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ESTÁ VIVO!!

3ª SÉRIE
29/04/2021

HABILIDADE:
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SUGESTÃO DE ATIVIDADE:
PÁGINA DO LIVRO:
PALAVRAS-CHAVE:

- A aula começa com um trechinho de um filme, que conta uma história muito conhecida: de
Frankenstein. Na história, a personagem olha a sua experiência e diz: está vivo!. O cientista quis dar vida
à sua criação. Essa história foi escrita por Mary Shelley. Pouca gente sabe, no entanto, que o subtítulo
dessa obra é: “o Prometeu humano”.
- Prometeu foi um Titã, cuja história é a seguinte: Prometeu era um Titã que vagava pela terra,
procurando conhecer o planeta. Só que ele era muito sonhador. Não se contentava com as coisas que tinha
e, por isso, queria inventar sempre. Um dia viu um punhado de terra e um pouco de água, de onde tirou
um pouco de barro. Daí, moldou um monte de homenzinhos. Em seguida, quis dar vida a esses
homenzinhos, roubando o fogo dos deuses para que essa vida fosse possível. Ora, essa história se parece
com a de Frankenstein.
- Isso nos remete à força da ciência, que é aqui representada como a façanha de um Titã.
- A partir daí, poderíamos pensar na passagem dessa ideia para a ideia de que a ciência deve ser negada
(ou pelo menos uma parte dela). Como chegamos a isso? Como chegamos a esse revisionismo?
- Para pensarmos nisso, podemos pensar na seguinte pergunta: o negacionismo é um desafio ético?
- Para nos ajudar a pensar nisso, a professora nos traz uma matriz (Matriz de Sagan).
CÉTICO CRÉDULO
ABERTO CIÊNCIA PSEUDOCIÊNCIA
FECHADO NEGACIONISMO TEORIA DA CONSP.

- Aqui, a professora traz uma citação de Carl Sagan, onde se diz que uma série de coisas na vida humana
depende da ciência. No entanto, a ciência, segundo ele, também pode levar, quando combinada com a
ignorância, pode levar ao desastre.

