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M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 1

Capa
2 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

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CRÉDITOS
CAPA E PROJETO GRÁFICO: Simone Montoro
DIAGRAMAÇÃO E REVISÃO: Mônica Hamada

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M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 3

Breve
História
da
realidade
Motivo, Princípio, Destino

1ª edição

Giorgio Gasparro
4 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

Sumário

CAPÍTULO 1
Perguntas 8
CAPÍTULO 2
A historieta que propõe as explicações 10
CAPÍTULO 3
A Mente começou a estudar um, dois... 11
CAPÍTULO 4
Assim nasceu o conceito da pré-ciência... 13
CAPÍTULO 5
Da Mente destacaram-se pontos luminoso... 14
CAPÍTULO 6
O Pari anotava na sua memória... 16
CAPÍTULO 7
Depois da grande explosão, os... 19
CAPÍTULO 8
Splendor ficou impressionado. A idéia... 20
CAPÍTULO 9
Antes e depois deste evento, a Mente... 23
CAPÍTULO 10
À grande distância, a realidade... 25
CAPÍTULO 11
É um núcleo de inteligência ativa... 26
CAPÍTULO 12
Splendor seguia com cuidado a difusão... 28
CAPÍTULO 13
A Mente costumava descer da sua... 30
CAPÍTULO 14
Mas a Mente não tinha sossego; era do... 31
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CAPÍTULO 15
Na floresta úmida e sombreada, viviam... 32
CAPÍTULO 16
Seguiram-se dias estranhos: o ar... 34
CAPÍTULO 17
Ele, como a mãe, tinha o hábito de... 36
CAPÍTULO 18
Alguns pensadores, obstinados em... 37
CAPÍTULO 19
Homo, após ter afugentado os pretende... 39
CAPÍTULO 20
A luz da manhã mostrou pequenas poças... 41
CAPÍTULO 21
Homo, favorecido pela benevolência... 42
CAPÍTULO 22
Começou o pôr-do-sol, as sombras... 44
CAPÍTULO 23
Depois que o horizonte tornou-se... 45
CAPÍTULO 24
O homem não se manifestara ainda... 47
CAPÍTULO 25
A história se repete (os autores são... 51
CAPÍTULO 26
Mais adiante, Homo constatou que após... 53
CAPÍTULO 27
Homo começou a observar: o sol não... 54
CAPÍTULO 28
Por que a Mente dá atenção a um... 56
CAPÍTULO 29
Usando o instinto enfraquecido, Homo... 58
CAPÍTULO 30
O sol alto e o montículo de pedras... 59
6 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

CAPÍTULO 31
O homem começa a desgarrar do... 63
CAPÍTULO 32
No início do desgarramento, os... 65
CAPÍTULO 33
Sob os efeitos dos novos estímulos... 66
CAPÍTULO 34
É assim que a percepção capta a sua... 68
CAPÍTULO 35
Como sempre acontece, a combinação... 69
CAPÍTULO 36
No ambiente dos agrupamentos humanos... 71
CAPÍTULO 37
Típico caso do profeta iletrado, que... 72
CAPÍTULO 38
O raciocínio espontâneo e contínuo... 74
CAPÍTULO 39
Não existem documentos e sinais... 76
CAPÍTULO 40
Após a doação, o faraó descobre o... 77
CAPÍTULO 41
Abraão tinha uma sagrada missão a... 79
CAPÍTULO 42
Por volta do século XIV a.C. a... 81
CAPÍTULO 43
– Tu és único Deus, ao Teu lado não... 82
CAPÍTULO 44
Algumas mentes, entre os milhões de... 84
CAPÍTULO 45
Só o Nada é inútil, o restante pode... 86
CAPÍTULO 46
O Karma sobrevive à morte, acompanha... 87
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CAPÍTULO 47
Para melhorar a pessoa é necessário... 90
CAPÍTULO 48
Se a imaginação humana quisesse... 91
CAPÍTULO 49
–Assim caminha a humanidade... 94
CAPÍTULO 50
Vivia em uma região, entre o mar e a... 95
CAPÍTULO 51
Depois, os ladrões, de passagem pela... 97
CAPÍTULO 52
À noite, a fraqueza o venceu: Job... 99
CAPÍTULO 53
– Mais uma vez somos limitados pelos... 102
CAPÍTULO 54
O Pari, recebidas as virtudes e a... 103
8 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

1
Perguntas

pós apreciar algumas leis naturais, umas preci


A sas, outras menos, vêm à Mente estas perguntas:
1º) É lógico pensar que as leis não são casuais, mas ditadas
por um legislador?
2º) Após o exame das leis, pode-se afirmar que o legisla-
dor é pessoa serena, equilibrada e racional, que persegue
um desenho pré-fixado?
3º) Por que o Criador-legislador começou e continua
criando?
4º) Por que Ele dá à obra dimensões compreensíveis so-
mente ao pensamento, e não aos sentidos humanos?
5º) Por que a obra está em contínua expansão?
6º) Por que existem entidades astronômicas que transfor-
mam a energia em luz, a luz em matéria e vice-versa, pro-
jetando-a em todas as direções?
7º) Por que existe somente vida em um, talvez em alguns
corpos astrais?
8º) Por que tem a natureza por lei abandonar as criaturas
ineptas a vencer as dificuldades da existência, e favorece as
aptas, obrigando-as a superar provas sempre mais difíceis?
9º) Por que o homem não usa a totalidade cerebral? Talvez
reserve a parte inusitada para funções hoje insuspeitas?
10º) A criação é o produto da Razão superior ou de um
sentimento?
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11º) O conhecimento e a sua aplicação não são gratuitos, o


homem os adquire com sacrifício e dispêndio de energia
intelectual. É assim também para o Criador-legislador?
12º) Afinal, qual é a função de um ser inteligente, criativo,
volitivo, cujo espírito tem gradações infinitas de sensibili-
dade numa realidade deserta, vasta, que limita com o Nada
absoluto?
10 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

2
A historieta que propõe as
explicações.

Mente continuava única e solitária no Nada e


A na Eternidade. Existia, pois, sem um fim.
Nela fluíam pensamentos: eram novos, repensados,
contrapostos, modificados, tecidos como fios de linho para
formar uma tela inútil.
Em um momento da seqüência reflexiva, suspeitou
que a repetição de temas abstratos poderia causar-lhe mor-
bidez. Então, dirigiu a atenção para fora de sua pessoa.
Não achou nenhuma realidade, e experimentou dor in-
tensa.
Consolou-se. Liberou a percepção aguda. Esta voltou
afirmando que tinha constatado o Nada.
— O Nada é ilimitado: adianta-se ao nosso proceder.
— O Nada é insensível: não reage a um ato.
— O Nada é inexpressivo: não tem aspecto.
— O Nada é onipresente: envolve-nos.
— O Nada é nocivo: apaga nossos pensamentos e não
nos inspira novos.
— Nós somos o centro do Nada.
Assim, a Mente criou o Nada, caracterizando-o.
Seguiu-se longo silêncio intelectual...
Agora, o Nada tangia a Mente, penetrando-a, per-
meando-a, sufocando sentimentos e impulsos, alastrando-
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se na concepção mental da magnitude, estabelecendo-se,


amiúde, o seu domínio no recesso da Mente, favorecendo
uma atmosfera que causa patogenia psíquica.
Em um instante a Mente tomou consciência do peri-
go, e dele distinguiu as causas: a inércia da razão e a inope-
rância das virtudes provocaram abulia e inatividade. Pro-
vou dor em toda a sua pessoa, dor cáustica que queimava o
toque do Nada, aliviando-o.
A Mente examinou-se; possuía a razão única, a fanta-
sia ilimitada, a potência inesgotável, vontade determinante,
sabedoria de tudo que pode ser e habilidade para qualquer
empreendimento.
Tudo era nela, nada fora dela.

3
Mente começou a estudar um, dois, muitos te-
A mas criativos. Com a evolução das idéias, cada
projeto tornava-se complexo: os nexos, os detalhes, as
minúcias multiplicavam-se, pois a razão pedia harmonia e
lógica, sensos vivazes na consciência da Mente.
Depois, nela se manifestou a dúvida da escolha. Expe-
rimentou fortemente a necessidade da comunicação dialo-
gada com alguém além de sua intimidade.
O pensamento penetrou profundamente, como agu-
lha na carne, e alcançou o âmago da pessoa. Na fantasia,
12 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

apareceu um ponto que se aproximou sob o impulso de


um sentimento até então ignorado. Quando próximo, ad-
quiriu luminosidade palpitante. Nasceu o Conceito:
— Eu sou tu, tu és eu. Pessoas distintas, detentoras
das mesmas virtudes, embora variadamente combinadas,
mas com um só intento.
A Mente encheu-se de entusiasmo, animou-se de pro-
pósito. A vontade agiu: célula única, dilatou-se, a madeixa
das virtudes desdobrou-se, o protoplasma espiritual pre-
meu contra a membrana da individualidade, adensando-se
aos pólos, provocando senos cada vez mais salientes até a
cisão: duas pessoas distintas, com a mesma dignidade, as
mesmas virtudes em proporções diferentes, com vonta-
des independentes, dirigidas ao mesmo escopo. A solidão
angustiosa no Nada e na Eternidade era vencida, substituí-
da pelo sentimento de companhia próxima. A Mente, a
partir de então, tem perto de si o Pari. Considerou-o
longamente e comprazeu-se.
— O Nada nos assedia, parecemos perdidos na sua
imensidão. É inadmissível. Faça a luz!
— O que você entende por luz?
— Uma coisa qualquer que nos distingua do Nada.
Então, o Pari avivou as virtudes das duas pessoas, tan-
to que o fulgor iluminou o ambiente. Duas luzes começa-
ram a brilhar na imensidão, difundindo graça e clareza.
Agora, onde não chegava a luz, o Nada se revelava tal qual
era: trevas e vacuidade. Entre os dois nasceu um senso de
recíproca satisfação.
Apesar de afastado pela luz, o Nada permanece imu-
tável, não reage.
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ssim nasceu o conceito da pré-ciência: do exis-
A tir e do não-existir, ou seja, de valores existen-
tes e de nenhum valor.
— Ele, embora nulo e distante, causa efeitos.
Seguiu-se o silêncio da reflexão.
— Conferimo-lhes características assim potentes, pois
somente algo perene poderá perturbá-lo.
— O Nada é infinito, então eterno, e nunca será con-
quistado, mas se nós criássemos uma existência em perene
expansão, Ele se transformaria em uma abstração junta-
mente com os atributos que lhe concedemos.
— Precisamos de algo que o povoe.
— Criaremos algo.
A reflexão irradiou-se em todos os sentidos. Enfim a
Mente manifestou-se!
Penso que seja bom criar seres semelhantes a nós, que
migrem em todas as direções, manifestem a nossa presen-
ça e a nossa vontade.
Durante a ponderação, a Mente provou, no íntimo da
pessoa, um sentimento anônimo, que por gravidade e in-
sistência era semelhante ao da solidão. Muitos e muitos
eventos depois, quando existir a realidade e nela o homem,
este sentimento será gratificado aos artistas e neles se ma-
nifestará como febre criativa.
Do sentimento, fez partícipe o Pari, o qual obser-
vou:
14 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

Somos duas pessoas porque a solidão escurece o espí-


rito. O intelecto nos induz a criar conceitos; somos dinâ-
micos, sociais, amamos o diálogo, gostamos do ato perfei-
to, que afugenta a monotonia insuportável. É o sentimento
que nos impele à ação. Nada nos aborrece tanto quanto a
solidão.
A Mente seguia o Pari; a sensibilidade aprovava.
— Ele deve ser pessoa de muitas virtudes, de raciocí-
nio sutil, prova e troca sentimentos para corresponder
conosco, livre pensador, valendo-se dos conceitos estabe-
lecidos. Não poderá criar.
— ... Nem se levantar contra nós.
— Eis definido o Minorita.
— Quantos? Alguns, muitos?
— Uma infinidade.

5
a Mente destacaram-se pontos luminosos em
D tão grande quantidade que formaram um invó-
lucro esférico em volta das pessoas. Eram pontos de exis-
tência luminosa que penetravam o Nada. Cada um possuía
direção e movimentos próprios, mas o invólucro tinha um
único movimento expansivo. Do núcleo saíam rápidas e pre-
cisas faíscas de pensamentos, da periferia respondiam outras,
fracas e tímidas. Mas, rapidamente, a troca, num crescendo
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regular, foi tão intensa que estabeleceu uma nova luminosi-


dade na luz. Algumas faixas do núcleo ultrapassaram o invó-
lucro, penetraram as trevas e perderam-se no infinito.
Das duas pessoas irradiou-se satisfação.
— Criamos uma vivaz companhia com a qual iniciamos
uma troca de novos sensos, que nos alegram e entretém.
— Não é somente este o escopo; queremos estabele-
cer a existência no Nada.
O invólucro esférico explodiu, como fogos de artifí-
cio, projetou pontos luminosos em todas as direções e uma
grande luz.
Afastando-se, a luz esmoreceu, os cerrados grupos de
pontos luminosos rarearam, empalideceram como lanterna
caindo no abismo. O Nada tinha vencido a primeira prova.
Como cientista à frente do malogro da primeira ex-
periência, as pessoas silenciaram.
Enfim, a Mente ordenou:
— Chama os Minoritas.
Eles voltaram...
— Não podemos lançar os Minoritas em todas as di-
reções. Embora estabeleçam conosco um relacionamento
ideal, eles, diminuídos pela solidão, sem criatividade, per-
dem-se na vastidão obscura. Não podemos criar continua-
mente e somente Minoritas!
— Devemos repensar e criar!
— O que podemos opor ao Nada infinito?
A Mente dirigiu a ele a pertinaz atenção. O adversário
formava cortinas tufadas de trevas onde ainda brilhavam
perdidos Minoritas retardatários: restos de um exército em
retirada.
16 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

— O Nada é um vazio infinito; o transformaremos


em vazio definido, cabendo dentro da energia que emana-
mos continuamente: será o espaço, e para contê-lo criare-
mos algo: o seu nome será matéria... A matéria possuirá
número infinito de aspectos e muitas condições, produzi-
remos luz para se destacar, e se multiplicará sem fim, por-
que somos incansáveis.

Pari anotava na sua memória.


O
Como se fosse água viva, que jorra da rocha partida,
um fluxo de energia luminosa saiu da Mente e, com grandes
e próximos espirais, envolviam as pessoas e os Minoritas,
novamente reunidos em invólucro esférico. O fluxo fluiu
mais copioso, afastou-se da origem, tornou-se incandescen-
te, como magma eruptivo, embora parecesse uma graciosa
vitória régia que ondeia sobre as águas do pântano. Então foi
penetrando até o centro por um núcleo ideal que começou
a vibrar intensamente, adensando os espirais. Quando as vi-
brações chegaram ao acme, mudou gradualmente a nature-
za da luz: da delicada que afaga o espírito, à cromática que
violenta a razão. Seguiram-se momentos de tremor do feto
da realidade, depois o que se tinha transformado em uma
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nuvem, explodiu no Nada. Como um grande crisântemo,


cujas pétalas se alongam penetrando as trevas em todos os
sentidos. Com a explosão, rompeu o primeiro e perpétuo
boato. Foi neste momento que a Mente solevou-se do tra-
balho, fixou a atenção num imaginário círculo que roda, dis-
tinguiu um ponto da circunferência e o fez saliente.
— É criada a matéria, começa o princípio, inicia-se o
fluir do tempo.-
Nem toda a energia adensada explodiu, e a outra se
tornou neblina, ambas começaram a vagar no nada.
— É o caos!
— A matéria não tem ainda as leis que lhe regulam a
existência.
— Então imprime-as nela imediatamente. Nós não po-
demos dar perpétua atenção ao caos. — E se manifestou a
ânsia criativa.
— Deste momento e para sempre, vige entre a maté-
ria a união coesiva, a atração variável, o dinamismo de pe-
quenos e grandes corpos, a fim de que se formem grupos e
sistemas; a expansão seja gradual e contínua, levando con-
sigo os transformadores de tudo. A luz é vanguarda da nos-
sa presença.
O Pari liberou uma onda volitiva, que se difundiu pelo
infinito, assim como a alta maré oceânica alcança a remota
praia do continente.
A Mente diz serena:
— Provamos grande satisfação por começar a obra,
maior ainda, se considerarmos que os muitos conceitos nela
profusos nos permitirão gerar, sem esforço, muitas com-
binações ideais, e com elas, pensamentos complexos.
18 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

Enquanto isto, o espaço grávido de matéria se expan-


dia velozmente: aqui e acolá explodiam, como pipocas na
panela preta, sistemas estelares e cometas repentinos dei-
xavam traços como golpes de giz sobre o quadro negro,
imanes galáxias viravam como girândolas na noite tropical.
O que foi o Nada inútil agora mostrava-se um desmedido
canteiro de obra repleto de materiais, som e luzes agitados
pelo dinamismo.
Os Minoritas observavam estupefatos o desenvolvi-
mento da criação. Depois de saírem do estupor, começa-
ram diálogos e apresentaram observações, cujos sensos
enchiam o âmbito.
Também disto o Criador se comprazia, porque era si-
nal de existência em torno de si.
Pouco a pouco os pensamentos dele se voltavam so-
bre um só argumento: a emissão perene de energia. A in-
teligência deles não conseguia propor uma explicação.
Splendor, que entre os Minoritas tinha recebido maior
número de virtudes, e em grau elevado, aplicou a inteli-
gência à imaginação, de modo que lhe nasceu a intuição de
entender o que não é exposto: a Mente ama a liberdade. As
leis, as regras, o destino imanente são determinações
irrevogáveis, porque a liberam da vigilância contínua, as obri-
gações criativas jamais a empenharão totalmente. Por isto, a
Mente deve ter estabelecido que a energia emitida espon-
taneamente seja aproveitada na expansão da obra criativa.
Neste momento, a Mente disse ao Pari:
— O trabalho gerou, em torno de nós, o turbamento
da serenidade.
Cochilamos a nossa atenção para uma merecida pausa.
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Sobre a criação amanheceu a jornada perpétua. O tem-


po flui, o ponto saliente passa e repassa pela chegada conti-
nuamente.

