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Breve Hist Ria Da Realidade
Breve Hist Ria Da Realidade
Breve Hist Ria Da Realidade
Capa
2 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
CRÉDITOS
CAPA E PROJETO GRÁFICO: Simone Montoro
DIAGRAMAÇÃO E REVISÃO: Mônica Hamada
iEditora
Rua da Balsa, 601 – 2º andar
Telefone: (11) 3933-2807
Site: www.ieditora.com.br
02910-000 São Paulo - SP - Brasil
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 3
Breve
História
da
realidade
Motivo, Princípio, Destino
1ª edição
Giorgio Gasparro
4 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
Sumário
CAPÍTULO 1
Perguntas 8
CAPÍTULO 2
A historieta que propõe as explicações 10
CAPÍTULO 3
A Mente começou a estudar um, dois... 11
CAPÍTULO 4
Assim nasceu o conceito da pré-ciência... 13
CAPÍTULO 5
Da Mente destacaram-se pontos luminoso... 14
CAPÍTULO 6
O Pari anotava na sua memória... 16
CAPÍTULO 7
Depois da grande explosão, os... 19
CAPÍTULO 8
Splendor ficou impressionado. A idéia... 20
CAPÍTULO 9
Antes e depois deste evento, a Mente... 23
CAPÍTULO 10
À grande distância, a realidade... 25
CAPÍTULO 11
É um núcleo de inteligência ativa... 26
CAPÍTULO 12
Splendor seguia com cuidado a difusão... 28
CAPÍTULO 13
A Mente costumava descer da sua... 30
CAPÍTULO 14
Mas a Mente não tinha sossego; era do... 31
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 5
CAPÍTULO 15
Na floresta úmida e sombreada, viviam... 32
CAPÍTULO 16
Seguiram-se dias estranhos: o ar... 34
CAPÍTULO 17
Ele, como a mãe, tinha o hábito de... 36
CAPÍTULO 18
Alguns pensadores, obstinados em... 37
CAPÍTULO 19
Homo, após ter afugentado os pretende... 39
CAPÍTULO 20
A luz da manhã mostrou pequenas poças... 41
CAPÍTULO 21
Homo, favorecido pela benevolência... 42
CAPÍTULO 22
Começou o pôr-do-sol, as sombras... 44
CAPÍTULO 23
Depois que o horizonte tornou-se... 45
CAPÍTULO 24
O homem não se manifestara ainda... 47
CAPÍTULO 25
A história se repete (os autores são... 51
CAPÍTULO 26
Mais adiante, Homo constatou que após... 53
CAPÍTULO 27
Homo começou a observar: o sol não... 54
CAPÍTULO 28
Por que a Mente dá atenção a um... 56
CAPÍTULO 29
Usando o instinto enfraquecido, Homo... 58
CAPÍTULO 30
O sol alto e o montículo de pedras... 59
6 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
CAPÍTULO 31
O homem começa a desgarrar do... 63
CAPÍTULO 32
No início do desgarramento, os... 65
CAPÍTULO 33
Sob os efeitos dos novos estímulos... 66
CAPÍTULO 34
É assim que a percepção capta a sua... 68
CAPÍTULO 35
Como sempre acontece, a combinação... 69
CAPÍTULO 36
No ambiente dos agrupamentos humanos... 71
CAPÍTULO 37
Típico caso do profeta iletrado, que... 72
CAPÍTULO 38
O raciocínio espontâneo e contínuo... 74
CAPÍTULO 39
Não existem documentos e sinais... 76
CAPÍTULO 40
Após a doação, o faraó descobre o... 77
CAPÍTULO 41
Abraão tinha uma sagrada missão a... 79
CAPÍTULO 42
Por volta do século XIV a.C. a... 81
CAPÍTULO 43
– Tu és único Deus, ao Teu lado não... 82
CAPÍTULO 44
Algumas mentes, entre os milhões de... 84
CAPÍTULO 45
Só o Nada é inútil, o restante pode... 86
CAPÍTULO 46
O Karma sobrevive à morte, acompanha... 87
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 7
CAPÍTULO 47
Para melhorar a pessoa é necessário... 90
CAPÍTULO 48
Se a imaginação humana quisesse... 91
CAPÍTULO 49
–Assim caminha a humanidade... 94
CAPÍTULO 50
Vivia em uma região, entre o mar e a... 95
CAPÍTULO 51
Depois, os ladrões, de passagem pela... 97
CAPÍTULO 52
À noite, a fraqueza o venceu: Job... 99
CAPÍTULO 53
– Mais uma vez somos limitados pelos... 102
CAPÍTULO 54
O Pari, recebidas as virtudes e a... 103
8 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
1
Perguntas
2
A historieta que propõe as
explicações.
3
Mente começou a estudar um, dois, muitos te-
A mas criativos. Com a evolução das idéias, cada
projeto tornava-se complexo: os nexos, os detalhes, as
minúcias multiplicavam-se, pois a razão pedia harmonia e
lógica, sensos vivazes na consciência da Mente.
Depois, nela se manifestou a dúvida da escolha. Expe-
rimentou fortemente a necessidade da comunicação dialo-
gada com alguém além de sua intimidade.
O pensamento penetrou profundamente, como agu-
lha na carne, e alcançou o âmago da pessoa. Na fantasia,
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4
ssim nasceu o conceito da pré-ciência: do exis-
A tir e do não-existir, ou seja, de valores existen-
tes e de nenhum valor.
— Ele, embora nulo e distante, causa efeitos.
Seguiu-se o silêncio da reflexão.
— Conferimo-lhes características assim potentes, pois
somente algo perene poderá perturbá-lo.
— O Nada é infinito, então eterno, e nunca será con-
quistado, mas se nós criássemos uma existência em perene
expansão, Ele se transformaria em uma abstração junta-
mente com os atributos que lhe concedemos.
— Precisamos de algo que o povoe.
— Criaremos algo.
A reflexão irradiou-se em todos os sentidos. Enfim a
Mente manifestou-se!
Penso que seja bom criar seres semelhantes a nós, que
migrem em todas as direções, manifestem a nossa presen-
ça e a nossa vontade.
Durante a ponderação, a Mente provou, no íntimo da
pessoa, um sentimento anônimo, que por gravidade e in-
sistência era semelhante ao da solidão. Muitos e muitos
eventos depois, quando existir a realidade e nela o homem,
este sentimento será gratificado aos artistas e neles se ma-
nifestará como febre criativa.
