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HISTÓRIA, DIREITO E RAZÃO

Karine Salgado∗

RESUMO
O homem não se conforma com a sua pura e simples inserção no mundo natural e, através
da sua razão, se desgarra das determinações naturais, criando uma nova realidade - o
mundo da cultura. O homem atribui sentido a tudo o que toca, mas não se contenta em
estabelecer como devem ser as coisas ao seu redor. Assim, torna-se objeto de si mesmo e se
transforma, ao negar sua essência puramente natural, naquilo que julga que deve ser através
da educação.
O Direito é fruto da obra humana e, portanto, construído gradualmente através da
objetivação de determinados valores em um dado momento histórico. A historicidade do
Direito, entretanto, nem sempre esteve clara. Esta tomada de consciência está diretamente
relacionada com o historicismo, movimento que nasce no contexto do romantismo e que
questiona o desprezo pelo material histórico e a possibilidade de dedução racional do
Direito defendida pelo Iluminismo. A história foi, tradicionalmente, entendida como algo
puramente contingente, o que inviabilizava qualquer análise racional. Será através do
historicismo, especificamente em Hegel, que se demonstrará a possibilidade de conciliação
de razão e história. Aplicar a razão à história, este foi o desafio hegeliano que encontra
superação quando Hegel assume uma premissa em seu pensamento: a contradição não deve
ser eliminada da história para que esta se concilie com a razão. Ao contrário, a contradição
integra a história, é seu motor. Aqui, eis aberto o caminho para uma nova perspectiva de
análise histórica.
No que se refere ao Direito, a sua compreensão como objeto cultural, enfim, histórico, se
torna possível a partir desse momento. Não se trata, todavia, da assunção da idéia segundo a
qual o Direito é construído aleatoriamente, como resultado de circunstâncias puramente
contingenciais. A conciliação história-razão torna possível a tomada do Direito como


Mestra em Direito pela UFMG, Doutoranda em Direito pela UFMG, Professora da Universidade FUMEC.
karinesalgado@ig.com.br
expressão de razão, como um revelar-se gradual da razão e, conseqüentemente, um realizar-
se gradual da justiça na história.
A constituição surge como resultado desta concepção, como forma racional de limitação do
poder político. A idéia de constituição não poderia surgir anteriormente. Enquanto a criação
do Direito foi compreendida somente sob a perspectiva da necessidade histórica que
imediatamente o produzia, ou ainda, enquanto o direito foi, assim como a história, tomado
como algo puramente contingente, não foi possível a concepção de uma norma que,
produzida racionalmente, fosse capaz de estruturar o Direito e o poder de forma racional.
Enfim, não foi possível a concepção de um projeto cuja efetivação resultaria na figura do
Estado de Direito.
A história do Estado de Direito, através de suas formas históricas, demonstra a constante
evolução do Direito e sua maior racionalização por meio do reconhecimento dos direitos
fundamentais. O Estado democrático se revela resultado deste processo histórico, a mais
alta expressão de racionalidade em virtude do compromisso de conciliação definitiva da
vontade política com os fins éticos, através não só da declaração ampla e irrestrita, mas
também do compromisso de realização dos direitos fundamentais.