7
epois da grande explosão, os desmesurados sis-
D temas começaram a migrar, tomando direções
divergentes entre si.
As galáxias levaram consigo o espaço que foi o Nada, as
miríades de estrelas, verdadeiras fornalhas de elementos
químicos, o pó e os meteoritos que estão, como carvão e
matéria indistinta, perto das bocas dos altos fornos estelares,
as nebulosas, verdadeiras maternidades, nas quais nasceram
as estrelas que substituirão as decadentes próximas ao co-
lapso. Separadamente, na negritude absoluta, a voragem
engole os destroços vagantes dos mundos até a luz, onde
vomitará matéria regenerada, quando a capacidade chegar
ao máximo. Pois na criação é lei: nada se aniquila, mas tudo
se transforma tantas vezes quanto necessário. Estes são os
comboios concebidos pela Mente para transportar a exis-
tência no Nada a uma velocidade vertiginosa. É um simples
projeto logístico autônomo, planificado pelo Pari.
— Podia ser somente obra de uma dezena de estrelas,
de uma centena de satélites, recheados de pó cósmico...
Eis explicada a contínua efusão de energia, a magnitude dos
espaços, os bilhões de bilhões de unidades de matéria. Será
20 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

o perpétuo começo da sucessiva obra... um trabalho sem


fim... é o triunfo da megalomania. — disse Splendor.
— Não é — o repreendeu Percept, um Minorita do-
tado, mais do que os seus semelhantes, da virtude da per-
cepção. — A criação é a necessária manifestação do intelec-
to. A Mente, se não cria, não existe... Quem saberia dela?
— Como podes saber estas coisas, se ninguém as dizes
a ti?
— A tua atenção tem que acompanhar a Mente, que
nada esconde a quem quer saber. Mas se tu não podes, de-
duze-as da natureza das suas obras, do escopo.
— Fábulas! A criação poderia ser definida e estática,
assim o Criador gozaria o imobilismo reflexivo. Ao contrá-
rio, imprimiu-lhe o dinamismo, e estabeleceu até um
“Divenire”. Ele é irrequieto. Para nós a existência seria fá-
cil e satisfatória, mas ao contrário, ela será também um
contínuo trabalho desassossegado.
Percept rebateu:
— Assim seguramente nós não existiríamos, não terí-
amos o privilégio da consciência inteligente na singularida-
de: seríamos nada no Nada.

8
plendor ficou impressionado. A idéia de emular a
S Mente, ser também o princípio de algo, o solevou.
Emocionado se apresentou ao Criador.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 21

— Desejo participar da obra criativa! Confia-me as


tuas concepções e realizarei fielmente como o faz o Pari.
Seguiu-se um silêncio de reflexão.
— Agrada-me a tua disposição, surpreende-me o teu
propósito. O procedimento estabelecido é irrevogável, o
teu desejo o viola.
A interdição bloqueia os espíritos.
— Tu não podes criar conceitos, mas somente gerar
idéias e elaborar pensamentos; tu não possuis energia rea-
lizadora, que vem do intelecto, durante o trabalho criati-
vo; tu não tens a inteligência poliédrica e harmoniosa para
corporificar a realidade em detalhes; tu não tens originali-
dade, só imaginações. O Pari sabe, porque somos de am-
bos... Agora vá, segue o “Divenire”; pede explicações que
em ti suscitarão sentimentos e estímulos.
A interdição dissolveu-se, entre os Minoritas recome-
çou a troca de pensamentos.
Splendor apequenou-se, no silêncio se apagou. Quan-
do se deteve na mais absoluta solidão, procurou organizar
os pensamentos.
— Afinal o que é criar? É formular um conceito, realizá-
lo em todos os seus detalhes... Tenho virtude para isso.
Tentou repetidamente, e constatou que a mente das
criaturas empregava somente produtos intelectuais exis-
tentes. O pensar consiste na mudança e combinação deles.
O ambiente mental é cheio desses produtos. Existe
somente o que foi criado. Então o “Divenire” se realiza ao
se induzir a mente a usar alguns dos tais produtos a seu
talento, porém, condicionado à consciência. Com tais prin-
cípios, pode prever-se o destino.
22 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

Depois da constatação, Splendor readquiriu a lumi-


nosidade.
— Se eu não posso criar, eu posso mudar, até melho-
rar o que existe. Se alguém me condenar, seguirei para o
exílio nos limites da realidade ou além. — Mas a idéia da
solidão corrigiu-lhe o pensamento. — ...Mas com um sé-
quito de súditos.
A Mente e o Pari examinaram os sensos manifestados
por Splendor.
— É inusitado o procedimento de Splendor.
— A inteligência e a liberdade de pensamento pros-
pectaram-lhe uma nova situação.
— No dizer, manifestou-se a audácia da ambição. Se-
ria melhor induzi-lo à humildade.
— Nós amamos as criaturas, acima de tudo as racio-
nais, pois lhes demos singularidade personificada, liberda-
de de pensamento e de ação, sensibilidade psíquica; um ato
contrário feriria Splendor.
— Amor? Qual o significado originário?
— Amar é reconhecimento, entretenimento e troca
gratificante de sublimes sentimentos, estímulo a realizar.
— Prevemos: Splendor nos contrariará, fomentando
a subversão de muitos como ele.
— Permaneceremos serenos. Agirá a lei universal
estabelecida: personalidade ou força que adquirem predo-
mínio, levantam contra si outra de igual valor.
— Existe possibilidade de caos apocalíptico após a re-
volta.
— Continuaremos serenos. Somos nós, e somente
nós, os construtores do destino. Temos potência e inteli-
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gência infinita, superior àquela que concedemos aos Mino-


ritas. Nunca chegaremos à insânia de um apocalipse.
— Então será uma luta sem fim!
— Preferes permanecer em uma sonolência estática?
Introduzimos nos espíritos o sentido absoluto da eqüidade
que reaparece após o turbilhão das paixões. A contrição li-
bera a razão. Assim o rebelde receberá o perdão do Criador.

9
ntes e depois deste evento, a Mente, que se
A compraz de ser chamada “Princípio”, afagava no
seu íntimo, como a mãe o faz com a criança no seio, um
sentimento que se acresceria sempre mais. Este era indefi-
nido, possuía o impulso da animação, o desejo do inespera-
do, e acariciava o espírito. Outra vez a insatisfação moveu o
Princípio:
— A criação se expande em todas as direções, adquire
maior luminosidade, a transformação cósmica procede. É
motivo de satisfação; mas além dos efeitos causados pelas
leis naturais, sempre previsíveis, percebemos a ausência de
algo que a anime...
— De que mais sou o Princípio?
O Pari propôs:
— Na natureza podemos imprimir uma infinidade de
caráteres variáveis para causar o imprevisto.
24 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

— Falta muito mais: o movimento, a difusão, o aspec-


to, a distinção. Falta a vida.
— Qual é o conceito da vida?
— A vida é a transferência da nossa existência à maté-
ria inanimada, que assume aspectos, funções e singularida-
des perenes, mas é caduca por que não é eterna, se renova
para ser perpétua.
No silêncio seguinte, a Mente considerou o conceito
como o pintor considera as últimas pinceladas sobre a tela.
— ... E entreterá a nossa atenção, excitando a nossa
fantasia.
— Como procederemos?
— Espalha aqui e acolá os impulsos de nossa existên-
cia, assim que do único brote as miríades, do ínfimo o gigan-
tesco, do simples o complexo, do exemplar a variedade.
O Pari imprimiu firmemente o conceito na inteligên-
cia; assim sendo, a vontade, ao se manifestar, infunde na
criatura imaginada as características desejadas.
O realizador adentrou-se entre os corpos cósmicos
velozes e em convulsão. Distinguindo um, sereno e agra-
dável, soprou-lhe o espírito de vida, ordenando:
— Vá e estabelece-te naquele sítio, toma forma e mul-
tiplica-te.
Pari disse à Mente:
— A vida é lançada, começará a gerar em um lugar
ameno, não tão quente como o coração de uma estrela, e
nem frio, como é fora da realidade; aí existem leis naturais
clementes. A vida será estimulada pela nossa atenção, a di-
fusão, pela nossa graça.
Iniciava-se o segundo princípio.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 25

10
grande distância, a realidade incomensurável
À parece um aquário esférico e transparente, no
qual é suspenso como plâncton, grãos de matéria lumino-
sa, que se movem de maneira imperceptível. Segura a esfe-
ra um cinturão de galáxias, que impede a dispersão, mas
favorece a expansão perpétua.
O Nada é agora absorvido progressivamente pelo vo-
lume criativo, torna-se espaço mensurável repleto de pon-
tos materiais.
Das muitas galáxias parecidas com girândolas, uma tem
braços na forma de foice; na extremidade de um braço
existe uma estrelinha; em volta dela, fazem roda sobre ór-
bitas elípticas satélites que giram também sobre os pró-
prios eixos como piões.
Sobre um destes satélites, chegou o espírito da vida. O
vetor tangenciou a esfera deixando a carga e ricocheteou. A
casualidade científica o encaminhou a uma nova direção.
A Terra, naquela era geológica, não era verdadeiramen-
te um lugar ameno, dominado de leis físicas clementes; ao
contrário.
As suas entranhas expeliam magmas fluidos, lapíli ar-
dentes, cinzas quentíssimas; a atmosfera era nebulosa,
saturada de gases letais; a superfície rochosa fendia-se em
todas as partes pelos tremores sísmicos, e o pó infiltrava-
se em qualquer rachadura.
26 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

Neste ambiente, o espírito de vida teria gerado seres


estranhos, bem diferentes do gosto e da formosura ínsitos
na Mente.
Há muito tempo tinham-se formado os mares, vastos,
profundos, mornos. Nas profundezas não chegavam as ra-
diações mortíferas, mas neste lugar dominavam a tranqüi-
lidade e o silêncio absolutos. As diferentes temperaturas
provocavam a subida e a descida das águas que levavam con-
sigo, na forma diluída, uma infinidade de partículas de ele-
mentos. Próxima à superfície, a luz excitava-as de uma for-
ma estranha, favorecendo a união íntima, simples,
formando um aglomerado de tantas simplicidades.
O espírito de vida desceu no mar, foi o mar que lhe
deu um corpo, foi o mar quem lhe ensinou o movimento, a
expansão, enfim, foi o mar que, no momento oportuno,
empurrou-o junto com seu corpo sobre a praia úmida e
arenosa.
Mas, o que é este espírito de vida?

11
um núcleo de inteligência ativa, codificado em
É conceitos adaptáveis ao ambiente, munido de uma
grande quantidade de impulsos de desenvolvimento ma-
terial. Um novelo, no qual o fio, quando estendido, revela
todas as suas características.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 27

No princípio, o espírito de vida assimilou elementos


materiais para compor um programa genético, depois
cindiu-se, multiplicando a individualidade e os aspectos. O
fenômeno é um simples ato de engenharia genética que
profetas nunca poderiam imaginar, apesar da inspiração
superior, pois ignoravam um sem número de noções.
Então: glória nas alturas aos pensadores e cientistas
que nos revelaram os conceitos da Mente, a tecnologia
maravilhosa do Pari.
Assim nasceram as primeiras espécies.
A Mente tornava-se livre para conceber novos argu-
mentos...
Não surpreende aos pensadores sagazes saber que a
Mente, livre de empenhos especulativos, persegue a for-
mulação de conceitos em harmonia com as leis naturais para
transferir a vida em outros sítios, embora não existam se-
res que superem os milhões de anos a serem percorridos
na velocidade da luz. Isto sem violar o livre arbítrio huma-
no, evitando a ingerência nos eventos terrenos.
Atualmente, somente o pensamento humano alcança
instantaneamente corpos astrais, afastados da Terra milhões
de anos-luz, mas ainda ele não sabe como, e com qual ma-
téria recompor o seu corpo.

A terra começou a verdejar sob o sol mitigado pela


atmosfera e por uma benévola garoa. Os boatos das erup-
ções, o estalido das lavas, juntos ao ondear e à queda das
águas, enchiam a paisagem. Às vezes, o vento e a chuva ge-
ravam sons entre ervas e arbustos. Porém, quando tudo
parava, a existência caía em uma estaticidade áfona.
28 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

A Mente, atenta e crítica, notou, de súbito, a falta de


algo.
— A vida é movimento imprevisto, sons contrastantes
e harmoniosos, “Divenire” surpreendente. Mas este mun-
do está longe do nosso desejo. Parece uma natureza morta.
— Nós a criamos enraizada na terra da qual suga ali-
mento; sobre a terra se eleva e se alastra, nada mais.
— Faltam seres que se agitem na água, que andem so-
bre a terra, que se liberem no ar, pequenos, grandes, colori-
dos, que tenham muitas formas. Nós amamos a variedade!
O Pari procurou o espírito da vida nas águas, encon-
trando-o, excitou-lhe ainda mais a virtude da mutação.
Apareceu um ser independente, andante, com novas ca-
racterísticas.
Mais uma vez, foi o mar quem favoreceu a vida: com as
ondas, imprimiu o respiro profundo e compassado à nova
criatura. Foi o mar, com as correntezas a formar-lhe o siste-
ma sangüíneo, com os vagalhões, a natureza nervosa. Foi o
mar a empurrar sobre a terra o anfíbio, que mais tarde pe-
netrou a floresta. A terra foi materna, facilitou-lhe a repro-
dução, o ambiente solicitou-lhe, súbito, a adaptabilidade.

12
plendor seguia com cuidado a difusão da vida.
S Causavam-lhe maravilhas os vegetais, mais ainda
os animais.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 29

— Como pode um ponto vivo absorver matéria,


incorporá-la, crescer, mudar de aspecto — embora per-
manecendo o mesmo –, reproduzir a si mesmo e, ao com-
pletar o ciclo vital, dissolver-se?
Então convenceu-se de que a vida difere da existên-
cia, é o produto de muitos conceitos, que sob o império
das leis materiais dão origem a muitos complementos jun-
tados para formar o exemplar, ou seja, o protótipo. A
vida não surgiu do acaso, foi uma criatura longamente
idealizada e pensada. Se assim não fosse, seria um ato de
magia ilusionista, arte obscura que o Criador desdenha,
porque é pensador profundo, embora saiba usá-la. A
magia e a casualidade são argumentos didáticos de sábios
ignorantes.
A observação revelou também a Splendor uma parti-
cularidade maravilhosa: a chave da perpetuação. No reces-
so mais íntimo da criatura existe um programa aparente-
mente inativo, que quando excitado e condicionado dá uma
vontade produtiva, dando origem também a um novo e
igual indivíduo da espécie.
Concluiu, ainda, que uma ninharia externa introduzida
casual ou voluntariamente no programa, alteraria a ordem,
originando uma criatura diferente. A descoberta o encan-
tou, e foi-lhe apresentada a possibilidade, na sua imagina-
ção excitada, de combinar um indivíduo de singularidades
confusas, ou seja, o ajuntamento de características contras-
tantes em um ambiente adverso para formar um indivíduo
anormal.
O espírito se dilatou pela incontida satisfação.
30 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

— Não crio conceitos, não emano energia, mas tenho


inteligência para elaborar uma originalidade. Posso trans-
formar, pois sou um transformador.

13
Mente costumava descer da sua realidade em
A um vale para gozar a aura do entardecer na vaga
sombra vespertina e observar a obra em desenvolvimen-
to. À frente de uns seres gigantescos e plantas esquisitas,
surpreendeu-se e disse ao Pari:
— Não são verdadeiramente estas as criaturas pensa-
das e desejadas.
— Alguém nos quer imitar, mas é desajeitado: violou
o código genético. O resultado é um mostrengo do ser ori-
ginal.
Realmente perambulava pela pradaria um sáurio com
rabo e pescoço compridos que partiam de um corpo volu-
moso e disforme, sustentado por duas enormes patas pos-
teriores, contrastando com as duas anteriores atrofiadas
pela inutilidade. Desfolhava com dificuldade os brotos dos
cumes das árvores. Por ter corpo pesado e tamanho desco-
munal, era lento e temia o chão mole dos pântanos. Vivia
uma lenta agonia.
— Nessa criatura foram alteradas as proporções cor-
porais, desprezando o bom senso existencial. Não se pode
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 31

criar disparate para ser original, mas seguir o bom senso


em harmonia com o ambiente. A natureza extinguirá esta
e outras monstruosidades.

