escudo no astral. Minha Mãe do Céu atendia à
da Terra. Juntamente com meus companheiros, escapamos
das maldades do mundo cão.
Era noite quando pisamos em Rio Branco, capital do
Acre. Fim da carona que se transformou numa viagem agra-
dável. A vida de ripe não era fácil. Sem dinheiro, tínhamos
de conseguir o abrigo noturno. Com muita sorte ficamos sa-
bendo do Cleuber, um pernambucano que como nós vivia
pelo mundo com os poucos recursos do artesanato.
De certa forma, constituíamos uma confraria e, como ele
estava há mais tempo na cidade, havia alugado uma modes-
ta casa num bairro próximo. Chegamos no seu “barraco” e
fomos recebidos com toda consideração. Coincidentemente
tínhamos muitos amigos comuns. Em Manaus havia convi-
vido com uma turma de pernambucanos, gente finíssima.
Depois de um banhão bem tomado constatamos ter encon-
trado um verdadeiro irmão.
Foi nessa casa e nessa noite que ficamos inteirados das
histórias relativas ao ayahuasca. Nosso bom hospedeiro an-
dava frequentando um local chamado Colônia Cinco Mil,
onde aconteciam rituais com a bebida, porém com a deno-
minação de “Santo Daime”. Achei um nome de boa sonori-
dade e muito sugestivo, pois dava a ideia de pedir e de uma
manifestação de humildade. Cleuber tentava explicar um
pouquinho da história, nos deixando bem curiosos a respei-

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Nosso Senhor Aparecido
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to do seu Sebastião, uma espécie de xamã, segundo ele um


homem muito bom que, certamente, nos receberia bem.
Esses assuntos eram tratados ao mesmo tempo que a fu-
maça cheirosa de marijuana subia pelos ares dominando
a pequena sala. Era característica do estradeiro ou ripe o
apreço pelo uso de cannabis ou cânhamo (com estas mes-
mas letras se escreve também maconha). Como um rito, o
ato de fumar a erva era o símbolo da revolução cultural que
se processava no universo dos jovens. Detalhe curioso é que
essa planta é uma velha conhecida da humanidade. Seu uso
cultural, medicinal e recreativo é milenar. Até hoje em dia
a erva sagrada “bangue” é usada na Índia por gurus com o
intuito de abrir os canais de comunicação com o divino. Os
efeitos da fumaça levam à meditação e à contemplação, des-
de que se crie o clima propício.
Embora seja ilegal e proibida, muita gente boa e respon-
sável faz uso dela. Alguns até para fins medicinais. Primiti-
vamente no Brasil era coisa de escravos, pois é sabido que as
primeiras sementes vieram da África. Os negros oprimidos
encontravam conforto pitando e viajando na memória dos
tempos em que eram livres e senhores de si. Na hora da dor
não existia analgésico. Só o “fuminho da Guiné”, como a tra-
tavam antigamente.
Não se pode fazer apologia do uso, mas confesso que es-
tou um pouco influenciado pela leitura de “O Grande Livro
da Cannabis”, de Rowan Robinson, no momento em que es-
crevo essas linhas.
Voltando à realidade daqueles distantes tempos de 1975,
vamos agora seguir no destino da Colônia Cinco Mil. Nem
bem o dia amanheceu, eu já havia despertado e recolhido a
rede de dormida. A mochila estava pronta para a viagem do
conhecimento de seu Sebastião e do Santo Daime.
Dois forasteiros que vivem a busca de um sonho vão fi-
nalmente ao encontro decisivo. Largaram as referências ur-
banas, a escola, o trabalho e a família tentando encontrar
respostas para as grandes dúvidas de uma geração. Agora

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Em busca dos auasqueiros acreanos

um novo mundo se avizinha e já está batendo à porta. Fi-


nalmente o encanto seria quebrado. A longa jornada cheia
de aventuras está chegando ao fim.
A expansão do Santo Daime é recente. No tempo des-
sa viagem ao Acre era um pioneirismo. Um ato de cora-
gem vencer a longa distância para conhecer o chá sagra-
do. Hoje em dia é tudo muito mais fácil, visto que a bebida
com ritual e doutrina está presente nas grandes cidades do
país e até no estrangeiro.
Estou feliz com esta viagem, por isso lá no íntimo do
coração afirmo: “Quero viver para louvar a natureza, linda
vida divinal.”

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