Do sentimento, fez partícipe o Pari, o qual obser-
vou:
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5
a Mente destacaram-se pontos luminosos em
D tão grande quantidade que formaram um invó-
lucro esférico em volta das pessoas. Eram pontos de exis-
tência luminosa que penetravam o Nada. Cada um possuía
direção e movimentos próprios, mas o invólucro tinha um
único movimento expansivo. Do núcleo saíam rápidas e pre-
cisas faíscas de pensamentos, da periferia respondiam outras,
fracas e tímidas. Mas, rapidamente, a troca, num crescendo
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epois da grande explosão, os desmesurados sis-
D temas começaram a migrar, tomando direções
divergentes entre si.
As galáxias levaram consigo o espaço que foi o Nada, as
miríades de estrelas, verdadeiras fornalhas de elementos
químicos, o pó e os meteoritos que estão, como carvão e
matéria indistinta, perto das bocas dos altos fornos estelares,
as nebulosas, verdadeiras maternidades, nas quais nasceram
as estrelas que substituirão as decadentes próximas ao co-
lapso. Separadamente, na negritude absoluta, a voragem
engole os destroços vagantes dos mundos até a luz, onde
vomitará matéria regenerada, quando a capacidade chegar
ao máximo. Pois na criação é lei: nada se aniquila, mas tudo
se transforma tantas vezes quanto necessário. Estes são os
comboios concebidos pela Mente para transportar a exis-
tência no Nada a uma velocidade vertiginosa. É um simples
projeto logístico autônomo, planificado pelo Pari.
— Podia ser somente obra de uma dezena de estrelas,
de uma centena de satélites, recheados de pó cósmico...
Eis explicada a contínua efusão de energia, a magnitude dos
espaços, os bilhões de bilhões de unidades de matéria. Será
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plendor ficou impressionado. A idéia de emular a
S Mente, ser também o princípio de algo, o solevou.
Emocionado se apresentou ao Criador.
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ntes e depois deste evento, a Mente, que se
A compraz de ser chamada “Princípio”, afagava no
seu íntimo, como a mãe o faz com a criança no seio, um
sentimento que se acresceria sempre mais. Este era indefi-
nido, possuía o impulso da animação, o desejo do inespera-
do, e acariciava o espírito. Outra vez a insatisfação moveu o
Princípio:
— A criação se expande em todas as direções, adquire
maior luminosidade, a transformação cósmica procede. É
motivo de satisfação; mas além dos efeitos causados pelas
leis naturais, sempre previsíveis, percebemos a ausência de
algo que a anime...
— De que mais sou o Princípio?
O Pari propôs:
— Na natureza podemos imprimir uma infinidade de
caráteres variáveis para causar o imprevisto.
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grande distância, a realidade incomensurável
À parece um aquário esférico e transparente, no
qual é suspenso como plâncton, grãos de matéria lumino-
sa, que se movem de maneira imperceptível. Segura a esfe-
ra um cinturão de galáxias, que impede a dispersão, mas
favorece a expansão perpétua.
O Nada é agora absorvido progressivamente pelo vo-
lume criativo, torna-se espaço mensurável repleto de pon-
tos materiais.
Das muitas galáxias parecidas com girândolas, uma tem
braços na forma de foice; na extremidade de um braço
existe uma estrelinha; em volta dela, fazem roda sobre ór-
bitas elípticas satélites que giram também sobre os pró-
prios eixos como piões.
Sobre um destes satélites, chegou o espírito da vida. O
vetor tangenciou a esfera deixando a carga e ricocheteou. A
casualidade científica o encaminhou a uma nova direção.
A Terra, naquela era geológica, não era verdadeiramen-
te um lugar ameno, dominado de leis físicas clementes; ao
contrário.
As suas entranhas expeliam magmas fluidos, lapíli ar-
dentes, cinzas quentíssimas; a atmosfera era nebulosa,
saturada de gases letais; a superfície rochosa fendia-se em
todas as partes pelos tremores sísmicos, e o pó infiltrava-
se em qualquer rachadura.
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um núcleo de inteligência ativa, codificado em
É conceitos adaptáveis ao ambiente, munido de uma
grande quantidade de impulsos de desenvolvimento ma-
terial. Um novelo, no qual o fio, quando estendido, revela
todas as suas características.
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plendor seguia com cuidado a difusão da vida.
S Causavam-lhe maravilhas os vegetais, mais ainda
os animais.
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Mente costumava descer da sua realidade em
A um vale para gozar a aura do entardecer na vaga
sombra vespertina e observar a obra em desenvolvimen-
to. À frente de uns seres gigantescos e plantas esquisitas,
surpreendeu-se e disse ao Pari:
— Não são verdadeiramente estas as criaturas pensa-
das e desejadas.
— Alguém nos quer imitar, mas é desajeitado: violou
o código genético. O resultado é um mostrengo do ser ori-
ginal.
Realmente perambulava pela pradaria um sáurio com
rabo e pescoço compridos que partiam de um corpo volu-
moso e disforme, sustentado por duas enormes patas pos-
teriores, contrastando com as duas anteriores atrofiadas
pela inutilidade. Desfolhava com dificuldade os brotos dos
cumes das árvores. Por ter corpo pesado e tamanho desco-
munal, era lento e temia o chão mole dos pântanos. Vivia
uma lenta agonia.
— Nessa criatura foram alteradas as proporções cor-
porais, desprezando o bom senso existencial. Não se pode
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as a Mente não tinha sossego; era dominada
M pela ânsia criativa e não conseguia tracejar o
objeto de sua vontade.
— Esta realidade construída com um sem número de
conceitos, idéias, pensamentos, e uma enorme geração de
energia, embora se dilate e conquiste o Nada, parece-me
inerte, desalmada e até inútil.
— São insatisfatórios os aspectos variados da matéria,
os movimentos limitados dos vegetais, o comportamento
obtuso dos animais, comandados pelos astros e pelo am-
biente para manifestar o instinto deles. Não corresponde à
nossa, outra inteligência; ao nosso perceber, o ato da per-
cepção alheia. Assim, não temos a troca de sensos, até os
menores, para animar as nossas pessoas, para alegrar-nos
ou entristecer-nos, e para mover-nos à ação. Ninguém sabe
de nós ou nos envia sentimentos vivos.
— Os Minoritas sabem de nós, andam pela realidade
a testemunhar a nossa existência.