14
as a Mente não tinha sossego; era dominada
M pela ânsia criativa e não conseguia tracejar o
objeto de sua vontade.
— Esta realidade construída com um sem número de
conceitos, idéias, pensamentos, e uma enorme geração de
energia, embora se dilate e conquiste o Nada, parece-me
inerte, desalmada e até inútil.
— São insatisfatórios os aspectos variados da matéria,
os movimentos limitados dos vegetais, o comportamento
obtuso dos animais, comandados pelos astros e pelo am-
biente para manifestar o instinto deles. Não corresponde à
nossa, outra inteligência; ao nosso perceber, o ato da per-
cepção alheia. Assim, não temos a troca de sensos, até os
menores, para animar as nossas pessoas, para alegrar-nos
ou entristecer-nos, e para mover-nos à ação. Ninguém sabe
de nós ou nos envia sentimentos vivos.
— Os Minoritas sabem de nós, andam pela realidade
a testemunhar a nossa existência.
— Porque conhecem as nossas pessoas e virtudes. Mas,
se assim não fosse, como eles se comportariam? Eis as dúvi-
32 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

das da percepção: não existe uma criatura discente e volitiva


em outra realidade que nos perceba, embora não tenha ple-
na certeza com os próprios meios. Então a incerteza susci-
taria nele, criatura duvidosa, monólogos apaixonados, fer-
vorosas indagações, atos honrosos de humildade.
— Este já é um conceito.
— Pode ser.
— O sentimento nos induz a fantasiar um novo ser
dentro da matéria, espírito sensível à espiritualidade, com
razão equilibrada de percepção reveladora, livre, conscien-
te, mas cego de nós.
— Quais outras virtudes receberá?
— O inestinguível desejo de conhecer, a pluralidade
da pessoa, na sua singularidade; assim poderá disputar so-
bre qualquer argumento, e disputando, raciocinar. Será
igual a nós, e pelo desejo de conhecer tornar-se-á senhor
da realidade.
— Assim será.

15
a floresta úmida e sombreada, viviam grupos
N de quadrúmanos. Entre os integrantes, distin-
guia-se, pelo porte, uma jovem fêmea íntegra. Ela tinha o
hábito de descer, todas as manhãs, dos ramos, adentrar-se
entre as ervas da savana e subir sobre um baobá.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 33

A planta anosa, de mole colossal, dominava a planu-


ra, agitava a fronde ao vento matutino como cabeleira
desordenada e, sobre as raízes retorcidas e salientes, pro-
jetava uma sombra recortada. A fêmea assentava-se na jun-
ção do tronco com o ramo. Parecia gostar da solidão e do
contato com a árvore gigantesca. Do seu lugar, observava
ao redor o horizonte. Durante a observação, os músculos
das sobrancelhas baixavam e levantavam, conforme a in-
cidência dos raios solares, as pálpebras moviam-se delica-
damente enquanto as pupilas se dilatavam, a mão acarici-
ava a cortiça. Nada acontecia de excepcional durante a
observação panorâmica, que durava de manhã até o últi-
mo sol, nunca interrompida pela fome ou sede. Ao
entardecer, a fêmea reunia-se ao grupo.
Ela era atentamente observada.
— Ela percebe algo, levanta o velo sobre a cerviz, abre
a boca para inspirar também, mas não distingue.
— Nela, se manifesta uma sensibilidade natural e re-
finada, gravada indelevelmente na estrutura genética. A nos-
sa atenção doa um senso indistinto ao ambiente, que ela
percebe.
Chegaram os dias de calor e do impulso de copular.
Um macho seguia a fêmea com um olhar dominador. Cer-
to dia, após seguimento furtivo, alcançou-a sobre um ramo
de baobá. Entre gritos e movimentos agitados, a dominou.
34 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

16
eguiram-se dias estranhos: o ar se fez pesado, a
S luz opaca dominou o silêncio da espera; os
quadrúmanos temiam e se escondiam entre a folhagem mais
espessa.
Uma noite liberou-se a violência dos elementos: ulu-
lou o vento como mastim, arrancou folhas e ramos das ár-
vores maiores, estouraram os raios, incendiando a secura.
Enfim, a chuva chicoteou a floresta para apagar e molhar.
A fêmea, tremendo, espiou o céu, empurrou um ramo
e folhas, mas logo cobriu os olhos com as mãos. Entre as
conjunções dos dedos, viu o fulgor do relâmpago fixo so-
bre si, provou o calor, que das extremidades dos pêlos che-
gava à pele, penetrava os poros, as carnes, concentrando-
se no abdômen, para depois sentir novamente o toque da
atmosfera úmida e quente.
Naquele mesmo dia, ela foi fecundada pelo macho
dominante.
A criatura concebida em tais circunstâncias nasceu nas
alturas, na cavidade de um tronco, à sombra da folhagem,
numa manhã de sol, durante uma doce aragem.
O instinto foi mestre primoroso, mas a mãe o aban-
donou durante o puerpério, morreu logo.
O neonato foi recebido no seio de uma velha fêmea,
ainda lactante .
Cresceu rapidamente, revelou-se pequeno temporão,
acima de tudo no uso dos membros superiores e dos de-
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 35

dos; manifestou gestos insólitos até entre adultos. Era in-


sistente na observação do mundo ao seu redor. Mais adi-
ante na idade, manifestou momentos de imobilidade, na
qual só as pupilas se moviam, seguiam o fluir das águas do
regato, o vagar das altas nuvens nos claros da floresta, a
agitação dos companheiros do bando. Havia luz, mas lhe
era difícil ver o sol por inteiro. Às vezes, erguia a corcova,
o pescoço, as pernas e emitia sons modulados, os compa-
nheiros se calavam, se sentiam dominados, o olhavam de
baixo, o temporão retribuía lá de cima, contraindo os lá-
bios em forma de arco. O instinto comandava as funções
fisiológicas: comia quando o estômago se contraía, evacu-
ava ao primeiro impulso, copulava quando o cheiro e o
sangue o estimulavam, eriçava os sentidos ao primeiro si-
nal insólito.
Um dia teve um movimento contrário ao instinto: abs-
teve-se de alimentos, embora frutas e brotos lhe estives-
sem próximos. A languidez suscitou-lhe a imaginação. Re-
viu à sua frente, muito do que tinha visto no tempo passado.
E mais: conseguiu com um instintivo esforço mental ima-
ginar: a nuvem fluía como água no regato, os ramos se agi-
tavam como os companheiros durante a rixa, o sol zigueza-
gueava tremendo como o relâmpago.
Provou um contentamento indefinido: havia vencido
o imobilismo e a preguiça mental.
36 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

17
le, como a mãe, tinha o hábito de descer sobre a
E planície e aproximar-se do baobá. À curta dis-
tância, parava para observá-lo com muito interesse. Atrás
das pupilas, agitavam-se imagens e sensos familiares, de uma
similaridade atávica.
Assim teve início no primogênito aquele fenômeno,
não raro, de reviver experiências dos consangüíneos que já
se foram, na verdade exercícios de uma das tantas virtudes
recebidas. É provável que, com o avançar da evolução, o
homem tome consciência de outras virtudes até hoje
insuspeitadas.
Enfim subiu ao primeiro ramo, o mais forte, e o ex-
plorou por todo o seu comprimento. Repetiu a explora-
ção muitas vezes.
No dia seguinte subiu aos ramos superiores até al-
cançar a cimeira. Aí, afugentou um urubu que o irritava
com sua negra presença. Olhou longe como costumava
fazer a mãe. Distinguiu a linha ondulada do horizonte.
Acima dela permanecia uma cor tênue de flores, que se
dissolvia na luz, embaixo destacava-se uma zona de ervas
altas, flexíveis, manchada aqui e acolá de terra descober-
ta. Gozava o calor insipiente do dia, mas deliciava-se com
o frescor da floresta de origem. Depois, levantou a cabe-
ça e viu uma nuvem, atrás dela radiava o sol. Olhou-o por
muito tempo.
— Ele começa a nos perceber.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 37

— O espírito dele se manifesta e prevalece sobre a


bestialidade.
— Agora podemos chamá-lo de Homo.

18
lguns pensadores, obstinados em explicar o sur-
A gimento e a existência do homem na criação,
admitem que a alma, soprada uma só vez na besta, é vincu-
lada perpetuamente ao gênero humano e se origina na pes-
soa no ato da concepção. A alma tem virtudes primordiais
de absorver e reter sensações do seu ambiente, com os quais
forma uma coletânea, que a experiência enriquece e trans-
forma em espírito ativo, sensível, culto e realizador. Mas é
necessária a memória, húmus prodigioso que ajuda na ger-
minação das idéias e pensamentos semeados pela mente.
Agora, Homo mirava com interesse o ambiente e guar-
dava os detalhes. A observação insistente o obrigava a lon-
gas paradas que lhe moderavam os impulsos naturais, e lhe
permitiam apreciar casos insuspeitos e surpreendentes.
Uma raiz que aflora distante da árvore, a passagem que se
forma, afastando ramos de plantas próximas.
Estes são alguns dos efeitos causados pela atividade
mental; com a vivência, multiplicaram-se, e foram motivo
de imitação pela prole futura.
Então, para pensar algo era necessária a imobilidade e
a observação, mas às vezes tal postura não produzia imedia-
38 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

tamente o resultado. Homo permanecia sentado, em silên-


cio, com os olhos arregalados, como um futuro asceta.
Quando dispunha a dar-se um descanso para afrouxar
as contrações nervosas provocadas pela imobilidade cor-
poral, punha as mãos sobre a região lombar e se estendia
por toda a estatura, fechando os olhos. A energia despendida
provocava-lhe uma correspondência entre o centro ner-
voso e as extremidades sensíveis. E se o centro nervoso
fosse presidido atentamente pela mente, estabelecia-se uma
transmissão do espírito aos sentidos, dando aparências per-
ceptíveis ao primitivo sobrenatural.
O sobrenatural do primeiro homem era pobre, por-
que a imaginação humana tinha poucas imagens, sensações
sem eventos importantes, e não dispunha de materiais
mnemônicos atávicos, com os quais a inspiração, por inter-
médio da mente, compõe o seu mundo.
Após uma certa idade, Homo revelou um comporta-
mento surpreendente: provava uma atração irresistível por
todas as fêmeas próximas. O uso da imaginação causava-lhe
excitação sangüínea e uma efervescência efusiva. Não es-
perava o período natural, o momento e o local apropria-
dos, mas impunha a sua masculinidade ao seu querer. Tinha
elaborado até um ritual de sedução: chamava para si a aten-
ção da fêmea com sons e movimentos, a interessava com
contrações dos lábios que só ele sabia fazer, paralisava-a com
olhar incisivo e, quando a tinha perto, acariciava-lhe o ros-
to, as partes glabras do corpo. Quando o tato comunicava-
lhe um estremecimento da companheira, a dominava. Ela
se sujeitava porque o ato era prazeroso e prolongado, em-
bora fosse extemporâneo.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 39

Os machos invejosos, alguns dos quais já revelavam


degeneração pela longa abstinência, o hostilizavam pelo
orgulhoso domínio, mas Homo punha-os a correr, amea-
çando-os e golpeando-os com um grosso ramo. Assim, ele
tinha para si todas as fêmeas; nenhuma gota do precioso
sêmen gerador de espíritos e intelectos se perdia.

19
omo, após ter afugentado os pretendentes, vol-
H tava triunfante para suas fêmeas, como o rei
Salomão e suas mil esposas e concubinas, a procriar seres
de inteligência superior para dominar espaços vazios e po-
vos inferiores.
Naqueles tempos, ainda valia o preceito de amar e pro-
lificar; hoje possível somente nos territórios desertos... ou
nos mundos vazios.
Passados os meses, nasceram os primeiros filhos de
Homo. Semelhantes ao pai, revelaram-se logo temporãos
e sensíveis. Formavam uma família cada vez mais numero-
sa, agora separada do bando de origem, pois as mães temi-
am as hostilidades dos machos. A família adensava-se em
volta do patriarca, que assumia uma postura de protetor e
uma expressão ameaçadora contra os estranhos.
Formara-se o primeiro clã de criatura, com espírito
gerado de matrizes animalescas.
40 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

— As criaturas de espírito se multiplicam rapidamen-


te, porém Homo é o único que nos procura.
— Convém dar tempo ao tempo.
— Penso que confiamos a esta criatura uma tarefa di-
ficílima, embora lhe tenhamos dado algo de nossas virtu-
des e personalidade. Nada conseguirá sem a nossa assistên-
cia.
— Ainda não aconteceram o evento impressionante e
a observação surpreendente que induzem as mentes à re-
flexão insistente e profunda. Assim tudo acontecerá natu-
ralmente no livre arbítrio.
Homo entrou na idade da reflexão aplicada. Descia
com prazer sobre a planície; entre as gramíneas de muitos
tamanhos, observava o baobá. Lembrou que dos ramos ele-
vados, olhara estático o pôr-do-sol. A cena se repetiu in-
cessantemente na imaginação, até quando Homo conseguiu
compor uma segunda: a subida do sol de uma zona de cor
alaranjada sobre o horizonte para o turquesa do céu mais
acima. Até então, Homo nunca vira uma alvorada, a densa
vegetação ocultava tal cena.
Uma manhã, ele reuniu as fêmeas e as proles. Com
um raminho na mão, impeliu-os através da savana. Passan-
do pelo baobá solitário, fitou-o longamente. Parecia uma
despedida. O calor moderado estimulava a tropa a avançar
sobre a planície desconhecida. Enfim, a canseira e a noite
impuseram a parada. Uma nuvem única pairou sobre os
migrantes e liberou uma garoa refrescante.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 41

20
luz da manhã mostrou pequenas poças d’água, e
A entre as ervas, vargens repletas de sementes ver-
des e esféricas. A tropa alimentou-se imediatamente destas,
até fartar-se. Homo, durante a mastigação das tenras e do-
ces leguminosas e o deglutir da água fresca, julgou o aconte-
cimento esquisito. Apoiou a cabeça sobre o ombro esquer-
do e aguardou.
Defronte dos seus olhos, subiu o sol imponente, pas-
toso como magma incandescente, cujos contornos conti-
nham a agitação do núcleo, liberando raios de esplendor.
Quando emergiu por inteiro, as ervas e os sons pararam
por momentos, depois a vida voltou a fluir. Homo perce-
beu o dilatar das meninges pelo prazer de vivenciar um
evento novo e sagrado. Tomou coragem, alongou o braço
em direção ao astro e, com a mão, como se sentisse a
rotundidade, o afagou com carinho.
No reino do espírito, difundiu-se o regozijo.
— Nunca nos foi enviado semelhante sentimento com
um simples gesto. É gratificante, porque nos chega de uma
criatura que nos percebe, mas nos ignora.
O louvor, como exalação de aroma, vagueou até che-
gar ao entendimento de Splendor.
— Como um animal pode merecer louvor e receber
um destino seguramente importante?
A sua inteligência caiu nas profundezas obscuras, re-
pletas de pressentimentos indistintos.
42 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

— ...A Mente nada esconde, mas somente a razão


pura e universal a compreende. Não quero ser seu segui-
dor, fanático raivoso, mas entendedor racional... Para isso
o meu espírito deve estar sereno, convicto de possuir en-
tendimento... Ter fé...

21
omo, favorecido pela benevolência superior, ani-
H mado pela companhia da grande família, alcan-
çou enfim as verdes colinas vistas de longe. Algumas eram
soberbas, a maioria, doces corcovas, todas manchadas de
arbustos viçosos. Nos declives, escorriam águas claras e ta-
garelas, entre margens cobertas de ervas aromáticas e fres-
cas. O ar era calmo, a sombra prazerosa. Nas alturas, pai-
rava a tranqüilidade que acariciava a mente. Às vezes,
ouvia-se o zumbido das abelhas, o mugido da vaca que ama-
mentava o vitelo no prado.
Aqui, o predador se fez temeroso, não procurou víti-
mas. A morte guia o morituro como se fosse um velho ele-
fante, o conduz no recesso de sombras e o deita em paz
sobre a relva macia para expirar sem dor e lamento. Bem
se pode afirmar que esta é a terra onde escorre o leite e o
mel, jamais o sangue e o fel.
Os influxos do ambiente bucólico foram tão dominan-
tes que o clã aquietou-se pela admiração. Recuperado, co-
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 43

meçou a colher os frutos pendentes e a experimentá-los.


Homo, atento, saboreou um fruto pequeno, de casca te-
naz e polpa enxuta, emitindo um som inusitado que cha-
mou a atenção dos familiares; depois outro, carnoso, que
na mordida espirrou suco e lançou um som bem diferente
do primeiro. Então todos provaram os mesmos frutos e
pronunciaram os mesmos sons.
As criaturas começaram a distinguir e a falar.
Homo, saciada a fome, começou uma atenta observa-
ção. Encontrando-se sobre uma elevação, mirou além dos
vales. Aí surgia uma montanha majestosa: o cimo subia agu-
do, contornado de cúmulos coloridos, dos declives des-
ciam saraivas de seixos como torrentes petrificadas; sobre
os prados inclinados, raros arbustos frondosos pareciam
esperar; no sopé, uma lagoa oblonga, que possuía nas mar-
gens moitas de bambu, no meio dela, uma ilhota. Parecia o
olho de um filho a mirar o céu. No vale profundo, pedras e
fendas.
A paisagem impressionava muito. Homo percebia um
sentimento que não sabia explicar enquanto sugava a polpa
mole de um fruto e gotas de suco lhe escorriam pelo velo e
pela pele glabra.
Ficou assim até quando o sol do zênite começou a de-
clinar. Então, um bando de pássaros saiu de uma zona obs-
cura e voou por algum tempo, festivo e estridente, em di-
reção ao astro, depois desapareceu assim como tinha
chegado.
44 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

22
omeçou o pôr-do-sol, as sombras alongaram-se,
C o sol cansado hesitou junto ao cume, depois dei-
tou-se atrás da montanha. Esta iluminou-se ainda mais de
tintas vermelhas, pareciam chegar de lá vozes alegres.
Homo as ouvia com os olhos arregalados, imóvel...
“A montanha é a morada do sol!”
No dia seguinte, reuniu os seus e os encaminhou à
montanha. Desceram o vale, caminharam muito. Chega-
dos à lagoa, a bordejaram por algum tempo, depois ataca-
ram a subida pelo lado oposto, aquele mesmo observado
ontem. Homo ficou contente: a caminhada revelou-se fácil
entre as sombras e o primeiro frescor da tarde. Com o tem-
po, o afogo enxugou a boca dos migrantes. Estes, chama-
dos pelo reflexo solar, se dirigiram desordenadamente a
uma poça d’água. Somente Homo, absorto no propósito,
continuou a subida acompanhado do batimento cardíaco,
amplificado no pavilhão dos ouvidos. Quando não pode
mais, parou e agachou-se. Ainda ofegava quando ouviu atrás
de si um deslizamento de terra e pedras. Voltou-se e viu
um dos seus seguidores; este, quando próximo, parou e
também agachou-se. Homo olhou o cume, seu companheiro
fez o mesmo. Homo respirou profundamente e foi pron-
tamente imitado; o líder contraiu os lábios num sorriso e
foi retribuído. A sede, o cansaço e as feridas nos pés não os
desanimaram, os dois intuíram que no alto encontrariam
conforto. Quando, das últimas luzes, chegaram a uma es-
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 45

treita esplanada: encontraram uma poça d’água cristalina e


um ninho com ovos de pássaros numa sombra de musgo
fofo. O seguidor sorveu água e ovos; quando satisfeito, co-
lheu maços de musgo para mastigar. Homo, por sua vez,
permanecia imóvel e perplexo, enfim concluiu:
— O sol é grande, fica distante, livre de ir onde quei-
ra, mas sempre me acompanha.
Olhou o companheiro e o imitou. Ambos satisfeitos,
arrotaram.
O pôr-do-sol se completava, dele só se via um peque-
no segmento do qual se projetavam nítidos raios, mais pa-
recendo dedos de fogo. Daí a pouco, a última parte da mão
luminosa desapareceu juntamente com um bando de aves,
depois de uma revoada espiral. Homo olhou atentamente,
seu rosto ficou rubro, seus olhos reverberaram, as pálpe-
bras pararam. O companheiro, que o observava, emitiu um
grito de terror.

