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A PEDRA ANGULAR DO MODERNISMO

 Categoria: Modernismo Rede Social


 Escrito por Maurício Hoelz e Rodrigo Jorge Ribeiro Neves | Imagem: Karina Freitas/ Acervo Pernambuco

Para “viralizar” na sociedade, o modernismo precisava engajar sempre novos seguidores e, movido à energia renovável e renovadora da juventude, enlaçar as gerações.
No post de hoje rememoramos os princípios de uma das mais notáveis correspondências da cultura brasileira: aquela entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de
Andrade, então um jovem provinciano embriagado de literatura francesa que só estrearia em livro anos depois, em 1930, com Alguma poesia. No meio do caminho tinha
uma pedra. A pedra angular do modernismo.

Mestre e aprendiz se conhecem pessoalmente na Semana Santa de 1924, quando Mário de Andrade viajava de volta para o passado colonial de Minas Gerais em caravana
de artistas modernistas paulistas e seus mecenas. Sua correspondência com os jovens, especialmente a com os mineiros do chamado grupo do Estrela, de que Drummond
era parte, revela a (des)educação estética, moral e intelectual ministrada pelo modernismo enquanto movimento cultural. Apesar do tom de intimidade das missivas, a
palavra modernista nelas semeada era transmitida para um destinatário coletivo: corria de mãos em mãos nas mesas de bares e cafés e se espalhava de boca em boca —
eram “o acontecimento mais formidável de nossa vida intelectual belo-horizontina”, do qual Drummond nunca esqueceria, na vida de suas retinas tão fatigadas.

A mensagem que assim se propagava ia não apenas modelando a identidade de seus participantes como atores sociais e políticos, mas expandindo uma rede em torno de
um projeto comum, que apontava para o futuro e cujo sentido mais potente era o combate ao preconceito eurocêntrico e o abrasileiramento das nossas linguagens. Tornar
o Brasil familiar aos brasileiros. A divisa modernista pode soar estranha, mas, se hoje parece óbvio que a cultura produzida no Brasil possa ser entendida como
“brasileira”, isso se deve justamente à atuação dos modernistas. Eles deram visibilidade, colocaram em discussão e problematizaram os tradicionais mecanismos sociais
de transplante cultural numa sociedade de matriz colonial como a brasileira, sempre ávida pelos últimos modismos europeus ou norte-americanos.

MÁRIO DE ANDRADE A CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Eu respondo sempre aos amigos. Às vezes demoro um pouco, mas nunca por desleixo ou esquecimento. As solicitações da vida é que são muitas e as da minha agora
muitíssimas e… Quer saber quais são? Tenho o meu trabalho cotidiano, é lógico. Lições no Conservatório, lições particulares. Mas atualmente as minhas preocupações
são as seguintes: escrever dísticos estrambóticos e divertidos prum baile futurista que vai haver na alta roda daqui (a que não pertenço, aliás). Escolher vestidos
extravagantes mas bonitos pra mulher dum amigo que vai ao tal baile. E escrever uma conferência sem valor mas que divirta pra uma festa que damos, o pianista Sousa
Lima e eu, no Automóvel Clube, sexta-feira que vem. São as minhas grandes preocupações do momento. Serão desprezíveis pra qualquer idiota antiquado, aguado e
simbolista. Pra mim são tão importantes como escrever um romance ou sofrer uma recusa de amor. Tudo está em gostar da vida e saber vivê-la. Só há um jeito feliz de
viver a vida: é ter espírito religioso.

Explico melhor: não se trata de ter espírito católico ou budista, trata-se de ter espírito religioso pra com a vida, isto é, viver com religião a vida. Eu sempre gostei muito
de viver, de maneira que nenhuma manifestação da vida me é indiferente. Eu tanto aprecio uma boa caminhada a pé até o alto da Lapa como uma tocata de Bach e ponho
tanto entusiasmo e carinho no escrever um dístico que vai figurar nas paredes dum bailarico e morrer no lixo depois como um romance a que darei a impassível
eternidade da impressão.

Eu acho, Drummond, pensando bem, que o que falta pra certos moços de tendência modernista brasileiros é isso: gostarem de verdade da vida. Como não atinaram com o
verdadeiro jeito de gostar da vida, cansam-se, ficam tristes ou então fingem alegria o que ainda é mais idiota do que ser sinceramente triste. Eu não posso compreender
um homem de gabinete e vocês todos, do Rio, de Minas, do Norte me parecem um pouco de gabinete demais. [...] Que diabo! estudar é bom e eu também estudo. Mas
depois do estudo do livro e do gozo do livro, ou antes vem o estudo e gozo da ação corporal.

