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O Diário de Bordo como ferramenta fenomenológica


para o pesquisador em artes cênicas

M arina Marcondes Machado

Introdução Com o passar do tempo, observei que o


Diário de Bordo tornou-se um volume indepen-
“É em nós próprios que encontraremos a dente; hoje, posso afirmar que possui ‘vida pró-
unidade da fenomenologia e seu verdadeiro pria’. Esse texto começou a ser escrito no pri-
sentido.” meiro encontro grupal, terminando de ser feito
Maurice Merleau-Ponty no dia em que o grupo encerrou os trabalhos,

N
em um almoço comemorativo. A metodologia
este artigo, a expressão Diário de Bordo re- para estudo do Diário de Bordo também foi for-
fere-se a uma das etapas do trabalho do mulada durante o processo, ou seja, foram cria-
pesquisador acadêmico em Artes Cênicas dos critérios de observação apenas no momento
que realiza sua pesquisa processualmente em que pude colocar-me numa posição inter-
(metodologia work in process). O Diário de mediária entre a experiência vivida durante a
Bordo é a compilação de todas as anotações que criação e a escritura da dissertação – não me uti-
um encenador-criador faz durante a escritura, lizando, portanto, de critérios apriorísticos.
montagem e encenação do espetáculo sobre o Os critérios para estudar o Diário acaba-
qual, futuramente, sua dissertação ou tese vai ram por ser as fases de criação (observação de
tematizar e discutir. como os jogos e as improvisações se transforma-
Durante a pesquisa de Mestrado em Ar- ram em linguagem teatral) correlacionadas com
tes Cênicas que realizei na ECA-USP, por três quatro grandes momentos do espetáculo, por-
anos consecutivos (1999/2001) utilizei o recur- que estes momentos e sua artesania teatral des-
so do registro escrito em cadernos de anotação tacavam-se, saltando como figuras em um fun-
de quase tudo o que me ocorria – anotava pen- do, durante o estudo das anotações, a posteriori.
samentos, dúvidas, angústias, surpresas, referên- Argumento a favor do registro escrito no
cias, dia após dia. Neste caso, porém, o Diário Diário de maneira não-linear, até mesmo caóti-
de Bordo é apenas o registro escrito especifica- ca, ao longo do período de criação, com sua edi-
mente durante a criação, montagem e encena- ção de forma ordenada e cronológica, em ‘bom
ção do espetáculo Cacos de infância. português’, feita apenas posteriormente, caso o

Marina Marcondes Machado é mestre em Artes Cênicas pela ECA-USP; autora dos livros O brinque-
do-sucata e a criança e A poética do brincar; psicóloga clínica e professora de Psicologia da Comunicação
no Centro Universitário Nove de Julho.