— Porque conhecem as nossas pessoas e virtudes. Mas,
se assim não fosse, como eles se comportariam? Eis as dúvi-
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a floresta úmida e sombreada, viviam grupos
N de quadrúmanos. Entre os integrantes, distin-
guia-se, pelo porte, uma jovem fêmea íntegra. Ela tinha o
hábito de descer, todas as manhãs, dos ramos, adentrar-se
entre as ervas da savana e subir sobre um baobá.
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eguiram-se dias estranhos: o ar se fez pesado, a
S luz opaca dominou o silêncio da espera; os
quadrúmanos temiam e se escondiam entre a folhagem mais
espessa.
Uma noite liberou-se a violência dos elementos: ulu-
lou o vento como mastim, arrancou folhas e ramos das ár-
vores maiores, estouraram os raios, incendiando a secura.
Enfim, a chuva chicoteou a floresta para apagar e molhar.
A fêmea, tremendo, espiou o céu, empurrou um ramo
e folhas, mas logo cobriu os olhos com as mãos. Entre as
conjunções dos dedos, viu o fulgor do relâmpago fixo so-
bre si, provou o calor, que das extremidades dos pêlos che-
gava à pele, penetrava os poros, as carnes, concentrando-
se no abdômen, para depois sentir novamente o toque da
atmosfera úmida e quente.
Naquele mesmo dia, ela foi fecundada pelo macho
dominante.
A criatura concebida em tais circunstâncias nasceu nas
alturas, na cavidade de um tronco, à sombra da folhagem,
numa manhã de sol, durante uma doce aragem.
O instinto foi mestre primoroso, mas a mãe o aban-
donou durante o puerpério, morreu logo.
O neonato foi recebido no seio de uma velha fêmea,
ainda lactante .
Cresceu rapidamente, revelou-se pequeno temporão,
acima de tudo no uso dos membros superiores e dos de-
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le, como a mãe, tinha o hábito de descer sobre a
E planície e aproximar-se do baobá. À curta dis-
tância, parava para observá-lo com muito interesse. Atrás
das pupilas, agitavam-se imagens e sensos familiares, de uma
similaridade atávica.
Assim teve início no primogênito aquele fenômeno,
não raro, de reviver experiências dos consangüíneos que já
se foram, na verdade exercícios de uma das tantas virtudes
recebidas. É provável que, com o avançar da evolução, o
homem tome consciência de outras virtudes até hoje
insuspeitadas.
Enfim subiu ao primeiro ramo, o mais forte, e o ex-
plorou por todo o seu comprimento. Repetiu a explora-
ção muitas vezes.
No dia seguinte subiu aos ramos superiores até al-
cançar a cimeira. Aí, afugentou um urubu que o irritava
com sua negra presença. Olhou longe como costumava
fazer a mãe. Distinguiu a linha ondulada do horizonte.
Acima dela permanecia uma cor tênue de flores, que se
dissolvia na luz, embaixo destacava-se uma zona de ervas
altas, flexíveis, manchada aqui e acolá de terra descober-
ta. Gozava o calor insipiente do dia, mas deliciava-se com
o frescor da floresta de origem. Depois, levantou a cabe-
ça e viu uma nuvem, atrás dela radiava o sol. Olhou-o por
muito tempo.
— Ele começa a nos perceber.
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lguns pensadores, obstinados em explicar o sur-
A gimento e a existência do homem na criação,
admitem que a alma, soprada uma só vez na besta, é vincu-
lada perpetuamente ao gênero humano e se origina na pes-
soa no ato da concepção. A alma tem virtudes primordiais
de absorver e reter sensações do seu ambiente, com os quais
forma uma coletânea, que a experiência enriquece e trans-
forma em espírito ativo, sensível, culto e realizador. Mas é
necessária a memória, húmus prodigioso que ajuda na ger-
minação das idéias e pensamentos semeados pela mente.
Agora, Homo mirava com interesse o ambiente e guar-
dava os detalhes. A observação insistente o obrigava a lon-
gas paradas que lhe moderavam os impulsos naturais, e lhe
permitiam apreciar casos insuspeitos e surpreendentes.
Uma raiz que aflora distante da árvore, a passagem que se
forma, afastando ramos de plantas próximas.
Estes são alguns dos efeitos causados pela atividade
mental; com a vivência, multiplicaram-se, e foram motivo
de imitação pela prole futura.
Então, para pensar algo era necessária a imobilidade e
a observação, mas às vezes tal postura não produzia imedia-
38 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
19
omo, após ter afugentado os pretendentes, vol-
H tava triunfante para suas fêmeas, como o rei
Salomão e suas mil esposas e concubinas, a procriar seres
de inteligência superior para dominar espaços vazios e po-
vos inferiores.
Naqueles tempos, ainda valia o preceito de amar e pro-
lificar; hoje possível somente nos territórios desertos... ou
nos mundos vazios.
Passados os meses, nasceram os primeiros filhos de
Homo. Semelhantes ao pai, revelaram-se logo temporãos
e sensíveis. Formavam uma família cada vez mais numero-
sa, agora separada do bando de origem, pois as mães temi-
am as hostilidades dos machos. A família adensava-se em
volta do patriarca, que assumia uma postura de protetor e
uma expressão ameaçadora contra os estranhos.
Formara-se o primeiro clã de criatura, com espírito
gerado de matrizes animalescas.
40 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
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luz da manhã mostrou pequenas poças d’água, e
A entre as ervas, vargens repletas de sementes ver-
des e esféricas. A tropa alimentou-se imediatamente destas,
até fartar-se. Homo, durante a mastigação das tenras e do-
ces leguminosas e o deglutir da água fresca, julgou o aconte-
cimento esquisito. Apoiou a cabeça sobre o ombro esquer-
do e aguardou.
Defronte dos seus olhos, subiu o sol imponente, pas-
toso como magma incandescente, cujos contornos conti-
nham a agitação do núcleo, liberando raios de esplendor.
Quando emergiu por inteiro, as ervas e os sons pararam
por momentos, depois a vida voltou a fluir. Homo perce-
beu o dilatar das meninges pelo prazer de vivenciar um
evento novo e sagrado. Tomou coragem, alongou o braço
em direção ao astro e, com a mão, como se sentisse a
rotundidade, o afagou com carinho.
No reino do espírito, difundiu-se o regozijo.
— Nunca nos foi enviado semelhante sentimento com
um simples gesto. É gratificante, porque nos chega de uma
criatura que nos percebe, mas nos ignora.