PALAVRAS-CHAVE: RACIONALIDADE – HISTORICIDADE – ESTADO DE


DIREITO

ABSTRACT
Man does not conform to his pure and simple insertion into the natural world and through
reason breaks away from natural determinations, creating a new reality- the world of
culture. Man attributes meaning to all he touches. However, he is not satisfied in
establishing how things surrounding him should be. Thusly, he becomes an object of
himself and transforms himself, by denying his purely natural essence, into what he judges
he ought to be through education.
Law is a fruit of human endeavor and is therefore gradually constructed by the turning into
objects of determined values at a given historical moment. Yet Law’s historicity has not
always been clear. This awakening of consciousness is directly linked to historicism, a
movement born in the context of romanticism, which questions the scorn for historical
material and the possibility of Law’s rational deduction defended by Illuminism. History
was traditionally understood as something purely contingent, which made unfeasible any
rational analysis. It would be through historicism, specifically in Hegel, that the possibility
of conciliation between Reason and History would be demonstrated. Applying reason to
history, this was the Hegelian challenge, which was overcome when Hegel assumes a
premise in his thinking: Contradiction must no be eliminated from history so that it may be
conciliated with reason. On the contrary, contradiction is integral in history, it is its engine.
Here, a way to a new perspective of historical analysis is opened.
Regarding Law, its understanding as a cultural, and at long last, a historical object is made
possible from that moment on. It is not yet the assumption of the idea according to which
Law is randomly constructed as a result of purely contingent circumstances. The history-
reason conciliation makes possible taking Law as an expression of reason, as a gradual
revelation of reason and, consequently, as a gradual realization of justice in history.
The constitution arises as a result of this concept, as a rational limitation of political power.
The idea of constitution could not have arisen before. While the creation of Law was
understood solely under the perspective of a historical need which immediately produced it,
or more so while Law was, as was history, taken as something purely contingent, the
concept of a rationally produced norm, which would be able to structure Law and power in
a rational way, was not possible. In brief, the concept of a project whose effectuation would
result in a State of Law was not possible.
The history of the State of Law, through its historical forms, demonstrates the constant
evolution of Law and its greater rationalization via recognition of fundamental rights. The
democratic State is revealed as a result of this historical process. It is the highest expression
of rationality due to the commitment for the definite conciliation of political willpower with
ethical ends through the not only wide and unrestricted declaration of fundamental rights,
but also the commitment to realize them.

KEYWORDS: RATIONALITY – HISTORICITY – STATE OF LAW


INTRODUÇÃO

Eis, em Lima Vaz, o grande paradoxo com o qual o homem se depara no seu
esforço de construir um conhecimento totalizante: a filosofia é obra da cultura, é forma de
saber racional que traz em si a pretensão de compreender e explicar o todo da realidade,
dentro do qual está a própria cultura de onde procede.1

Todo conhecimento, pelo simples fato de ser produto humano, é cultura. As


ciências, nascedouros do conhecimento, não têm a pretensão de totalidade, típica da
filosofia, se concentrando na investigação de um objeto determinado. Em virtude do recorte
que as ciências fazem na realidade ao definir seu objeto de estudo, elas podem ser divididas
em ciências histórico-culturais, ou ciências do espírito, e ciências naturais. Assim, em que
pese serem ambas cultura humana, somente a primeira tem como objeto a própria cultura.
Isso se deve a uma clássica cisão operada na realidade entre a natureza e a cultura. O
mundo da cultura é o mundo construído pelo homem. Este não se contenta com as
determinações naturais que transformam tudo no que deve ser e estabelece, através do seu
julgamento, um novo devir para as coisas.2 Reale já observava que “a cultura não é senão
concretização ou atualização da liberdade, do poder que o homem tem de reagir aos
estímulos naturais de maneira diversa do que ocorre com os outros animais.”3

Salgado esclarece que o homem, como no mito de Midas, atribui sentido a tudo
o que toca, constituindo a sua obra, a cultura, e observa que ele não se contenta em atribuir
sentido ao que lhe rodeia. No mundo da cultura, o homem nega a sua realidade natural e
julga o que ele deve ser, transformando-se pela educação. O homem é obra de si mesmo.4

O pensar humano pressupõe três etapas, a saber, o ser, a essência e o conceito.


Entretanto, a processualidade do pensar varia de acordo com a natureza do objeto, cultural
ou natural. Assim se diferencia o explicar, típico das ciências naturais, do compreender,
1
Lima Vaz, Henrique Cláudio. 1997, p. 83
2
Notas de aula do Curso de Hermenêutica Jurídica oferecido pelo Professor Dr. Joaquim Carlos Salgado no
Programa de Pós-Graduação da FDUFMG no primeiro semestre de 2002.
3
Reale, Miguel. 2002, p. 244
4
Notas de aula do Curso de Hermenêutica Jurídica oferecido pelo Professor Dr. Joaquim Carlos Salgado no
Programa de Pós-Graduação da FDUFMG no primeiro semestre de 2002.
específico das ciências culturais. Dilthey deixa a questão esclarecida ao afirmar que a
natureza se explica, a cultura se compreende.