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pesquisador julgue sua ordenação necessária. justamente porque o Diário traduz a experiên-
Realizar a organização das anotações mais tar- cia pré-reflexiva da pesquisa, é que podemos
de, em um segundo momento, facilita o chamá-lo de “ferramenta fenomenológica”.
envolvimento e a entrega do criador-encenador Se concordarmos que o Diário traz algo
durante o work in process; mais tarde realizar-se- bastante próximo da linguagem literária e é reali-
á a reflexão ordenada, por meio da leitura, e da zado processualmente, não seria necessária sua
re-leitura cuidadosa, das anotações. No decor- compilação, página após página, ao longo da dis-
rer da minha pesquisa, esse modo foi muito pro- sertação ou tese; não é necessário dar ao Diário
veitoso, e penso ainda que o Diário de Bordo, uma utilização pragmática ou direta; trata-se de
ao longo do tempo, vai desvelar novos signifi- um metatexto, de um escrito, misto de realidade
cados, conforme eu continue me aproximando e ficção, inicialmente caótico e mais tarde refle-
e me afastando da experiência vivida naquele xivo, meditativo, até mesmo confessional. Pode-
período de criação. se compará-lo a um pano de fundo, o subtexto
A questão central a ser discutida, a partir do próprio encenador, a explicitação da sua poéisis
daqui, será: qual o uso possível destes Diários de – e esse pode ser seu valor maior.
Bordo? E como esse uso se correlaciona com a O trabalho em processo (work in process)
pesquisa acadêmica em Artes Cênicas? demanda que o pesquisador em Artes Cênicas
crie metodologia no decorrer da pesquisa; sendo
Subtextos para o encenador e que prescindir de noções teóricas prévias é o
ferramenta para criar metodologia desafio, e uma das maiores dificuldades, da esco-
lha do método fenomenológico para pesquisa.
Enquanto estudava outros pesquisadores da área Ao longo do tempo, o Diário de cada pesquisa-
de Artes Cênicas, encontrei um texto muito in- dor transformar-se-á em uma ótima ferramenta
teressante do prof. Laymert Garcia dos Santos metodológica.
(2001), que comenta a vida e a obra de Heiner Também penso ser importante que cada
Müller. Neste estudo ele cita uma entrevista do pesquisador em Artes Cênicas reflita sobre o si-
dramaturgo na qual este teria afirmado que o gilo que algumas passagens dos seus Diários pos-
pensamento é sempre mais lento que a escritura sam solicitar; por exemplo, quando explicitam
poética. Comenta o prof. Laymert: dificuldades e conflitos, atitudes e dizeres dos
atores, dançarinos e músicos, modos de ser e
“[…] a literatura vai mais rápido que a teoria
estar que não se mostram na encenação propri-
[...] porque possui um ritmo muito próprio,
amente. Pode ser, portanto, interessante olhar
que lhe permite formular primeiro o sentido
para os cadernos de Diários como algo que lan-
da experiência que nos leva de roldão – sen-
ça luz para o pesquisador-encenador, de modo
do uma captação direta desse processo, a lite-
a dar foco à gestalt do trabalho como um todo,
ratura precede a reflexão” (2001, p. 7).
permitindo o registro, em palavras, também dos
Pretendo realizar aqui um paralelo desta inter-relacionamentos, ou seja, algo para além
afirmação com a feitura de um Diário de Bordo da encenação.
no decorrer de uma pesquisa em Artes; acredito
que o trabalho de registro do processo de criação Experiência vivida em
vai também preceder a reflexão, ou seja, é uma Cacos de infância
espécie de literatura sendo criada pelo trabalho
em processo, ao mesmo tempo em que o pes- Ao ingressar no programa de pós-graduação em
quisador está preocupado com a linguagem te- Artes eu me vi diante do desafio de realizar uma
atral e seus desdobramentos, no cotidiano dos encenação afinada com a noção de trabalho em
encontros, ensaios e orientações acadêmicas. E processo – aquele teatro que emergiria do work