O louvor, como exalação de aroma, vagueou até che-
gar ao entendimento de Splendor.
— Como um animal pode merecer louvor e receber
um destino seguramente importante?
A sua inteligência caiu nas profundezas obscuras, re-
pletas de pressentimentos indistintos.
42 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
21
omo, favorecido pela benevolência superior, ani-
H mado pela companhia da grande família, alcan-
çou enfim as verdes colinas vistas de longe. Algumas eram
soberbas, a maioria, doces corcovas, todas manchadas de
arbustos viçosos. Nos declives, escorriam águas claras e ta-
garelas, entre margens cobertas de ervas aromáticas e fres-
cas. O ar era calmo, a sombra prazerosa. Nas alturas, pai-
rava a tranqüilidade que acariciava a mente. Às vezes,
ouvia-se o zumbido das abelhas, o mugido da vaca que ama-
mentava o vitelo no prado.
Aqui, o predador se fez temeroso, não procurou víti-
mas. A morte guia o morituro como se fosse um velho ele-
fante, o conduz no recesso de sombras e o deita em paz
sobre a relva macia para expirar sem dor e lamento. Bem
se pode afirmar que esta é a terra onde escorre o leite e o
mel, jamais o sangue e o fel.
Os influxos do ambiente bucólico foram tão dominan-
tes que o clã aquietou-se pela admiração. Recuperado, co-
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omeçou o pôr-do-sol, as sombras alongaram-se,
C o sol cansado hesitou junto ao cume, depois dei-
tou-se atrás da montanha. Esta iluminou-se ainda mais de
tintas vermelhas, pareciam chegar de lá vozes alegres.
Homo as ouvia com os olhos arregalados, imóvel...
“A montanha é a morada do sol!”
No dia seguinte, reuniu os seus e os encaminhou à
montanha. Desceram o vale, caminharam muito. Chega-
dos à lagoa, a bordejaram por algum tempo, depois ataca-
ram a subida pelo lado oposto, aquele mesmo observado
ontem. Homo ficou contente: a caminhada revelou-se fácil
entre as sombras e o primeiro frescor da tarde. Com o tem-
po, o afogo enxugou a boca dos migrantes. Estes, chama-
dos pelo reflexo solar, se dirigiram desordenadamente a
uma poça d’água. Somente Homo, absorto no propósito,
continuou a subida acompanhado do batimento cardíaco,
amplificado no pavilhão dos ouvidos. Quando não pode
mais, parou e agachou-se. Ainda ofegava quando ouviu atrás
de si um deslizamento de terra e pedras. Voltou-se e viu
um dos seus seguidores; este, quando próximo, parou e
também agachou-se. Homo olhou o cume, seu companheiro
fez o mesmo. Homo respirou profundamente e foi pron-
tamente imitado; o líder contraiu os lábios num sorriso e
foi retribuído. A sede, o cansaço e as feridas nos pés não os
desanimaram, os dois intuíram que no alto encontrariam
conforto. Quando, das últimas luzes, chegaram a uma es-
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epois que o horizonte tornou-se obscuro, os dois
D procuraram um lugar para descansar. Logo o en-
contraram: uma cova rasa forrada de musgo. O seguidor
deitou-se nela, enquanto Homo procurava ainda entender
o significado de tudo que havia visto. Não conseguiu, mas
provou o prazer de aspirar o ar fresco, o odor das flores
46 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
24
homem não se manifestara ainda. A sua mente
O era criança infante, a consciência muda, pois dis-
punha de poucas idéias e situações contrastantes. A
animalidade hereditária e latente o guiava no sustentamento
cotidiano do corpo e na perpetuação da espécie. Com cer-
teza, a Mente usou tal expediente a fim de que o primeiro
ancestral e os seus descendentes não se extinguissem entre
as mandíbulas dos predadores ou nas dificuldades naturais.
E, de vez em quando, os favorecia na obscuridade da caver-
na. Quando solitários, eles afugentavam a impotência com
o imaginar de uma cena de sobrevivência, lançando mági-
cas azagaias, matando, a golpes de tacapes, os mastodontes
carnívoros. Oh espeluncas paleolíticas! De quantas cenas
de caça, projetadas pela imaginação humana fostes teatro!
Hoje, restam somente algumas pinturas rupestres e res-
quícios de fuligem de fogos antigos.
Não se pode explicar diversamente como o homem
podia enfrentar e vencer um mamute com muitas tonela-
das de peso, sobreviver em um ambiente glacial, despido
48 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
25
história se repete (os autores são semelhantes
A entre si).
O par que se destacou, deu origem a uma família, des-
ta família, um clã de poucos pais, de muitas proles. Na de-
sordem natural da primitiva sociedade era praticada a poli-
gamia, como hoje em algumas regiões do globo. O incesto,
no Éden, não era considerado culpa tão grave quanto o furto
da fruta de uma árvore proibida.
Assim aconteceu ao velho Lot, bêbado, induzido ao
conúbio pelas duas filhas solteiras e necessitadas; a Bórgia
Alexandre VI (aquele que nunca dorme sozinho), que libou
as primícias da filha Lucrécia. Hoje, em alguns casos, o in-
cesto fraterno é legalizado em poucos países nórdicos da
Europa, apesar das proibições da eugenia. Ao contrário, a
poliandria, que existe ainda na região do Himalaia, parece
originada pela falta de fêmeas; ou porque as mulheres des-
prezavam a maternidade para satisfazer seu calor natural,
assim, promíscuo, como nos tempos modernos, nas ruas
das cidades.
Provavelmente vigorava nos primitivos clãs o jus
primae noctis, com o escopo de multiplicar proles de che-
fes virtuosos, direito este aceito posteriormente por mi-
nistros religiosos inescrupulosos e oportunistas. Vicissitu-
des da moral “plástica” que se adapta aos novos tempos!
Então, nada de novo sob o sol, porque tudo procede
naturalmente.
52 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
26
ais adiante, Homo constatou que após a
M exaustão das múltiplas cópulas, durante o re-
laxamento dos nervos, era dominado por uma inércia re-
flexiva, na qual os sentidos se calavam de modo que a ima-
ginação ondeava longe de sua vontade.
Mas isto não acontecia com todas as fêmeas que aca-
bava de penetrar, afastando-as depois de si, o fato se repe-
tia com Ea, a primeira fêmea do segundo ciclo reprodutivo.
