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Suassuna e a poética do sertão

Interessa-nos captar o universo brasileiro dentro do imaginário ibérico-sertanejo


da obra de Suassuna. Para tanto, exploramos situações sócio-culturais presentes nas
cenas de seus textos teatrais, utilizando fontes populares na elaboração de um projeto
artístico voltado à promoção da educação para a autonomia através da vivência do
teatro.
No que se refere à linguagem, valorizamos a obra de Suassuna pela recriação
poética do Nordeste com textos do romanceiro popular, através dos quais o autor situa
criativamente suas histórias no espaço amplo da literatura e da oralidade, tocando com
ludicidade aqueles que participam das encenações de suas peças, seja no palco, seja na
platéia. Nesse sentido, o Sertão, locus de suas curiosas e inventivas histórias, aparece
como metáfora do mundo, com temas universais e dramas particulares das figuras
humanas compostas, algumas delas com características bem marcadas e recorrentes em
várias peças do autor.
É visível, nos textos de Suassuna, o propósito de ressaltar a simplicidade
(algumas vezes só aparente) e o despojamento artesanal, superando a predominância dos
enfoques psicológicos, muito presentes no teatro ocidental. Tais características tornam
sua obra uma rica fonte de elementos para a criação de peças didáticas a serem
aplicadas em oficinas de teatro com jovens moradores de bairros periféricos de
Salvador.
Suassuna, no texto Genealogia Nobiliárquica do Teatro Brasileiro, refere-se aos
dramaturgos que no Século XX romperam com o “caminho estreitamente realista”,
citando W. B. Yeats :
Toda arte deve permanecer a uma certa distância da realidade e, uma vez
escolhida, essa distância deve ser mantida com firmeza contra a pressão do mundo.
Verso, ritual, música e dança, associados à ação, exigem que o gesto, a roupa, a
expressão facial, a disposição cênica contribuam também para manter a porta fechada
(Yeats apud Suassuna, 2000: 104).
Em seguida, Suassuna diz que subscreve esse texto, criticando também “o
amaciamento pouco corajoso e pouco imaginoso de uma arte humana violenta como
deve ser o teatro”. Menciona diversos dramaturgos que reagiram a essa tendência de
reprodução fiel da realidade, e continua: “É curioso, porém, que os dramaturgos
europeus que empreenderam essas tentativas de reação tenham, todos, fugido a suas
respectivas realidades nacionais, o que não deixa de ser um sinal de fraqueza”.
O autor ressalta a importância de procurar na realidade cotidiana e nacional que
nos cerca as sementes que podem germinar no palco criando a realidade, teatralmente
mais eficaz, de um mundo povoado de seres monstruosos e sagrados, correspondentes à
vida nacional e cotidiana mas não submetida a ela.
Ele prefere isso do que “criar no palco uma realidade mágica a partir de um
teatro já transfigurado por outros poetas, ou de uma realidade antiga ou exótica”. Dessa
forma, Suassuna critica os autores que vão buscar na “antiguidade ou nos povos
estranhos, uma realidade falsamente e facilmente poética” (Ibidem: 103).
Assim Suassuna fundamenta suas criações de personagens-tipos (alguns deles
arquetípicos, outros sugerindo caricaturas), todos eles nordestinos, enraizados,
resultantes da mescla de culturas que compõem a tradição brasileira, para fazer um
teatro “peculiar”, um teatro que religa os dramaturgos, encenadores e atores “à
corrente do sangue tradicional mediterrâneo, da qual somos herdeiros, na qualidade
de povo ibérico, negro, judeu, vermelho e mourisco”. Segue-se longo trecho
retomando a diversidade que cabe no teatro brasileiro, o que permita, segundo
Suassuna, que um europeu chame o povo brasileiro de “exótico”.
Finalmente, Suassuna arremata:
Quem passou por tudo isso tem de compreender que o teatro popular brasileiro –
e o teatro erudito que começa a surgir ligado a ele – entronca numa nobiliarquia: a
mesma que, na realidade, marca nosso povo, ao mesmo tempo fidalgo e popular,
tradicional e peculiar, mediterrâneo e exótico, religioso e satírico, sangrento e cheio de
gargalhadas, uma harmonia de contrários que pode exaltá-lo, do simplesmente risível ao
mais profundo cômico e humorístico, e do simplesmente dramático às fontes de
violência do ritmo trágico. (Ibidem: 105)
Enquanto encenador e professor de teatro, desejo atualmente trabalhar essa
“realidade teatral mágica e festiva”, na qual o povo possa se reconhecer
“transfigurado”.