As ciências naturais procuram explicar o seu objeto, isto é, buscar a causa, os


nexos e as relações de interdependência pertinentes ao fenômeno observado, objetivando o
estabelecimento de leis que explicitam estas relações de forma definitiva, posto que tais
relações expressam necessidade, vale dizer, ocorrem necessariamente de uma tal forma. A
explicação pressupõe uma total separação entre sujeito e objeto. Trata-se de um processo
analítico que busca a captação da essência da realidade que será expressa no conceito.

As ciências culturais, que têm, portanto, como objeto a obra humana, visam a
sua compreensão. Esta consiste na captação do sentido da totalidade da coisa, não havendo
mais separação entre o sujeito e o objeto. A compreensão não é uma visão das coisas sob a
perspectiva de seus nexos causais, mas sim, uma análise do objeto em sua integridade,
buscando seu sentido, sua finalidade.5

O Direito, enquanto fruto da obra humana, pertence ao mundo da cultura e,


assim, é objeto das ciências culturais. Diferentemente das ciências naturais, regidas pelo
princípio da causalidade, o fenômeno jurídico não conta com a exatidão decorrente da
causalidade e, por isso, exige procedimentos diversos na sua análise.

Kant operou uma cisão na realidade entre o mundo do ser, passível de


conhecimento apenas enquanto fenômeno através dos instrumentos dos quais se vale a
razão teórica, e o mundo do dever ser, onde a razão prática, auto-suficiente, determina o
agir humano, isto é, o mundo da liberdade.

Kelsen assume plenamente a cisão entre a esfera do ser e do dever ser, cisão
absolutizada na afirmação de que do ser não pode derivar o dever ser e vice-versa. Ordem
jurídica e ordem natural dizem, portanto, respeito a esferas diversas e, conseqüentemente,
as leis que delas emanam têm natureza diversa. A prescrição expressa nas normas jurídicas
– e não somente uma descrição – evidencia a sua natureza de construção humana,
transformadora da realidade natural e formadora do mundo da cultura.

5
Reale, Miguel. 2002, p. 251
DESENVOLVIMENTO

O mundo da cultura e, portanto, do Direito, é um mundo construído


gradualmente, marcado pela alteração de valores preponderantes que são objetivados num
dado momento histórico. Para Recasens Siches, é mediante a cultura que se dá a efetivação
de valores até então tidos como ideais. Estes valores, no entanto, não são constantes. Toda
obra cultural tem uma significação circunstancial, isto é, nasceu de uma situação histórica
para atender às necessidades humanas daquele momento.6

Também o Direito adota e realiza valores considerados preponderantes num


dado contexto histórico. Não só a assunção de valores caracteriza o objeto cultural. A
ordem jurídica é construída gradualmente e sua evolução depende da comunicação das
conquistas de cada geração. Esta transferência é fator típico do mundo da cultura. Há uma
intrínseca relação, segundo Bodenheimer, entre a evolução civilizacional e a evolução do
direito. O ponto alto do direito romano, por exemplo, corresponde ao ponto alto da cultura
romana, a era de Augusto. O direito é importante instrumento de civilização.7

A evolução e a constante absorção de valores ressaltam a historicidade do


direito enquanto fruto da cultura humana. Tal aspecto, entretanto, foi contestado por alguns,
como Spengler, que tomou a evolução de cada civilização como um ciclo cerrado. Em que
pese a evolução geral da humanidade, cada civilização segue o mesmo trajeto de
desenvolvimento. Todas precisam passar pelas mesmas etapas de desenvolvimento, cada
uma a seu modo, conforme seu espírito, do nascimento até a sua decadência. “O ato já
produzido de um (povo) não pode ser vivificado pelo outro, senão infundindo-lhe este sua
existência.”8 Assim, toda experiência humana se desenvolve como organismos biológicos.