23
epois que o horizonte tornou-se obscuro, os dois
D procuraram um lugar para descansar. Logo o en-
contraram: uma cova rasa forrada de musgo. O seguidor
deitou-se nela, enquanto Homo procurava ainda entender
o significado de tudo que havia visto. Não conseguiu, mas
provou o prazer de aspirar o ar fresco, o odor das flores
46 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

noturnas, mesclado a aromas de ervas, que dilata as narinas


e desce até os pulmões, como se fosse um sopro de outro
ser. Mas no ar, captou um cheiro que não era o de vegetais.
Então, virou-se: o companheiro o olhava com insistência
debaixo das pálpebras caídas, a boca entreaberta, da qual
saía um som débil, parecendo uma chamada. Homo farejou
repetidamente, e só então viu no acompanhante uma fêmea
pronta. Como se fosse um banhista quase enxuto, que da
nuca cabeluda lhe desce uma gota d’água que molha as vér-
tebras, insinua-se entre os glúteos, e provoca frêmito, assim
a excitação chegou-lhe ao escroto, sentiu um formigamento
quente. Homo aproximou-se, abriu-lhe os membros, pe-
netrou-a com doçura até o desvelo e além, depois começou
a rodar as ancas. Era gostoso assim; nunca mais como os com-
panheiros da floresta que dominavam a companheira, cain-
do sobre as costas dela.
A lua mostrava-se a um quarto do céu, fria, indiferen-
te, mas os seus eflúvios estimulavam o prazer.
— Não é mais o impulso animal que comanda o indi-
víduo, mas a razão movida pela natureza para auxiliar o des-
tino.
— Havendo criaturas com espírito e razão, recebidos
de ambos os pais, começam as combinações genéticas.
— Os perdidos durante a subida da montanha também
são filhos de Homo: tem espírito, razão e sensibilidade.
— Estes, mudando de aspecto, darão origem à diver-
sidade.

Naqueles tempos, ressoavam no ar bramidos ferozes,


boatos eruptivos e sísmicos, estouros de ondas sobre os re-
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 47

cifes. A terra era povoada por animais de muitas espécies e


coberta de infinito número de vegetais. A adaptação ao am-
biente solicitava mudanças nos organismos dos seres vivos.
Difundia-se a variedade tão desejada pela Mente criativa.

24
homem não se manifestara ainda. A sua mente
O era criança infante, a consciência muda, pois dis-
punha de poucas idéias e situações contrastantes. A
animalidade hereditária e latente o guiava no sustentamento
cotidiano do corpo e na perpetuação da espécie. Com cer-
teza, a Mente usou tal expediente a fim de que o primeiro
ancestral e os seus descendentes não se extinguissem entre
as mandíbulas dos predadores ou nas dificuldades naturais.
E, de vez em quando, os favorecia na obscuridade da caver-
na. Quando solitários, eles afugentavam a impotência com
o imaginar de uma cena de sobrevivência, lançando mági-
cas azagaias, matando, a golpes de tacapes, os mastodontes
carnívoros. Oh espeluncas paleolíticas! De quantas cenas
de caça, projetadas pela imaginação humana fostes teatro!
Hoje, restam somente algumas pinturas rupestres e res-
quícios de fuligem de fogos antigos.
Não se pode explicar diversamente como o homem
podia enfrentar e vencer um mamute com muitas tonela-
das de peso, sobreviver em um ambiente glacial, despido
48 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

de um velo compacto, desprovido de uma proteção adiposa.


Nestas condições, a mente tinha dificuldade para construir.
A memória é inata, mas latente; somente o exercício
repetitivo revela a sua grande potencialidade. E, se no exer-
cício repetitivo, o improviso introduz uma variante que seja
também pequena, inicia o raciocínio, começa a girar a roda
do progresso. Mas, naquele tempo, a bagagem mnemônica
disponível era mínima, eram dificílimas as imitações e
similitudes. Nestas condições, não se podem atribuir cul-
pas e castigos a uma mente que ainda não possui a capacida-
de de querer e de compreender. O primeiro movimento
da evolução humana passa a ser o trabalho constante da
emotividade virtuosa, a mesma que o Criador sancionou e
promulgou no espírito humano depois de constatar que
foi o sentimento natural que moveu a sua inteligência.
Semelhantes aos Quarks, os sentimentos são de múl-
tiplos sabores e de intensidade variável. Nascem no
substrato do espírito, suscitados pelas imagens, situações
guardadas na memória, juntamente com as lembranças. O
homem que lembra, experimenta novamente o sentimen-
to, não com a mesma intensidade, mas com o sabor primi-
tivo. Talvez até sinta as sensações visual, auditiva, degusta-
tiva, olfativa e tátil que acompanharam a manifestação do
sentimento. A memória guarda tudo isso no arquivo até a
morte, depois se dissolve, pois tudo foi imprimido na ma-
téria que se decompõe.
Ao contrário, o espírito se comporta como dono, pois
domina a memória: avoca a si e sublima as lembranças com
todos os seus corolários e as conserva de forma indelével
na sua biblioteca até após a morte, juntamente com os pa-
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 49

piros herdados por via genética dos ancestrais. Os papiros,


escritos em idiomas antigos ou ignorados, dizem de even-
tos longínquos no tempo, de sentimentos agora inexisten-
tes. Entender o todo é difícil. Os papiros atávicos, se exu-
mados momentaneamente das profundezas do ser, em uma
atmosfera dramática, causam impressões fortes.
Como foi dito, a memória existe até a morte, post
non liquet. Porém: ante liquet, pode provocar situações
singulares.
Admitindo uma causa qualquer, seja esta fisiológica,
psíquica, material ou ato volitivo, a memória abre o arqui-
vo, e dela saem acontecimentos seguidos de sensações. Ar-
tistas aproveitam destas aberturas, mas profissionais, cien-
tistas, mediante a concentração, se servem dela para aplicar
os conhecimentos no trabalho cotidiano.
Quando, porém, o espírito abre a sua biblioteca por
um sopro de inspiração superior, se revela o sobrenatural:
a ilusão, a visão, a incorporação de traspassados et similis.
Tudo construído com elementos mnemônicos da própria
experiência, e daqueles nebulosos papiros recebidos por
via genética. Se, depois, o conteúdo da biblioteca age so-
bre o corpo material, pode-se suspeitar de um caso com
sugestão desejada pela insistência da vontade imaginativa.
Caso digno de nota universal é aquele das profecias.
Como foi dito, na biblioteca são conservados sentimentos,
sensações e imagens, mas não todos os elementos para com-
pletar uma profecia clara e completa. Quando faltam — e
quase sempre faltam — elementos, há uma profecia “apro-
ximativa”, “alegórica”, que dá origem a muitas interpreta-
ções. O pior é o insuspeitável, acontece quando a imagina-
50 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

ção exuma com os elementos mnemônicos os sentimentos


ácidos, detestáveis e malignos do profeta, que provavel-
mente foi também pecador e pervertido. Não deve sur-
preender que as produções proféticas sejam apocalipses
cruéis, massacres ignominiosos e epidemias continentais.
Parece que os profetas sofrem de uma mórbida ne-
cessidade de prever as desgraças do próximo. Quantos e
quais profetas anunciaram amor sublime, a união de na-
ções, as melhorias do gênero humano, o triunfo da igual-
dade entre todas as gentes, o evento glorioso de imprimir
a pisada humana em solo lunar, a difusão da vida no cosmo?
Talvez nunca tenham existido tais argumentos na bibliote-
ca do profeta, mas provavelmente obscenidades que se tor-
naram sacras no entender dos infalíveis.
Admitir um futuro apocalíptico significaria, para a ra-
zão, não intuir a missão do gênero humano de propagar a
vida nos mundos e, para o Todo Poderoso, o abandono de
um projeto inviável.
— Então convém perguntar: Somos todos alterados?
Talvez a resposta certa seja: na consciência foi intro-
duzido malignamente o senso de culpa e de derrota para
que o homem permaneça numa realidade imensa, vazia,
inútil.
Compete aos cientistas atentos, aos pensadores hones-
tos, individualizar o ponto de contato entre os vértices con-
trapostos dos triângulos que encerram as áreas dos campos
espiritual e material, como e quando há troca de energia, o
que há de anômalo que dificulta a compreensão geral. Valeu
a pena lembrar que a criação está sendo feita com bom sen-
so, em harmonia com as leis anteriormente promulgadas.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 51

25
história se repete (os autores são semelhantes
A entre si).
O par que se destacou, deu origem a uma família, des-
ta família, um clã de poucos pais, de muitas proles. Na de-
sordem natural da primitiva sociedade era praticada a poli-
gamia, como hoje em algumas regiões do globo. O incesto,
no Éden, não era considerado culpa tão grave quanto o furto
da fruta de uma árvore proibida.
Assim aconteceu ao velho Lot, bêbado, induzido ao
conúbio pelas duas filhas solteiras e necessitadas; a Bórgia
Alexandre VI (aquele que nunca dorme sozinho), que libou
as primícias da filha Lucrécia. Hoje, em alguns casos, o in-
cesto fraterno é legalizado em poucos países nórdicos da
Europa, apesar das proibições da eugenia. Ao contrário, a
poliandria, que existe ainda na região do Himalaia, parece
originada pela falta de fêmeas; ou porque as mulheres des-
prezavam a maternidade para satisfazer seu calor natural,
assim, promíscuo, como nos tempos modernos, nas ruas
das cidades.
Provavelmente vigorava nos primitivos clãs o jus
primae noctis, com o escopo de multiplicar proles de che-
fes virtuosos, direito este aceito posteriormente por mi-
nistros religiosos inescrupulosos e oportunistas. Vicissitu-
des da moral “plástica” que se adapta aos novos tempos!
Então, nada de novo sob o sol, porque tudo procede
naturalmente.
52 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

Não foi fácil à Mente induzir o selvagem, sem nunca


impor, a formar uma pequena sociedade familiar na qual
nascem os nobres sentimentos, as grandes aspirações, a tro-
ca amorosa de sentimentos, de gestos e pensamentos. As-
sim, surgiu a cooperação, útil à ordem necessária, à propa-
gação de pensamentos, tudo ao redor do fogo da união.
Somente a Mente pode dizer quantas e quais inspira-
ções e casualidades destinou ao primitivo. Foi um trabalho
de paciência, de bordado, que observado de perto, parece
um emaranhado, de longe, depois de milênios, revela o
escopo e o significado do desenho.
É indiscutível: o primitivo que não se sensibilizar com
as inspirações, deixando a mente inoperante, jamais se afas-
tará da floresta equatorial ou da caverna para penetrar os
espaços siderais.
Homo continuava a procriar, o instinto lhe impunha a
tarefa, mas não mais com o vigor juvenil. Comportava-se
como o ancião Jacó, que se atarefava sobre a estéril Ra-
quel, e depois, sobre a irmã dela, Lia, e para variar, prolife-
rava com Bala e Zelfa, ótimas matrizes. Já eram distantes
os anos de intensa atividade, que lhe exaltavam a masculi-
nidade. Provavelmente superara o seu remoto descenden-
te, rei Salomão, que dominava mil mulheres, contava to-
neladas de ouro e outras copiosas riquezas, reinava,
guerreava, poetava e achava tempo para os exercícios espi-
rituais. Admirável exemplo de homem privilegiado, sobre
cujos talentos, soprava o quentíssimo hálito da imaginação.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 53

26
ais adiante, Homo constatou que após a
M exaustão das múltiplas cópulas, durante o re-
laxamento dos nervos, era dominado por uma inércia re-
flexiva, na qual os sentidos se calavam de modo que a ima-
ginação ondeava longe de sua vontade.
Mas isto não acontecia com todas as fêmeas que aca-
bava de penetrar, afastando-as depois de si, o fato se repe-
tia com Ea, a primeira fêmea do segundo ciclo reprodutivo.
Chamava-a Ea, voz onomatopéica, pois assim a pedia per-
to de si. Ela se rendia carinhosamente e durante a cópula
emitia sussurros sob o bufar rítmico do seu único macho.
Após o desafogo, na imobilidade, fixava intensamente
Homo; agradecia-lhe lambendo seu rosto e lábios. O ma-
cho deixava-a lambê-lo. No abandono, sentia-se embalado
entre imagens vaporosas que queria para si, por isso fun-
gava Ea, autora das visões. A fêmea Ea tornara-se a mulher
de Homo.
Este constatara que, após o sono reparador, o toque
frio da água viva e do ar matinal, o sangue corria com vigor,
a atividade mental se revelava vivaz e precisa, fácil a imagi-
nação e a união de idéias e pensamentos. Começava a cons-
truir mentalmente. Porém, a atividade mental minguava
ao entardecer, quando surgiam as dúvidas e os temores e,
no sono, os pesadelos. Para vencer o medo, precisava do
contato carnal da companheira, suscitando a tépida concu-
piscência.
54 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

A percepção cada vez mais aguçada, e a melhor sensi-


bilidade, o convenceram de que a alternância devia-se ao
sol. Homo experimentou gratidão, e julgou o astro in-
dispensável, pois quando ele montava no céu, nasciam-
lhe pensamentos, facilitava a colheita de frutos e semen-
tes. Precisava então pedir-lhe algo mais. Nasceu-lhe uma
idéia.
Durante dias, catou sobre as encostas da montanha pe-
dras de peso e proporções que ele poderia carregar na su-
bida, amontoou-as na forma de cone sobre o plano próxi-
mo ao bosque, a oriente. Após a construção da pequena
Stonehenge, ao primeiro clarear matutino, sentou-se com
as pernas cruzadas, em frente ao montículo, em posição
estudada previamente. Daí a pouco, surgiu o sol pôr trás
das pedras: apareceu pelota fusa em cadinho azul,
iluminador do céu e da terra, assim radioso de desbotar as
estrelas. Pareceu ao observador que o astro, por graça e
complacência, parasse diante da sumidade do montículo.

27
omo começou a observar: o sol não tem corpo
H e nem pernas, é redondo e possui braços e mãos
tantos quantos são os raios que iluminam o todo que está
abaixo dele; na luz cada coisa se distingue. Quando domina
no céu, ninguém lhe é par; quando se vai, as trevas se fa-
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 55

zem patroas... Oh sol! por que não permaneces para sem-


pre a dominar o céu e a terra?
Suspeitou de um motivo incompreensível, um mis-
tério. Lembrou quando ele e os seus saíram da floresta e a
noite chegou quando todos estavam na planície sob a ga-
roa. Depois da escuridão, a luz mostrou leguminosas e
água.
— A mudança é necessária: tem-se que suportar as
trevas, que causam tremores e medos, para gozar o con-
tentamento.
O sol, lento e seguro, levantou vôo de condor andino.
— Ele é ave soberana, domina os montes e os vales
próximos.
Ea, a mulher preferida, sempre ocupada em uma ges-
tação, adivinhando o pensamento de seu homem disse:
— Ele é aquele que me dá a vida nas entranhas com o
calor do dia, e me fortifica com o frio da noite.
No reino do espírito, difundiu-se expectativa. Na ima-
ginação da nova criatura, a Mente era o sol radioso, ave
magnífica, fluxo quente que vem de cima, atributos que
começavam a determinar-lhe a majestade, sem Homo ter
tido mais contato, usando somente a percepção. No futu-
ro, a razão, quando treinada à especulação, alimentada com
conhecimentos e experiências, pintará um retrato mais de-
talhado. Podia-se afirmar que ao homem fora atribuída mis-
são dificílima, provavelmente superior àquela dos Minori-
tas, que pode ser resumida: do conhecimento zero à
sabedoria absoluta.
Splendor, observador poliédrico, raciocinador insis-
tente, deduziu:
56 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

— A Mente é sóbria, não impõe para si louvores adu-


latórios, orações refinadas, honrarias destiladas, liturgias
fantasmagóricas, hinos ecoantes, reverências nadegadas,
coisas e atos que satisfazem somente os inventores e
acólitos. Ela é axiomática; é sensível, racional, dinâmica,
fantástica. A solidão horrenda na nulidade obscura foi o es-
tímulo que movera a Mente a criar. Ela ama a troca de sen-
sos elevados, que lhe suscitam nobres sentimentos, e que
faz fluir sobre o gume da razão na medida precisa. Somos
nós os únicos a prestar-lhe este tributo, somos nós, que
lhe somos próximos, a saber de sua natureza.