O jogo na educação

Podemos abordar a peça didática como um jogo. Os jogos teatrais têm como
ponto de partida um problema a ser resolvido. E esse problema indica aos participantes
o objetivo e o foco. O foco é um ponto ou um aspecto externo, para o qual o jogador
deve dirigir a atenção, e ele contribui para o envolvimento de todos os participantes em
cada momento durante o processo.
As regras em um jogo desempenham papel de suma importância para o seu bom
desenvolvimento, como também as instruções, que são o elo entre instrutor ou educador
e os jogadores, encorajando-os a manter o olhar no foco, enfrentando os desafios
propostos. O jogo teatral está centrado na corporeidade, na fisicalização, na
espontaneidade e na intuição, com incorporação da platéia, sendo sua avaliação e
transformação um princípio processual.
As técnicas de teatro ensinadas através do princípio do jogo de regras geram um
acesso criativo para a atuação. A improvisação é um meio que capacita o sujeito a
atingir a expressão criativa através da experiência pessoal que gera conhecimento de si
mesmo e do teatro.

O imaginário e as figuras cênicas de Suassuna

Para o experimento em que são compostas peças didáticas com textos de


Suassuna, foram escolhidas três obras: Auto da Compadecida, Farsa da Boa Preguiça e
Torturas de um coração.
Cenas do Auto da Compadecida selecionadas:

1) João Grilo fala do mau tratamento que recebe de seus patrões, exemplificando com o
fato de que não recebeu nem um copo d’água nos três dias em que ficou doente,
enquanto o cachorro tinha até “carne passada na manteiga”.

Os temas possíveis a serem abordados são: injustiça social, fome,


relação patrão/empregado, economia e política (p. 24-28);

2) A cena do julgamento, com a entrada de Deus e João Grilo revelando seus


preconceitos.

Os possíveis temas são: discriminação étnica, religiosidade, mistério


da fé e morte (p. 124-127);

3) A cena do julgalento, com a intervenção de Nossa Senhora em defesa dos pecadores,


salvando-os do inferno, também na cena do julgamento.

Os temas são: o perdão, o castigo, a ética e o direito (p. 144-158).

Foram selecionadas as seguintes cenas da Farsa da Boa Preguiça:

1) Andreza tenta convencer Nevinha a deixar Simão, homem pobre e preguiçoso, para
ficar com seu Aderaldo, homem rico e poderoso. Em seguida, Aderaldo procura
Nevinha e tenta conquistá-la.

Os temas são: fidelidade conjugal, amor, comportamentos nas


diversas categorias sociais (p. 57-62 e 76-79);

2) Nevinha alerta o marido Simão, desempregado que se recusa a trabalhar, que D.


Clarabela se interessou pelos seus versos e pode comprar tudo o que ele escreve.

Os temas são: as diferenças sociais, o trabalho intenso e mal


remunerado, o fazer artístico como trabalho, a preguiça, o direito ao
ócio, o mito da preguiça nordestina e baiana (p. 68-72 e 85);

3) Clarabela, mulher da cidade grande, apresenta seus sentimentos em relação ao campo


e ao casamento com Aderaldo.

Temas: moral e costumes, infidelidade conjugal, diferenças entre


campo e cidade, diferenças sociais (p. 80-81).

Foram selecionados os seguintes trechos de Torturas de um coração:

1) Cabo Setenta e Vicentão apresentando-se como valentes (p. 116-120) e Benedito


revelando seu autoritarismo ao se apresentar (p. 119), e na interação com os demais
personagens (p. 137-138, 155-156).

Temas: violência e machismo;


2) Benedito se apropria dos presentes enviados pelos dois enamorados para Marieta.

Temas: honestidade, mentira, verdade (p. 125-137);

3) Abordagem da negritude de Benedito por Vicentão (p.119) e pelo Cabo Setenta


(p.123).