A cultura e também o Direito são essencialmente históricos. Tal característica


foi ressaltada pelo historicismo que, rompendo com a tradição iluminista, abre nova
perspectiva. O historicismo surge no contexto do romantismo europeu. O romantismo é
marcado por uma reação à ilustração, opondo o sentimento à razão, a concepção de Estado

6
Recasens Siches, Luis. 1975, p. 103
7
Bodenheimer. 1940, p.225
8
Spengler. 1973, p. 308
como um todo orgânico à de Estado como resultado de um contrato. Assim, o historicismo
representa uma reação ao racionalismo que, ao empregar o método dedutivo, demonstra
desprezo pelo material histórico.

O historicismo, sob quaisquer formas de manifestação, seja político, seja


historicismo filosófico e, especialmente, na figura da Escola Histórica do Direito, tem papel
fundamental na mudança da concepção do Direito, afirmando, de forma irrevogável, a sua
historicidade, posto que fruto da cultura.

Para Savigny, representante da Escola Histórica do Direito, o Direito nasce do


povo, está na consciência popular. O Direito, assim, seria algo extremamente enraizado no
passado da nação e tem como fontes verdadeiras o costume, a crença popular e a
consciência comum do povo. A função do legislador é dar existência exterior ao Direito. As
instituições se baseiam na história e na tradição dos povos. É um equívoco querer mudá-las
através de raciocínios abstratos. O direito, como a linguagem, é produto de um lento
desenvolvimento do espírito do povo e não de uma vontade arbitrária.

O destaque à história já é patente na filosofia de Hegel. Se Hegel, por um lado,


se aproxima do jusnaturalismo ao conferir um status privilegiado à razão, por outro se
distancia dele, na medida em que nega a existência de direitos imutáveis deduzidos pela
razão. 9A razão se revela na e através da história.

Lima Vaz explica que há uma característica comum a todo historicismo. Nele,
ethos, cultura e história são os três conceitos que, articulados, constituem a estrutura do
paradigma historicista:

“A história tem na cultura sua face propriamente humana, oposta à contingência


e ao aleatório dos fatores naturais, a cultura tem no ethos suas razões normativas
e sua teleologia imanente. Pensar a articulação desses três conceitos na forma de
uma filosofia da história, tal o desafio que (…) passa a ser o motivo dominante
do vasto e complexo movimento de idéias que compreende o Romantismo
10
(…)”

Salgado observa, contudo, que a filosofia de Hegel não se concilia com o


historicismo jurídico. Este toma a irracionalidade como fonte do Direito traduzida nas

9
Bodenheimer. 1940, p.219
10
Lima Vaz, Henrique Cláudio. 1999, p. 365
idéias de costume e espírito do povo que nada mais são que um sentimento. Este espírito
não se assemelha ao conceito hegeliano. Para Hegel, o espírito é a razão na história.11

A racionalidade está no próprio movimento da história, não se separando da


realidade. A razão não é algo externo que estabelece como deve ser o Direito, como
acreditou o jusnaturalismo, mas é elemento do próprio ser do Direito que se revela através
da cultura. Assim, em Hegel, o Direito é produto da sociedade cuja história tem a razão
como algo imanente. O Direito é eminentemente histórico e, portanto, cultural.

Recasens Siches esclarece que, em Hegel, o espírito objetivo, isto é, a cultura,


desenvolve-se dialeticamente. O autor ressalva, no entanto, que a cultura é o espírito
objetivado. Se se concebe a cultura como obra ou expressão de um espírito objetivo, ou
uma alma coletiva, o sujeito individual fica relegado ao segundo plano, como um meio a
seu serviço. A cultura é obra humana, não vive por si e não se transforma por si mesma.
“La caracterización de los productos humanos como vida objetivada es una
caracterización ontológica es decir, es un intenso de definir el modo de ser de la
cultura.”12

A idéia de evolução trabalhada por Hegel constitui o núcleo da doutrina de


Sumner Maine. Também Spencer procurou descrever a evolução do Direito e da civilização
no decorrer histórico. O que há em comum entre Hegel, Spencer e Maine é a idéia de que o
avanço civilizacional se dá com o crescimento da liberdade. Para estes autores o Direito é
produzido por uma evolução cultural que leva à maior efetivação da liberdade.