PREPARAÇÃO DA AULA
MATERIAL DE ESTUDO: vide bibliografia ao final

AULA DE ENSINO MÉDIO: O PROBLEMA DA SENSIBILIDADE EM DESCARTES A PARTIR DA


“POLÊMICA” DO TERRAPLANISMO

1. Uma breve apresentação


Como todos devem saber, a aula de filosofia dessa semana tratou de um tema filosófico muito
pertinente ao nosso tempo: a filosofia da ciência. Mais precisamente, a professora Maria Fernanda Degan
abordou a questão do negacionismo.
Com vistas a aprofundar esse tema, nessa aula, proponho que lancemos um olhar sobre o
filósofo francês chamado René Descartes, um dos três (e talvez o principal) filósofo do chamado “grande
racionalismo”, categoria em que Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) colocou também Leibniz e
Espinosa1. Merleau-Ponty, aliás, por ser um filósofo relativamente recente, e por ter recuperado em sua
filosofia muitos aspectos do cartesianismo, nos é prova de que Descartes, se bem, por um lado, não poder
ser entendido como um filósofo que pertence ao “espírito do nosso tempo” – para usar um termo
hegeliano -, pode, por outro, nos oferecer uma visada privilegiada para o seu próprio tempo, a saber, a
alvorada da modernidade na filosofia e na ciência.
Embora Descartes tenha, em alguma medida, contribuído, lá no remoto século XVI, para a
fundação do que chamamos hoje de método científico moderno, e embora isso lhe tenha custado amplos
1
Cf. Merleau-Ponty, 1984, p. 277.
esforços para combater epistemologias (e mesmo sensos comuns) pouco favoráveis aos desenvolvimento
da ciência, ainda assim hoje, sobretudo entre jovens, parece-me que esses sensos comuns e
epistemologias muito problemáticas têm encontrado abrigo. Gostaria de referir-me a uma dessas
epistemologias em específico: a que sustenta a tese do “terraplanismo”.
Não tenho nenhuma intenção em aprofundar-me na tese da terra plana. Tudo que nos vai
interessar aí é um argumento muito isolado – que se pode encontrar frequentemente no discurso de
terraplanistas que divulgam suas ideias no Youtube, como no caso do vídeo chamado “Só existe uma
forma de saber se a terra é uma bola” (sic), de autoria de Afonso Lopes (Lopes, 2020) -, e mesmo
quando eu recorrer a uma certa linha de pensamento tipicamente cartesiana para combater esse
argumento, também não terei condições (e nem será necessário) aprofundar-me tanto no próprio
Descartes.
O tal argumento que nos interesse, de saída é o seguinte: (1) Poucas pessoas viram, sem
mediações quaisquer (como fotografia) e cálculos indiretos, evidências a esfericidade do planeta Terra;
(2) Poucas pessoas passaram (ou dizem ter passado) pelo chamado Polo Sul da Terra; (3) O que poucas
pessoas sentiram não tem estatuto de verdade; (4) portanto a Terra não é esférica; (5) Portanto, a terra é
plana.
Como se percebe, esse argumento, na verdade, seria, além de uma pretensa refutação da
esfericidade da Terra, um caminho possível para um falseamento da tese da terra plana: se muitas pessoas
verem/sentirem diretamente a esfericidade da Terra, a tese da Terra é plana estaria refutada. Ora, aqui
encontra-se o ponto da nossa aula: será que o conhecimento verdadeiro depende da sensibilidade
pura e simples? O que eu vejo existe? Os juízos a respeito do que sinto não estão subordinados 2 a
outras faculdades diferentes da sensibilidade?
Com essas perguntas, espero ser possível introduzir algumas ideias de Descartes. Espero, até o
final do nosso percurso, dar, se não uma ideia completa, pelo menos uma lampejo bastante significativo a
respeito do modo, por assim dizer, “sinuoso” com que Descartes lida com essa faculdade dos sentidos.
2. O problema dos sentidos em Descartes
De saída, é interessante respondermos à seguinte pergunta: que papel os sentidos cumprem na
filosofia cartesiana? Penso que uma boa resposta a essa pergunta, no caso de Descartes, implica falar mais
sobre o percurso pelo qual ele passa (o percurso de acúmulo de certezas, que vão encadeando-se umas nas
outras) que sobre o ponto final, ou seja, sobre a definição fina dessa faculdade. Nesse percurso, Descartes
primeiramente renega os sentidos completamente por não me poderem oferecer um conhecimento
seguro sobre o mundo. Em termos mais precisos, os sentidos, não seriam suficientes para me oferecer
representações “claras e distintas”, e portanto não me poderiam oferecer conhecimentos legítimos, e
portanto não poderia ser essa uma faculdade fundante da nova ciência (a moderna). Esse pensamento
encontra-se de modo bastante interessante na passagem das Meditações que trata do “pedaço de cera”:
tendo em vista desautorizar o suposto estatuto de “clareza e distinção” do tipo de conhecimento que se
pode adquirir por meio dos sentidos meramente, Descartes introduz a seguinte metáfora:
“Tomemos, por exemplo, este pedaço de cera que acaba de ser tirado da
colmeia: ele não perdeu ainda a doçura do mel que continha, retém ainda algo
do odor das flores de que foi recolhido; sua cor, sua figura, sua grandeza, são
patentes3; é duro, é frio, tocamo-lo e, se nele batemos, produzirá algum som;
Enfim, todas as coisas que podem distintamente 4 fazer conhecer um corpo
encontram-se neste.”5
Ou seja, aparentemente, se liberarmos os espíritos das severas rédeas que o seguram os limites da
clareza e distinção, ou seja, se sairmos da cadeia de verdades e nos livrarmos momentaneamente do
critério da dúvida, chegaremos à conclusão de que esse pedaço de cera, que acabou de sair da natureza é
algo cujas características sensíveis podem ser a fonte de muitos conhecimentos seguros, mas tudo isso vai
se revelar problemático logo em seguida:
“Mas eis que, enquanto falo, é aproximado do fogo [esse pedaço de cera]: o
que nele restava de sabor exala-se6, o odor se esvai7, sua cor se modifica,
sua figura se altera, sua grandeza aumenta, ele torna-se líquido, esquenta-
se, mal o podemos tocar, e embora nele batamos, nenhum som produzirá. A

