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Direito Racional Democrático Karine Salgado
Direito Racional Democrático Karine Salgado
Karine Salgado∗
RESUMO
O homem não se conforma com a sua pura e simples inserção no mundo natural e, através
da sua razão, se desgarra das determinações naturais, criando uma nova realidade - o
mundo da cultura. O homem atribui sentido a tudo o que toca, mas não se contenta em
estabelecer como devem ser as coisas ao seu redor. Assim, torna-se objeto de si mesmo e se
transforma, ao negar sua essência puramente natural, naquilo que julga que deve ser através
da educação.
O Direito é fruto da obra humana e, portanto, construído gradualmente através da
objetivação de determinados valores em um dado momento histórico. A historicidade do
Direito, entretanto, nem sempre esteve clara. Esta tomada de consciência está diretamente
relacionada com o historicismo, movimento que nasce no contexto do romantismo e que
questiona o desprezo pelo material histórico e a possibilidade de dedução racional do
Direito defendida pelo Iluminismo. A história foi, tradicionalmente, entendida como algo
puramente contingente, o que inviabilizava qualquer análise racional. Será através do
historicismo, especificamente em Hegel, que se demonstrará a possibilidade de conciliação
de razão e história. Aplicar a razão à história, este foi o desafio hegeliano que encontra
superação quando Hegel assume uma premissa em seu pensamento: a contradição não deve
ser eliminada da história para que esta se concilie com a razão. Ao contrário, a contradição
integra a história, é seu motor. Aqui, eis aberto o caminho para uma nova perspectiva de
análise histórica.
No que se refere ao Direito, a sua compreensão como objeto cultural, enfim, histórico, se
torna possível a partir desse momento. Não se trata, todavia, da assunção da idéia segundo a
qual o Direito é construído aleatoriamente, como resultado de circunstâncias puramente
contingenciais. A conciliação história-razão torna possível a tomada do Direito como
∗
Mestra em Direito pela UFMG, Doutoranda em Direito pela UFMG, Professora da Universidade FUMEC.
karinesalgado@ig.com.br
expressão de razão, como um revelar-se gradual da razão e, conseqüentemente, um realizar-
se gradual da justiça na história.
A constituição surge como resultado desta concepção, como forma racional de limitação do
poder político. A idéia de constituição não poderia surgir anteriormente. Enquanto a criação
do Direito foi compreendida somente sob a perspectiva da necessidade histórica que
imediatamente o produzia, ou ainda, enquanto o direito foi, assim como a história, tomado
como algo puramente contingente, não foi possível a concepção de uma norma que,
produzida racionalmente, fosse capaz de estruturar o Direito e o poder de forma racional.
Enfim, não foi possível a concepção de um projeto cuja efetivação resultaria na figura do
Estado de Direito.
A história do Estado de Direito, através de suas formas históricas, demonstra a constante
evolução do Direito e sua maior racionalização por meio do reconhecimento dos direitos
fundamentais. O Estado democrático se revela resultado deste processo histórico, a mais
alta expressão de racionalidade em virtude do compromisso de conciliação definitiva da
vontade política com os fins éticos, através não só da declaração ampla e irrestrita, mas
também do compromisso de realização dos direitos fundamentais.
ABSTRACT
Man does not conform to his pure and simple insertion into the natural world and through
reason breaks away from natural determinations, creating a new reality- the world of
culture. Man attributes meaning to all he touches. However, he is not satisfied in
establishing how things surrounding him should be. Thusly, he becomes an object of
himself and transforms himself, by denying his purely natural essence, into what he judges
he ought to be through education.
Law is a fruit of human endeavor and is therefore gradually constructed by the turning into
objects of determined values at a given historical moment. Yet Law’s historicity has not
always been clear. This awakening of consciousness is directly linked to historicism, a
movement born in the context of romanticism, which questions the scorn for historical
material and the possibility of Law’s rational deduction defended by Illuminism. History
was traditionally understood as something purely contingent, which made unfeasible any
rational analysis. It would be through historicism, specifically in Hegel, that the possibility
of conciliation between Reason and History would be demonstrated. Applying reason to
history, this was the Hegelian challenge, which was overcome when Hegel assumes a
premise in his thinking: Contradiction must no be eliminated from history so that it may be
conciliated with reason. On the contrary, contradiction is integral in history, it is its engine.
Here, a way to a new perspective of historical analysis is opened.
Regarding Law, its understanding as a cultural, and at long last, a historical object is made
possible from that moment on. It is not yet the assumption of the idea according to which
Law is randomly constructed as a result of purely contingent circumstances. The history-
reason conciliation makes possible taking Law as an expression of reason, as a gradual
revelation of reason and, consequently, as a gradual realization of justice in history.