A concepção histórica do Direito possibilitou a afirmação peremptória do


mesmo como produto humano, fruto da cultura e, simultaneamente, a conciliação definitiva
entre Direito e razão, posto que, quanto mais racional, mais apto a realizar a liberdade, a
justiça. A evolução do Direito implica, portanto, num crescente processo de racionalização.

O movimento de constitucionalismo é símbolo desta evolução. Ferreira Filho


ressalta a importância do iluminismo neste processo ao demonstrar que, antes dele,
“ninguém ousou afirmar que o homem pudesse modelar essa organização [Estado] segundo

11
Notas de aula do Seminário Hegeliano Superior, oferecido pelo Professor Dr. Joaquim Carlos Salgado no
Programa de Pós-Graduação da FDUFMG no primeiro semestre de 2006.
12
Recasens Siches, Luis. 1975, p. 106
um ideal racionalmente estabelecido. Até então se considerava que essa organização era
necessariamente fruto da história.”13 A ligação entre Direito e razão, contudo, não se dá de
forma imediata, como quiseram os jusnaturalistas, mas pressupõe a mediação da história. O
Direito é essencialmente histórico e a história, processo de revelação da razão.

O constitucionalismo, segundo o professor José Luiz Borges Horta, é um


fenômeno típico do Estado de Direito, pois se traduz num esforço para racionalizar
juridicamente o exercício do poder político.14 A história do constitucionalismo é uma
constante busca pelas limitações do poder absoluto. O constitucionalismo inaugura uma
nova concepção de estruturação e função do Direito e uma nova fase na história do Estado.
Através da ruptura com o Estado Absolutista pela submissão do poder político ao direito,
nasce o Estado de Direito.

A história do Estado de Direito, entretanto, tem início antes mesmo do seu


surgimento histórico. Assim, a sua compreensão pressupõe uma análise que remonta à
gênese histórica do próprio Estado.

Para Salgado, a história da cultura ocidental, simbolizada pela complexa relação


entre poder e liberdade, pode ser dividida em três momentos fundamentais: o período
clássico ou Estado ético imediato, onde o poder se justifica em função do fim do Estado - a
perfeição ou bem do indivíduo no Estado Grego, a garantia do direito de cada um, o justo,
no Estado Romano; o período moderno ou Estado técnico, no qual o poder é considerado
em si mesmo, havendo apenas justificações técnicas para se alcançar e conservar o poder
(Maquiavel); e o período contemporâneo ou Estado ético mediato ou, ainda, Estado de
Direito, onde o Estado se justifica pela sua origem (consentimento), sua técnica
(procedimentos pré-estabelecidos) e sua finalidade, essencialmente ética (declaração e
realização de direitos fundamentais). Assim, a justificativa do Estado de Direito se dá em
três momentos, na legitimidade do poder que se refere à origem, ao exercício e à finalidade,
na legalidade e na justiça, através de sua relação com o indivíduo com vista à realização da
liberdade na esfera pública e privada.15

13
Ferreira Filho. 1999, p. 23
14
Horta, José Luiz Borges. Horizontes Jusfilosóficos do Estado de Direito. Universidade Federal de Minas
Gerais, 2002 [Tese]
15
Salgado. 1998, p.47
É preciso destacar, contudo, que a história do Estado de Direito não se finda
com a simples superação do Estado técnico, mas sim, se inicia, em que pese suas raízes que
remontam à Antiguidade.

Desde a formação do Estado moderno o direito passa a ter como fonte


primordial a vontade soberana. Tal fato leva a uma necessidade absoluta de justificação
desse poder. Assim, surgiram as teorias contratualistas que procuraram fundamentar o
poder soberano na autonomia da vontade decorrente do contrato:

“Na sua forma abstrata de criação do direito não é suficiente, pois fundado por
um conceito abstrato de liberdade como autonomia no momento de constituição
formal ou meramente lógico-formal do pacto. Para que possa gerar um direito
válido não basta essa origem formal, mas se exige a reflexão racional do
conteúdo desse direito; isso significa o encontro dos valores a serem como tais
declarados e sua atribuição como bens jurídicos às pessoas.”16

O Estado de Direito, como se vê, não se limita à justificativa formal do poder


soberano de onde provém o Direito. Mais que um fundamento na autonomia da vontade –
que serve tanto ao Estado de Direito quanto ao Estado despótico – busca-se a realização
concreta do valor absoluto que homem expressa, a sua dignidade.