Temas: discriminação étnica e social.

Os desafios da educação com o teatro

Toda educação é um processo de intervenção, resulta em mudança de


comportamento, seja em termos de conhecimento, de habilidade ou de atitude. Não
existe a neutralidade na relação entre agentes educativos. Busca-se o diálogo, como
também as relações horizontais, o que é uma utopia, já que todo ser social traz em si as
marcas de sua condição histórico-social, e as injunções políticas associadas a elas.
Com o teatro, tenho me interessado particularmente em experimentar
procedimentos que desenvolvam as capacidades geralmente esquecidas e não
compreendidas nas instituições voltadas para a educação: a sensação, o sentimento e a
intuição.
Tomando a peça didática como base, trabalho com a habilidade mais
desenvolvida nos jogadores, aquela associada ao seu desenvolvimento no domínio
cognitivo, e aposto na prática teatral como recurso didático para o desenvolvimento dos
domínios psicomotor, afetivo e estético.
No domínio cognitivo, mais relacionado às funções do pensamento, as
categorias desenvolvidas, por ordem de complexidade, segundo Benjamin Bloom, são:
Conhecimento, Compreensão, Aplicação, Análise, Síntese e Avaliação.
No domínio psicomotor, no qual são fundamentais as sensações e o
funcionamento propriamente material do corpo, as categorias são: Percepção,
Posicionamento, Execução Acompanhada, Mecanização e Completo Domínio de
Movimentos.
É no domínio afetivo que se lida com mais propriedade com o campo do
sentimento. Cuida-se aí da formação da visão de mundo ou da filosofia de vida do
sujeito. Suas categorias, segundo David Krathwohl, são: Receptividade, Resposta,
Valoração, Organização e Caracterização.
O domínio estético, que está mais diretamente associado à mais misteriosa das
capacidades humanas, a intuição, é certamente o menos estudado. Fui buscar no
processo de criação cênica as categorias que podem vir a compor uma taxonomia para
esse domínio. Proponho que as categorias sejam as seguintes: Imaginação, Memória
Emotiva, Dilatação, Irradiação, Pulsação e Prazer Estético.
Para desenvolver integralmente o ser humano nesses quatro domínios, é que
adoto o jogo teatral.

A leitura das peças didáticas, com a identificação de suas idéias-força, a seleção


de modelos de ação retirados de suas cenas, são o ponto de partida da aprendizagem do
fazer teatral e da reflexão sobre as mudanças que se fazem necessárias na sociedade. O
fazer teatral funciona, assim, como um ensaio das transformações a serem realizadas.
Lidando com a condição de efêmero do teatro, no campo pouco palpável da
oralidade, buscamos tratar da chamada vida real, do real concreto que tão fortemente
repercute em nosso imaginário, em nossos sentimentos, em nossas emoções.
No prefácio da Farsa da Boa Preguiça encontro uma frase de Suassuna (2002:
24) que pode resumir os pontos de ligação entre nosso trabalho e a sua obra. Diz o
autor:
“Perdoem-me se passo quase todo o tempo a contar histórias. Sou um contador
de histórias, e só sei pensar em torno de acontecimentos concretos”.

Referências bibliográficas

DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo. São Paulo:


Hucitec, 2006.

DUARTE JR., João-Francisco. Fundamentos estéticos da educação. São Paulo: Cortez,


1981.
______. O sentido dos sentidos: a educação (do) sensível. Belo Horizonte: Criar
Editora, 2002.
KOUDELA, Ingrid. Texto e jogo. Uma didática brechtiniana. São Paulo: Perspectiva,
1991.

SPOLIN, Viola. Jogos teatrais: o fichário de Viola Spolin. São Paulo: Perspectiva,
2001.

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 35a ed. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

______. Farsa da Boa Preguiça. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

______. Seleta em prosa e verso. 2a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.

______. Genealogia Nobiliárquica do Teatro Brasileiro. In O Percevejo. Teatro e


Cultura Popular. Dossiê Ariano Suassuna. Edição Beti Rabetti. Rio de Janeiro:
Programa de Pós-Graduação em Teatro, UNIRIO, n° 8, 2000.

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