[...] E então parar e puxar conversa com gente chamada baixa e ignorante! Como é gostoso! Fique sabendo duma coisa, se não sabe ainda: é com essa gente que se
aprende a sentir e não com a inteligência e a erudição livresca. Eles é que conservam o espírito religioso da vida e fazem tudo sublimemente num ritual esclarecido de
religião.

[...] Você é uma sólida inteligência e já muito bem mobiliada… à francesa.

Com toda a abundância do meu coração eu lhe digo que isso é uma pena. Eu sofro com isso. Carlos, devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo o ceticismo,
apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século 19, seja bobo, mas acredite que um sacrifício é lindo. O natural da mocidade é crer e muitos moços não creem.
Que horror! Veja os moços modernos da Alemanha, da Inglaterra, da França, dos Estados Unidos, de toda a parte: eles creem, Carlos, e talvez sem que o façam
conscientemente, se sacrificam. Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo
sacrifício é grandioso, é sublime. E nos dá felicidade. [...] Eu não amo o Brasil espiritualmente mais que a França ou a Cochinchina. Mas é no Brasil que me acontece
viver e agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrifiquei.

A língua que escrevo, as ilusões que prezo, os modernismos que faço são pro Brasil. E isso nem sei se tem mérito porque me dá felicidade, que é a minha razão de ser da
vida. [...] Estraçalho a minha obra. Escrevo língua imbecil, penso ingênuo, só pra chamar a atenção dos mais fortes do que eu pra este monstro mole e indeciso ainda que
é o Brasil. Os gênios nacionais não são de geração espontânea. Eles nascem porque um amontoado de sacrifício humanos anteriores lhes preparou a altitude necessária de
onde podem descortinar e revelar uma nação. Que me importa que a minha obra não fique? É uma vaidade idiota pensar em ficar, principalmente quando não se sente
dentro do corpo aquela fatalidade inelutável que move a mão dos gênios. O importante não é ficar, é viver. Eu vivo. E vocês não vivem porque são uns despaisados e não
têm a coragem suficiente pra serem vocês. É preciso que vocês se ajuntem a nós ou com este delírio religioso que é meu, do Osvaldo, de Tarsila ou com a clara
serenidade e deliciosa flexibilidade do pessoal do Rio, Graça, Ronald. De qualquer jeito porque não se trata de formar escola com um mestrão na frente. Trata-se de ser. E
vocês por enquanto ainda não são. Responda, discuta, aceite ou não aceite, responda. Amigo eu serei sempre de qualquer forma. Não é a amizade e a admiração que
diminuirão, é a qualidade delas.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE A MÁRIO DE ANDRADE

Reconheço alguns defeitos que aponta no meu espírito. Não sou suficientemente brasileiro. Mas, às vezes, me pergunto se vale a pena sê-lo. Pessoalmente, acho
lastimável essa história de nascer entre paisagens incultas e sob céus pouco civilizados. Tenho uma estima bem medíocre pelo panorama brasileiro. Sou um mau cidadão,
confesso. É que nasci em Minas, quando devera nascer em (não veja cabotinismo nesta confissão, peço-lhe!) em Paris. O meio em que vivo me é estranho: sou um
exilado. [...] Sabe de uma coisa? Acho o Brasil infecto. Perdoe o desabafo, que a você, inteligência clara, não causará escândalo. O Brasil não tem atmosfera mental; não
tem literatura; não tem arte; tem apenas uns políticos muito vagabundos e razoavelmente imbecis e velhacos. Entretanto, como não sou nem melhor nem pior do que os
meus semelhantes, eu me interesso pelo Brasil. Daí o aplaudir com a maior sinceridade do mundo a feição que tomou o movimento modernista nacional, nos últimos
tempos: feição francamente construtora, após a fase inicial e lógica dos falsos valores. O que nós todos queremos (o que, pelo menos, imagino que todos queiram) é
obrigar este velho e imoralíssimo Brasil dos nossos dias a incorporar-se ao movimento universal das ideias. Ou, como diz Manuel Bandeira, “enquadrar, situar a vida
nacional no ambiente universal, procurando o equilíbrio entre os dois elementos”. Equilíbrio evidentemente difícil, dada a evidência da desproporção. E esse é um
trabalho para muitas e muitas gerações.