O Estado Liberal apresenta uma nova estruturação de Estado, em oposição à


estrutura absolutista, posto que tem seu poder limitado, vale dizer, tem o poder político
submetido ao Direito. O século XVIII, com suas revoluções e a conseqüente promulgação
de constituições, dá início a uma nova fase na história do Estado que terá como
características primordiais a limitação do poder através do Direito, bem como o gradual
reconhecimento de direitos fundamentais.17

O Estado Liberal, no dizer do Prof. José Luiz Horta, se revelou uma grande
conquista, na medida em que a vontade humana diretora do poder foi substituída e
submetida à vontade impessoal das normas.18 O Estado Liberal se mostrou como modelo
histórico que se aproximava da idéia de democracia. No entanto, as novas exigências

16
Salgado. 2004, p. 49
17
Também o reconhecimento dos direitos fundamentais pode ser considerado uma limitação ao poder
político, uma vez que vincula o poder a uma finalidade pré-estabelecida, cuja realização exige uma ação ou
uma omissão do Estado. Assim, o Estado já nasce com um objetivo a ser atendido, como preconizara Locke,
para o qual não cabe discussão ou descumprimento.
18
Horta, José Luiz Borges. Horizontes Jusfilosóficos do Estado de Direito. Universidade Federal de Minas
Gerais, 2002 [Tese]
desencadeariam a longa passagem da democracia governada, na qual há primazia da
liberdade individual, da autonomia, até a democracia governante, ponto de chegada do
processo histórico do Estado de Direito, onde a liberdade de participação tem prevalência.19
Esta passagem, contudo, não se dá sem intermédio do Estado Social.

O Estado Liberal havia sido fruto das revoluções burguesas e, portanto, assumia
seus ideais e valores, os quais, com o tempo, se revelaram insuficientes para a maioria da
20
população. Ademais, o próprio desenvolvimento econômico e seus reflexos sociais
evidenciaram a necessidade de transformação do Estado que, em função dos novos valores
reivindicados, adotaria uma postura intervencionista. Os direitos fundamentais agora
reconhecidos pelo Estado exigem uma atuação efetiva do Estado para sua concretização,
diferentemente do que acontece com os direitos individuais, direitos que pressupõem, via
de regra, a omissão do Estado para se efetivarem.

Não se pode ignorar, entretanto, que o Estado social foi sucedido, em muitos
casos, por Estados totalitários que exacerbaram o caráter intervencionista, desconstruindo a
estrutura jurídico-política vigente. A expansão do poder executivo exigida para que o
Estado atenda a sua nova função, por si só, já põe em risco a estrutura do Estado de Direito.
Fato é que o Estado social oferece solução à insuficiência do Estado liberal, resolve os
conflitos sociais através da satisfação das necessidades, mas não é capaz de evitar o
totalitarismo, uma vez que seus ideais são compatíveis com a centralização de poder.21 Vale
lembrar, ainda, que muitas denominações, como Estado Social e Estado de Justiça Social
por exemplo, foram utilizadas por Estados cuja estruturação não tinha nenhuma
correspondência com o Estado de Direito.

O Estado de Direito, por sua própria natureza, é incompatível com a ditadura,


não só em virtude da sua processualidade, que submete a atuação estatal ao Direito, mas
também em virtude dos próprios valores que acolhe.

19
Lima Vaz. 2002, p. 359
20
Isso não significa, entretanto, que a burguesia tenha sido a única beneficiada com as conquistas do Estado
Liberal. Estas foram conquistas universais, o que significa dizer que toda a sociedade, e não uma classe
apenas, se beneficiou.
21
Lima Vaz. 2002, p. 359
O Estado democrático de Direito dá origem a uma nova era. Ele proporciona à
democracia um caráter universalizante, posto que se funda na efetiva partilha de poder entre
os cidadãos.