The constitution arises as a result of this concept, as a rational limitation of political power.
The idea of constitution could not have arisen before. While the creation of Law was
understood solely under the perspective of a historical need which immediately produced it,
or more so while Law was, as was history, taken as something purely contingent, the
concept of a rationally produced norm, which would be able to structure Law and power in
a rational way, was not possible. In brief, the concept of a project whose effectuation would
result in a State of Law was not possible.
The history of the State of Law, through its historical forms, demonstrates the constant
evolution of Law and its greater rationalization via recognition of fundamental rights. The
democratic State is revealed as a result of this historical process. It is the highest expression
of rationality due to the commitment for the definite conciliation of political willpower with
ethical ends through the not only wide and unrestricted declaration of fundamental rights,
but also the commitment to realize them.
Eis, em Lima Vaz, o grande paradoxo com o qual o homem se depara no seu
esforço de construir um conhecimento totalizante: a filosofia é obra da cultura, é forma de
saber racional que traz em si a pretensão de compreender e explicar o todo da realidade,
dentro do qual está a própria cultura de onde procede.1
Salgado esclarece que o homem, como no mito de Midas, atribui sentido a tudo
o que toca, constituindo a sua obra, a cultura, e observa que ele não se contenta em atribuir
sentido ao que lhe rodeia. No mundo da cultura, o homem nega a sua realidade natural e
julga o que ele deve ser, transformando-se pela educação. O homem é obra de si mesmo.4
As ciências culturais, que têm, portanto, como objeto a obra humana, visam a
sua compreensão. Esta consiste na captação do sentido da totalidade da coisa, não havendo
mais separação entre o sujeito e o objeto. A compreensão não é uma visão das coisas sob a
perspectiva de seus nexos causais, mas sim, uma análise do objeto em sua integridade,
buscando seu sentido, sua finalidade.5
Kelsen assume plenamente a cisão entre a esfera do ser e do dever ser, cisão
absolutizada na afirmação de que do ser não pode derivar o dever ser e vice-versa. Ordem
jurídica e ordem natural dizem, portanto, respeito a esferas diversas e, conseqüentemente,
as leis que delas emanam têm natureza diversa. A prescrição expressa nas normas jurídicas
– e não somente uma descrição – evidencia a sua natureza de construção humana,
transformadora da realidade natural e formadora do mundo da cultura.
5
Reale, Miguel. 2002, p. 251
DESENVOLVIMENTO
6
Recasens Siches, Luis. 1975, p. 103
7
Bodenheimer. 1940, p.225
8
Spengler. 1973, p. 308
como um todo orgânico à de Estado como resultado de um contrato. Assim, o historicismo
representa uma reação ao racionalismo que, ao empregar o método dedutivo, demonstra
desprezo pelo material histórico.
Lima Vaz explica que há uma característica comum a todo historicismo. Nele,
ethos, cultura e história são os três conceitos que, articulados, constituem a estrutura do
paradigma historicista:
9
Bodenheimer. 1940, p.219
10
Lima Vaz, Henrique Cláudio. 1999, p. 365
idéias de costume e espírito do povo que nada mais são que um sentimento. Este espírito
não se assemelha ao conceito hegeliano. Para Hegel, o espírito é a razão na história.11
11
Notas de aula do Seminário Hegeliano Superior, oferecido pelo Professor Dr. Joaquim Carlos Salgado no
Programa de Pós-Graduação da FDUFMG no primeiro semestre de 2006.
12
Recasens Siches, Luis. 1975, p. 106
um ideal racionalmente estabelecido. Até então se considerava que essa organização era
necessariamente fruto da história.”13 A ligação entre Direito e razão, contudo, não se dá de
forma imediata, como quiseram os jusnaturalistas, mas pressupõe a mediação da história. O
Direito é essencialmente histórico e a história, processo de revelação da razão.
13
Ferreira Filho. 1999, p. 23
14
Horta, José Luiz Borges. Horizontes Jusfilosóficos do Estado de Direito. Universidade Federal de Minas
Gerais, 2002 [Tese]
15
Salgado. 1998, p.47
É preciso destacar, contudo, que a história do Estado de Direito não se finda
com a simples superação do Estado técnico, mas sim, se inicia, em que pese suas raízes que
remontam à Antiguidade.