28
or que a Mente dá atenção a um animal, sopra-
P lhe o espírito, o coroa com virtudes, concede-
lhe liberdade ilimitada e inviolável, quando é a senhoria
dos lugares onde a ventura o conduz e ainda chama Homo
de si. Qual é o escopo?... Se nós não conseguimos satisfa-
zer o desejo da Mente, esta criatura conseguirá levantar-
lhe emotividade se nada sabe do Criador?
Na mente de Splendor dilatou-se um grande silêncio.
Enfim a inteligência ergueu-se e argumentou.
— Para esta criatura híbrida, a percepção incerta é o
único meio de conhecimento da realidade superior. Para
comunicá-la aos seus semelhantes, tem que traduzi-la em
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 57

palavras, atos e imagens. Eu poderia ser preceptor e guia


da ignorante criatura. Serei soberano para elas se no
ensinamento incluir características da minha personalida-
de. Exultou: — A Mente tem personalidade única e imu-
tável, mas o homem terá dela tantas personalidades quantas
eu determinar. Saboreou longamente o prazer de uma so-
lução genial.
Mas, enfim, chegou o amargo adstringente da refle-
xão.
— A majestade me seria atribuída pela ignorância e
credulidade do homem...Não é honesto — disse. A cons-
ciência estremeceu. — Não posso impor a minha vontade
ao homem, ele goza do livre arbítrio, tão sagrado que a
própria Mente respeita e faz respeitar, nem obter a sua be-
nevolência, pois tudo lhe vem da Mente.
Lembrou-se do desejo manifestado de participar da
criação e a resposta à sua pretensão: “Tu não podes criar
conceitos, mas somente gerar idéias, elaborar pensamen-
tos, tu não possuis energia realizadora...”
— Porém, posso propor argumentos deduzidos dos
conceitos existentes, posso iludir com visões de magia.
As conclusões lhe clarearam a inteligência, e afastou-
lhe a insatisfação.
— É melhor ser primeiro e único no Nada insignifi-
cante do que segundo entre os raciocinadores e críticos.
O último impulso contraditório foi aquele da cons-
ciência, que propôs um diálogo clarificador com a Mente,
logo vencido pela inteligência, que avançou argumentos
enganadores e mirabolantes para converter o homem às
vontades de Splendor.
58 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

29
sando o instinto enfraquecido, Homo seguia as
U mudanças climáticas: quando notava um formi-
gamento nas narinas enxutas, temia a estiagem prolonga-
da; uma frieza nos pulsos e tornozelos previa o frio notur-
no iminente, umidade excessiva nos olhos, chegando a
escorrer lágrimas, esperava tempo chuvoso. Agora as rea-
ções condicionadas eram conectadas à observação mais que
atenta: procurava de onde chegavam as neblinas, farejava o
vento, degustando-o, examinava o horizonte e dizia:
— Tudo vem de cima, a terra reage.
Quando chegou o tempo da seca, céu desbotado, lon-
gos períodos de luminosidade, manteve-se calmo, mas vi-
giava uma faixa opaca que contornava as longínquas ondu-
lações.
Uma tarde, escureceu antes do tempo. No céu, avança-
ram nimbos ameaçadores, a luz solar esmorecera. Homo,
então, reuniu os seus na caverna do pequeno promontório
junto à selva. Mas ele, juntamente com sua companheira,
pouco permaneceu na entrada, ambos estendidos na relva
ficaram olhando. Entre as brechas da ramagem, observava as
repentinas fissuras luminosas produzidas pelos relâmpagos,
e esperava encolhido o estouro do trovão. Entre os clarões
da tempestade, notou, entre tantos, dois velhos ramos que
empinavam dois pequeninos, já secos, os quais se esfregavam
entre si, ocasionado por um sopro de vento intermitente,
efeito do balanço de uma ramagem próxima. Caídas as cor-
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 59

tiças, os lenhos crepitaram, a pequena brasa, sob o sopro do


vento, tornou-se grande e viva, caiu juntamente com alguns
raminhos, próxima ao observador. Enfim, o fogo tinha a sua
chama. Homo, apavorado, chamou a atenção da companhei-
ra com o toque da mão. Ea, vencida a estupefação, pediu ao
companheiro para pegá-la. Ele se aproximou com cautela
sobre os quatro membros e, quando próximo, agarrou a cha-
ma. Com a dor da queimadura, emitiu um grito animalesco.
Enfim, o vento e os relâmpagos terminaram, o fogo se apa-
gou, as trevas se recompuseram. Homo não dormiu, revia
continuamente na imaginação o nascimento do fogo em to-
dos os seus detalhes. A noite foi longa e monótona.
Na luz do novo dia, começou a procurar perto de si,
viu os carvões e as cinzas no meio das folhas chamuscadas.
Catou dois gravetos e, repetindo as imagens da noite pas-
sada, os esfregou entre si, soprando-os como o vento. Nas-
ceu a chama e, com ela, a luz. Com gritos de alegria acor-
dou o clã e repetiu a magia. Todos ficaram estarrecidos, e
também queimaram as mãos.

30
sol alto e o montículo de pedras foram esque-
O cidos.
Quando Homo lembrou deles, provou ansiedade
culposa. A mulher que segurava com os braços o abdômen
quase maduro e tudo sabia de seu homem, o exortou:
60 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

— Nada de culpa, agora tu podes ter a luz, o calor e


tudo o que queres. Tu não me tomastes, embora contrária,
sobre a relva?
O homem manifestou a primeira escolha. A vida sua e
de seus filhos o obrigará sempre a uma escolha, após um
aprendizado para cumprir o porvir!
Após alguns dias de manhãs luminosas seguiu uma que
parecia noite. Levantou-se um vento raivoso que arranca-
va as folhas novas e raminhos tenros das velhas plantas, ou-
viram-se grandes explosões, caíram raios semelhantes a
dardos dos Ciclopes, formaram-se incêndios na selva se-
denta. Das nuvens inchadas, precipitou-se chuva gélida, que
pungia a pele, depois granizo que fustigava como flagelos
às costas dos despidos. Assim foi por horas: depois os fogos
se apagaram. Entre a fumaça, o lugar se mostrou desolado,
descia ar frio de cima das árvores, a fauna permanecia muda
e escondida, o sol do fim do dia desapareceu entre cirros
púrpuros. Os homens temiam; experimentavam uma fita
aguda que, da cerviz, descia pelas vértebras e difundia-se
pelos ossos. Nunca o clã tinha vivido um acontecimento
semelhante. Era a primeira e violenta mudança metereo-
lógica vivida por ele. No reino do espírito comentou-se:
— O inevitável aconteceu; o homem decidiu a pri-
meira escolha. Não nos indispõe a sua decisão. São trans-
corridos alguns simples eventos, que pouco lhe ensinaram
a construir pensamentos lógicos. Não exigimos comporta-
mento melhor, até quando não adquirir a plena capacidade
de entender e querer. Por enquanto, e por gerações, as
suas reações serão temperamentais e instintivas.
— A humanidade vive a sua infância.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 61

— Será iniciado no uso da razão quando conhecer os


primeiros conceitos: o estar, o avançar, o dar, o receber, o
ser, o morrer. Serão necessários milênios para saber do bem
e do mal, relacionados somente ao uso correto das virtu-
des recebidas. Porém, já tributa respeito, pois admite a
autoridade. Agora nós somos considerados doadores de
bens e de castigos, mas serão necessárias catervas de pen-
samentos para aprender que o estado de espírito induz o
indivíduo a uma escolha, que quando racional, o aproxima
de nós e lhe revela o conhecimento de tudo, quando insen-
sata, o conduz à desordem e à solidão.
— Alguém deve proclamar com autoridade: “ ...Os
homens não nasceram para viver como brutos, mas para
seguir a virtude e a inteligência”, pois criamo-los à nossa
imagem e semelhança.
Por lei natural, o intento da Mente se amalgama à sua
obra, de modo que o indagador teimoso, após examinar os
aspectos da realidade, acaba conhecendo-o embora de for-
ma imperfeita.
Foi assim que a mente de Splendor, após muitas ob-
servações reflexivas, concluiu:
— Após milhões de combinações genéticas, por efei-
to da evolução impressa no seu ser, que elimina paulatina-
mente os resquícios animalescos e fixa as qualidades do
intelecto, este híbrido se tornará senhor da realidade, em
verdade, uma permissão irreflexiva. Não posso aceitar o
rebaixamento a mensageiro entre rei e súdito, nem a pro-
tetor de uma ínfima criatura. Estas decisões violam o sen-
so de justiça, ínsito no estado de existência, humilhando a
pessoa. A correspondência de nobres sentimentos, entre
62 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

criador e criatura, se tornaria áspera, quando não inexis-


tente.
O sentimento misto de desdém e revolta alcançou a
incandescência, depois apagou-se, mas o íntimo era
quentíssimo.
— Seria necessário um apocalipse da realidade. Eu não
tenho poder de realizar tal empreendimento, mas poderia
propô-lo ao Onipotente. Lembro: na perspectiva das pos-
sibilidades, o conceito surgiu após a Mente constatar as
aberrações nas criaturas, provocadas na calada, por mim.
Para motivar uma destruição total, deveria difundir o ar-
gumento entre os homens, os quais já revelam ressenti-
mento entre eles, propagar mitos e lendas, estabelecer
“Pathos”, que se aceito e comentado, tornar-se-ia herança
atávica e até psicogenética, sacralizada por um profeta
alucinado ou por uma eminência autoritária. Deveria in-
troduzir, na imaginação humana, elementos figurativos e
idiomáticos que, se adequadamente usados, poderão com-
por um apocalipse e alcançar a importância de artigo de fé
irracional... O homem é um ótimo e estúpido auxiliar... O
apocalipse é de minha única conveniência... Mas ninguém
tem que saber... A humanidade deveria causar uma grande
desilusão à Mente, a qual, tomada de tremenda emoção,
perderia o equilíbrio emotivo e, de uma só vez, aniquilaria
a realidade. ... O projeto Homo sidereus, se transformaria
em um grande “fiasco cósmico”. Eu, e somente eu, seria a
única criatura, com os meus seguidores a oferecer compa-
nhia e diálogo à Mente e ainda levantar-lhe sentimentos
criativos.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 63

31
homem começa a desgarrar do comportamen-
O to natural. Conta o escriba profeta o primeiro
fratricídio. Como o autor chegou ao conhecimento do fato
não é dado saber, porém, vale a suposição de que “Um ve-
lho contou o que ouviu de um ancestral...”, ou seja, sem
nenhum indício arqueológico, pura mitologia. Mas, se a
inspiração superior me permite, o fato pode ser assim con-
tado:
O Onipotente aprecia e prefere o cheiro das gordas
carnes de uma ovelha imolada pelo pastor à fragrância de
frutas oferecidas com extrema rudeza pelo agricultor sim-
plório. Este, por inveja, mata o irmão pastor. A autoridade
condena o assassino ao ostracismo, mas não lhe aplica a lei
do Talião. À parte o prazer olfativo, sempre discutível, por
que o Onipotente “olha” com insistência a oferenda do pas-
tor? Quer provocar inveja e briga familiar?
O escriba, talvez por limitações intelectuais, não intui
que o pastor foi provavelmente o primeiro homem que,
aplicando a inteligência, inventou a oferenda sobre o bra-
seiro para oferecer não uma simples ovelha abatida, mas o
espiral sutil de fumaça; a essência ascendente, o ato com
algo de pessoal, de inusitado. É assim que se pode explicar
o “olhar” ostensivo, a ignorância do escriba, desprovido de
intuição e meios descritivos. Se assim não fosse, o leitor
moderno seria induzido a duvidar da imutabilidade supe-
rior: ontem, autoridade castigadora implacável, hoje, pai
64 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

misericordioso e compulsivo. E amanhã? Provavelmente


abade corpulento e alegre. Mas, se o Onipotente não se
tivesse manifestado, respeitando o livre arbítrio humano,
como sempre prometeu e cumpriu, poder-se-ia explicar
o fratricídio com a aversão congênita existente entre con-
sangüíneos, vivíssima entre os povos levantinos, mas tam-
bém difundida entre as nações européias. Então se confir-
maria a lei natural: energias de mesmo sinal se repelem,
de sinal contrário se atraem. Efeitos diversos da mesma
lei universal.
A limitação intelectual e moral nota-se mais avante. O
escriba narra as maldades de personagens, formando um
elenco dos arquétipos de todos os pecados possíveis: latro-
cínio, onanismo, prostituição, incesto, perversão, abigeato,
falsidade ideológica e outros farelos. Este é o abecedário
sobre o qual a humanidade formou cultura e conhecimen-
to, quando ainda o espírito terreno era ignaro de morali-
dade. A difusão foi um ato discutível, porque, como diz o
filósofo, “O homem nasce bom...” e continuaria tal se al-
guém não o desvirtuasse. O que mais impressiona nesta
incerta história é o personagem do Onipotente, apresen-
tado não como pensador genial da lei, organizador de sis-
temas, criador de uma ou talvez mais realidades, mas como
simples coadjuvante grosseiro e emotivo de algumas deze-
nas de suas criaturas. É difícil imaginar o desalento dos ex-
cluídos, os tormentos dos reflexivos.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 65

32
o início do desgarramento, os componentes do
N clã eram caçadores, pescadores, colhedores de
frutas pendentes. Quando as reservas de sustentamento
da estância se exauriam, eles procuravam outros lugares
em que havia sementes, frutas, caça, água e resguardo das
intempéries e dos perigos.
Eles eram nômades.
Durante as andanças, nas mudanças de temperatura,
quota, ambiente, o aspecto humano suportava impercep-
tíveis mudanças que, repetindo-se nas sucessivas gerações,
tornavam-se genéticas. Pode-se dizer, com superficialida-
de, que o homem é um produto do ambiente, mas pode-se
insinuar que este seja o procedimento escolhido pelo Cria-
dor para modelar continuamente o seu barro vivente.
O clã, quando numeroso, por motivos circunstanciais,
dividia-se em dois ou mais grupos, que migravam para lu-
gares diversos e longínquos. Assim, cada grupo adquiria
novas mutações, diferentes daquelas dos consangüíneos, já
perdidos no tempo e no espaço. Mas que, às vezes, casual-
mente, reuniam-se após séculos. O cruzamento de indiví-
duos cria a diversidade tão desejada pelo Criador. A diver-
sidade no programa criativo é indispensável para originar
novos indivíduos com destacadas qualidades físicas e acen-
tuar as virtudes intelectuais oriundas dos ancestrais: assim
nascem novos pensamentos, concepções de vida. Além dis-
so, multiplica as combinações genéticas que podem pro-
66 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

duzir uma ou mais mentes competitivas entre si, que al-


cançam a abstração complexa e intuem as leis universais
escondidas na natureza.
Esta parece ser a estratégia do Artífice para transfor-
mar um selvagem antropófago em um Einstein racional e
dedutivo que abraça com um único pensamento toda a re-
alidade material.
A casualidade genética parece mais um produto de um
manipulador farmacêutico. Este agiria oportunamente,
com a máxima calma, sem alarde milagroso, sem interven-
ção pessoal, porque prometeu respeitar o livre arbítrio
alheio. Afinal, qual a utilidade de um Galileu, no décimo
quinto século na África equatorial?

33
ob os efeitos dos novos estímulos interiores, o
S homem melhorava o seu aspecto somático. A cada
geração, a fronte se fazia imperceptivelmente espaçosa,
polida, glabra, ereta, porque raciocinava com persistência
ao invés de fantasiar casualmente. Porque a razão, para
trabalhar, precisa de matéria para novas unidades de me-
mória, interligações múltiplas; é assim que se guarda a ex-
periência, se centuplicam os pensamentos. Também os
olhos se transformavam em grandes claros sob o influxo
comovente da espiritualidade, ou pequenos escuros pela
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 67

vontade de indagar detalhes, o nariz pronunciava-se mais


afilado, às vezes pontudo, aquilino, porque ele se tornava
perspicaz, insistente, dominador, os lábios tornaram-se
coloridos, bem desenhados, sorridentes, porque expres-
sava cordialidade, ria, gostava de dizer, enfim, se tornou
cantor por ter imitado o eco, modulando a voz, ao ponto
de cavar uma curta melodia.
E a prole se alindava sob o afago materno.
Naquele tempo, a intuição começou a manifestar
idéias.
A idéia é um produto mental que tem como núcleo
um conceito encontrado na natureza, completado de ele-
mentos mnemônicos em aparente harmonia. A idéia surge
de repente, aparentemente injustificada, encanta o inte-
lecto, instiga a vontade sopita. É axioma: alguma coisa não
nasce do nada! Então suspeita-se no homem, de uma men-
te gêmea, que tenha elaborado inconscientemente a idéia.
Próprio como um sapateiro na sua obscura oficina, que usa
barbante, couro, pelica, sovela e outras miudezas para apre-
sentar seu trabalho ao cliente que, às vezes, passa e olha
curioso além dos vidros opacos da vitrine. Então, na condi-
ção humana, existiria uma dualidade ignorada que impele
o dramaturgo a afirmar: existem razões que a própria ra-
zão desconhece.
Também neste tempo, a percepção emerge das
profundezas do ser e sobe à nebulosa do desconhecido. Tan-
ge qualquer argumento, comove o intelecto pela viagem
audaciosa, mas anda sem rumo e método, pois lhe faltam o
fio da lógica que conecta e os termos adequados para des-
crever.
68 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

34
assim que a percepção capta a profecia. Esta,
É para ser verdadeiramente útil ao vulgo, deveria
ser manifestada em termos precisos e convencionais, no
sopro da consciência moralmente correta. Todos os com-
ponentes deveriam ser dosados com precisão farmacêuti-
ca, em ambiente asséptico; mas, no mundo da percepção,
domina o princípio da incerteza, o profeta utiliza do pouco
de que dispõe. Por isso é temerário sagrar o produto da
percepção e impô-lo a outras mentes mediante sugestão
obsessiva, oratória ardorosa, chantagem emotiva. Estes
procedimentos configuram violação de liberdade, de cons-
ciência, lavagem cerebral. Nenhum profeta manifestou
contrição por cometer tais pecados sutis. Existe maior con-
fusão no conhecimento do sobrenatural do que nas fusões
das galáxias.