“O Estado democrático de Direito realiza a unidade da processualidade formal da


convergência de vontades sem conteúdo (…) e da processualidade do conteúdo
ou do real, segundo um princípio de racionalidade imanente à cultura, expressa e
materializada essa processualidade ideal (racional) nos valores fundamentais
postos como direitos.22
Assim, o Estado democrático se revela como mais eficaz na garantia dos direitos
humanos, não só porque transcende a mera participação formal dos indivíduos típica do
Estado liberal, através da efetiva partilha do poder entre os cidadãos, mas também porque
reconhece de forma universal, e não apenas no âmbito intra-estatal os direitos
fundamentais.

Lima Vaz explica que a democracia é expressão da mais alta forma de


organização política da sociedade e, portanto, se desdobra em ideal e necessidade histórica.
A superioridade do Estado democrático frente ao despótico se mede não pela utilidade ou
eficiência, mas pelo bem maior, mais perfeito. Tal superioridade pressupõe a consideração
de uma essência ética no político, isto é, uma íntima ligação entre dois elementos que,
contrariando a articulação já feita por Aristóteles entre ética e política como ciências da
práxis, são tomados frequentemente como antagônicos, incompatíveis: “Ao contrário do
que pretendem os esquemas mecanicistas da moderna filosofia política, o espaço político
não se estrutura fundamentalmente como jogo de forças, mas como hierarquia de fins.”23

O Estado democrático se revela historicamente como síntese dos dois momentos


anteriores. Não se trata de uma mera junção das características liberais e sociais puramente.
A síntese pressupõe a superação dos Estados que o antecederam, embora fiquem
resguardados alguns de seus traços. O Estado democrático não só assume direitos
individuais e sociais conquistados anteriormente, como também declara outros direitos
fundamentais, além de buscar sua efetivação universal.

A história do Estado de Direito cujo ponto de chegada é o Estado democrático é,


portanto, uma trajetória onde as conquistas de cada momento são agregadas ao momento

22
Salgado. 2004, p. 50
23
Lima Vaz. 2092, p. 344
posterior, sem que haja necessidade de renúncia a um valor para atendimento de outro. Isso
explica porque o Estado social, por exemplo, continua a conservar o valor da liberdade
revelado no Estado liberal a despeito da sua conformação e do seu perfil interventor. Neste
sentido, explica Nelson Saldanha que

“Não se trata, convém salientar de imediato, de uma permanência do liberalismo


enquanto “ismo”, ou seja, regime, ou mesmo doutrina, tal como nos séculos
XVIII e XIX. Trata-se da persistência de valores: do valor da liberdade, do valor
controle-dos-atos-estatais, do valor garantia-de-direitos, do valor “certeza
jurídica.”24
A estrutura do Estado democrático garante-lhe uma legitimidade maior que
aquela encontrada nos Estados liberal e social. A universalização da participação no poder
permite um reconhecimento da validade deste poder mais ampla, atingindo não só a sua
criação, mas também o seu exercício. O contratualismo do período moderno, através da
idéia de autonomia, estabelecia uma legitimidade apenas no que se referia à criação do
Estado. A participação efetiva no poder garante a substituição da legitimidade meramente
formal pela legitimidade efetiva.

Essa mudança, entretanto, não significa abandono da idéia de autonomia,


pressuposto inexorável para a legitimação de um dado Estado e do poder político que nele
se estrutura. Fato é que a autonomia da vontade no contratualismo é vazia de conteúdo, em
que pese a sua evocação na esfera política para a justificação da existência do Estado.
Autonomia é capacidade de autodeterminação, isto é, capacidade de legislar para si mesmo.
Nesse momento, entretanto, ela se traduz e se limita à aquiescência da vontade individual
no que diz respeito à constituição do Estado. A autonomia aqui é puramente formal, posto
que se extingue, enquanto autonomia no seu exercício público, no momento subseqüente ao
contrato e, com isso, dá origem a uma legitimidade formal apenas. Isso explica como um
Estado que tem origem na vontade livre de seus cidadãos pode assumir a forma absolutista.