“Na sua forma abstrata de criação do direito não é suficiente, pois fundado por
um conceito abstrato de liberdade como autonomia no momento de constituição
formal ou meramente lógico-formal do pacto. Para que possa gerar um direito
válido não basta essa origem formal, mas se exige a reflexão racional do
conteúdo desse direito; isso significa o encontro dos valores a serem como tais
declarados e sua atribuição como bens jurídicos às pessoas.”16
O Estado Liberal, no dizer do Prof. José Luiz Horta, se revelou uma grande
conquista, na medida em que a vontade humana diretora do poder foi substituída e
submetida à vontade impessoal das normas.18 O Estado Liberal se mostrou como modelo
histórico que se aproximava da idéia de democracia. No entanto, as novas exigências
16
Salgado. 2004, p. 49
17
Também o reconhecimento dos direitos fundamentais pode ser considerado uma limitação ao poder
político, uma vez que vincula o poder a uma finalidade pré-estabelecida, cuja realização exige uma ação ou
uma omissão do Estado. Assim, o Estado já nasce com um objetivo a ser atendido, como preconizara Locke,
para o qual não cabe discussão ou descumprimento.
18
Horta, José Luiz Borges. Horizontes Jusfilosóficos do Estado de Direito. Universidade Federal de Minas
Gerais, 2002 [Tese]
desencadeariam a longa passagem da democracia governada, na qual há primazia da
liberdade individual, da autonomia, até a democracia governante, ponto de chegada do
processo histórico do Estado de Direito, onde a liberdade de participação tem prevalência.19
Esta passagem, contudo, não se dá sem intermédio do Estado Social.
O Estado Liberal havia sido fruto das revoluções burguesas e, portanto, assumia
seus ideais e valores, os quais, com o tempo, se revelaram insuficientes para a maioria da
20
população. Ademais, o próprio desenvolvimento econômico e seus reflexos sociais
evidenciaram a necessidade de transformação do Estado que, em função dos novos valores
reivindicados, adotaria uma postura intervencionista. Os direitos fundamentais agora
reconhecidos pelo Estado exigem uma atuação efetiva do Estado para sua concretização,
diferentemente do que acontece com os direitos individuais, direitos que pressupõem, via
de regra, a omissão do Estado para se efetivarem.
Não se pode ignorar, entretanto, que o Estado social foi sucedido, em muitos
casos, por Estados totalitários que exacerbaram o caráter intervencionista, desconstruindo a
estrutura jurídico-política vigente. A expansão do poder executivo exigida para que o
Estado atenda a sua nova função, por si só, já põe em risco a estrutura do Estado de Direito.
Fato é que o Estado social oferece solução à insuficiência do Estado liberal, resolve os
conflitos sociais através da satisfação das necessidades, mas não é capaz de evitar o
totalitarismo, uma vez que seus ideais são compatíveis com a centralização de poder.21 Vale
lembrar, ainda, que muitas denominações, como Estado Social e Estado de Justiça Social
por exemplo, foram utilizadas por Estados cuja estruturação não tinha nenhuma
correspondência com o Estado de Direito.
19
Lima Vaz. 2002, p. 359
20
Isso não significa, entretanto, que a burguesia tenha sido a única beneficiada com as conquistas do Estado
Liberal. Estas foram conquistas universais, o que significa dizer que toda a sociedade, e não uma classe
apenas, se beneficiou.
21
Lima Vaz. 2002, p. 359
O Estado democrático de Direito dá origem a uma nova era. Ele proporciona à
democracia um caráter universalizante, posto que se funda na efetiva partilha de poder entre
os cidadãos.
22
Salgado. 2004, p. 50
23
Lima Vaz. 2092, p. 344
posterior, sem que haja necessidade de renúncia a um valor para atendimento de outro. Isso
explica porque o Estado social, por exemplo, continua a conservar o valor da liberdade
revelado no Estado liberal a despeito da sua conformação e do seu perfil interventor. Neste
sentido, explica Nelson Saldanha que
O Estado democrático conserva tal pressuposto, vale dizer, ainda assume a idéia
de que a constituição do Estado se dá nos moldes da vontade de seus cidadãos. Não se
contenta, entretanto, com essa legitimidade formal, insuficiente e busca uma autonomia da
vontade plena de sentido e de efetividade. Desta feita, a autonomia da vontade se estende
também ao momento posterior à criação do Estado através da participação dos cidadãos no
24
Saldanha. 1986, p.76
governo do Estado. No dizer de Höffe, a democracia é um dos princípios fundamentais da
justiça e se traduz no imperativo de instituição de um governo do povo e para o povo.25
CONSIDERAÇÕES FINAIS
25
Höffe. 2005, p.122
26
Bobbio. 2000, p. 110
homens sem eficácia permanente, mas uma manifestação ou revelação do próprio
absoluto.”27
Hegel faz, definitivamente, a síntese de razão e história, entendida está como
processo de revelação do Espírito. Isso implica na consideração da história não como uma
sucessão de fatos aleatória, mas interligados pela inteligibilidade de seu dever-ser.28
27
Hyppolite. 1999, p.44
28
Lima Vaz. 1999, p. 379
REFERÊNCIAS
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