Fazia tempo que o homem se empenhava na indústria


lítica e óssea. A casualidade o tinha premiado com achados
de ossos e pedras, que por forma e resistência podiam ser
usados em alguma função imaginada após observação. O
desbastar, o afiar, o polir são atos repetitivos que solicitam
a atenção e a perseverança do operador. Durante o uso, os
companheiros, após a admiração espontânea, propunham
ao artífice mudança no utensílio, no manejo, e até no pro-
cedimento do trabalho. Para tanto, era necessária a palavra
onomatopéica, o gesto descritivo, a similitude natural, o
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 69

sinal do que foi imaginado, traçado no chão e na pedra. Eram


propostas que impunham às mentes a aproximação, a
sobreposição de imagens e movimentos pensados: uma gi-
nástica mental (começava a cooperação). Quando o utensí-
lio construído satisfazia as necessidades, o artífice abando-
nava-se contente ao descanso e dizia: para ter uma boa
ferramenta, precisa-se de habilidade e constância. O traba-
lho racional não é um castigo, mas um meio para desenvol-
ver a mente.

35
omo sempre acontece, a combinação genética
C gera personalidades e inteligências singulares,
até semelhantes, jamais iguais como duas gotas d’água. É
lei: a cada homem a sua personalidade, a própria inteligên-
cia, a única visão da realidade. Também no caso dos gênios
univitelinos: a igualdade acaba, ao comparar as inclinações
divergentes. Provavelmente o astrólogo confirme.
Desta diversidade, a natureza consegue estímulo
evolutivo.

Os trogloditas, após refeições abundantes, se abando-


navam ao sono profundo do roncador. Mas não surpreen-
de se acaso um, perto do fogo, permanece acordado, go-
zando o calor vermelho das brasas, talvez lembrando o frio
70 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

externo, que encrespa a pele descoberta, na solidão negra


da noite. Sentado sobre um seixo ciclópico observa: a fu-
maça sobe ao teto e desce tranqüila quando fria, envolve a
caça abatida e dependurada, para defumar; a brasa do
raminho, que se apaga num pio silêncio e se transforma em
carvão útil ao desenho; além do braseiro, as chamas irre-
quietas projetam, sobre as paredes da caverna, as formas
sedutoras das mulheres dormentes e provocam no desperto
a concupiscência; a chama já preguiçosa queima uma gota
de resina, dispara uma faísca sobre a pele de quem descan-
sa. Tudo isso torna-se patrimônio da memória descritiva,
com a qual a inspiração de qualquer procedência compõe
cenas novas e até sobrenaturais. A alucinação não é estra-
nha, pois é favorecida pela escassez do oxigênio e incons-
tante pressão sangüínea, pelo batimento cardíaco acelera-
do. Se depois o estouro é mais forte do que o anterior e a
labareda cega por um instante, o observador a fixa na me-
mória, como se fosse uma fotografia instantânea. Quando
relembrada, tornar-se-á uma visão.
Por uma singular associação de imagens, ao já sono-
lento troglodita vem à memória o cervo que pasce a grama
nova e, ao ver os homens cobertos de peliça, foge junto ao
bisão e ao tarpan.
Assim, no antro asfíxico, de sombras incertas, de pro-
fundidade indeterminada, parece ao alucinado distinguir
os animais entre os meandros. Por que não estampá-los
sobre a superfície lisa entre anfratuosidades, para deixar as
imagens, assim como deixou a marca da mão molhada de
água colorida?
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 71

36
o ambiente dos agrupamentos humanos, tinha-
N se estabelecido o escambo de coisas e ajudas,
presentes ou futuras, com gestos convencionados e pala-
vras formais. Mas as intenções eram esquecidas ou modifi-
cadas segundo a conveniência, especialmente quando esta-
beleciam obrigações. Era inevitável: as modificações e os
esquecimentos causavam litígio entre as tribos.
Assim como permaneciam as imagens daqueles animais,
já mortos e devorados, o primitivo teve a idéia original de
fixar sobre a pedra e outras superfícies portáteis o estabele-
cido com sinais convencionais. É a mesma idéia que mais tar-
de os latinos condensarão: verba volant, scripta manent.
O homem conseguiu expressar com sinais a abstração
pensada. O autor pictográfico obrigou-se, com insistên-
cia, à cópia, à similitude, à síntese dos elementos naturais e
dos ideais; o leitor é obrigado à interpretação dos quadros
pictográficos, a traduzi-los em palavras convencionais e pro-
vavelmente em estados da alma. O grande valor da picto-
grafia, do hieróglifo, da escrita, enfim, é a conservação, a
propagação do conhecimento universal, que pode sempre
ser aperfeiçoado, aumentado pelos vindouros. Onde não
existe a obrigação de documentar, a história se dissolve, a
consciência se perde, a espiral evolutiva do espírito não
existe.
É impossível confiar as lembranças aos aedos de boa
memória, que a morte emudece, e a vida não substitui.
72 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

O povo sem passado não terá futuro. A escrita e a lei-


tura são, ainda hoje, o mais precioso legado dos ancestrais,
muito mais do que a roda e a pederneira.
Com as rosas chegam os espinhos.
O homem movido pelo espírito de contradição, segu-
ramente irracional, mas não necessariamente maléfico, ge-
rou os contra-valores. Estabelecida na comunidade uma re-
gra, uma verdade, uma hierarquia valendo-se da liberdade
outorgada, proclamou a confusão, a verossimilhança, a in-
dependência...

37
creditando-se que a inspiração seja uma atmos-
A fera carregada de fermentos intelectuais, que
chega a todas as mentes, deduz-se que, ao homem, sem
distinção, sejam lícitas manifestações sobrenaturais.
Típico caso do profeta iletrado, que recebidas re-
velações superiores, usando a sua modesta cultura, as par-
ticipa ao escriba, o qual, interpretando-as segundo o seu
entendimento e sabedoria, as transmite à posteridade. As-
sim, a verdade revelada, como se fosse vinho, recebe no
mínimo duas baldeações: da autoridade superior ao odre
profético; deste ao odre do escriba, para depois ser distri-
buído nos copos dos crentes. É de se desejar que os recipi-
entes sejam limpos, que a bebida não perca o buquê, nem
seja derramada no piso.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 73

É lícito supor que, em todos os tempos, nasceram pro-


fetas, muitos dos quais só desejaram o triunfo das próprias
profecias para obter honrarias e recompensas.
O homem continua a desconhecer a Mente, uma per-
sonagem nunca vista e tocada, com a qual não possui uma
relação próxima. Às vezes, ajuda-lhe a percepção e a suges-
tão, ambas valendo-se de elementos materiais guardados
na memória do indivíduo ou da coletividade.
Seria fácil ao Desconhecido descer do Empíreo e sur-
gir entre os povos trajando aparência humana e proclamar:
— Eis-me, sou o Criador, senhor de tudo que vós
podeis imaginar e muito mais. Deixo-vos a lei autógrafa,
indelével, do comportamento com todas as exceções e
minúcias, sem contradições. Conservai o todo na memória
biológica. Não quero repetir-me a cada geração.
Todas as incertezas seriam vencidas! Porém, seriam vio-
ladas as leis do livre arbítrio, da não intromissão dos assun-
tos humanos, nasceria uma subespécie de lactantes adultos,
sem deveres, mas com todos os direitos. A vida seria monó-
tona, privada dos machos volitivos e fêmeas heróicas.
A “humanimole” não teria pensamentos e audácia para
começar a conquista de novos mundos e a difusão da vida;
conceder-lhe a perenidade espiritual seria a decretação da
aposentadoria por tempo decorrido.

O homem evolui paulatinamente. Naquele tempo, já


se expressava fluentemente, pintava figuras e sinais, usava
o fogo a seu prazer, trabalhava os metais e a terra, plantan-
do; tinha percepções que narrava em contos mitológicos,
amava uma só mulher, mas queria dominar as outras, ven-
74 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

cia facilmente a preguiça mental, começava a raciocinar


profundamente e com precisão.

38
raciocínio espontâneo e contínuo não é uma
O manifestação coletiva. Quando há, entre tan-
tos, um homem com tal inclinação, ele se torna chefe do
grupo, condutor, autoridade inquestionável e se a nature-
za dos subalternos o permite, rei, tirano, semideus. As suas
palavras se transformam em regras, leis, dogmas que os
preguiçosos mentais seguem religiosamente. Mas, se sur-
ge um segundo raciocinador, é inevitável o debate, a con-
frontação de pensamento, a briga, a revolta.
A Mente, sensível observadora, nesta conjuntura,
concluiu que se tinham cumprido os tempos prelimina-
res e que podia dar andamento à fase sucessiva. Então,
decidiu difundir indícios das suas personalidades e deter-
minações.
Em harmonia com a virtude eqüitativa, que deseja to-
das as criaturas conscientes e pensantes, iguais perante a lei
do Criador, difundiu com maior intensidade sobre o globo
terrestre a inspiração superior. Isto porque previa a inspi-
ração maligna das autoridades religiosas: a presunção da pre-
ferência divina para si e os seus, causadora das bárbaras car-
nificinas.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 75

Como foi dito, a inspiração superior é como uma at-


mosfera que desce entre as mentes humanas e as inspira, é
rica de fermentos intelectuais e suscita pensamentos. Não
é uma representação cinematográfica, uma declamação do
espírito paterno ao filho Hamlet, muito menos um con-
certo de música wagneriana, todas imaginações artísticas
que podem sugestionar. A inspiração superior não exige no-
ções culturais elevadas, embora utilíssima no vaticínio, mas
induz o espírito a usar noções e termos sublimados na bi-
blioteca intrínseca. Então, ela não impõe e não obriga se-
não, o profeta seria reduzido à condição de camisa lavada,
que a dona de casa passa a ferro e dobra. Isto explica por-
que há profecias sublimes, vulgares, tolas. Todos os homens
podem ignorar a inspiração profética usando o fermento
intelectual para outras atividades. A inspiração se abranda
quanto mais a pessoa se torna sábia, pois a razão impõe um
pensamento lógico e uma terminologia adequada, foi in-
sistente nos tempos da infantilidade humana, quando nin-
guém explicava um fenômeno natural e liberava a fantasia.
Foi neste período que surgiram, como neblina das terras
baixas, profetas, profetizas, sacerdotes carismáticos,
esotéricos, xamãs, feiticeiros, mágicos e magos (famosos
os três reis magos ou astrólogos), fanáticos convincentes,
ilusionistas desonestos, farsantes esotéricos.
Ainda hoje, eles continuam enganando os simplórios,
cobrando-lhes gordos honorários. Porém, a multidão con-
sulta o processador de dados e tem respostas de precisão
matemática.
76 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

39
ão existem documentos e sinais históricos, mas
N provavelmente por volta do século XIX a.C. a
inspiração superior foi recebida também pelo caldeu Abraão,
esposo da linda e estéril Sarai — aliás Sara –, filho do oleiro
Tare. É de se supor que Abraão provasse aversão pela terra
natal e um desejo nato de emigrar, ver novos horizontes. Tudo
seria conservado no profundo do ser, como a mulher que
guarda os apetrechos de costura que lhe serão úteis. Assim,
não surpreende quando uma voz lhe pede a saída da Caldéia,
juntamente com a mulher, pai e outros familiares para se es-
tabelecer na terra estrangeira de Canaan. Desta voz não se
tem nenhuma descrição, mas para ser sobrenatural deveria
ter uma característica única, talvez fosse afônica, completa-
mente mental, servindo-se naturalmente de termos idiomá-
ticos caldeus, compreensível ao entendimento do inspirado.
A pobreza descritiva é notável se confrontada com a riqueza
de detalhes das modernas aparições sobrenaturais. Sem dú-
vida, de lá para cá, a mente humana enriqueceu muitíssimo.
Abraão obedece. Durante a permanência em Harã, o
pai Tare morre. A região indicada, onde deveria surgir uma
numerosa nação, é improdutiva e nos períodos de carestia,
não alimentava uma pequena família. Se for esta a terra onde
escorre o leite e o mel, sem dúvida há mal entendido. Nos
emigrantes começa o desânimo. É necessário emigrar no-
vamente, agora para o fértil Egito, onde abundam os ali-
mentos.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 77

Os predicados físicos de Sara são aqueles desejados pe-


los machos exuberantes e seduzem mais, se velados por
transparências. Morto o marido, o mais forte pode gozar
deste “capolavoro” feminino. Abraão sabe disso, impõe à
mulher e a todos os familiares que o tratem como irmão
de Sara. O faraó fogoso se apropria da jóia natural. O “ir-
mão”, até que não chega o castigo do sobrenatural, recebe
do “cunhado” satisfeito: caprinos, bovinos, eqüinos, came-
lídeos, servos, escravos e, talvez, algum dinheiro. Para for-
mar uma nova nação e organizar uma congregação religio-
sa são necessários recursos, não importa de onde cheguem,
afinal, “o fim justifica os meios”.

40
pós a doação, o faraó descobre o engano e o vín-
A culo matrimonial entre Sara e o “irmão”, com-
preendendo o motivo do castigo tardio. Subitamente libe-
ra Sara sem exigir a devolução dos presentes e despacha os
imigrantes para fora do Egito.
Abraão, rico, e a sua gente, voltam à terra de Canaan.
É provável que o marido, apesar de tudo, provasse ressen-
timento contra a mulher, a qual, para demovê-lo, teria dito
ao amado:
— Embaixo do faraó fiz de tudo, mas sempre me ne-
guei ao prazer pensando em ti. — Assim seria restabelecida
a paz conjugal.
78 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

Após sacrifícios, concluiu-se uma aliança entre Jeová e


Abraão, cujo sinal é a circuncisão, talvez a ser mostrada aos
ignorantes em algumas ocasiões secretas. A circuncisão, sem
motivo aparente, a não ser o higiênico, deve ser explicada
por psicanalistas, pois continua servindo de estímulo para
amputações genitais entre povos de duvidosa evolução.
Jeová promete a posse da terra, entre o rio do Egito e do
Eufrate, e a sujeição dos povos aí radicados, também cria-
turas de Deus. Tal promessa seria uma arbitrariedade, até
talvez um eufemismo, que demonstraria a magnitude da
consideração divina por Abraão e sua gente.
De qualquer forma, a promessa ainda não é cumprida
após quatro mil anos. Ao contrário, tudo se torna duvido-
so: os romanos fazem “tabula rasa” da chamada cidade san-
ta; piora quando Alá (novo nome de Deus, único e verda-
deiro) inspira Maomé, outro dos tantos profetas que ouve
vozes sobrenaturais, provavelmente áfonas, naturais, que
sobrepuja com seu Islã o jovem Cristianismo, que domina
da Pérsia ao estreito de Gibraltar, das costas africanas aos
Pirineus e ao Danúbio; surpreende o posterior domínio
do império Otomano. Mas, afinal, qual é o jogo da Men-
te?... Ela é inconstante?... Ou o sabido Abraão (ou Maomé)
pratica prevaricação, atribuindo a si, e aos seus, o que Jeová
nunca prometeu?
Provavelmente, trata-se de uma ignorância profética-
ética-geográfica. Vale a pena lembrar que Abraão, chama “seu
Deus” único de “El Sadday” (deus da montanha), talvez para
distingui-lo do outro, o da planície, o do rio. “Elohims” (plu-
ral do substantivo deus*). Enfim, há uma visão no vale do
* CHOUROQUI, André. In Princípio. Imago, Brasil, s/d.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 79

Mambre, de três viajantes (por que três?) que descansam


em sua tenda, comem, bebem, e um deles profetiza o nasci-
mento do filho. Mas Abraão não nota que o fausto prenún-
cio de um é a expressão volitiva de três pessoas distintas.