O Estado democrático conserva tal pressuposto, vale dizer, ainda assume a idéia
de que a constituição do Estado se dá nos moldes da vontade de seus cidadãos. Não se
contenta, entretanto, com essa legitimidade formal, insuficiente e busca uma autonomia da
vontade plena de sentido e de efetividade. Desta feita, a autonomia da vontade se estende
também ao momento posterior à criação do Estado através da participação dos cidadãos no

24
Saldanha. 1986, p.76
governo do Estado. No dizer de Höffe, a democracia é um dos princípios fundamentais da
justiça e se traduz no imperativo de instituição de um governo do povo e para o povo.25

É em função desta estruturação e da conseqüente legitimidade que o Estado


democrático se mostra mais próximo da idéia de Estado de Direito que as formas
anteriores. A vontade impessoal da lei que governa o Estado desde o início da história do
Estado de Direito encontra seu ápice neste momento, onde se torna correspondente à
vontade de seus cidadãos.

Na democracia, o poder se mostra quase palpável, extremamente visível,


exposto, fato que poderia até gerar certa estranheza, já que a idéia de visibilidade,
concretude do poder sempre esteve mais ligada a Estados totalitários. Como explica
Bobbio, “o poder autocrático não apenas esconde para não fazer saber quem é e onde está,
mas tende também a esconder suas reais intenções no momento em que suas decisões
devem tornar-se públicas.”26 O poder democrático, enquanto expressão da vontade de seus
cidadãos, pressupõe publicidade como forma de controle da correspondência entre a
condução do Estado e a vontade dos indivíduos a ele submetidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A compreensão da evolução do Direito pressupõe dois elementos fundamentais,


a admissão do direito como obra humana, histórico, portanto, e a afirmação da história
como lugar onde a razão se manifesta. Não se trata de um processo linear onde apenas se
acumulam progressos, mas sim de um movimento que, a despeito dos avanços e
retrocessos, aponta sempre para o melhor, para a maior concretização da liberdade. A
história da humanidade só é possível pela reconciliação da necessidade com a liberdade.
Para Kant, a liberdade era o fio condutor da história. Também Schelling buscou tal
conciliação:

“Essa identidade do livre arbítrio e da necessidade é o que permite […]


reencontrar seu absoluto na história e ver, nela, não somente uma obra dos

25
Höffe. 2005, p.122
26
Bobbio. 2000, p. 110
homens sem eficácia permanente, mas uma manifestação ou revelação do próprio
absoluto.”27
Hegel faz, definitivamente, a síntese de razão e história, entendida está como
processo de revelação do Espírito. Isso implica na consideração da história não como uma
sucessão de fatos aleatória, mas interligados pela inteligibilidade de seu dever-ser.28

A revelação da razão na história, identificada pelo gradual reconhecimento e


efetivação da liberdade, fica clara na análise do Direito e do Estado. Assim, surgirá a idéia
de Constituição, como instrumento de racionalização do Direito e do poder através do qual
os direitos até então tomados como puramente naturais (concepção jusnaturalista) ganham
reconhecimento e efetivação pelo Estado. A constante ampliação destes direitos
corresponde às etapas que o Estado de Direito, na sua constante conciliação com a ética,
atravessa ao longo de sua história. Assim, à luz da declaração de novos direitos, assume
perfis diversos, a exemplo do que ocorre no Estado liberal e social.

O Estado democrático promove a consagração dos direitos fundamentais,


através de um reconhecimento universal. Ele constitui a mais alta expressão de
racionalidade na história do Estado de Direito, pois através da declaração e da efetivação
desses direitos, busca a realização do valor absoluto que só o ser humano - racional e,
portanto, livre - é capaz de expressar, a dignidade humana.

Se a cultura é o meio pelo qual se dá a objetivação dos valores assumidos pelo


homem, o Estado democrático e toda a história que o antecede e o oferece como resultado à
humanidade apenas reafirmam o caráter de obra humana e, portanto histórico, do Estado e
do Direito e evidenciam a inexorável relação entre história e razão, explicitada no avanço
de ambos através da gradual conquista da liberdade.

27
Hyppolite. 1999, p.44
28
Lima Vaz. 1999, p. 379
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