2
Dependente, submisso.
3
Claro, indiscutível, comprovado, conhecido, evidente.
4
Distinguível.
5
Descartes (1973), p. 104, destaques meus.
6
Evapora-se.
7
Desaparece
mesma cera permanece após essa modificação? Cumpre 8 confessar que
permanece: e ninguém o pode negar.”9

O significado de toda essa passagem é mostrar que, ao contrário do que pode fazer parecer a
primeira impressão, os sentimentos não são capazes de determinar o que seja um pedaço de cera: a
realidade não se deixa apreender pelos sentidos. O pedaço de cera que se derrete e continua a ser o
mesmo prova que os sentidos não são, pelo menos num primeiro momento do desenvolvimento das
Meditações, uma maneira confiável de se chegar a verdades seguras para a ciência.
Isso, no entanto, nos deixa duas questões em aberto: 1) o que, afinal, significa, conhecer de modo
“claro e distinto”? E 2) se é verdade que meus sentidos não são suficientes para concluir que duas ceras
que se apresentam aos sentidos são, na verdade, a mesma cera, então qual é o verdadeiro valor dos
sentidos? Podemos sequer dizer que as coisas sensíveis existem? Se existem, como elas podem ser
incorporadas em um sistema científico? E, por fim, essa incorporação é compatível com a do argumento
terraplanistas apresentado acima, que pressupõe uma sensibilidade pura, ou seja, sem a mediação da
outras faculdades como a razão?
“Clareza e distinção” são dois termos que podem remeter os desavisados a uma ideia banal de
purismo argumentativo, mas não é bem isso que Descartes tem em vista. Esses dois termos, na verdade,
tem sentidos muitos funcionais e específicos na metafísica cartesiana: para fundar uma ciência que
rompesse com a física escolástica de bases aristotélicas – que, muito sinteticamente falando, interpretava
os fenômenos através da teoria das “formas substanciais”, que supunha uma espécie de teleologia dos
corpos, o que dava à física vigente, um caráter altamente qualitativo e muito pouco quantitativo -,
Descartes estabelece um critério cabal: ou bem sou obrigado a aceitar uma tese pela própria razão,
ou bem, caso não se dê essa compulsão racional, devo suspender meu juízo.
Mais precisamente, o termo “clareza” é definido do seguinte modo:
“Eu digo que uma percepção é clara quando ela é presente e acessível para
uma mente atenta, do mesmo jeito que dizemos que vemos algo claramente
quando isso está presenta para o olhar e o estimula com um grau suficiente de
força e acessibilidade.”10

Já nas “Segundas Objeções”, Descartes dá a seguinte definição de “clareza”:


“Algumas dessas percepções são tão transparentemente claras e ao mesmo
tempo simples que não podemos nunca pensar nelas sem acreditar que elas
sejam verdade. O fato de que eu existo enquanto estiver pensando, ou o fato
de que aquilo que foi feito não pode ser desfeito, são exemplos de verdades
em respeito às quais nós manifestamente possuímos esse tipo de certeza. Pois
nós não podemos duvidar delas a não ser que pensemos nelas; mas nós não
podemos pensar nelas sem ao mesmo tempo acreditarmos que elas sejam
verdadeiras (...)”11