41
braão tinha uma sagrada missão a cumprir: esta-
A belecer e difundir no mundo o monoteísmo. O
prêmio para si e seu povo lhe seria concedido posterior-
mente. Ao contrário, o patriarca procura tirar vantagem
dogmatizando direitos e privilégios, para transmiti-los aos
seus descendentes. De fato, próximo à morte, impõe ao
servo, também caldeu, colocar a mão embaixo da sua coxa
e lhe faz jurar que o filho Isaac não casaria com uma mulher
do lugar, uma cananéia, mas sim de sua cepa, uma caldéia.
Isaac desposa a prima Rebeca. A pureza do sangue tribal é
preservada, outro precedente para justificar uma seleção
racial... E a Mente que tanto ama a diversidade!
Há mais: adiante no tempo, quando Abraão já é faleci-
do, há séculos o seu povo é escravo no Egito (não há regis-
tro dos fatos e dos motivos), sofre opressão, padecimento,
mortes prematuras durante o trabalho extenuante. Por
este motivo, e para libertar os infelizes, Jeová castiga o faraó
e sua gente com as dez pragas. Se o sagrado respeito à di-
vindade permite, usando da razão concedida pela seme-
80 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

lhança recebida, para que tantas pragas, se apenas duas se-


riam necessárias, prolongando a segunda até o cumprimen-
to?... Mas o escriba não pensou nisso. Surpreende o com-
portamento contraditório da divindade, a qual, no primeiro
momento, induz o faraó a libertar os escravos e depois lhe
endurece o coração, só assim se justifica o extermínio dos
primogênitos egípcios, sejam eles neonatos, crianças ino-
centes ou bichinhos mansos. Impressionante e horrendo
precedente, corrigido e melhorado por fanáticos da “solu-
ção final”, nos guetos europeus. Quais sentimentos e ima-
ginações povoaram a mente do escriba no ato da redação?
Surpreende também o espetáculo de magia obscura, du-
rante a qual bastões se tornam serpentes e vice-versa. A
cena lembra fatos semelhantes aos que ocorrem nos ter-
reiros baianos de Umbanda, a qual todas as religiões con-
denam com desdém. A gravidade inteira aparece quando o
homem consegue distinguir magia do ato criativo. Mas, na
mente do escriba profeta, tudo isto é moral, cultura coti-
diana, sabedoria confusionista. Fantástico é o ato de atra-
vessar, sobre um fundo mole e arenoso, o mar Vermelho,
com um povo de adultos, velhos, crianças e bichos com car-
gas pesadas fugindo dos perseguidores. Usando a sagrada
razão, por que sustentar com paredes que seguram milhões
de litros de água, quando melhor seria esticar uma passa-
deira flutuante de praia a praia, a ser recolhida depois da
passagem do último judeu, sem afogar os egípcios, tam-
bém criaturas de Jeová?
Milagre por milagre, o segundo é menos dispendioso
de força. Mas o cronista conhecia a passadeira? Os árabes,
fantasiosos, inventaram o tapete voador.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 81

De qualquer forma, a historieta parece não ter agra-


dado à divindade: o mestre Jesus, seguramente não exibi-
cionista, caminhou sobre as águas e fez caminhar o receoso
Pedro.
Na cimeira comentou-se:
— A inspiração produziu tão poucos e pobres resulta-
dos: historietas desagradáveis e mal entendidos!
— Por enquanto não existe nada de melhor no espíri-
to do homem: imaginações impressionantes, permeadas de
vanglória e egoísmo. Serão necessárias maiores experiên-
cias e reflexões para melhorar-lhe os pensamentos.
— Não obstante o monoteísmo se difunde com dificul-
dade entre as gentes em volta dos oriundos caldeus, sempre
combatido pelo recidivo politeísmo. Conforta saber que, após
milênio, ele alcança a mente de toda a humanidade. Avança
entre homens duvidosos, de pouca cultura, alguns seduzi-
dos por visões hieráticas, apelando à fé, único argumento até
que não surjam a razão e o bom senso para fortificá-la.

42
or volta do século XIV a.C. a inspiração superior
P solicita a mente de um egípcio, Amenoteb IV, fi-
lho do faraó Amenoteb III e esposo da rainha Tiy, a interes-
sar-se intensamente pela teologia desde a adolescência. É
pessoa de grande cultura, de rara inteligência, esposo
monógamo, pai amoroso de duas filhas, íntegro, sóbrio de
82 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

honrarias, que despreza riquezas oferecidas em abundân-


cia pelos seus submissos, abandona os negócios de Estado
para dedicar-se à teologia.
A comparação com o rei Salomão é estridente. Nestas
condições de retidão moral, a inspiração se manifesta em
toda a sua integridade, penetra a mente, seleciona entre os
tantos elementos culturais os mais apropriados para uma
expressão superior, sob a guia da razão equilibrada numa
natureza meticulosa. A inspiração não precisa de fantasma-
gorias, necessárias para os espíritos primitivos, de maldi-
ções, para incutir temor aos futuros crentes sem culpas.
Amenoteb não esconde a verdade.

43

— u és único Deus, ao Teu lado não há outro.


T
— Tu és Aquele que cria a semente do homem, que dá
a vida no corpo da mãe.
— Muitas são as Tuas obras, algumas nos são ocultas.
— Temos um Nilo no mundo, outro, no céu para der-
ramar a chuva sobre a Terra.
— Tu criaste a Síria, a Núbia, as terras do Egito, e do-
aste a todos os homens o seu lugar, providenciaste para aten-
der às suas necessidades.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 83

— Tu és pai e mãe de tudo o que criaste.


Percebe-se o profundo aflato da universalidade, o con-
ceito de “Deus para todos”, a igualdade da condição huma-
na, o intento da mente para entender a obra criativa.
Amenoteb IV resta em todos os tempos, o arquétipo
do profeta honesto e desinteressado. Se fosse pela sua men-
te, nunca existiria uma divindade provinciana, temperamen-
tal, castigadora, que ainda hoje causa angústias espirituais e
já despachou para a perdição quem sabe quantas almas. Ele
não é beato, santo, mártir; é herói ignorado, pois não per-
tence a nenhuma religião e a intelectualidade universal com
a sua aguda percepção não consegue encontrar nele virtu-
des e valores morais.
A sua convicção o transforma: troca o próprio nome
em Aquenatom “Aquele que vive na verdade”, deixa a capi-
tal Teba, para construir uma nova: Aquetatom, “Horizonte
de Atom”; Atom é um dos nomes atribuídos ao único Deus,
cujo aspecto é solar.
Monoteísta, superior a Salomão predileto de Deus,
no entender dos biblicistas, destrói os templos edificados
em honra dos deuses, afasta os sacerdotes privilegiados do
seu tempo, dispersa as grandes riquezas deles. Infelizmen-
te, isto é um erro capital: todas as religiões se perpetuam
gerando mitos, historietas, exterioridades litúrgicas que
emocionam, jamais com atos lógicos e severos. As religiões
que não recebem da Providência um Saulo raciocinante e
disciplinador para auxiliar um santo ignorante mas cheio
de fé como um Pedro, acabam nas páginas de uns arquivos,
nos porões de um museu.
84 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

Aquenatom, morto, é execrado, mas a sua múmia


dourada é depositada no túmulo da rainha Tiy, pelo genro
piedoso. Os seus ensinamentos vencem os milênios.
O episódio histórico, e não místico, induz a refletir
sobre a inspiração divina, de como ela se propaga, apesar
da inveja, da presumida infalibilidade humana e da igno-
rância geral.

44
lgumas mentes, entre os milhões de pensado
A res, observarão porque o monoteísmo vingou
e se difundiu entre o povo primitivo de Abraão e não entre
os Nilóticos, também povo religioso, divulgador entre as
gentes da vida além-morte, criador das artes para retratar
e adornar os seus deuses e faraós.
Neste, e em outros argumentos, é sábio não afirmar,
mas é permitido opinar.
No exame deste caso, percebe-se um indistinto fluxo
da vontade superior, mitigado pelo respeito da livre esco-
lha humana, mas não se pode descartar um fluxo contrário.
Todos os futuros ministros das novas religiões têm em
si um ideal congênito. Tal pode ser julgado um produto
genético procedente de inclinações mentais atávicas. Um
simples fermento sobrenatural o ativa, o enriquece com
pensamentos e experiências. É bem provável que “Deus
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 85

não jogue dados”, mas demonstra uma ilimitada paciência.


A vocação dos futuros ministros forma um princípio da
doutrina, apresentada aos prosélitos de forma simples, com
conteúdo acessível. Pois os primeiros crentes são homens
de pouca cultura, de limitada experiência, predispostos a
crer por não saber, opor contraditório aos argumentos, são
seduzidos pelo ministério, levados facilmente à comoção.
Somente mais tarde, serão divulgadas as proibições e os
castigos aos infratores.
A nova religião é confirmada quando transmitida às
gerações futuras que a aceitam como tradição e a praticam.
Mas, afinal, por que a Mente suscita tantas religiões,
por vanglória ou inconstância?
Respeito à livre escolha da mente humana.
Respeito às leis já sancionadas.
Respeito à moral limitativa que ela se impôs.
Disto se deduz que esta realidade não é “a casa do caos
e da loucura”, mas o produto de uma Mente racional e
moral que ama e defende a liberdade das suas criaturas. A
imagem de uma Mente temperamental, vingativa até a
crueldade, é trabalho de escribas irreflexivos e malvados.
Mas, afinal, por que pensamentos retos, como os de
Amenoteb, não frutificariam religiões?
86 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

45
ó o Nada é inútil, o restante pode ser aproveitado
S a tempo oportuno. Os judeus perspicazes, sem-
pre errantes por terras estrangeiras, enfim chegaram aí,
onde se falava do monoteísmo em termos precisos, ouvi-
ram, melhoraram a própria religião, esquecendo com cura
o “El Sadday” e os “Elohims”, além de outras bobagens que
hoje os seguidores julgam sagradas. A fé domina, porém
deve ser corrigida pela razão.
Nos tempos hodiernos, o procedimento deveria ser
igual ou melhor: sem obstinação dogmática, orgulho dos sa-
pientes conservadores e reconhecendo a liberdade de cons-
ciência e de expressão dos pensadores emudecidos pela cen-
sura e confinados ao Índex. No passado, quantos deles foram
condenados ao ostracismo, ao rogo, à perdição perpétua!
Por isso, não surpreende que hoje o sumo Sacerdote
da cidadela convide os pensadores a conciliar a fé com a
razão, em uma carta que precisou de nada menos que doze
anos para ser redigida. Del poi son pien le fosse! Hoje, sabe-
se dos erros humanos cometidos no passado. Mas no futu-
ro, em quantas alucinações mentais cairão os filhos de Eva
e qual o comportamento dos julgadores perante as dúvi-
das? Parece ótima a fórmula:
No debate, no ensejo, na pesquisa, mantenho a fé em
que um dia a razão tudo explicará.
Assim, anda pelo mundo a inspiração superior, cujos
efeitos são sempre surpreendentes.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 87

Na Índia, na região próxima ao contraforte da cadeia


do Himalaia, por volta do século V a.C., ou seja, posterior
a Abraão e a Aquenatom, vivia um príncipe de nome Sidarta
Gautama, mais tarde chamado de Buda (O iluminado). Vi-
via no conforto faustoso das propriedades paternas, ama-
do por todos os próximos. Um dia, saiu pelo mundo em
companhia de um servo. Não foi longe de seu ambiente,
pela rua encontrou um velho, um doente, um cadáver aban-
donado. Foi um lampejo sucessivo e iluminador. A paz e a
alegria se foram, começou a reflexão emotiva, insistente,
penetrante, atacando o problema da existência. Após pro-
longada ascese (penitência severíssima, que obrigava o po-
bre corpo inocente a uma refeição de um grão de arroz
por dia), concluiu que a vida é sofrimento, e que o sofri-
mento é causado pelo desejo, que é a causa do “Karma”,
total conseqüência ética das ações individuais.

46
Karma sobrevive à morte, acompanha as pes-
O soas nas sucessivas reencarnações e é purgado
com a vida virtuosa; assim a pessoa merece entrar no
nirvana.
“Este seria a integração do ser individual ao ser uni-
versal ou ao seio da divindade suprema1”. “Melhor no bem-
1. Enciclopédia Larousse Cultural, p. 4218.
88 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

aventurado estado de vazio total, no qual há a libertação


completa do desejo2”, bonito exemplo da precisão cultu-
ral. Considerando que o Buda não rezava a nenhum ser
superior, conclui-se que a versão do aniquilamento (ser
nada, para não sofrer) da pessoa no vazio total é a mais pro-
vável das interpretações. Mas, querendo seguir os trilhos
divergentes das possibilidades, o primeiro caso lembra o
de Cronos helênico, que fagocita os filhos para afastar o
destino, outra autoridade indiscutível que domina a divin-
dade. No segundo caso, é irrefutável que qualquer coisa
ou ente inquina o vazio, descaracterizando-o (talvez seja
melhor usar o termo “Nada”, que inclui além da ausência
da matéria, o imaterial). Esta filosofia transcendental cai
também no mesmo buraco do inexplicável: falta tracejar,
até de forma aproximativa, a personalidade do Divino, que
muito ajuda a intuir a realidade, falta a tomada de cons-
ciência da Divindade, de existir no Nada, que é motivo
posterior da criação em perene expansão; é ausente um
toque descritivo das virtudes criativas, que facilita muito o
entendimento da natureza da realidade. É compreensível
que no século V a.C. não se podia exigir tanto de tão pouco
conhecimento, mas é claro que hoje todas as religiões têm
que se atualizar.
Cada coisa tem um escopo, se não o tem não há moti-
vo de existir. Às vezes, a inspiração ubíqua parece insistir
numa determinada região, num continente. Contemporâ-
neo, ou quase, de Buda, Kung Fu Tzu (Confúcio, entre os
ocidentais), na China, é solicitado a se manifestar pelos far-
rapos de inspiração superior. Ele tem uma mente ordena-
2. Enciclopédia Barsa , p. 396.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 89

da, honesta, serena, mas que não se inclina ao misticismo e


às visões. Dá a entender que a divindade é imperscrutável,
por isso não adianta saber algo dela, basta reverenciar os
antepassados e acatar as experiências e os ensinamentos
deles, o importante é viver virtuosamente.
Para melhorar a pessoa é necessário, em princípio, a
purificação alcançada com severos exercícios físicos; na se-
gunda etapa, anulam-se as inclinações naturais e da perso-
nalidade mediante exercícios cruéis, originados de certas
lutas marciais, deste modo, a pessoa entra na terceira eta-
pa, na qual adquire os poderes para entrar na Via, onde não
há limitação de tempo e de espaço: a perfeição. Somente
assim a pessoa se torna tolerante, amorosa, cumpridora dos
seus deveres, também social, honesta até na ninharia, aten-
ta às necessidades dos semelhantes. Enfim, um cidadão sé-
rio, diligente numa sociedade de funcionários públicos.
Pode-se admitir que a Mente aprove tais manifesta-
ções virtuosas, mas somente como efeitos de um espírito
que almeja uma beatitude definida. É suficiente uma ob-
servação. A Mente se compara a um viajante parado na
borda da estrada, que espera e depois se une a outros via-
jantes que sobrevêm, escuta em silêncio as conversas de-
les, se faz interlocutor, aceita o convite a uma parca refei-
ção. Neste episódio é revelada a personalidade da Mente.
Ela pretende uma troca de sentimentos puros e elevados,
detesta a solidão e a monotonia, e oferece a sua perene
presença.
O convívio levanta sentimentos, os sentimentos esti-
mulam os pensamentos criativos. Não há melhor explica-
ção da difusão da vida na vasta realidade.
90 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

47
inspiração manifestou entre os helenos uma sin-
A gularidade tão surpreendente quanto útil: es-
tes, navegantes de cabotagem de longo curso, mercantes
ávidos e hábeis, dispunham sempre o ânimo ao útil. Pode-
se supor que o fermento inspirativo os induziu a um sim-
ples raciocínio:
— Se a razão nos ajuda nos escambos e na pirataria,
por que não a usar para conhecer a realidade que nos cir-
cunda?
No imaginário código dos conhecimentos humanos, o
uso da razão é a primeira lei.
A inspiração causa, às vezes, efeitos inusitados. Alcan-
ça mentes vácuas, assim como um fulgor repentino pene-
tra o templo vazio mas ainda adornado com vestígios da
velha tradição. É o suficiente: nasce uma nova religião, a
religião é uma imitação à dos vizinhos. O novo profeta a
adapta à própria natureza do seu povo e satisfaz o orgulho
da sua gente. Parece proclamar:
— É a nós que a Mente escolheu como seus predile-
tos! — É o triunfo do pobre intelecto empurrado pelo
destino geral que o escriba enriquece e adorna de frases às
já pronunciadas.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 91

48
e a imaginação humana quisesse quantificar o fe-
S nômeno inspirativo — admitindo que fosse pos-
sível –, diria: dois milhões de metros cúbicos de atmosfera
carregada de fermentos liberada pela Mente foram apro-
veitados pelos intelectos terrenos, centenas de decímetros
cúbicos para estimular o conhecimento geral, pouquíssimos
milímetros para inventar e codificar religiões grosseiras e
irracionais.