Chamava-a Ea, voz onomatopéica, pois assim a pedia per-
to de si. Ela se rendia carinhosamente e durante a cópula
emitia sussurros sob o bufar rítmico do seu único macho.
Após o desafogo, na imobilidade, fixava intensamente
Homo; agradecia-lhe lambendo seu rosto e lábios. O ma-
cho deixava-a lambê-lo. No abandono, sentia-se embalado
entre imagens vaporosas que queria para si, por isso fun-
gava Ea, autora das visões. A fêmea Ea tornara-se a mulher
de Homo.
Este constatara que, após o sono reparador, o toque
frio da água viva e do ar matinal, o sangue corria com vigor,
a atividade mental se revelava vivaz e precisa, fácil a imagi-
nação e a união de idéias e pensamentos. Começava a cons-
truir mentalmente. Porém, a atividade mental minguava
ao entardecer, quando surgiam as dúvidas e os temores e,
no sono, os pesadelos. Para vencer o medo, precisava do
contato carnal da companheira, suscitando a tépida concu-
piscência.
54 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
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omo começou a observar: o sol não tem corpo
H e nem pernas, é redondo e possui braços e mãos
tantos quantos são os raios que iluminam o todo que está
abaixo dele; na luz cada coisa se distingue. Quando domina
no céu, ninguém lhe é par; quando se vai, as trevas se fa-
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 55
28
or que a Mente dá atenção a um animal, sopra-
P lhe o espírito, o coroa com virtudes, concede-
lhe liberdade ilimitada e inviolável, quando é a senhoria
dos lugares onde a ventura o conduz e ainda chama Homo
de si. Qual é o escopo?... Se nós não conseguimos satisfa-
zer o desejo da Mente, esta criatura conseguirá levantar-
lhe emotividade se nada sabe do Criador?
Na mente de Splendor dilatou-se um grande silêncio.
Enfim a inteligência ergueu-se e argumentou.
— Para esta criatura híbrida, a percepção incerta é o
único meio de conhecimento da realidade superior. Para
comunicá-la aos seus semelhantes, tem que traduzi-la em
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29
sando o instinto enfraquecido, Homo seguia as
U mudanças climáticas: quando notava um formi-
gamento nas narinas enxutas, temia a estiagem prolonga-
da; uma frieza nos pulsos e tornozelos previa o frio notur-
no iminente, umidade excessiva nos olhos, chegando a
escorrer lágrimas, esperava tempo chuvoso. Agora as rea-
ções condicionadas eram conectadas à observação mais que
atenta: procurava de onde chegavam as neblinas, farejava o
vento, degustando-o, examinava o horizonte e dizia:
— Tudo vem de cima, a terra reage.
Quando chegou o tempo da seca, céu desbotado, lon-
gos períodos de luminosidade, manteve-se calmo, mas vi-
giava uma faixa opaca que contornava as longínquas ondu-
lações.
Uma tarde, escureceu antes do tempo. No céu, avança-
ram nimbos ameaçadores, a luz solar esmorecera. Homo,
então, reuniu os seus na caverna do pequeno promontório
junto à selva. Mas ele, juntamente com sua companheira,
pouco permaneceu na entrada, ambos estendidos na relva
ficaram olhando. Entre as brechas da ramagem, observava as
repentinas fissuras luminosas produzidas pelos relâmpagos,
e esperava encolhido o estouro do trovão. Entre os clarões
da tempestade, notou, entre tantos, dois velhos ramos que
empinavam dois pequeninos, já secos, os quais se esfregavam
entre si, ocasionado por um sopro de vento intermitente,
efeito do balanço de uma ramagem próxima. Caídas as cor-
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sol alto e o montículo de pedras foram esque-
O cidos.
Quando Homo lembrou deles, provou ansiedade
culposa. A mulher que segurava com os braços o abdômen
quase maduro e tudo sabia de seu homem, o exortou:
60 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
31
homem começa a desgarrar do comportamen-
O to natural. Conta o escriba profeta o primeiro
fratricídio. Como o autor chegou ao conhecimento do fato
não é dado saber, porém, vale a suposição de que “Um ve-
lho contou o que ouviu de um ancestral...”, ou seja, sem
nenhum indício arqueológico, pura mitologia. Mas, se a
inspiração superior me permite, o fato pode ser assim con-
tado:
O Onipotente aprecia e prefere o cheiro das gordas
carnes de uma ovelha imolada pelo pastor à fragrância de
frutas oferecidas com extrema rudeza pelo agricultor sim-
plório. Este, por inveja, mata o irmão pastor. A autoridade
condena o assassino ao ostracismo, mas não lhe aplica a lei
do Talião. À parte o prazer olfativo, sempre discutível, por
que o Onipotente “olha” com insistência a oferenda do pas-
tor? Quer provocar inveja e briga familiar?
O escriba, talvez por limitações intelectuais, não intui
que o pastor foi provavelmente o primeiro homem que,
aplicando a inteligência, inventou a oferenda sobre o bra-
seiro para oferecer não uma simples ovelha abatida, mas o
espiral sutil de fumaça; a essência ascendente, o ato com
algo de pessoal, de inusitado. É assim que se pode explicar
o “olhar” ostensivo, a ignorância do escriba, desprovido de
intuição e meios descritivos. Se assim não fosse, o leitor
moderno seria induzido a duvidar da imutabilidade supe-
rior: ontem, autoridade castigadora implacável, hoje, pai
64 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
32
o início do desgarramento, os componentes do
N clã eram caçadores, pescadores, colhedores de
frutas pendentes. Quando as reservas de sustentamento
da estância se exauriam, eles procuravam outros lugares
em que havia sementes, frutas, caça, água e resguardo das
intempéries e dos perigos.
Eles eram nômades.
Durante as andanças, nas mudanças de temperatura,
quota, ambiente, o aspecto humano suportava impercep-
tíveis mudanças que, repetindo-se nas sucessivas gerações,
tornavam-se genéticas. Pode-se dizer, com superficialida-
de, que o homem é um produto do ambiente, mas pode-se
insinuar que este seja o procedimento escolhido pelo Cria-
dor para modelar continuamente o seu barro vivente.