Portanto, portar uma representação clara, para Descartes, significa precisar dar-lhe
crédito de modo obrigatório. O exemplo paradigmático12, além dos contidos na própria citação, é o do
chamado cogito: se levar até às últimas consequências a severidade do meu critério de verdade, posso
colocar em dúvida tudo – as noções matemáticas podem ser, no limite, distorcidas por um “gênio
maligno” e aquilo que vejo, ainda que muito próximo de mim, pode não passar de um sonho -, mas uma
coisa é certa: sendo ou não enganado por um deus malicioso, estando ou não a dormir, ninguém pode
negar que eu esteja a pensar, daí a famosa frase atribuída a Descartes: “penso, logo existo” (ou, na forma
original, em latim, cogito, ergo sum)13.
Mas isso ainda nos diz pouco a respeito do nosso objeto: os sentidos. Afinal, em que condições
podemos dizer que os sentidos e os objetos dos sentidos são incorporados a um corpus “claro e distinto”?
Para satisfazer esse critério, devemos nos lembrar de que a análise do pedaço de cera derretido nos dá a
ideia de que os sentidos contaminam o entendimento, a faculdade primordial para um conhecimento

8
Devemos confessar que...
9
Idem, p. 104, destaques meus.
10
Descartes (1995), tradução minha, destaques meus, p. 48 apud Cottingham (1993), p. 33
11
Descartes (1995), p. 104, tradução minha, destaques meus.
12
Modelar, amostra, padrão, traslado, protótipo, arquétipo, acabado, molde.
13
Na verdade, nas Meditações, nosso texto centra aqui, essa certeza aparece com uma ressalva
importante: penso, portanto existo, mas só existo enquanto penso, porque, quanto não penso, não há,
novamente, nenhuma evidência sequer da minha existência.
legítimo; no entanto, para Descartes, isso não significa que, mediante um processo de concatenamento de
meditações, a existência das coisas sensíveis e mesmo a produção de ciência a partir das coisas sensíveis
não seja possível. Na Sexta Meditação, Descartes apresenta, a uma certa altura, o seguinte argumento, que
parodio da seguinte maneira: (1) Reconheço em mim a faculdade passiva de sentir as coisas sensíveis; (2)
Essa faculdade me seria inútil se não houvesse em mim ou em outro uma faculdade ativa; (3) ora, essa
faculdade não é inútil; (4) Há uma tal faculdade ativa; (5) Sou só coisa que pensa; (6) essa faculdade ativa
não pode existir em mim; (7) as ideias das coisas sensíveis “me são frequentemente representadas sem
que eu em nada contribua para tanto” 14; (8) Princípio de causalidade: a mesma quantidade de realidade
objetiva (realidade do pensamento) que houver na minha ideia deve estar contida formalmente (ou
efetivamente) na causa dessa ideia em maior ou igual grau; (9) Portanto é preciso que essa coisa de que
eu tenho ideia exista formalmente (efetivamente), de modo separado de mim, com igual ou maior
perfeição do que se a pode perceber como ideia (realidade objetiva); (10) Para ser a) diferente de mim e
b) com mais realidade formal (efetiva) que a realidade objetiva (concernente ao meu pensamento) que
essas coisas extensas têm em mim, só temos duas opções: i) uma coisa extensa, ii) Deus. (11) Deus é
perfeito e, portanto, não é enganador, tal como foi provado na segunda prova da existência de Deus, que
nos deu conta da Sua natureza); (12) Ora, enviar-me representações de coisas que não fossem oriundas
das próprias coisas, mas de Deus, seria um “embaimento” (uma enganação) de Deus; (13) Deus não me
deu nenhuma faculdade para reconhecer imediatamente que as ideias das coisas extensas são efetivamente
remetidas a partir das coisas extensas elas mesmas; (14) Deus, sim, me deu uma inclinação para crer que
essas ideias de coisas corpóreas são enviadas das coisas corpóreas; (15) Deus não nos deu todo
conhecimento mas nos deu todos os meios para reconhecermos o erro: “se Deus não nos proporcionou
nenhum meio de reconhecer ou de evitar um erro, é porque estamos diante de uma verdade” 15; (16)
Portanto Deus não me envia essas ideias das coisas extensas; (17) Portanto “é preciso confessar que há
coisas corpóreas que existem.16
Através desse longo argumento, podemos constatar duas coisas importantes: 1) Descartes não
aceita nada dogmaticamente. Só há possibilidade de assentimento para argumentos bem encadeados,
apoiados em premissas que por sua vez ou bem são axiomas ou bem foram também anteriormente
provadas mediante argumentos como esse. 2) Além disso, podemos perceber nesse argumento em
específico que as coisas corpóreas têm uma relevância para Descartes: é bem verdade que elas não se
apresentam a mim de modo claro e distinto imediatamente, mas se lançarmos mão das mediações citadas
(como a de que Deus não é enganador etc.), chegamos à conclusão de que as coisas corpóreas existem.
Perceba-se que, aqui, é muito diferente, por um lado, ver uma coisa corpórea e imediatamente dizer
que ela existe e, por outro, deduzir a existência das coisas corpóreas . Nesse caso, temos uma base
“clara e distinta” para produzir ciência sobre as coisas sentidas; naquele (e, diga-se, é esse o caso em
que se encontra o argumento terraplanistas aduzido na introdução da aula), temos o oposto:
“obscuridade e confusão”, porque, para Descartes, embora seja bem certo que as coisas sensíveis
existem, podemos, contudo nos enganarmos sobre elas. O argumento com que ele prova isso é o que
procuro reproduzir a seguir:
(1) Tenho a opinião de que todo o espaço em que eu não perceba nada se movendo, por exemplo,
é vazio; (2) ora, o espaço não é vazio; (3) ora tenho a opinião de que há no corpo quente algo semelhante
à ideia de calor que existe em mim (no meu corpo); (4) ora, nada garante que o calor que eu sinto em
outros corpos seja indício de que está nesse corpo algo do mesmo calor que eu sinto em mim 17; (5) Tenho
a opinião de que há um corpo negro ou branco e que a negrura ou branquitude desses corpos são as
mesma que me afetam; (6) No entanto, não há nada que me garante que essa branquitude ou essa negrura
encontram-se no corpo percebido do mesmo modo que está em mim; (7) Tenho a opinião de que a figura
dos astros e corpos distantes que eu vejo são efetivamente como eu vejo; (8) na verdade, ocorre
frequentemente de eu me equivocar a respeito dessa figuras do corpos que eu vejo; (9) Portanto há
muitas coisas que parece-me terem sido ensinadas pela natureza, mas que não recebi verdadeiramente
da natureza, e que só penso terem sido enviadas por ela por um “julgamento inconsiderado” ; (10)
Portanto pode ocorrer que a representação que eu tenho dessa coisas sensíveis contenham falsidade 18.
Com esse argumento, fechamos um ciclo: por um lado, constatamos que, sim, os sentidos
têm legitimidade, mas, por outro, estão suscetíveis a erros. Ora, como é que, diante disso, é ainda