Na eternidade, passado, presente e futuro formam


uma espiral composta de cenas semelhantes a fotogramas
de um filme sem princípio e fim. Os fotogramas parecem
repetir-se com imperceptíveis variações, mas se compara-
dos aos anteriores, do passado remoto, são completamen-
te diferentes. É imprecisa a afirmação: “A história se repe-
te”. Vale sim, captar os sentimentos que saturam a cena, os
verdadeiros autores que animam os personagens. É assim
que nasce o futuro.
Se uma consciência crítica coloca-se no meio da espi-
ral dos fotogramas, acaba conhecendo o caminho da exis-
tência.
— A observação não mostra ainda sinais do destino
traçado.
— A evolução é incipiente. A natureza precisa de mui-
tas gerações para produzir uma mente humana que acumu-
le e transmita um sem número de noções e experiências
92 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

aos seus descendentes. Então, germinarão mentes críticas


vanguardeiras e especulativas que introduzirão mudanças.
Poderíamos ajudar o predileto com a nossa presença sensí-
vel, com a palavra reveladora daquele que lhe é mistério,
mas somos limitados pela moral que a nós impusemos: ne-
nhuma intervenção, respeito à vontade alheia. Proceder ao
contrário seria atribuir virtude à incoerência. Por enquan-
to, usamos a inspiração aplicada à cultura humana.
— A evolução é sempre incipiente comparada às me-
tas futuras; pois estabelecemos que a conclusão de um em-
preendimento dá início a uma nova gênese.
— Mas Splendor aproveita dos intervalos e do respei-
to aos limites traçados para desabafar o seu ressentimento.
— Exatamente.
— Ele não cria, e nem pode, mas contraria os nossos
propósitos. Sabe o quanto é importante para nós o ho-
mem, dele percebe a função no Cosmo, que nós lhe reser-
vamos. Splendor aplica sobre ele as suas artes, não mais
sobre a natureza que tanto deturpou. Procede sempre da
mesma maneira: distingue na índole humana as inclinações,
as satisfaz, destacando elementos culturais, exalta o orgu-
lho com comparações absurdas, seduz o intelecto com fan-
tasias impossíveis. O homem, assim enredado, não tem
outro desejo que a satisfação da vontade. Assim, um dese-
jo natural se torna vício, uma novidade se transforma em
depravação. Mas o capolavoro de Splendor consiste na po-
luição do bom senso, com o exercício excessivo ou caren-
te das mesmas virtudes. O homem continua ainda a julgar
a sua conduta em bem ou mal, desconhece ainda a justa
medida das virtudes. É assim que nasce a fábula agradável,
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 93

o mito glorioso. A difamação da divindade é sacralizada e


se transmite às gerações como exemplo admirável. Con-
ta-se que, no Egito, somos exterminadores vingativos e
impiedosos de crianças inocentes e de animais dóceis. So-
mos suspeitos de favorecer poucos predestinados, em de-
trimento dos muitos órfãos deserdados. Também somos
considerados enganadores, por convencer o faraó a liber-
tar os escravos sofridos, para depois endurecer-lhe o cora-
ção e fazê-lo merecedor de um terrível castigo. Somos sus-
peitos de sadismo por ajudar, durante a batalha, algumas
criaturas a matar inimigos, também nossas criaturas. Sus-
peita-se que temos inteligência curta e inconstante, por-
que infringimos, a qualquer momento, as leis que impri-
mimos na natureza, cometemos bobagens e negligências.
Estas são as idéias propagadas, que a humanidade tem de
nós, a fim de que uma pequena facção dela constitua privi-
légios. Assim, como reação, o extermínio de gente torna-
se precedente valioso na consciência humana; a facciosidade
oculta nos ensinamentos é sintetizada na convicção de Gott
mit uns, manifestada por todos os exércitos, justifica uma
guerra por uma presumida justa causa, a eliminação de ino-
centes solicita a purificação racial; a ira e a inconstância,
atribuídas a nós, justificam as dos humanos. As ofensas não
nos tocam tanto quanto a sacralidade que o homem atri-
bui aos defeitos.
94 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

49
– ssim caminha a humanidade, desordenadamen-
A te, em direção à meta pré-fixada. A casualida-
de biológica gera mentes eleitas, que despertam o interes-
se dos esquecidos e dos ingênuos. Pois não é com essa edu-
cação mental que o homem pode entrar nos espaços e
vivificar os mundos. Se o fizer, leva consigo os germes da
destruição e da morte, e o Cosmo se transformará em um
imane campo de batalha.
— As religiões são imperfeitas. Nelas, são sedimentadas
tradições populares, filosofias de duvidosa veracidade, in-
teresses inomináveis, antigas vaidades, além dos sinais da
nossa inspiração. Une as religiões a fé, que não é igual para
todos, varia segundo a natureza dos indivíduos, quando
deveria ser a razão sadia e comprovada. Onde a razão não
chega, santa liberdade para todas as mentes, a fim de que
alguém, com precisa dialética, demonstre a verdade. Ao
contrário, as mentes dissidentes levantam contra si, moti-
vando a inquisição e a fatwa. A aproximação de duas religi-
ões desencadeia cruzadas e guerras santas; três ou mais reli-
giões originam um sincretismo confuso e, às vezes, estúpido,
ou a superstição infantil. Quantas religiões existem é dificí-
limo dizer: a cada dogma, ordem incorreta ou vaidade dos
chefes, fragmentam-se, justificando seitas, congregações
cismáticas, duplicidade de mando, variações teológicas, sus-
citando santos, santões, xamãs, mártires, beatos, teólogos
doutores, livros sagrados, inspirações transcendentais, mi-
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 95

lagres, visões coletivas, êxtases, prodígios et similia. E tudo


isto não é capaz de estabelecer a unicidade da religião
monoteísta, pois a razão nunca é consultada. Ao contrário,
os ministros religiosos, vangloriando-se de serem infalíveis
e únicos possuidores da “verdade verdadeira”, impõem re-
gras severas e obediência indiscutível aos fiéis. Assim, a fé
alcança o grau de fanatismo. Então, é como o passarinho
que fica preso na gaiola: quando é solto não consegue ga-
nhar as alturas e acaba vítima dos predadores.
O homem atento aos problemas da vida, convencido
de que a diabólica paranóia domina alguns dos semelhan-
tes, observa, sorri, e passa adiante.
— A racionalidade deveria, há muito tempo, ter defi-
nido a religião monoteísta: cósmica, universal, missionária,
pacífica, tolerante, amorosa, compreensível para que to-
das as mentes a compreendessem sem alegorias e sem ape-
los emotivos sugestionáveis.
Seguiu-se o silêncio da reflexão, na qual o sentimento
se transforma em conceitos, posteriormente em idéias e
pensamentos. Dominava o imperativo: Pensar para resolver.

50
ivia em uma região, entre o mar e a montanha,
V um homem de nome Job. Ele era equilibrado,
de muita experiência e de grande inteligência, gozava óti-
96 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

ma saúde, tinha filhas e filhos amorosos e ativos que o aju-


davam proficuamente na administração das suas riquezas,
pois possuía grandes casas, terras férteis, armentos de
muitas espécies, cuidados por uma multidão de servos fi-
éis. Era de boa índole. Brincava, ria. Havia muitos amigos
que disputavam a sua companhia para obter um conselho,
um sinal de sua generosidade, uma opinião; formava-se um
vozerio alegre. No anoitecer, em solidão silenciosa, agra-
decia a Deus por cada dia, e pelos bens recebidos, mas, aci-
ma de tudo, por possuir a sabedoria de entender o raciocí-
nio divino. A Mente se comprazia louvando-o.
Os louvores chegaram ao conhecimento de Splendor,
provocando-lhe amarga inveja.
— Job adquire méritos, porque a inteligência o guia
corretamente. Aumenta seus bens e goza de bons senti-
mentos que lhe são dirigidos pelos filhos, amigos, mulhe-
res e servos. Percebe a mão carinhosa do Criador a afagar-
lhe a cabeça. Tudo é fácil, e lhe sorriem sempre magníficos
pensamentos. Mas, se ele fosse mortificado, posto de lado
como aconteceu comigo, perderia a sua leveza de ser e blas-
femaria o dia inteiro. — O pensamento o conduziu sobre
um outro argumento. — Este é um caso de destino deter-
minado da conjuntura de muitas qualidades em uma única
pessoa, favorecida pelas contingências; caso raro, mas pos-
sível. Nenhuma força pode tirar ou arruinar o que foi dado
a Job. Esta é uma lei indiscutível. — Silenciou longamente
porque lhe nascia uma nova idéia. — Nesta realidade, exis-
tem casos pendentes de várias naturezas, que favorecem
todas as possibilidades. — E a sua intuição começou a dis-
tinguir alguns casos, aqui e acolá.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 97

Então, Splendor começou a soprar contra Job. Pri-


meira coisa, empurrou os agentes do morbo contra a so-
gra. A velha era fraca e morreu rapidamente. Job lamen-
tou a perda e agradeceu a Deus tê-lo livrado das lamúrias
da mulher.

51
epois, os ladrões, de passagem pela redonde-
D za, praticaram abigeato contra o seu gado; Job
não se perturbou. Mais tarde, nômades lhe invadiram ca-
sas e terrenos. Job tolerou. A seguir, a casualidade malig-
na levantou-se contra os filhos, que se afastaram do pai.
Enfim, a sua saúde começou a declinar. Entre úlceras e
entumecimentos, a doença se revelou ser lupus: sentia-
se fraco, emagrecia rapidamente e assumia um aspecto de-
formado e repugnante. Os amigos e vizinhos fugiam dele
por causa do seu estado. Job, humilhado, sem força e auto
estima, refugiou-se na Geenna, uma vala fora da cidade,
onde o fogo perene queima a imundície. Aí, cobriu o cor-
po de cinza e, chorando como criança abandonada, lar-
gou-se sobre o lixo. Invocou Deus, pediu o fim da prova,
e concluiu:
— Qualquer que seja a Tua decisão, venha rapidamen-
te, porque a carne é podre, e o espírito vacila.
Mas Deus não lhe respondeu.
98 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

Chegaram a ele três velhos amigos, fiéis também na


desventura. O primeiro, que ficou a boa distância, pelo
medo do contágio, pediu-lhe:
— Peço que me digas, quais pecados cometeste longe
dos olhos do mundo, para merecer semelhante castigo?
Job dilacerou as faces e deformou as pálpebras:
— Até isto!
O segundo curvou-se sobre ele, e o exortou com voz
amiga:
— Todos nós sabemos da tua retidão e polidez. Le-
vanta-te, invoca Deus para que explique o motivo desta
desgraça.
O terceiro, de cócoras, pôs a mão direita sobre a ca-
beça coberta de crostas para transferir-lhe, com o calor, a
sua convicção:
— Tem fé! Nenhuma dor, nenhuma desventura são
perenes. Deus tem razões que a razão humana ignora. Crê
no que te digo, a tua situação não é um ato cruel ou um
divertimento de Deus misericordioso, mas um mistério que
não sabemos entender.
Depois do adeus dos amigos, Job levantou a cabeça e
encontrou forças para rezar:
— Agradeço a ti, Deus, que tem mente imperscrutá-
vel, para o conforto que me dás! — e precipitou o rosto
nos excrementos.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 99

52
noite, a fraqueza o venceu: Job afundou nos
À abismos do sono. Sonhou muitíssimo. Sendo que
ele conservava na consciência e na memória, palavras, sen-
timentos puros e uma vida justa, com os quais a imaginação
inspirada podia compor qualquer seqüência. Todos os seus
sonhos eram lógicos, permeados de visões doces e amoro-
sas. Das neblinas do passado, saíram lembranças remotas
de quando menino, no pasto com as ovelhas. Supino sobre
a grama, com as mãos cruzadas embaixo da nuca, observa-
va uma nuvem branca e brilhante como a neve iluminada
pelo sol. Ela se inflava, se alongava, mudando de forma con-
tinuamente. A Job era fácil ver imagens: primeiro, uma pal-
meira descabelada, mais tarde, um boi com corcova e lon-
gas babas. Provou aquele sentimento risonho, de quando o
pai, serenamente, lhe despenteava os cabelos com a mão
leve. Da nuvem se destacaram fragmentos, que se disper-
saram em todas as direções, como pombas temerosas; atrás,
era o sol que radiava passante. Enfim, a nuvem adquiriu o
aspecto do progenitor, quando se apoiava em ânforas de
vinho e em rolos de lã tecida, com olhar compreensivo,
barba fluente, que se movia pelo respiro profundo, o ar-
mazém obscuro parecia iluminado em volta dele.
Mas não era ele.
— Filho herói, que seja restabelecido o curso natural
dos eventos. Tudo o que tu sofreste é uma dolorosa magia
do impotente invejoso. No meio dos sofrimentos, amaldi-
100 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

çoaste o dia do teu concebimento, mas tu não imaginas quanto


as futuras gerações te serão agradecidas. Tu pensaste que eu
fosse sádico ou omisso, em nenhum momento pensaste que
eu sou mente racional e prática, que prova e reprova as suas
fórmulas. Filho paciente, com a tua fé, ignorante e obstina-
da, tens demonstrado que o homem, na solidão obscura, no
silêncio gélido, sobrevive porque o anima a esperança de uma
vida melhor. Agora Job, levanta-te dessa condição miserá-
vel, purifica-te nas águas do riacho, restabelece as coisas,
como eram antes da magia nefasta, toma posse de novos síti-
os desertos, e aí estabelece a vida. Depois vem comigo par-
ticipar das minhas intenções: a ciência do futuro, junto a no-
vos sentimentos, são motivo de perpétuo gozo dos espíritos.
— Job acordou repentinamente. O ar frio da madru-
gada lhe encheu os pulmões, dilatando-os; percebeu a ener-
gia a irromper dos músculos peitorais e das quentes pal-
mas das mãos. Ergueu-se, saiu da Geenna, e se limpou
repetidamente do lupus, da sarna e das pragas nas águas
claras e saneadoras. Todos os vestígios das doenças sumi-
ram. Um pastor vendo-o de longe, assim animado, lhe foi
ao encontro, contente:
— Patrão, tu lembras de mim? Salvei da peste e do
abigeato o gado, o melhor e o mais forte.
— Dá-me uma túnica, um cinto, umas sandálias, e vem
comigo. — Pelo caminho, ordenou — Depois, chama ser-
vos e amigos!
Eles vieram e receberam outra ordem:
— Preparai argumentos válidos e longos bordões, para
reaver terras e casas. Contra o abuso e a opressão prevale-
ce sempre a razão.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 101

Depois, encontrou as mulheres abandonadas pelos


homens:
— Levai-nos convosco: As jovens são mães prolíficas,
para povoar sítios desertos, as anciãs, boas parteiras e cozi-
nheiras.
Job aceitou:
— Vinde conosco, mas deixai as mães, pois é dever de
todos nós preservar a paz doméstica!
Enfim, encontrou os três amigos da desventura:
— Dos acontecimentos, muitas vezes desconhecemos
o motivo, mas não devemos desanimar, porque a Mente
raciocina sobre o fio sutil da lógica. Agora todos comigo:
preparai ovelhas, pombas, assai-os sobre a ara dos sacrifí-
cios, reparti-os entre nós juntamente com os pães, eleve-
mos copos com vinho para celebrar com alegria que agrada
a Mente este dia de ressurreição.

— Agora, é necessário que o homem saiba e cumpra o


escopo da realidade, pois a sua fibra resiste à prova mais
difícil.
— Porém, tem que melhorar. Ele é ainda grosseiro,
de juízo incerto, nem sabe aplicar corretamente virtudes e
sabedoria.
— Devemos ensinar-lhe uma nova filosofia de vida,
educá-lo com o exemplo. O exemplo é mais eficaz do que
a palavra.
— Talvez alguns profetas de vasta cultura e de dizer
claro.
— Oh os profetas deslumbrados! O que sabem dos
nossos desejos e vontades. Eles descreveriam prodígios e
102 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

castigos mirabolantes, argumentos para novos dogmas e mis-


térios extravagantes, multiplicando assim as interpretações,
e adensando o obscurantismo. Não existe material mne-
mônico no espírito do homem que possa descrever os nos-
sos anseios. Nenhum homem saberá, a não ser junto de nós.

53
— ais uma vez somos limitados pelos nossos
M princípios. Portanto:
participar sem ser presente;
propor sem impor;
convencer sem vencer;
ser exemplar, sem ser enigmático.
— Temos definido o conceito.
— As idéias seguintes devem conciliar-lhe termos e atos.
Como se fossem serpentinhos num emaranhado, se
liberaram algumas cabeças, que tendiam em todas as dire-
ções; depois se uniram, entrelaçando-se ordenadamente.
— Se nós quiséssemos, mas não queremos infringir os
precedentes propósitos, uma pessoa como nós poderia tra-
zer aos homens a palavra e o exemplo.
— Para ser como eu, pessoa distinta, ele também co-
meteria violação dos nossos propósitos.
— ... Verdadeiramente... Mas ele, nascido e arraiga-
do na carne, entre os homens, desconhecendo a sua natu-
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 103

reza por um tempo, seria também homem. Na idade ma-


dura, vencidas as seduções naturais, a percepção sensibilís-
sima lhe revelaria a sua verdadeira natureza.
— Mas o homem vive no seu estado, do qual dificil-
mente se eleva: satisfazer gordas necessidades, controlar
impulsos carnais abomináveis, afastar vicissitudes imundas...
E para ser homem, deve superar a agonia, tremendos mo-
mentos de aniquilamento da realidade e do seu corpo, pe-
rante a sua consciência perene, de solidão absoluta, na qual
o espírito se gela e se fende. É o apocalipse que deve ser
afrontado sozinho, ninguém pode ajudar.
— Será uma prova dificílima, a última, mas não pode-
remos ajudar.
Seguiu-se o silêncio das decisões. Depois, a Mente dis-
se ao Pari:
— Propaga, entre as gentes, inspirações e sinais do
novo princípio, pois não há possibilidade de uma combina-
ção genética gerar a pessoa distinta desejada. Toma a essên-
cia com as virtudes que são a minha pessoa e distingue-as
de como o filho procede do pai. A mulher casta escolhida a
inspirará, dando corpo e início ao evento.

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Pari, recebidas as virtudes e a essência, as se-
O meou com cuidadoso amor sobre a escolhida,
numa aldeia do país das religiões.
104 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

A Mente observava os fotogramas seguramente possí-


veis do destino.
— A incerteza é jogada: agora a grande utopia da vida
inteligente no Nada pode começar a se realizar.
E resumiu:
— Hominideus... Homo... erectus, abilis, sapiens,
Homo sidereus, Homo propagator vitae...
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 105

Breve História da Realidade continua em


Vôos, obra que complementará os conceitos
aqui expostos.
GioGa

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