[...] Sou acidentalmente brasileiro (como você, aliás, se confessa em sua carta: “É no Brasil que me acontece viver...). Detesto o Brasil como um ambiente nocivo à
expansão do meu espírito. Sou hereditariamente europeu, ou antes: francês.

Você veio dar, com seus poemas de um ritmo largo e desabusado, uma espantosa liberdade aos nossos poetas. Quer agora que eles marchem por si mesmos, que avancem,
que sejam um pouco doidos, e tudo isto é justíssimo. Não posso deixar de confessar o muito que lhe devo, prezado Mário: permiti-me, nos meus versos (quase todos
inéditos), algumas audácias que só a Paulicéia tornou possíveis. São audácias com carteira de identificação...

[...] Mostrei sua carta ao Martins de Almeida e ao Pedro Nava.

MÁRIO DE ANDRADE A CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Antes de mais nada: você é muito inteligente, puxa! A sua carta é simplesmente linda. E tem uma coisa que não sei se você notou. A primeira vinha um pouco de fraque.
A segunda era natural que viesse de paletó-saco. Mas fez mais. Veio fumando, de chapéu na cabeça, bateu-me familiarmente nas costas e disse: Te incomodo? Eu tenho
uma vaidade: a deste dom de envelhecer depressa a camaradagem. Pois, camarada velho, sente-se aí e vamos conversar. [...]

Tudo errado. Primeiro: não existe essa oposição entre nacionalismo e universalismo. O que há é mau nacionalismo: o Brasil pros brasileiros — ou regionalismo exótico.
Nacionalismo quer simplesmente dizer: ser nacional. O que mais simplesmente ainda significa: Ser. Ninguém que seja verdadeiramente, isto é, viva, se relacione com seu
passado, com as suas necessidades imediatas práticas e espirituais, se relacione com o meio e com a terra, com a família etc., ninguém que seja verdadeiramente, deixará
de ser nacional. [...] Você fala na “tragédia de Nabuco, que todos sofremos”. Engraçado! Eu há dias escrevia numa carta justamente isso, só que de maneira mais
engraçada de quem não sofre com isso. Dizia mais ou menos: “o doutor Chagas descobriu que grassava no país uma doença que foi chamada moléstia de Chagas. Eu
descobri outra doença, mais grave, de que todos estamos infeccionados: a moléstia de Nabuco”. É preciso começar esse trabalho de abrasileiramento do Brasil, dizia eu
noutra carta, a um rapaz de Pernambuco. [...] De que maneira nós podemos concorrer para a grandeza da humanidade? É sendo franceses ou alemães? Não, porque isso já
está na civilização. O nosso contingente tem de ser brasileiro. [...] Quando realizarmos o nosso acorde, então seremos usados na harmonia da civilização. Me compreende
bem? Porque também esse universalismo que quer acabar com as pátrias, com as guerras, com as raças etc. é sentimentalismo alemão. Não é pra já. Está longíssimo. Eu
creio que nunca virá. A República Humana, redondinha e terrestre, é uma utopia de choramingas e nada mais. Avanço mesmo que enquanto o brasileiro não se
abrasileirar, é um selvagem. Os tupis nas suas tabas eram mais civilizados que nós em nossas casas em Belo Horizonte e São Paulo. Por uma simples razão, não há
Civilização. Há civilizações. [...] Nossos ideais não podem ser os da França porque as nossas necessidades são inteiramente outras, nosso povo outro, nossa terra outra.
Nós só seremos civilizados em relação às civilizações o dia em que criarmos o ideal, a orientação brasileira. Então passaremos da fase do mimetismo para a fase da
criação. E então seremos universais porque nacionais. [...] Você faça um esforcinho pra abrasileirar-se. Depois se acostuma, não repara mais nisso e é brasileiro sem
querer. Ou ao menos se não formos nós já completamente brasileiros, as outras gerações que virão, paulatinamente desenvolvendo o nosso trabalho, hão de levar enfim
esta terra à sua civilização.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Carlos e Mário: Correspondência entre Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade: 1924-1945. Organização de Lélia
Coelho Frota. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002.

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