14
Descartes (1973), pp. 142-143.
15
Idem, nota 172 de rodapé de Bento Prado Júnior, p. 143.
16
Cf. Ib idem, pp. 142-143.
17
A título de curiosidade: esse pressuposto tem muito a ver com o conceito de “imaginação” de
Espinosa, um dos outros dois “grandes racionalistas”, que, pelo menos nesse aspecto, pode ser
considerado um autor descendente de Descartes.
18
Cf. Descartes (1973), p. 144.
possível, para Descartes, fazer ciência com isso que eu sei que existe, mas com o que me engano? Como
fazer ciência com algo com que me engano? Para resolver essa situação, Descartes recorre a um princípio
segundo o qual a faculdade primordial na produção de conhecimento legítimo é o entendimento. Ora,
essa faculdade só pode ser tratada como primordial na medida em que tenha conteúdos verdadeiros
independentemente do Eu pensante, ou seja, de modo “claro e distinto”. Um exemplo
paradigmático desses conteúdos insofismáveis são as chamadas “essências matemáticas”, às quais
Descartes dá um destaque que o coloca em forte contraste com a tradição da física aristotélico-
medieval que, como dissemos acima, era muito mais qualitativa. Essas essência matemáticas (que
incluem características quantificáveis das coisas corpóreas, inclusive a figura do planeta Terra), se
não dependem em nada de mim, também não podem depender dos meus sentidos, e, se não
dependem dos meus sentidos, também não estão suscetíveis aos erros dos sentidos, mencionados
acima19. Isso é interessante para a nossa aula que, se lembrarmos, começou com um argumento de que é
possível objetar teses como a de que a terra é redonda simplesmente dizendo que não é possível que
muitas pessoas tenham acesso sensível à esfericidade da Terra: a prova de que a Terra é redonda
justamente é forte porque apela a questões essenciais que não dependem nem de Deus, nem dos
sentidos. A prova de Erastótenes, por exemplo, embora apele para experimentos (que implicam
uma sensibilidade, portanto) só podem extrapolar o próprio experimento e levar à conclusão de que
a Terra é redonda por conta de princípios de trigonometria (aplicados à observação da sobra de
poços d’água no mesmo horário e em locais muito distantes em sentido latitudinal no Antigo
Egito), com caráter eminentemente essencial e que devem ser aceitos “quer queira, quer não” (ou
seja, de modo claro e distinto). São verdades irrefutáveis. Não há experiência que possa negar esses
princípios. Trata-se de uma maneira clara e distinta, nos termos cartesianos, para aduzir verdades
sobre a forma da Terra.
A conclusão desse percurso todo é, portanto, que a mera sensibilidade não é uma maneira
confiável de se buscar as verdades da matemática e da física (que, aqui, é muito matematizada). No
fundo, para Descartes, a sensibilidade não é algo confiável para quaisquer áreas do conhecimento 20 e,
além disso, se concebo uma essência de modo claro e distinto, ou seja, se essa ideia não for
meramente algo produzido por mim mesmo e, ao contrário, independe de mim mesmo, então trata-
se da verdade.