O clã, quando numeroso, por motivos circunstanciais,
dividia-se em dois ou mais grupos, que migravam para lu-
gares diversos e longínquos. Assim, cada grupo adquiria
novas mutações, diferentes daquelas dos consangüíneos, já
perdidos no tempo e no espaço. Mas que, às vezes, casual-
mente, reuniam-se após séculos. O cruzamento de indiví-
duos cria a diversidade tão desejada pelo Criador. A diver-
sidade no programa criativo é indispensável para originar
novos indivíduos com destacadas qualidades físicas e acen-
tuar as virtudes intelectuais oriundas dos ancestrais: assim
nascem novos pensamentos, concepções de vida. Além dis-
so, multiplica as combinações genéticas que podem pro-
66 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
33
ob os efeitos dos novos estímulos interiores, o
S homem melhorava o seu aspecto somático. A cada
geração, a fronte se fazia imperceptivelmente espaçosa,
polida, glabra, ereta, porque raciocinava com persistência
ao invés de fantasiar casualmente. Porque a razão, para
trabalhar, precisa de matéria para novas unidades de me-
mória, interligações múltiplas; é assim que se guarda a ex-
periência, se centuplicam os pensamentos. Também os
olhos se transformavam em grandes claros sob o influxo
comovente da espiritualidade, ou pequenos escuros pela
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 67
34
assim que a percepção capta a profecia. Esta,
É para ser verdadeiramente útil ao vulgo, deveria
ser manifestada em termos precisos e convencionais, no
sopro da consciência moralmente correta. Todos os com-
ponentes deveriam ser dosados com precisão farmacêuti-
ca, em ambiente asséptico; mas, no mundo da percepção,
domina o princípio da incerteza, o profeta utiliza do pouco
de que dispõe. Por isso é temerário sagrar o produto da
percepção e impô-lo a outras mentes mediante sugestão
obsessiva, oratória ardorosa, chantagem emotiva. Estes
procedimentos configuram violação de liberdade, de cons-
ciência, lavagem cerebral. Nenhum profeta manifestou
contrição por cometer tais pecados sutis. Existe maior con-
fusão no conhecimento do sobrenatural do que nas fusões
das galáxias.
35
omo sempre acontece, a combinação genética
C gera personalidades e inteligências singulares,
até semelhantes, jamais iguais como duas gotas d’água. É
lei: a cada homem a sua personalidade, a própria inteligên-
cia, a única visão da realidade. Também no caso dos gênios
univitelinos: a igualdade acaba, ao comparar as inclinações
divergentes. Provavelmente o astrólogo confirme.
Desta diversidade, a natureza consegue estímulo
evolutivo.
36
o ambiente dos agrupamentos humanos, tinha-
N se estabelecido o escambo de coisas e ajudas,
presentes ou futuras, com gestos convencionados e pala-
vras formais. Mas as intenções eram esquecidas ou modifi-
cadas segundo a conveniência, especialmente quando esta-
beleciam obrigações. Era inevitável: as modificações e os
esquecimentos causavam litígio entre as tribos.
Assim como permaneciam as imagens daqueles animais,
já mortos e devorados, o primitivo teve a idéia original de
fixar sobre a pedra e outras superfícies portáteis o estabele-
cido com sinais convencionais. É a mesma idéia que mais tar-
de os latinos condensarão: verba volant, scripta manent.
O homem conseguiu expressar com sinais a abstração
pensada. O autor pictográfico obrigou-se, com insistên-
cia, à cópia, à similitude, à síntese dos elementos naturais e
dos ideais; o leitor é obrigado à interpretação dos quadros
pictográficos, a traduzi-los em palavras convencionais e pro-
vavelmente em estados da alma. O grande valor da picto-
grafia, do hieróglifo, da escrita, enfim, é a conservação, a
propagação do conhecimento universal, que pode sempre
ser aperfeiçoado, aumentado pelos vindouros. Onde não
existe a obrigação de documentar, a história se dissolve, a
consciência se perde, a espiral evolutiva do espírito não
existe.
É impossível confiar as lembranças aos aedos de boa
memória, que a morte emudece, e a vida não substitui.
72 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
37
creditando-se que a inspiração seja uma atmos-
A fera carregada de fermentos intelectuais, que
chega a todas as mentes, deduz-se que, ao homem, sem
distinção, sejam lícitas manifestações sobrenaturais.
Típico caso do profeta iletrado, que recebidas re-
velações superiores, usando a sua modesta cultura, as par-
ticipa ao escriba, o qual, interpretando-as segundo o seu
entendimento e sabedoria, as transmite à posteridade. As-
sim, a verdade revelada, como se fosse vinho, recebe no
mínimo duas baldeações: da autoridade superior ao odre
profético; deste ao odre do escriba, para depois ser distri-
buído nos copos dos crentes. É de se desejar que os recipi-
entes sejam limpos, que a bebida não perca o buquê, nem
seja derramada no piso.
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raciocínio espontâneo e contínuo não é uma
O manifestação coletiva. Quando há, entre tan-
tos, um homem com tal inclinação, ele se torna chefe do
grupo, condutor, autoridade inquestionável e se a nature-
za dos subalternos o permite, rei, tirano, semideus. As suas
palavras se transformam em regras, leis, dogmas que os
preguiçosos mentais seguem religiosamente. Mas, se sur-
ge um segundo raciocinador, é inevitável o debate, a con-
frontação de pensamento, a briga, a revolta.
A Mente, sensível observadora, nesta conjuntura,
concluiu que se tinham cumprido os tempos prelimina-
res e que podia dar andamento à fase sucessiva. Então,
decidiu difundir indícios das suas personalidades e deter-
minações.
Em harmonia com a virtude eqüitativa, que deseja to-
das as criaturas conscientes e pensantes, iguais perante a lei
do Criador, difundiu com maior intensidade sobre o globo
terrestre a inspiração superior. Isto porque previa a inspi-
ração maligna das autoridades religiosas: a presunção da pre-
ferência divina para si e os seus, causadora das bárbaras car-
nificinas.
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ão existem documentos e sinais históricos, mas
N provavelmente por volta do século XIX a.C. a
inspiração superior foi recebida também pelo caldeu Abraão,
esposo da linda e estéril Sarai — aliás Sara –, filho do oleiro
Tare. É de se supor que Abraão provasse aversão pela terra
natal e um desejo nato de emigrar, ver novos horizontes. Tudo
seria conservado no profundo do ser, como a mulher que
guarda os apetrechos de costura que lhe serão úteis. Assim,
não surpreende quando uma voz lhe pede a saída da Caldéia,
juntamente com a mulher, pai e outros familiares para se es-
tabelecer na terra estrangeira de Canaan. Desta voz não se
tem nenhuma descrição, mas para ser sobrenatural deveria
ter uma característica única, talvez fosse afônica, completa-
mente mental, servindo-se naturalmente de termos idiomá-
ticos caldeus, compreensível ao entendimento do inspirado.