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in process era algo a ser realizado longe do a cessual, seja para a realização da escritura final
priori e perto da coisa mesma. Eu intuía que o da dissertação; brinco ao criar este termo para-
modo de registro da experiência vivida, bem fraseando a linguagem jornalística, na qual a
como a redação final da dissertação, deveriam função do ombudsman é a de ser um comenta-
também ter afinação com essas escolhas metodo- rista crítico de um jornal.
lógicas; e foi apenas por meio do fazer, no tra- No entanto, ao concentrar o olhar da pes-
balho processual mesmo – que de fato levou três quisa em Artes Cênicas nas anotações do ence-
anos –, que pude compreender as dificuldades nador, pode-se estar minimizando a participa-
e facilidades, sabores e dissabores da pesquisa em ção coletiva e a dinâmica grupal, perdendo parte
teatro que se pretende fenomenológica. importante da possibilidade de registro da cria-
Ao mesmo tempo em que avançavam ção: do registro do ponto de vista dos atores-
minhas leituras da obra de dois estudiosos da jogadores participantes, cúmplices do trabalho
fenomenologia – Gaston Bachelard e Maurice do pesquisador.
Merleau-Ponty –, eu me apropriava da ferra- No processo grupal conduzido por mim
menta, sempre co-relacionando o estudo e o fa- em Cacos de infância houve uma espécie de re-
zer, sendo este fazer o de uma dramaturgia em cusa dos atores-jogadores à escrita (o que não
jogo. Como disse Cohen (1988), o trabalho em deixa de ser uma escolha possível). Desse modo
processo requer a criação de um campo mítico e são as fotografias e vídeos que contam, imageti-
o Diário registra como se chegou a este campo camente, algo mais sobre o ocorrido – mas nun-
que, paradoxalmente, delimita e amplia a pró- ca revelando integralmente a riqueza da inter-
pria pesquisa. Trata-se de um paradoxo que sur- subjetividade, de cada um e entre todos. A falta
ge paralelamente a um outro, originário: se a dos escritos dos jogadores foi, neste caso, supri-
pesquisa se situa na área de Artes, não há como da por descrições, o mais próximas do vivido,
ser metodologicamente ‘científico estrito senso’; escritas no Diário. Mas eu não submeti o texto
grande parte do trabalho do pesquisador vai sen- a nenhuma ‘prova de realidade’ por parte dos
do realizada no limiar entre realidade e ficção. participantes, por circunstâncias específicas e até
No manuscrito do Diário escrito por mim, mesmo já comentadas anteriormente: em pri-
relatando Cacos de infância, existia mistério e pre- meiro lugar, não havia disponibilidade de tem-
sença, e percebi que o texto não seria passível de po e de dedicação, por parte do grupo, ‘fora da
divulgação tal qual se apresentava, por demandar linguagem de teatro’, para tal. Em segundo lu-
sigilo e cuidado, seja com meus companheiros gar, as anotações de um Diário são extremamen-
de trabalho, seja comigo mesma. Cabe obser- te pessoais e passam por uma teia de significa-
var, inclusive, que o volume completo não foi ção extremamente própria, partindo, sempre,
lido nem ao menos por minha orientadora, do olhar do pesquisador... Afinal, quem estava
Profa. Dra. Maria Lúcia de Souza Barros Pupo. realizando uma pesquisa de Mestrado em Artes
Cênicas era eu, e os participantes do grupo eram
Fragilidades de um meus companheiros no processo de artesania
Diário de Bordo teatral e não companheiros no âmbito da cria-
ção de um trabalho acadêmico estrito senso.
Um Diário de Bordo bem realizado é, portanto,
algo que documenta processos de criação, e que Conclusão
acaba por ganhar, como texto, ‘vida própria’,
funcionando como ferramenta de concomitan- “[…] toda matéria imaginada, toda matéria
tes aproximação e distanciamento do trabalho meditada torna-se imediatamente a imagem
processual; o Diário, por assim dizer, seria como de uma intimidade”.
que um ombudspaper, seja para a redação pro- Gaston Bachelard

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Defendo a artesania do Diário de Bordo como mática ou funcional, nem de leitura a ser neces-
algo fundamental nas pesquisas em Artes Cêni- sariamente compartilhada: daí seu caráter de
cas que envolvam o trabalho em processo e que intimidade, de “Diário”. E, a partir dele, cada
busquem fazer uso do método fenomenológico; pesquisador poderá vislumbrar seus projetos de
proponho tratar o Diário como um recurso fi- futuro, sendo o Diário de Bordo um canteiro de
losófico e metalingüístico para o pesquisador- formas, um corpo em movimento: corporali-
criador, cuja finalidade principal seria a amplia- dade tatuada com imagens vivas e prontas a sal-
ção de um espaço meditativo da experiência tar no mundo, para brincar e dançar fora do
vivida durante a pesquisa, traduzindo o valor papel, quando abertura suficiente for permitida.
deste recurso de maneira não diretamente prag-

Referências bibliográficas

COHEN, R. Work in Progress na Cena Contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 1998.


SANTOS, L. G. (org.). Drucksache N. F. 6/Brasilien. Düsseldorf: Richter Verlag, 2001.

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