3. Questões de avaliação
Leia bem o texto acima. Veja o vídeo do terraplanistas mencionado no link
<https://www.youtube.com/watch?v=hRWBAX70G1I> e responda às perguntas propostas abaixo.
Lembre-se de que todas as respostas podem ser encontradas no próprio texto. Por isso é importante a
leitura.

1) O que você acha do terraplanismo? Justifique: “Eu acho que sim/que não é uma teoria válida
PORQUE ...”
2) O terraplanismo é científico segundo Descartes? Lembre-se que o que está em jogo aqui não
é a sua opinião. A resposta tem que ser justificada a partir do que foi exposto no texto. Não há resposta
certa ou errada; só existe, aqui, resposta bem justificada ou mal justificada. A estrutura de resposta que
eu espero é a seguinte: “O terraplanismo é/não é científico, PORQUE, segundo Descartes, ...”
4. Referência bibliográficas
COTTINGHAM, J. “A Descartes Dictionary”. Oxford: Blackwell Publishers, 1993.
DESCARTES, R. “Author’s replies to the second set of objections”. Traduzido por John Cottingham,
Robert Stoothoff, Dugald Murdoch. In _________ (autor); COTTINGHAM, J (ed.) et al. “The
philosophical writings of Descartes”. V. II. New York: Cambridge University Press, 1995.
______________. “Los princípios de la filosofia”. Tradução de Guillermo Quintas. Barcelona: Biblioteca
de los Grandes Pensadores, 2002.
______________. “Meditações concernentes a primeira filosofia nas quais a existência de Deus e a
distinção real entre a alma e o corpo do homem são demonstradas” In Pensadores (Coleção). Tradução de
Jacob Guinsburg e Bento Prado Júnior. 1ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
LOPES, Afonso E. de V. “Só existe uma forma de saber se a terra é uma bola!”. 2020. (22m47s).
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=hRWBAX70G1I>. Acesso em: 28/02/2021.

19
Cf. Idem (1973), p. 132.
20
Não abordamos esse tema aqui, mas na Sexta Meditação, Descartes descreve uma função positiva da
sensibilidade: a preservação do organismo.
MERLEAU-PONTY, M. “Em toda e nenhuma parte”. In: __________. Textos Selecionados. Tradução
Marilena de Souza Chauí. São Paulo: Nova Cultural, 1984. (Coleção Os Pensadores).

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