A pobreza descritiva é notável se confrontada com a riqueza
de detalhes das modernas aparições sobrenaturais. Sem dú-
vida, de lá para cá, a mente humana enriqueceu muitíssimo.
Abraão obedece. Durante a permanência em Harã, o
pai Tare morre. A região indicada, onde deveria surgir uma
numerosa nação, é improdutiva e nos períodos de carestia,
não alimentava uma pequena família. Se for esta a terra onde
escorre o leite e o mel, sem dúvida há mal entendido. Nos
emigrantes começa o desânimo. É necessário emigrar no-
vamente, agora para o fértil Egito, onde abundam os ali-
mentos.
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pós a doação, o faraó descobre o engano e o vín-
A culo matrimonial entre Sara e o “irmão”, com-
preendendo o motivo do castigo tardio. Subitamente libe-
ra Sara sem exigir a devolução dos presentes e despacha os
imigrantes para fora do Egito.
Abraão, rico, e a sua gente, voltam à terra de Canaan.
É provável que o marido, apesar de tudo, provasse ressen-
timento contra a mulher, a qual, para demovê-lo, teria dito
ao amado:
— Embaixo do faraó fiz de tudo, mas sempre me ne-
guei ao prazer pensando em ti. — Assim seria restabelecida
a paz conjugal.
78 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
41
braão tinha uma sagrada missão a cumprir: esta-
A belecer e difundir no mundo o monoteísmo. O
prêmio para si e seu povo lhe seria concedido posterior-
mente. Ao contrário, o patriarca procura tirar vantagem
dogmatizando direitos e privilégios, para transmiti-los aos
seus descendentes. De fato, próximo à morte, impõe ao
servo, também caldeu, colocar a mão embaixo da sua coxa
e lhe faz jurar que o filho Isaac não casaria com uma mulher
do lugar, uma cananéia, mas sim de sua cepa, uma caldéia.
Isaac desposa a prima Rebeca. A pureza do sangue tribal é
preservada, outro precedente para justificar uma seleção
racial... E a Mente que tanto ama a diversidade!
Há mais: adiante no tempo, quando Abraão já é faleci-
do, há séculos o seu povo é escravo no Egito (não há regis-
tro dos fatos e dos motivos), sofre opressão, padecimento,
mortes prematuras durante o trabalho extenuante. Por
este motivo, e para libertar os infelizes, Jeová castiga o faraó
e sua gente com as dez pragas. Se o sagrado respeito à di-
vindade permite, usando da razão concedida pela seme-
80 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
42
or volta do século XIV a.C. a inspiração superior
P solicita a mente de um egípcio, Amenoteb IV, fi-
lho do faraó Amenoteb III e esposo da rainha Tiy, a interes-
sar-se intensamente pela teologia desde a adolescência. É
pessoa de grande cultura, de rara inteligência, esposo
monógamo, pai amoroso de duas filhas, íntegro, sóbrio de
82 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
43
44
lgumas mentes, entre os milhões de pensado
A res, observarão porque o monoteísmo vingou
e se difundiu entre o povo primitivo de Abraão e não entre
os Nilóticos, também povo religioso, divulgador entre as
gentes da vida além-morte, criador das artes para retratar
e adornar os seus deuses e faraós.
Neste, e em outros argumentos, é sábio não afirmar,
mas é permitido opinar.
No exame deste caso, percebe-se um indistinto fluxo
da vontade superior, mitigado pelo respeito da livre esco-
lha humana, mas não se pode descartar um fluxo contrário.
Todos os futuros ministros das novas religiões têm em
si um ideal congênito. Tal pode ser julgado um produto
genético procedente de inclinações mentais atávicas. Um
simples fermento sobrenatural o ativa, o enriquece com
pensamentos e experiências. É bem provável que “Deus
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ó o Nada é inútil, o restante pode ser aproveitado
S a tempo oportuno. Os judeus perspicazes, sem-
pre errantes por terras estrangeiras, enfim chegaram aí,
onde se falava do monoteísmo em termos precisos, ouvi-
ram, melhoraram a própria religião, esquecendo com cura
o “El Sadday” e os “Elohims”, além de outras bobagens que
hoje os seguidores julgam sagradas. A fé domina, porém
deve ser corrigida pela razão.
Nos tempos hodiernos, o procedimento deveria ser
igual ou melhor: sem obstinação dogmática, orgulho dos sa-
pientes conservadores e reconhecendo a liberdade de cons-
ciência e de expressão dos pensadores emudecidos pela cen-
sura e confinados ao Índex. No passado, quantos deles foram
condenados ao ostracismo, ao rogo, à perdição perpétua!
Por isso, não surpreende que hoje o sumo Sacerdote
da cidadela convide os pensadores a conciliar a fé com a
razão, em uma carta que precisou de nada menos que doze
anos para ser redigida. Del poi son pien le fosse! Hoje, sabe-
se dos erros humanos cometidos no passado. Mas no futu-
ro, em quantas alucinações mentais cairão os filhos de Eva
e qual o comportamento dos julgadores perante as dúvi-
das? Parece ótima a fórmula:
No debate, no ensejo, na pesquisa, mantenho a fé em
que um dia a razão tudo explicará.
Assim, anda pelo mundo a inspiração superior, cujos
efeitos são sempre surpreendentes.
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Karma sobrevive à morte, acompanha as pes-
O soas nas sucessivas reencarnações e é purgado
com a vida virtuosa; assim a pessoa merece entrar no
nirvana.
“Este seria a integração do ser individual ao ser uni-
versal ou ao seio da divindade suprema1”. “Melhor no bem-
1. Enciclopédia Larousse Cultural, p. 4218.
88 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
47
inspiração manifestou entre os helenos uma sin-
A gularidade tão surpreendente quanto útil: es-
tes, navegantes de cabotagem de longo curso, mercantes
ávidos e hábeis, dispunham sempre o ânimo ao útil. Pode-
se supor que o fermento inspirativo os induziu a um sim-
ples raciocínio:
— Se a razão nos ajuda nos escambos e na pirataria,
por que não a usar para conhecer a realidade que nos cir-
cunda?
No imaginário código dos conhecimentos humanos, o
uso da razão é a primeira lei.
A inspiração causa, às vezes, efeitos inusitados. Alcan-
ça mentes vácuas, assim como um fulgor repentino pene-
tra o templo vazio mas ainda adornado com vestígios da
velha tradição. É o suficiente: nasce uma nova religião, a
religião é uma imitação à dos vizinhos. O novo profeta a
adapta à própria natureza do seu povo e satisfaz o orgulho
da sua gente. Parece proclamar:
— É a nós que a Mente escolheu como seus predile-
tos! — É o triunfo do pobre intelecto empurrado pelo
destino geral que o escriba enriquece e adorna de frases às
já pronunciadas.
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 91
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e a imaginação humana quisesse quantificar o fe-
S nômeno inspirativo — admitindo que fosse pos-
sível –, diria: dois milhões de metros cúbicos de atmosfera
carregada de fermentos liberada pela Mente foram apro-
veitados pelos intelectos terrenos, centenas de decímetros
cúbicos para estimular o conhecimento geral, pouquíssimos
milímetros para inventar e codificar religiões grosseiras e
irracionais.
49
– ssim caminha a humanidade, desordenadamen-
A te, em direção à meta pré-fixada. A casualida-
de biológica gera mentes eleitas, que despertam o interes-
se dos esquecidos e dos ingênuos. Pois não é com essa edu-
cação mental que o homem pode entrar nos espaços e
vivificar os mundos. Se o fizer, leva consigo os germes da
destruição e da morte, e o Cosmo se transformará em um
imane campo de batalha.
— As religiões são imperfeitas. Nelas, são sedimentadas
tradições populares, filosofias de duvidosa veracidade, in-
teresses inomináveis, antigas vaidades, além dos sinais da
nossa inspiração. Une as religiões a fé, que não é igual para
todos, varia segundo a natureza dos indivíduos, quando
deveria ser a razão sadia e comprovada. Onde a razão não
chega, santa liberdade para todas as mentes, a fim de que
alguém, com precisa dialética, demonstre a verdade. Ao
contrário, as mentes dissidentes levantam contra si, moti-
vando a inquisição e a fatwa. A aproximação de duas religi-
ões desencadeia cruzadas e guerras santas; três ou mais reli-
giões originam um sincretismo confuso e, às vezes, estúpido,
ou a superstição infantil. Quantas religiões existem é dificí-
limo dizer: a cada dogma, ordem incorreta ou vaidade dos
chefes, fragmentam-se, justificando seitas, congregações
cismáticas, duplicidade de mando, variações teológicas, sus-
citando santos, santões, xamãs, mártires, beatos, teólogos
doutores, livros sagrados, inspirações transcendentais, mi-
M OT I VO , P R I N C Í P I O , D E S T I N O 95
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ivia em uma região, entre o mar e a montanha,
V um homem de nome Job. Ele era equilibrado,
de muita experiência e de grande inteligência, gozava óti-
96 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
51
epois, os ladrões, de passagem pela redonde-
D za, praticaram abigeato contra o seu gado; Job
não se perturbou. Mais tarde, nômades lhe invadiram ca-
sas e terrenos. Job tolerou. A seguir, a casualidade malig-
na levantou-se contra os filhos, que se afastaram do pai.
Enfim, a sua saúde começou a declinar. Entre úlceras e
entumecimentos, a doença se revelou ser lupus: sentia-
se fraco, emagrecia rapidamente e assumia um aspecto de-
formado e repugnante. Os amigos e vizinhos fugiam dele
por causa do seu estado. Job, humilhado, sem força e auto
estima, refugiou-se na Geenna, uma vala fora da cidade,
onde o fogo perene queima a imundície. Aí, cobriu o cor-
po de cinza e, chorando como criança abandonada, lar-
gou-se sobre o lixo. Invocou Deus, pediu o fim da prova,
e concluiu:
— Qualquer que seja a Tua decisão, venha rapidamen-
te, porque a carne é podre, e o espírito vacila.
Mas Deus não lhe respondeu.
98 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
52
noite, a fraqueza o venceu: Job afundou nos
À abismos do sono. Sonhou muitíssimo. Sendo que
ele conservava na consciência e na memória, palavras, sen-
timentos puros e uma vida justa, com os quais a imaginação
inspirada podia compor qualquer seqüência. Todos os seus
sonhos eram lógicos, permeados de visões doces e amoro-
sas. Das neblinas do passado, saíram lembranças remotas
de quando menino, no pasto com as ovelhas. Supino sobre
a grama, com as mãos cruzadas embaixo da nuca, observa-
va uma nuvem branca e brilhante como a neve iluminada
pelo sol. Ela se inflava, se alongava, mudando de forma con-
tinuamente. A Job era fácil ver imagens: primeiro, uma pal-
meira descabelada, mais tarde, um boi com corcova e lon-
gas babas. Provou aquele sentimento risonho, de quando o
pai, serenamente, lhe despenteava os cabelos com a mão
leve. Da nuvem se destacaram fragmentos, que se disper-
saram em todas as direções, como pombas temerosas; atrás,
era o sol que radiava passante. Enfim, a nuvem adquiriu o
aspecto do progenitor, quando se apoiava em ânforas de
vinho e em rolos de lã tecida, com olhar compreensivo,
barba fluente, que se movia pelo respiro profundo, o ar-
mazém obscuro parecia iluminado em volta dele.
Mas não era ele.
— Filho herói, que seja restabelecido o curso natural
dos eventos. Tudo o que tu sofreste é uma dolorosa magia
do impotente invejoso. No meio dos sofrimentos, amaldi-
100 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE
53
— ais uma vez somos limitados pelos nossos
M princípios. Portanto:
participar sem ser presente;
propor sem impor;
convencer sem vencer;
ser exemplar, sem ser enigmático.
— Temos definido o conceito.
— As idéias seguintes devem conciliar-lhe termos e atos.
Como se fossem serpentinhos num emaranhado, se
liberaram algumas cabeças, que tendiam em todas as dire-
ções; depois se uniram, entrelaçando-se ordenadamente.
— Se nós quiséssemos, mas não queremos infringir os
precedentes propósitos, uma pessoa como nós poderia tra-
zer aos homens a palavra e o exemplo.
— Para ser como eu, pessoa distinta, ele também co-
meteria violação dos nossos propósitos.
— ... Verdadeiramente... Mas ele, nascido e arraiga-
do na carne, entre os homens, desconhecendo a sua natu-
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Pari, recebidas as virtudes e a essência, as se-
O meou com cuidadoso amor sobre a escolhida,
numa aldeia do país das religiões.
104 BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE