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PAOLO GROSSI

A ORDEM JURÍDICA
MEDIEVAL
A ORDEM JU R ÍD IC A M ED IEVAL
Pa o l o G rossi

A O R D EM J U R Í D I C A M E D IE V A L

tra d u ç ã o DE DENISE ROSSATO AGOSTINETTI

R evisã o té c n ic a de RICARDO MARCELO FONSECA

l i wm/martinsfontes
SÁ O P A U L O 2014
Esta obra f o i pu blicada originalm ente em italiano com o título

L ’O R D íN E G IU R ID IC O M E D IE V A LE

p o r Gins. Laterza & Figli


C opyright © 2 0 13 2006, Gius. Laterza & Figli

Esta tradução de Lordine g iuridico m edieva le (a nova ediçào d e 2006 é pu blicada

através d e acordo com Gius. Laterza & F igli SpA , R om a-Bari).

C opyright © 2 0 14 , E ditora W M F M a rtin s Fontes Ltda.,

São Paulo, pa ra a presente edição.

í f e d iç ã o 2 0 14

T rad ução D enise Rossato Agostinetti

Revisão de tradução Silvan a Cobucci Leite

R evisão técnica Ricardo M arcelo Fonseca


A com panh am ento edito rial Luzia A parecida dos Santos

R evisões gráficas O tacílio N unes /r. e Solange M artins


Projeto g ráfico A + Com unicação
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P ro du ção gráfica G era ld o Alves


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(C â m a ra B rasileira d o Livro, SP, B rasil)

G ro ssi, Paolo
A ord em ju ríd ica m edieval / P aolo G r o s s i; tradu ção de D en ise Rossato
A g o s tin e tti; revisão técnica de R ica rd o M arcelo Fonseca. - São Paulo :
E ditora W M F M artins Fontes, 2 0 14 . - (Biblioteca ju ríd ica W M F)-

Título original: Lordine giu ridico m edievale.


IS B N 9 7 8 -8 5 -7 8 2 7 -7 7 7 -2

1. D ireito m edieval I. Título.

13 -12 6 7 2 C D U - 3 4 :9 4 (io o ) ” o 5 ”

índ ices para catálogo sistem ático:


1. D ireito m edieval 34:9 4cio o ) "o 5 ”

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Í ND I C E

Introdução do autor à edição brasileira , xi


Nota do revisor técnico, xv
Dez anos depois de Ovidio Capitani e Paolo Grossi, x ix
Nota ao prefácio , x x v

I. IN TRO D U Ç ÃO 5

i. O que o leitor pode esperar deste livro - 2. Sobre alguns limites


do nosso campo de observação - 3. Para a compreensão da
experiência jurídica medieval: disponibilidade cultural e modelos
mentais - 4. Uma breve exposição sobre continuidade e
descontinuidade: alguns equívocos a evitar - 5. O significado de
um título. A construção jurídica medieval como interpretação de
uma ordem subjacente - 6. Algumas considerações entre crônica
e história

II. PR ESSU P O ST O S O R D EN A D O R ES 2 1

i. Um esclarecimento necessário - 2. Historicidade do direito -


3. História do direito como história de experiências jurídicas -
4. A experiência jurídica medieval e sua constituição unitária
- 5 - Idade Média: uma experiência jurídica para múltiplos
ordenamentos jurídicos
P R IM E IR A P A R T E • FU N D A Ç Ã O D E U M A E X P E R IÊ N C IA
JU R ÍD IC A . A O F IC IN A DA P R Á X IS 45

III. A E S P E C IF IC ID A D E DA E X P E R IÊ N C IA EM FO R M A Ç Ã O E
SEU S IN ST RU M EN T O S IN T E R P R E T A T IV O S 47

1. A especificidade da experiência jurídica medieval e seus


instrumentos interpretativos - 2. A incompletude do poder
político - 3. A relativa indiferença do poder político pelo direito.
A autonomia do direito - 4. Pluralismo do direito medieval - 5.
Sua factualidade - 6. Sua historicidade - 7. O declínio da cultura
jurídica. Naturalismo e primitivismo na fundação da nova
experiência - 8. Sobre o primitivismo protomedieval, em
particular - 9. Reicentrismo da nova experiência jurídica - 10.
Fatos normativos fundamentais: terra, sangue, duração - xi.
Certezas fundamentais: imperfeição do indivíduo e perfeição da
comunidade - 12. Certezas fundamentais: o direito medieval
como ordem jurídica

IV. F IG U R A S DA E X P E R IÊ N C IA 10 7

1. O costume como “constituição” - 2. Príncipe, indivíduos e coisas


na espiral do costume - 3. As situações reais - 4. Os negócios
intervivos - 5. Sobre os contratos agrários, em particular

V. P R E SE N Ç A JU R ÍD IC A DA IG R E JA 1 3 5

1. Uma opção pelo direito: a formação de um direito “canônico”


- 2. Originariedade e originalidade do direito canônico: a
imobilidade do direito “divino”, a elasticidade do direito
“humano”

SE G U N D A P A R T E • E D IF IC A Ç Ã O D E U M A E X P E R IÊ N C IA
JU R ÍD IC A . O L A B O R A T Ó R IO S A P IE N C IA L 15 5

V I. A M A T U R ID A D E DE U M A E X P E R IÊ N C IA JU R ÍD IC A E SUAS
T IP IC ID A D E S E X P R E SS IV A S 1 5 7
í. Entre os séculos XI e XII: continuidade e maturidade dos tempos
- 2. Os sinais da continuidade: o “princeps-iudex” e a produção do
direito. O poder político como “iurisdictio” - 3. Os sinais da
continuidade: a “lex” como revelação de uma ordem jurídica
preexistente. A consciência da filosofia política - 4. Os sinais da
continuidade: a “lex” como revelação de uma ordem jurídica
preexistente. A consciência da ciência jurídica - 5. A civilização
tardo-medieval e sua dimensão sapiencial. O papel primordial da
ciência na sociedade - 6. Experiência jurídica e ciência jurídica.
A experiência confia à ciência a sua edificação - 7. A “solidão” da
ciência jurídica medieval, a busca de um momento de validade e a
redescoberta das fontes romanas: “glosadores” e “comentadores” - 8.
A ciência jurídica entre validade e efetividade - 9. A ciência jurídica
medieval como “interpretatio” - 10 . A dimensão funcional da
“interpretatio” - 1 1 . Os sinais da continuidade: a “aequitas” e a
dimensão factual do direito - 1 2 . Os sinais da continuidade: o
costume e a dimensão factual do direito - 13. Os sinais da
continuidade: dimensão factual do direito e novas figuras jurídicas
- 14. Os sinais da continuidade: perfeição da comunidade e
imperfeição do indivíduo

V II. P R E SE N Ç A JU R ÍD IC A DA IG R E JA 249

1. A consolidação do direito canônico clássico: o “Corpus iuris


canonici” - 2. “Aequitas canônica” - 3. O limite extremo do
“caminho” equitativo: “dissimulatio” e “tolerantia” canônicas - 4.
Incidências canonistas: equidade canônica, “simplicidade
canônica” e teoria do contrato - 5. Incidências canonistas: ideário
teológico e conceito de pessoa jurídica

V III. P L U R A LISM O JU R ÍD IC O DA ID A D E M ÉD IA T A R D IA :
D IR E IT O COM UM E D IR E IT O S P A R T IC U L A R E S 2 7 3

1. As diversidades na unidade - 2. Significado do “direito


comum” - 3. Significado da relação entre direito comum (“ ius
commune” ) e direitos particulares (“ iura própria” )
IX . F IG U R A S DA E X P E R IÊ N C IA 291

1. Práxis e ciência no seu papel organizativo: os direitos reais - 2.


Sobre a “realização” do contrato de locação de coisas, em
particular - 3. Práxis e ciência no seu papel organizativo: sobre
algumas estruturas negociais entre vivos

índice onomástico, 3 1 3
PRIMEIRA PARTE

F U N D A Ç Ã O DE U M A E X P E R I Ê N C I A
J U R Í D I C A . A O F I C I N A DA P R Á X I S
c a p í t u l o t r ê s

a E S P E C IF IC ID A D E D A E X P E R IÊ N C IA
EM F O R M A Ç Ã O E S E U S IN S T R U M E N T O S
IN T E R P R E T A T I V O S

1. A esp ecificid ad e da exp eriên cia ju ríd ica m edieval


e seus in stru m entos in terpretativos

A vancem os um pouco mais. D epois de tentar estabelecer a l­


guns instrum entos m etodológicos para facilitar nossa abo rd a­
gem da experiên cia ju ríd ica m edieval, vam os entrar em seu teci­
do histórico e p rocu rar apreender aquele sólido esforço criativo
realizado pelo O cidente do século V ao X I.
N ão se trata de um esforço notável nem clam oroso; não está
ligado a um daqueles eventos retum bantes de que a história o fi­
cial se orgulha nem é fruto da obra de um príncipe ilum inado ou de
uma escola ju ríd ica revolucionária, m as é conseqüência p re d o ­
m inantem ente de um a práxis - sobretudo notarial, m as tam bém
judiciária - que, silenciosa, m as obstinada, livre de co n d icio n a­
mentos dem asiado estreitos, consciente ao m enos de que precisa
fundar um ed ifício adequado às transform ações das exigências
econôm icas e sociais, torna-se ouvinte atenta de um a com plexa
sedim entação consuetudinária e a traduz em estruturas organiza-
tivas da experiência, aquilo que costum am os cham ar de institu­
tos jurídicos.
Nesse m om ento de fundação, surgem e se consolidam algum as
posturas gerais vinculadas à nova e cada vez m ais precisa m en ta­
4 8 ■A ORDEM JURÍDICA MEDIEVAL

lidade ju ríd ica, que convém identificar e fixar desde já, pois fu n ­
cionarão com o instrum entos interpretativos iniciais e esclarece­
dores da experiência em form ação: fatos de civilização jurídica,
vivid os com o valores duradouros, ligados à autêntica fisionom ia
dessa civilização, garantes e testem unhas de sua especificidade.
D issem os valores duradouros, e isso exige um esclarecim ento.
A m aior parte desses valores será tão duradoura a ponto de tran s­
por, num único salto, o período de fund ação e im pregn ar tam ­
bém o segundo m om ento m ais propriam ente edificador, mais pro ­
priam ente sapiencial: são aquelas características peculiares que
constituem o direito m edieval, o m odo m edieval de sentir e de
viver a ju rid icid ad e, representando a con firm ação da profunda
unidade da experiên cia objeto de nosso estudo. O bviam ente v a ­
m os falar delas desde já, m as nosso estudo irá referir-se a toda a
Idade M édia e será em basado nas fontes docum en tais referentes
a um período h istórico que ultrapassa o século de transição entre
os dois m om entos: o século XI.
Tais posturas (que para nós se tornam instrum entos im pres­
cindíveis de interpretação) parecem -nos ser, em p rim eiro lugar
(acim a de tudo), a incom pletude do poder político; em segundo
(lugar) - e em decorrência disso - a relativa indiferença do poder
político pelo direito, com a conseqüente autonom ia deste últim o
e com um acentuado pluralism o ju ríd ico; por fim , a conseqüente
factualidade e historicidade do direito. E isso acom panhado de
duas certezas fundam entais: a im perfeição do indivíduo e a perfei­
ção da com unidade; o direito com o ordem , com o ordem jurídica.
Essas posturas e certezas estão no cerne não apenas do m o ­
m ento de fundação, m as de toda a Idade M édia, que será substan­
cialm ente caracterizada por elas com o um todo. Por sua vez, uma
postura específica da cham ada alta Idade M édia é o naturalism o-
-prim itivism o, con d icionado por um notável vazio de cultura ju ­
F U N D A Ç Ã O DE UMA E X P E R I Ê N C I A J U R Í D I C A •4 9

rídica: quando, a partir do século X II, a terra reconquistada e a


rede de estradas e de cidades conferem um a nova fision om ia à
Europa ocidental; quando um grande florescim ento científico
torna-se protagonista na elaboração do direito e o sensato - m as
rústico - prático de antigam ente é substituído pelo refinado h o ­
mem de pensam ento de hoje, o prim itivism o passa a ser relegado
à m em ória de um passad o distante. Sub sistirá u m a forte p o stu ­
ra naturalista e irá reafirm ar-se um convicto reicen trism o com o
uma dem onstração de que o prim eiro período m edieval forjou
um a consciência ju ríd ica duradoura, e que essa con sciên cia é m e ­
dieval, sem lim itações tem porais; m as será um naturalism o re v i­
vido e reinterpretado num a tram a sapiencial de elevada q u alid a­
de especulativa.
Saiba o leitor que terem os o cu id ad o de acom pan h á-lo na
descoberta de um a u nidade exp erien cial, m as tam bém das di-
versidades na unidade. A Idade M éd ia tem um caráter coeso,
mas obviam ente não é u m a realidade im óvel, pois a im ob ilidad e
não condiz com a vida. Essa exp eriência, assim com o toda e x p e ­
riência, tem seu m om ento de form ação, sua m aturidade, seu d e ­
clínio. A s etapas que tem os p ela frente e nas quais d ecid im o s
dividir a nossa abordagem , são apenas duas: “ fu n d ação ” e “e d ifi­
cação”, m om entos diferentes na realização de um gran d e projeto
unitário. A o final, a harm onia do edifício histórico com o um todo
será cristalina.

2. A in com pletude do p o d e r político

Para o historiador do direito, o prim eiro fato de civilização -


o mais condicionante, o m ais incisivo - é representado pela crise
e pelo desm oronam ento da sólida e adm irável estrutura estatal
romana, pelo vazio político resultante dessa crise e desse d esm o ­
ronamento, pelas soluções políticas que, por todo o p erío d o da
5 0 ■A ORDEM JURÍDICA MEDIEVAL

experiência m edieval, substituíram -se a esse vazio, sem todavia


preenchê-lo ou sequer tentar fazê-lo.
A especificidade da ordem ju ríd ica m edieval repousa, em p r i­
m eiro lugar, nesse relativo vazio, naquela que qu alificam os no tí­
tulo desta seção com o a incom pletude do poder político m ed ie­
val, entendendo por incom pletude a carência de toda vocação
totalizante do poder político, sua incapacidade de se apresentar
com o fato global e assim ilad or de todas as m anifestações sociais,
sua realização nos acontecim entos históricos m edievais cobrin do
apenas certas áreas das relações intersubjetivas e perm itindo, em
outras - e em grande núm ero delas - , a possibilidade de ingerên­
cia de poderes concorrentes, com um processo que, abrigando-se
originalm ente nas prim eiras rachaduras do ed ifício estatal ro m a­
no, assum e um a fisionom ia totalm ente pecu liar no m om ento em
que as rachaduras se transform am num desabam ento efetivo e
sobre os escom bros não m ais se edifica um a estrutura política da
m esm a qualidade e intensidade.
N a essência, quando falam os de incom pletu de do p o d er p o ­
lítico m edieval, querem os aqui repropor, em term os m en os p r i­
m itivos, aquela intuição h istoriográfica - que m en cion ávam os
ao falar do êxito da proposta rom aniana junto aos ju ristas - , m u i­
tas vezes form u lad a de m aneira ru d im en tar e im otivada, mas
certeira no seu diagnóstico essencial, que costum a ser expresso
na afirm ad a ausência do “ Estado” do cen ário político m edieval.
E nesse ponto convém nos determ os um p ou co para exp licar­
m os melhor.
Um a prim eira opção seria usar sem receio o term o “ Estado”
num significado totalm ente genérico e neutro, apto a indicar q u al­
quer organização política, sign ificado que perm itiria atribuir tal
qualificação tanto a um a organização tribal prim itiva quanto ao
com plexo aparato da atual República Italiana: m as esse seria um
FU ND A Ç ÃO DE UMA E X P E R I Ê N C I A JU R Í D I C A • 51

erro grosseiro e prod uziria um esquem a organizativo in ad eq u a­


do e d esvan tajoso1.
A palavra “ Estado” é inevitavelm ente um term o-conceito que
se sedim entou de determ inada form a em nossa consciência atual,
im buindo-se de especificidade e de intensidade2. A n oção de “ E s­
tado” é inevitavelm ente a consolidada no decorrer da era m o d er­
na e introjetada pelo h istoriador com o patrim ôn io de seu presen ­
te, ou seja, caracterizada com o um a realidade político -jurídica
rigorosam ente unitária, na qual unidade significa, no plano m a ­
terial, efetividade de pod er em toda a projeção territorial, g a ra n ­
tida por um aparelho centrípeto de organização e de coação, e, no
plano psicológico, um a vontade “totalitária” que tende a absorver
e a assum ir toda m anifestação ao m enos intersubjetiva realizada
naquela projeção territorial. E m outras palavras, um m acrocos-
mo unitário que tende a se estabelecer com o estrutura global d o ­
tada de um a vontade englobante.
“ Estado” é um sujeito político forte, é a encarnação histórica
de um poder político totalm ente com pleto; com o tal, pertence ao

1 Os historiadores não juristas usam-no com desenvoltura (um exemplo, entre os


muitos existentes, pode ser encontrado no denso volume de E. Sestan, Stato e na-
zione neüalto medioevo, Nápoles, ESI, 1952). O uso também é freqüente entre os
historiadores do direito. O termo permeia, por exemplo, o relatório de Spoleto de
C. G. Mor, “Lo Stato longobardo nel VII secolo”, in Caratteri dei secolo VII in Occi-
dente, Spoleto, 1958 (Settimane di Studio dei Centro Italiano di Studi sullAlto Me­
dioevo, 5); um exemplo particularmente negativo é oferecido por H. Mitteis, Le
strutture giuridiche e politiche delletà feudale (ed. or. 1940-19532), trad. it. de L.
Mencarelli Fichte, Brescia, Morcelliana. 1962 (mas o título em alemão era bem mais
explícito: Der Staat des hohen Mittel-alters), no qual (p. 14) a noção é assumida
genericamente como forma embrionária daquele que posteriormente será o Estado
da era moderna. Um devir - aquele esboçado por Mitteis - sem saltos qualitativos,
mas monotonamente contínuo (no volume de Mitteis, convém ler a recensão bas­
tante crítica e imparcial de C. Antoni, Studi germanici, V, 1941, na qual também se
condena o uso indiscriminado dos termos “Estado” e “soberania” ).
Não importa que tal noção esteja em rápido declínio na atual ciência política. A
incipiente reflexão científica não chegou a comprometer o modelo “moderno”.
5 2 ■A ORDEM JUR ÍD ICA MEDIEVAL

irrenunciável patrim ônio do pesquisador, e poderá - e deverá -


projetar-se em am bientes diversos e distantes, não com o m odelo
que deve ser im posto a qualquer preço, m as com o valioso in stru ­
m ento de com paração que perm ite avaliar e assin alar analogias e
diversidades, ausências e presenças3. É o único m odo de livrar n o s­
so cam inho de equ ívocos e de alcançar um a precisão m ais rig o ro ­
sa da linguagem e dos esquem as interpretativos. Se o Estado se
nos apresenta com o um a presença irrenunciável não tanto do a li­
cerce histórico quanto da nossa consciência de m odern os, é p o r­
que som os filhos de um a ép oca - a época m od ern a - que, a partir
do século X IV, com um processo lento, m as crescente, vive da p re­
sença cada vez m ais m aciça desse sujeito político, m aciça a ponto
de tê-lo com o protagonista - no passado e ainda hoje, m esm o que
não nos projetos para o futuro - de sua vid a associada. N o entan­
to, esse é um dado histórico, ou seja, relativo, que, longe de nos
im p edir de apreender as varied ad es e as diversidades do passado,
deve, ao contrário, fun cion ar com o um elem ento para exaltar as
escolhas alternativas e as variações de cada organização política,
com o, por exem plo, da referente à civilização m edieval.
A s generalizações e as im precisões não beneficiam a ninguém ,
m uito m enos aos que atuam no plano do conhecim ento e tam ­
pouco ao ju rista, que se orgulha justam ente de ser po rtado r de
um a ciência organizativa, e organizativa porque rigorosa. Só ten­
do clareza do conteúdo da noção assim com o ela se apresenta no
ideário presente é possível obter clareza e alcançar aquela visão
nítida que perm ite a substancial com preensão do passado. Por­
tanto, para o h istoriad or do direito, é fácil con clu ir que, diferen ­

3 Não podemos esquecer a advertência de um grande historiador italiano precisa


mente em relação ao termo-conceito que aqui nos interessa: F. Chabod, Alcune
questioni di terminologia: Stato, nazione, patria nel linguaggio dei Cinquecento (ed. or.
1957)» atualmente in id., Scritti sul Rinascimento, Turim, Einaudi, 1967, pp. 625-61.
F U N D A Ç ÃO DF UMA EX PF. RIÊN CIA JU R ÍD IC A • 53

temente da opção de C alasso pela continuidade, um a relação de


intensa descontinuidade, ou melhor, uma não relação, um a ru p tu ­
ra profunda, interpõe-se nessa questão entre os universos m ed ie­
val e m oderno.
A ordem política medieval tem sua inauguração histórica q u an ­
do, no século IV, se inicia um a profunda crise do E stado im perial,
contida e reprim ida a custo até a época de D iocleciano, m as que
a partir de então desem boca em m anifestações cada vez m ais re ­
levantes: crises de efetividade, de autoridade, de credibilidade.
No m undo pós-D ioclecian o resta apenas um E stad o-crisálida,
incapaz de afirm ar a própria vontade, mas sobretudo incapaz de
expressar aquela von tad e u n itária, su bstitu tiva e in toleran te, de
volições particulares concorrentes, que é característica de toda
estrutura genuinam ente estatal; ou seja, resta um não Estado. O
Estado rom ano m orre, m orre por inanição, p o r um desgaste in ­
terno que é m aterial e espiritual, por um vazio de p o d er eficaz e
de program a planejado.
O que im porta sublinhar aqui é que, por toda a vid a histórica
da Idade M édia4, esse vazio só será preenchido parcialm ente; e no
século XIV, quando a vocação por um po d er político com pleto -
se preferirm os, pelo E stado - representar o ferm ento das estru tu ­
ras políticas, esse m om ento será o declínio da civilização política
medieval e o início de um novo período.
C om isso querem os dizer apenas que, dentre as várias o rgan i­
zações políticas que a partir desse m om ento disputarão a direção
da sociedade, nenhum a parecerá aos olhos do pesquisador capaz
de reunir em si a efetividade do pod er e a clareza de um p ro g ra­

4 Alguns podem considerar que essa afirmação foi desmentida por certos experi­
mentos político-jurídicos notórios na Itália, por exemplo, o Reino da Sicília na
época de Frederico II, da Suábia. Sobre essa realidade político-jurídica ambígua,
ver detalhes mais adiante, à p. 164.
5 4 • A ORDF. M J U R Í D I C A M E D I E V A L

m a político englobante. Terem os as m ais diversas form as de regi­


me - senhorias laicas, senhorias eclesiásticas, cidades livres - , te­
rem os exem plos de tiranos m unidos do m ais absoluto poder
h um ano jam ais concebido, ou estruturas oligárquicas e “d em o ­
cráticas” com determ inados poderes de evidente origem pactuai,
m as com certeza nunca terem os a presença de um organ ism o to­
talitário, naturalm ente destinado a controlar, regular, absorver
toda relação intersubjetiva que se verifique no in terior de seu o b ­
jeto territorial definido.
A civilização m edieval não sentiu a necessidade de preencher
o vazio deixad o pelo desm oronam ento do ed ifício estatal ro m a­
no; não sentiu nem p oderia sentir. O m undo que aflorava desde
o século IV, tão fértil de desm oronam entos e de germ inações, era
percorrido - e cada vez m ais - por forças desagregadoras. O m o ­
vim ento centrípeto do Estado, que unificara e reunira toda a re­
gião m editerrânea, dava lugar a um irrefreável m ovim ento cen­
trífugo, com um a redescoberta geral de valores, interesses, vocações
específicas. A fragm entação dos elem entos coesivos do grande
m osaico despedaçara até as tesselas m ais frágeis, e a realidade, que
estava se defin in do cada vez m ais, surgia sob a égide de um in crí­
vel p articu larism o político, econôm ico, ju ríd ic o 5.

5 Uma estrutura sociojurídica complexa, caracterizada pela impotência do poder


central e por sua incapacidade de dar executoriedade aos próprios desígnios, pela
crescente substituição por outros poderes periféricos, seja por ocupação efetiva,
seja por delegação formal superior. Entre esses outros poderes destaca-se o poder
econômico, cujo titular, como detentor da única força verdadeiramente decisiva,
pouco a pouco, num processo extremamente lento, torna-se o juiz natural sobre as
próprias terras, o responsável pela função de defesa militar, o cobrador dos impos­
tos. Nesse momento histórico, como em nenhum outro, perde-se a percepção de
uma possível distinção entre “privado” e “público”. Por sua vez, muitos titulares de
poderes periféricos eram de fato obrigados a delegar a autoridades mais imediatas
no território. Com isso, a fragmentação dos poderes se intensificou, e a sociedade
política assumiu o aspecto de um reticulado denso e emaranhado de relações ape­
nas formalmente hierárquicas.
F U N D A Ç Ã O DE UMA E X P E R I Ê N C I A [ U R Í D I C A ■ 5 5

N em as novas forças política e socialm ente protagonistas no


campo deixado vazio tinham condições de encontrar um a so lu ­
ção e de iniciar um processo de reconstrução estatal: de um lado,
as sociedades germ ânicas guardavam em si, m esm o após a tran s­
posição m editerrânea, um patrim ôn io ideal de realeza negociada,
decorrente do princípio fundam ental que identifica a organ iza­
ção política com o um a escolha oportuna para a m elhor direção
da “nação”6 e, portanto, apta a não sufocar autonom ias específicas
de grupos e de fam ílias; de outro lado, a Igreja R om ana - estru tu ­
ra centralizada e extrem am ente orgânica na própria ordem - não
podia d eixar de tem er o ressurgim ento de um poder com pleto e
de favorecer ao m áxim o o particu larism o da sociedade civil.
A Idade M édia foi, assim , o terreno ideal ou apropriado para
uma estrutura teórica universal com o o Im pério, construção ideal
e símbolo mais que criação efetiva, ou para um a m iríade de entida­
des fragm entadas de gestão politica, e se houve algum aglom erado
maior - tal com o o reino lom bardo na Itália e o visigodo na E sp a­
nha, considerável por sua extensão territorial e duração - , não deixa­
ram de ser reinos, aos quais não com pete a qualificação de Estado.
Ernesto Sestan, renom ado historiador, m as não ju rista po r
form ação e por profissão, em seu am plo estudo desenvoltam ente
intitulado Estado e nação na alta Idade M édia, parece querer des-
vencilhar-se do problem a com um a deferência tão inútil quanto
estéril a engodos nom inalistas7. Logo, cabe-nos um a pergunta: po r
que se delongar tanto nessa ausência? Trata-se de um a afirm ação
pom posa, mas desprovida de conteúdos concretos? C ertam ente,
para quem vê essas estruturas políticas a partir de fora, com o faz

6 “Nação” - observe-se - como conjunto de todos aqueles que “nascem” de uma


mesma ascendência e estão ligados pelo mesmo sangue. Nação é outro termo-con-
ceito muito perigoso, com um devir fragmentado e marcado por descontinuidades.
' Sestan, op. cit., cap. I.
5 6 •A O R D E M J U R Í D I C A M E D I E V A I ,

Sestan, as diferenças e as pecu liaridades parecem se dissipar: se


com Estado se alude à ideia de soberania, pode parecer estranho
constatar que na cidade terrena da Idade M éd ia sem pre se estabe­
lecem vínculos teóricos de autêntica in ferioridade ju ríd ica para
os organism os políticos encerrados em seu casulo sim bólico do
unum im perium ; por outro lado, se com Estado se alude ao ap ara­
to e à efetividade do poder, o problem a da distinção se mostra
necessariam ente vago, e é m ais um problem a de quantidade que
de qualidade estrutural.
A verdadeira e a m ais significativa linha d ivisória entre a m o ­
narquia, a senhoria, a legítim a com una m edieval e a noção de
Estado reside não tanto num a relativa “soberania” ou num a q u an ­
tidade de aparato, m as num a psicologia do pod er m uito diferen ­
te. O Estado é um certo m odo de conceber o poder político e suas
funções; é sobretudo um program a, um p rogram a global ou que,
m esm o não sendo global, tende à globalidade; é a vocação a fazer
o objeto do poder coin cidir com a totalidade das relações sociais;
é a vocação a se tornar um poder com pleto. É isso que falta ao
organism o político m edieval, que, aliás, é m arcado por sua in-
com pletude precisam ente no plano da concepção do poder, da
rarefação de suas funções, do acentuado desinteresse por uma
am pla área do social.
Sestan diz: “ Pergunta-se com o devem os con sid erar e com o
devem os cham ar o reino visigodo, que prom ulga leis e as faz apli­
car; o reino de Teodorico, que regula as relações entre godos e
rom anos e se torna um eixo regulador entre os reinos bárbaros;
até m esm o o reino lom bardo de Rotari, que cod ifica um a série de
leis consuetudinárias, talvez prim itivas, e inclusive o ducado ou o
prin cipado de Benevento, que, em bora nunca desvinculado, em
linha de direito, de um a certa dependência em relação a um a au­
toridade superior [...], agiu m uitas vezes, e não apenas de m anei­
FU N D A Ç Ã O DE UMA E X P E R I Ê N C I A J U R Í D I C A • 57

ra episódica, com o se essa dependência não existisse, assim com o


agiram na alta e na baixa Idade M éd ia as cidades com unais italia­
nas, nunca livres de um a dependência teórica do Im pério.” 8 É fá ­
cil responder: o estatalism o não consiste apenas na efetividade de
poder nem na prod ução de norm as ju ríd icas, que é característica
de todo p oder constituído. N o que diz respeito a esse segundo p o n ­
to, deve-se ob servar m ais o tecido dessas “ leis”, quase sem pre d e ­
sorganizadas e episódicas e, portanto, desprovidas de um projeto
organizado de am plo alcance, quase sem pre consolidações de um
patrim ônio consuetudinário rem oto e, quando expressões da v o n ­
tade do príncipe, destinadas sobretudo a fixar as regras p o litica­
mente necessárias para a organização e a adm inistração pública,
com um olhar rarefeito e alheio à experiência social e econôm ica.
A ausência do Estado no grande processo de form ação da c i­
vilização m edieval não é um artifício verbal, especialm ente para
quem observa com atenção a esfera do social e do ju ríd ico ; ela se
revela, antes, um a chave de interpretação m uito significativa para
o historiador do direito, o p rim eiro instrum ento valioso de co m ­
preensão para arrancar do direito m edieval o “segredo” de sua fi­
sionomia m ais recôndita, para encontrar a pedra angu lar de todo
seu edifício.
No vazio não preenchido após a derrocada do edifício p o líti­
co romano repousa um dos valores - e talvez o mais relevante - da
nova estrutura ju ríd ica, m otivo pelo qual, paradoxalm ente, d eve­
mos adm itir um vazio, um desm oronam ento, um a inércia, talvez
uma im potência - circunstâncias que, observadas segundo m o ­
delos preestabelecidos, são facilm ente atribuídas a desvalores -
como o privilégio histórico, a área de tranqüilidade em que a o fi­
cina m edieval pode trabalhar, sem obstáculos, sem im pedim entos,

8 Ibid., p. 22 .
5 8 •A ORDEM JU R ÍD ICA MEDIE VAL

sem prevenções, um a arquitetura da experiên cia ju ríd ica essen ­


cialm ente nova.
A incom pletude do pod er político m edieval, após a derroca- ;
da desastrosa das sólidas m anifestações precedentes, e o parcial ■
vazio político que continua a existir significam um a só coisa: o |
grande titereiro está ausente; está ausente o sujeito político que j
tende a reger todos os fios, a fazer dos vários centros sociais con- \
correntes sim ples m arionetes m anobradas ao bel-prazer. Sign ifi- [
ca um a incrível liberdade do cam po histórico, um a possibilidade r
de ação autônom a para um a pluralidade de presenças que, à som - |
bra de um poder totalm ente com pleto, veriam sua autonom ia to-
|
talm ente frustrada ou até m esm o expropriada.
Esse terreno histórico tão desem baraçado parece produzido I
exatam ente para confirm ar a hipótese rom aniana, segundo a qual
o direito, não m ais m onopólio do poder, é a voz da sociedade, voz
de inúm eros grupos sociais, cada qual encarnando um ordena­
m ento jurídico. Um universo de ordenam entos jurídicos, ou seja,
de realidades “autônom as”, de realidades - é o próprio Rom ano
quem o sublinha repetidas vezes - caracterizadas pela “autonomia”. |
É um a consideração relevante para esclarecer o panoram a i
político-jurídico, para elim inar esquem as que induzem em erro; I
e um outro term o-n oção vem dem onstrar sua absoluta im pro- ,
priedade: trata-se da “soberania”. Se a ordem ju ríd ica m edieval é j
um m undo de ordenam entos, ou seja, de autonom ias - de socie- \
tates perfectae, com o diria Santo Tom ás, corifeu da antropologia
m edieval no final do século X III não podem os esquecer que o
caráter essencial de toda autonom ia é a relatividade9; ou seja, tra­

9 Romano, verbete “Autonomia”, cit., p. 16. Na qualificação latina de Santo Tomás,


citada há pouco no texto - societates perfectae o adjetivo perfectus nào deve nos
deixar enganar pela aparência, pois traz em si um significado de autonomia e não
de independência absoluta.
FU N D A Ç Ã O DE UMA E X P E R I Ê N C I A J U R ÍD IC A ■ 59

ta-se de independências relativas, relativas a alguns o rd en am en ­


tos, mas não a outros. A entidade autônom a nunca se m ostra
como algo p e r se stat, totalm ente desvinculada do restante; antes,
é pensada - ao contrário - com o perfeitam ente inserida no ce n ­
tro de um denso tecido de relações que a lim ita, a con d icion a,
mas tam bém lhe dá concretude, porque nunca é concebida com o
solitária, e sim im ersa na tram a de relações com outras auton o­
mias. O m undo po lítico-ju ríd ico é um m undo de ordenam entos
jurídicos, por ser um m undo de autonom ias.
Bastam poucas frases elem entares para nos fazer perceber o
quanto é inadequado transpor para aquele m undo a noção de “so ­
berania”. Se a vontade realm ente soberana é aquela “vontade capaz
de agir sobre todos os objetos sem que nenhum direito positivo
seja capaz de lim itá-la, é um a ordem válida apenas por sua form a” 10;
se se caracteriza por ser absoluta e abstrata", tal vontade não pode
ter lugar no universo que estam os prestes a explorar. O “soberano”
está destinado à solidão graças àquela absolutidade e abstração,
mas na grande ordem ju ríd ica m edieval ninguém jam ais é con ce­
bido com o um a m ônada isolada; o próprio pontífice rom ano, o
personagem que, m unido da plen itu d e potesiatis que lhe foi confe­
rida pela ciência canônica, pode parecer o mais solitário, deve essa
plenitude unicam ente à sua função vicária, é repleto de poder ape­
nas por ser parte de um a relação vicarial que o liga a D eu s1’ . N o
universo m edieval pode-se falar de um a única soberania, absolu­
ta, ilimitada e, portanto, não conteudista, que é a soberania de D eus,

10 B. de Jouvenel, La sovranità, trad, it. de E. Sciacca, Milão, Giuffrè, 19 7 1, p. 212.


11 Numa linha contínua do juspublicismo, que vai de Jean Bodin (séc. XVI), segun­
do o qual soberania é “o poder absoluto e perpétuo”, a Carl Schmitt (séc. XX), para
quem a soberania encarna “o poder supremo, juridicamente independente e não
derivado”.
12 Ver os textos esclarecedores reunidos por P. Costa, Iurisdictio. Semantica dei po-
terepolitico nella pubblicistica medievale, Milão, (Jiuffrè, 1969.
60 •A ORDEM JURÍDICA MEDIEVAL

verdadeiro soberano sobre um a ordem terrena dividida, ao con ­


trário, em poderes necessariam ente não so beranos11.
Assim com o “ Estado”, o term o-noção “soberania” merece um
esclarecimento prelim inar; talvez o mereça m ais que “Estado”, e por
um simples m otivo: com o é de am plo conhecim ento, “ Estado” é
um termo usado no léxico politológico m edieval com conteúdos
semânticos muito distantes da noção atual, que o considera sinônimo
de res publica14. Para o termo “soberania” o risco é maior, pois seu
uso no léxico politológico medieval tem um conteúdo semântico
aproxim ado; nesse caso, a perm anência form al de um dado lexical
poderia levar a erros grosseiros. E seria um erro realmente grosseiro
pensar que soberania é um term o típico do direito feudal e significa
simplesmente, segundo a etim ologia, superioridade, noção relativa
que fixa o sujeito no interior de um a com plexa relação hierárquica15.

3. A relativa in d iferen ça do p o d e r p olítico pelo direito.


A auton om ia do direito

Os contornos torn am -se m ais nítidos e delin eiam -se con se­
qüências precisas para nossa tentativa de com preensão histórico-
-jurídica.

13 São esclarecedoras as páginas de um canonista sensível à dimensão histórica: P.


Bellini, Legislatore, giudici, giuristi nella esperienza teocentrica delia Repubblica cris-
tiana (ed. or. 1982), atualmente in id., Saggi di storia delia esperienza canonistica,
Turim, Giappicheili, 19 9 1, sobretudo p. 129.
14 Ainda durante toda a Idade Média tardia, aquilo que chamamos “Estado” conti­
nua a ser indicado com os vocábulos tradicionais “ imperium”, “regnum”, “res publi­
ca”, “civitas”. Cf. G. Post, Studies in Medieval Legal Thought. Public Law and the
State, 110 0 -1322 , Princeton, Princeton UP, 1964, pp. 241 ss.; G. Miglio, Genesi e
trasformazioni dei termine-concetto “Staío” ed. or. 1982), atualmente in id., Le rego-
laritá delia politica, Milão, Giuffrè, 1988, p. 802.
|L’ É esclarecedora a seguinte passagem de um dos maiores comentadores franceses
dos costumes feudais, Beaumanoir (séc. XIII): “chascun barons est souvereins en sa
baronie” (todo barão é o superior na sua baronia). Mas essa baronia representa apenas
um degrau muito relativo da complexa escada hierárquica feudal. Não extrairemos
desse texto de Beaumanoir os resultados extraídos por Calasso, Iglossatori, cit. p. 120.
FU N D A Ç Ã O DE UMA F. XPE RIÈ NC IA J U R Í D I C A • 6l

O Estado sem pre considerou a relevância do direito, do direito


coino um todo, para a realização de seus objetivos “totalitários”, e
sempre o incluiu em seus program as: em bora com m anifestações
sensivelm ente diferentes, encontram os um a m esm a postura b ási­
ca seja no Estado rom ano (onde isso ocorre através de vários c a ­
nais confluentes, sobretudo um a apropriada iurisprudentia), seja
no Estado liberal m oderno, onde o problem a da produção ju ríd i­
ca é subtraído a diferentes órgãos, reservado ao próprio Estado e
reduzido - em sua quase totalidade - ao único canal obrigatório
da lei, expressão da vontade exclusiva do m acrocosm o Estado.
Este últim o é exem plo que qualificam os com o autêntico absolu-
tismo ju ríd ico, apesar dos pressupostos econ ôm ico-ju rídico s de
cunho tipicam ente liberal.
Profundam ente diferente, por sua vez, é a postura do regim e
político m edieval, o qual, desprovido de anseios e de vocações
totalizantes, parece-nos - ao contrário - inclinado a um a relativa
indiferença pelo ju ríd ico.
Vam os esclarecer m elhor: não pretendem os de m od o algum
dizer que o direito tem um peso relativo na civilização m edieval,
afirm ação que seria desm entida pela centralidade daquele para a
caracterização desta. Q uerem os dizer apenas que o detentor do
poder não concebe o direito enquanto tal com o objeto necessário
de suas atenções e instrum ento obrigatório de seu regim e; não o
identifica com o um indispensável instrum entum regni.
A atenção do m onarca, do senhor, da com un a m edieval, está
voltada sobretudo para aquela área do ju ríd ico naturalm ente
vinculada ao exercício e à con servação do poder, que hoje id en ­
tificaríam os na noção genérica de “direito público”. Para todo o
restante, é evidente um a relativa ind iferen ça e, se p referirm o s, o
respeito im plícito p o r outras fontes norm ativas. Para nos ce rtifi­
carmos disso, é suficiente abrir um edito lom bardo, um a capitu ­
6 2 ■A O R D E M J U R Í D I C A M E D IE V A L

la r16 franca, ou - m ais tarde - o estatuto de um a cidade livre:


paralelam ente às disp osições inerentes à “constituição”, à a d m i­
nistração pública, à aplicação de penas, a vida cotidian a da ex p e­
riên cia ju ríd ica - aquilo que hoje ch am am os de direito “c ivil”,
“com ercial” 17, “agrário ” e assim p o r diante - recebe um a atenção
geralm ente ep isód ica, sem organicidade, bem ocasion al, tanto
que o historiador que quisesse reconstruí-la com base apenas nos
atos legislativos esboçaria um a história incom pleta e claudican-
te, bastante d esarticu lad a do tecido da experiência.
A relativa indiferença do detentor do pod er político pelo d i­
reito gera um a relativa autonom ia deste em relação àquele. E essa
é um a conclusão de notável valor interpretativo, desde que se apre­
sente o tem a em term os nítidos e claros. O conceito de autono­
m ia é um dos m ais am bivalentes e escorregadios e deve ser d efi­
nido com extrem a precisão. C o m o v im o s em outro contexto mais
acim a, não se trata de um a noção absoluta. N a acepção aqui p ro ­
posta, não significa neutralidade do direito nem sua subtração ao
jogo das forças históricas: num a realidade tão hum ana com o é toda
realidade juríd ica, as zonas neutras são de fato, se não inconcebí­
veis, ao m enos extrem am ente reduzidas. A noção de autonom ia
é, portanto, relativa, ou seja, relativa ao regim e político transitório,
e significa apenas que o direito não é expressão de um ou outro
regim e nem apenas das forças relacionadas a ele. A o contrário, é
em grande parte desvin culado delas.

Na história do direito, o termo “capitular” (capitulara) refere-se aos atos norma­


tivos dos monarcas francos, assim denominados por serem habitualmente dividi­
dos em “capítulos".
1 Alguns institutos do tráfego comercial receberam atenção e disciplina durante as
chamadas “corporações de artesãos” justamente porque nelas, graças à predomi­
nância da classe (do estamento) mercantil, constituição política e econômica, coisa
pública e interesses da corporação terão amplas áreas de coincidência.
F U N D A Ç Ã O DE U M A E X P E R I Ê N C I A J U R Í D I C A ■ 63

A produção e a adequação da ordem jurídica estão m uito li­


gadas à pluralidade e à variedade das forças que com põem a s o ­
ciedade civil. N esse contexto, autonom ia sign ifica, pois, autêntica
historicidade do direito, capacidade de interpretar e representar o
jogo das linhas propulsoras presentes na sociedade, im p ossib ili­
dade de ser reduzido à voz de um príncipe, de um a cam ada res­
trita, de um a classe.
A utonom ia sign ifica desvencilhar-se de forças específicas e
particulares, m as significa im ersão com pleta, sem obstáculos, na
estrutura profunda de um a época e de um lugar e, ao m esm o tem ­
po, a percepção dos m ovim entos e pressões dentro dessa estrutura.
Se o vínculo com o pod er é parcial e nebuloso, em contrapartida
é vivo e característico aquele relacionado ao costum e, às estru tu ­
ras econôm icas, aos m ovim entos espirituais. Se nos habituam os a
perceber no direito m oderno, até recentem ente, a voz p red o m i­
nante de um a classe no p o d er - a burguesia - e a enxergá-lo com o
realização clara e inteligente de seu program a, diante do direito
medieval tem os de abandonar essa atitude mental por ser um m a l­
-entendido grosseiro para o historiador.
Só partin do de um resgate da autonom ia, com o tentam os fa ­
zer, e nos term os acim a detalhados, será possível ju stificar h isto­
ricamente por que, num am biente insensível às reivin dicações
sociais e repleto de lim itações à capacidade de ação de m uitos
sujeitos, vem os a posição de sim ples laboratoresls prom ovida, p ro ­
tegida, garantida num plano tipicam ente ju ríd ico, com o ocorre
quando - na quase totalidade dos contratos agrários consuetudi-
nários, fartam ente abundantes na práxis do prim eiro período
medieval - vem os o concessionário elevado à categoria de posses-
sor, ou seja, protegido durante toda a vigência do contrato não

ts Pelos motivos que esclareceremos mais adiante (cf. p. 87).


6 4 •A O R D E M J U R Í D I C A M E D I E V A I .

apenas em relação a terceiros, m as sobretudo em relação ao pró­


prio concedente. Sinal de que o direito é terreno de confluência
de forças diversas, é resposta às exigências objetivas dos hom ens
e das coisas, e não o artifício preestabelecido nem pelo estam ento
dos proprietários nem pelos detentores do poder.

4. P lu ralism o do direito m edieval

N a seção anterior, falam os m ais de um a vez sobre um a plu ra­


lidade de forças im plicadas na construção da ordem ju ríd ica m e­
dieval. Se isso pode ser fantasiosam ente im aginado com o um a
rede estendida entre o que é form alm ente ju ríd ico e a grande m as­
sa dos fatos (fenom ênicos, sociais, econôm icos), quase a filtrá-los,
controlá-los, digeri-los, certam ente a nova ordem se nos apresen­
ta com m alhas m uito am plas, incapazes de qu alq u er operação
de crivo.
C om a im potência cada vez m ais crescente do m ecanism o es­
tatal rom ano, todo o aparelho coercitivo se enfraquece, e as forças
antes contidas e represadas adquirem vigor e valor. A partir do
século IV, os h istoriadores passam a ressaltar e a seguir um a ver­
tente “vu lgar” do direito que se delineia cada vez m ais claram ente
e corre paralela ao direito “oficial” 19, com um m ovim ento que,
origin an d o-se nas províncias m ais periféricas, pouco a pou co se
estende para toda a realidade do Im pério.
“ V ulgaridade” do direito significa extraestatalism o, recurso a
forças alternativas para preencher o vazio deixado pela desagrega­
ção política; significa um estilo e um a m entalidade e tam bém ela­
borações e soluções que espontaneam ente tom am form a em cada
com unidade, substituindo-se ao direito oficial na tentativa de dar
um a resposta adequada às novas idealidades e necessidades. O cha­

15 Mas envolvendo, no entanto, também o direito oficial.


F U N D A Ç Ã O DE UMA E X P E R I Ê N C I A J U R Í D I C A • 65

mado “direito vu lgar” é um a vertente alternativa: são institutos an­


tigos que se deform am e institutos novos que se criam , tomando
livremente por base o grande reservatório da vida cotidiana.
D o ponto de vista rigorosam en te h istórico -ju ríd ico , já in i­
ciam os o itinerário do direito m edieval20. C o m o fenôm eno da
“vulgarização”, superou-se o lim ite da nova experiência. De fato,
constata-se a consolidação da tolerância por parte do regim e p o ­
lítico em relação a outros processos de form ação do direito, e n ­
quanto a experiên cia ju ríd ica - já de m odo não m ais latente, m as
totalmente m anifesto - retom a toda sua com plexidade, co m ple­
xidade essa que, no plano sociocultural, significa pluralidade de
valores e, no plano ju ríd ico , pluralidade de tradições e de fontes
de produção no interior de um m esm o ordenam ento político.
N o prim eiro período m edieval, quando o pertencim ento a
uma linhagem e o respectivo m ito do sangue representam valores
indiscutíveis, o princípio que se irradia, e que verem os am plam ente
difundido e afirm ado, não é a territorialidade, mas sim - segundo
a expressão com um ente usada pelos historiadores - a “p e rso n a li­

20 Os romanistas debateram sobre isso de forma ampla e erudita no segundo pós­


-guerra, sobretudo após as abrangentes reformulações de Ernst Levy, mas o me-
dievalista teria a visão mais aberta sobre o tema, por ser um personagem despro­
vido de modelos copiados e atento a captar as primeiras consolidações da nova
experiência jurídica. Dentre as contribuições dos romanistas, preferimos desta­
car as observações corajosas desenvolvidas por F. Wieacker no recente trabalho
‘“ Diritto volgare’ e ‘volgarismo’. Problemi e discussioni”, Atti delVAccademia ro-
manistica costantiniana, IV (19 8 1), sobretudo p. 5 13 ; uma recensão publicada em
19 51, de G. Pugliesi a Levy, West Roman Vulgar Law. The Law o f Property, atual­
mente in id., Scrittigiuridici scelti, v. II, Nápoles, Jovene, 1985, que reúne as con
sonâncias entre direito bárbaro e direito romano vulgar não como assimilação de
um pelo outro - segundo a ótica metodologícamente discutível de Levy - mas
como coincidência de soluções e de respostas diante de condições socíoeconômi-
case culturais idênticas (v. pp. 126-7); e sobretudo uma observação consciente (e,
portanto, digna de reflexão) de A. Guarino, “‘Vulgarismus’ e diritto privato pos-
tdassico”, Labeo, 6 (1960), a propósito do segundo volume do “rõmische Priva-
trecht” de Kaser.
6 6 •A ORDEM JURÍDICA MEDIEVAL

dade” do d ir e it o * c o m isso não se pretende de m odo algum dizer


que toda pessoa tem seu próprio direito, e sim , m ais precisam en ­
te, que toda pessoa, no m esm o regim e político, longe de ser su fo­
cada num direito unitário com projeção territorial, é portadora
- con form e as particu laridades do próprio grupo étnico - de um
direito específico e diferenciado. A ssim - para exem plificar com
a situação italiana - , o rom ano poderá professar e usar o p a trim ô ­
nio próprio da sua tradição ju ríd ica, assim com o o lom bardo p o ­
derá utilizar o seu; do m esm o m odo, pessoas funcionalm ente li­
gadas a gru pos socialm ente fortes pretenderão ser disciplinadas e
julgadas segundo o direito elaborado no interior desses gru pos e
talvez p or ju ízos expressos pelos próprios gru po s e que irão julgar
com base nesses direitos especiais: é o caso, já no p rim eiro p e río ­
do m edieval, do clérigo, reconhecidam ente sujeito ao direito ca­
nônico com o ius ecclesiae2-, e m ais tarde o do m ercador, que será
subm etido àquele direito pecu liar produzido pelo coetus merca-
torum , prim eiro em brião do futuro “direito com ercial”.
N o segundo p erío d o m edieval - Idade M éd ia sapiencial - ou­
tra coexistência extrem am ente singular irá assinalar o acentuado
pluralism o dessa experiên cia ju ríd ica: no m esm o território terão
vigên cia e aplicação - nos m od os que tentarem os explicar mais
adiante:i - seja os cham ados iura p ró p ria, isto é, as norm as p arti­
culares consolidadas pelo costum e ou prom ulgadas em âmbito
local por m onarcas e por cidades livres, seja o ius com m une, isto
é, o m ajestoso sistem a ju ríd ico universal elaborado sobre a plata­
form a rom ana e can ônica por um gru po m uito destem ido de ju ­

2J Uma boa amostra do complexo debate historiográfico sobre o tema da persona­


lidade do direito está em M. Bellomo, Societá e istituzioni dal medioevo agli inizi
dellctà moderna, Roma, 11 cigno, 19936, p. 37.
" Cf. mais adiante, no cap. V.
2' C f p. 273.
FU N D A Ç Ã O DE UMA E X P E R I Ê N C I A J U R Í D I C A • 67

ristas (professores, doutores, práticos), patrim ônio científico p re­


sente em todas as partes, fornecendo esquem as interpretativos,
invenções técnicas, soluções para os m uitos casos não previstos
no âmbito local pela m iopia dos legisladores.
O pod er político respeita essa pluralidade de tradições coe-
xistentes, revelando, assim , a atitude geral de substancial in d ife­
rença em relação a b oa parte do que é ju ríd ico. Sua p rod ução é
delegada a outras forças. Os príncipes, seus fun cio n ário s e seus
juizes contem plam esse plu ralism o e lhe dão crédito co m seu res­
peito. O juiz está ali, atuando, tom ando todo cuidado em estabe­
lecer as tradições ju ríd icas do autor e do citado, anotando as p ro ­
fissões solenes de vín cu lo a um direito ou a outro e estudando,
por conseguinte, as possíveis soluções24; e os docum entos ju d i­
ciais e notariais, ao m en cionar os diversos direitos dos com pare-
centes e contraentes, e a eles se referindo continuam ente, nos le m ­
bram um tecido p en insu lar italiano no qual se entrelaçam , m uitas
vezes no m esm o lugar, os m ais diferentes iura da vertente g e rm â ­
nica, o direito teodosiano, o direito justiniano, paralelam ente aos
costumes locais nascentes.
A referência ao costum e parece nos advertir, porém , que o
pluralism o ju ríd ico m edieval não é apenas um conjunto de cu ltu ­
ras jurídicas, m as se concretiza, num plano tipicam ente técnico,
em um conjunto de fontes de produção. A chave interpretativa es­
sencial de toda a ordem ju ríd ica m edieval - aquela que nos cabe
sublinhar ao leitor - é que os detentores do po d er constituem
uma fonte entre as m uitas cham adas a ed ificar essa ordem ; sem
dúvida, não a única e tam pouco a predom inante. O problem a das
fontes - problem a estrutural de toda construção histórica sub spe-
cie iuris - resolve-se num conjunto de contribuições que reflete

Ver a síntese fornecida por Calasso, Medioevo dei diritto, cit., p. 117 .
68 ■A ORDEM JURÍDICA MEDIEVAL

fielm ente o conjunto de forças de que o direito é espelho e form a


com pleta. E a contribuição dos príncipes (sejam eles m onarcas
ou cidades livres), ainda que exista e talvez possa parecer tam bém
quantitativam ente considerável, toca apenas os tem as centrais da
construção ju ríd ica da sociedade.
A s “ leis” - ou seja, os atos de autoridade gerais e rígidos, des­
tinados a todos os súditos ou a uma parte considerável deles - não
faltam nem m esm o no p rim eiro período m edieval. Os m onarcas
visigod o s na E spanha e os lom bardos na Itália, no com ando de
reinos que p o r m uitos séculos constituíram um regim e estável,
respectivam ente, em toda a península Ibérica e em boa parte da
Itália centro-setentrional (séculos V I-V III), em penharam -se num a
constante atividade legislativa. M as o que pretendem essas “ leis”
e qual seu conteúdo? Vam os exam inar um a delas, a m ais festejada
e tam bém a m ais relevante entre as norm atizações da península
italiana, o grande Edictum Langobardorum , elaborado pelo rei
Rotari em 643 com a assistência e a aprovação dos notáveis do
Reino: se alguém pretendesse encontrar, nos 3 38 capítulos que
com põem a obra, um projeto orgânico, um apanhado sistem ático
coeso, ficaria decepcionado. A atenção do legislador está voltada
especialm ente para o direito penal e o direito de fam ília, acom pa­
nhados de m aneira esparsa e m arginal por um am ontoado de ca­
pítulos desconexos dedicados às m ais diferentes m atérias. A obra
de Rotari é sobretudo um a consolidação de antigos costum es do
populus langobardorum , obviam ente não escritos, sem nenhum a
pretensão de neles encerrar a totalidade do ordenam ento, mas
pressupondo, ao contrário, que este se form ara e continuava em
form ação graças à convergência de costum es e de tradições quase
sem pre provenientes de fontes m uito diferentes do príncipe25. Tra­

23 Bellomo, Societá e istituzioni..., cit., pp. 175 ss. Para um enquadramento não
formalista do Edito, cf. G. Bognetti, VEditto di Rotari come espediente politico di
F U N D A Ç Ã O DE U M A E X P E R I Ê N C I A J U R Í D I C A • 69

tava-se, em sum a, de um a contribuição norm ativa de objeto lim i­


tado e sem grandes am bições.
O m esm o se aplica, ao m enos no que diz respeito à política
legislativa, aos atos norm ativos dos m onarcas francos, os ch am a­
dos C apitu laria, que proliferam a partir do fin al do século V III.
Nesses testem unhos, a obra do legislador, que tam bém aqui é v i­
sivelmente m ovid o pela prem ente necessidade de um a redução
unitária do m osaico ju ríd ico do Im pério, concentra-se em deter­
minadas m atérias de relevância “publicista” com um a nítida p re­
dom inância das norm as que regulam a adm inistração do Impe-
rium e dos Regna e, sobretudo, as relações entre poder político e
poder eclesiástico26.

5. Sua factualidade

A “ lei” do príncipe se nos apresenta, pois, com o um canal m e­


nor para o escoam ento da experiência ju ríd ica m edieval, co n tri­
buindo, portanto, m inim am ente para sua produção, e atualm ente
contribui de m aneira m uito relativa para sua com preensão. A p ro ­
dução do direito reside sobretudo em outras m ãos; a experiên cia
flui em outros canais.
Não po d em os esq u ecer tam bém que, precisam en te pela re­
lativa indiferença do po d er po lítico pelo direito, o m om ento de
edificação da ordem ju ríd ica caracteriza-se por um a substancial
liberdade. Para além de program ações e de sistem atizações ce n ­
tralizadoras, o direito reencontra suas fontes tam bém nas bases,
encontra sua natureza de divisão espontânea de um tecido social.
Sem m ais restrições para detê-lo, am putá-lo, condicioná-lo, volta

una monarchia barbcirica (ed. or. 1957), atualmente in id., Vetà longobarda, v. IV,
Milão, Giuffrè, 1966. Foram escritas a esse respeito páginas sugestivas por P. M.
Arcari, Idee e sentimenti politici dellalto medioevo, Milão, Giuffrè, 1968, sobretudo
pp. 651-2.
26 F. Ganshof, Recherches sur les capitulaires, Paris, Sirey, 1958, pp. 72-4.
7 0 ■A O R D E M J U R Í D I C A M E D I E V A L

a nascer dos fatos e a se construir a partir deles. N um m undo onde


o po d er político parece renunciar à própria função organizativa
no plano ju ríd ico e onde os m odelos a ser ob servad o s se to rn a­
ram m ais rarefeitos, a esfera do ju ríd ico e a do factual tendem a se
fun d ir; a dim ensão da “validade” cede lugar à da “efetividade”.
Se validade sign ifica correspondência a certos arquétipos, se
os arquétipos se desagregaram com a dissolução do Estado e da
cultura precedente, então a organização ju ríd ica deverá repousar
em outras bases. O fato não se tornará direito porqu e um a vo n ta­
de política se apropria dele depois de constatar sua coerência com
determ inados valores que lhe são relevantes, ou seja, depois de
um crivo filtrante totalm ente confiado àquela vontade. N esse caso,
o fato já é direito por sua força intrínseca, no m om ento em que
dem onstrou a própria efetividade, ou seja, a capacidade que en ­
controu em si de in cidir duravelm ente na experiência.
N um m undo tão desprovido de invólucros coercitivos, o d i­
reito se destaca por sua decisiva “factualidade” : isso não significa
que nasce do fato (o que seria um a observação m uito banal), e sim
que o próprio fato tem aqui um a carga tão vital a ponto de poder
se propor sem o concurso de intervenções alheias, m as com a ú n i­
ca condição de se dem onstrar dotado de efetividade, com o fato
autenticam ente norm ativo, revelando a capacidade inata de ser
po r si só protagonista dos vários ordenam entos, em que chega a
ser fonte em sentido form al.
Todavia, é preciso ob servar que, se se pretende dar u m con ­
teúdo historicam ente válido a essa noção de fato, não se deve re­
co rrer m entalm ente ao “fato” de que falam os teóricos m odernos
do direito, que já é fato ju ríd ico, num enfoque voluntarista que
certam ente nos induziria a erro ” . Por fato entenda-se, ao contrá­

27 O primeiro pensamento que nos vem à mente refere-se a dois ensaios que circu­
laram na Itália, precisamente: A. E. Cammarata, II significato e la funzione dei “fatto”
FUNDAÇÃO DE UMA EX PER IÊN CIA JU R ÍDICA • J 1

rio, uma entidade de natureza física e social que, sem abandonar


a própria qualidade de fenôm eno prim itivo e prim ordial, todavia
já é intrinsecam ente direito, tem em si um a potencialidade ju ríd i­
ca destinada a se m anifestar e a in cidir na experiência histórica.
A ordem jurídica m edieval origina-se precisamente no clima de
intenso naturalism o que dom ina o O cidente a partir do século V.
A natureza das coisas físicas e sociais, não m ais reprim id a ou su ­
blimada, pretende conter em si a regra ju ríd ica e atribui um papel
importante aos fatos, àqueles fatos prim ordiais em m eio aos quais
os hom ens se m ovem arduam ente em sua história terrena. Se po r
um m om ento voltam os nossa atenção para o panoram a histórico
que aqueles séculos nos oferecem , para a desagregação política, a
desordem social, a sucessão de invasões, guerras, epidem ias, ca-
restias, para a crise d em ográfica generalizada, a penosa e árdua
sobrevivência cotidiana, percebem os que a natureza das coisas f í­
sicas e sociais, na sua estabilidade m eta hum ana, se m ostra com o
a única certeza, a única orientação e, enquanto tal, a única fonte
de regras.
A factualidade do direito significa a tentativa desesperada de
encontrar solidez para além do convencional e do artificial, num
mundo sim ples de fatos que o operad or respeita com absoluta
humildade. Sem presunções, debruçam o-nos sobre as coisas - rea­
lidade m isteriosa e indom ável, m as vigorosa - para tentar ler a
m ensagem que elas nos transm item , a regra nelas inscrita desde o
princípio dos séculos.
Trata-se de um início m arcado pela descontinuidade: é nova
a incandescência dos fatos sociais e econ ôm icos e são novos a
consciência e o sentim ento que se tem da natureza cósm ica. C om
esses fatos novos, com essa consciência, avalia-se a real im agem

nell esperienza giuridica (ed. or. 1929), atualmente ín id., Formalismo e saperegiuri-
dico, Milão, Giuffrè, 1963, e Cesarini Sfor/.a, lixficto ius oritur, cit.
7 2 •A O R D E M J U R Í D I C A M E D I E V A L

da nova ordem . D esse m odo, com o já m encionam os, relegam -se


entre os exercícios m ais estéreis aqueles destinados a se questio­
nar se o novo era com parável com com portam entos pré-clássicos
ou até pré-rom an os28, e entre as práticas m ais arriscadas aquelas
inclinadas a d escob rir - com o espírito m ais de histologista que
de historiad or - “elem entos” rom anos, germ ânicos, orientais.
A ordem ju ríd ica m edieval nasce da derrocada de um a civili­
zação, do m odo com o se reagiu a essa d errocad a lidando com os
fatos concretos daquela época, com a consciência concreta que se
teve daqueles fatos na ocasião. A finid ades, sem elhanças com ep i­
sódios mais ou m enos distantes, mas alheios àquela koinê histórica,
só fazem sentido na im aginação de alguns pesquisadores. O im ­
portante é o surgim ento, indubitavelm ente esparso e fragm entado
no início, de um novo m odo de conceber e viver o direito, de uma
nova experiência, de novas figu ras factuais que correspondem às
dem andas contingentes. M ais que deform ações ou alterações de
velhas figuras (talvez clássicas), consistem em células precursoras
de um a civilização n ova projetadas num itinerário que nasce na­
quela época, m as que terá vid a longa. E m sum a, m ais que relíquias
deform adas do passado, são presságio e antecipação do futuro.
Se, para um olhar estetizante, esse m undo abarrotado de figu ­
ras desajeitadas e toscas que surgem no palco ocidental pode p a­
recer um “ retrocesso”, sob u m a perspectiva historicam ente mais
em basada deve-se perceber nele a desvinculação do ju ríd ico do
abraço condicionante do político, o resgate do ju ríd ico com o rou-

28 Observações oportunas em B. Paradisi, Quelques observations sitr un thème céle­


bre à propos de E. Levy, " Westmmisches Vidgarrecht, Das Obligationeitrecht” [Wei-
mar, Bohlau, 1956] (ed. or. 1959), atualmente in id., Studisid medioevogiuridico, cit.,
v. I, p. 25 (ver a respeito o instrutivo prefácio (p. VII) nesse volume coletâneo), e em
G. Vismara, Lefonti dei diritto romano nellalto medioevo secondo la piü recente sto-
riografia ("1955-1980), (ed. or. 1981), atualmente in id., Scritti di storiagiuridica,\. I,
Milão, Giuffrè, 1987, pp. 519 ss.
FUNDAÇÃO DE UMA EX PER IÊN CIA JURÍDICA • 7 3

pagern apropriada e inata do social, com o realidade infraestrutu-


ral, percebida com o ela realm ente é na essência dos fatos. É p reci­
so repetir m ais um a vez: um direito que não é voz do poder e que
não se coaduna com o poder; que, ao contrário, é em anação de
forças profundas que estão para além e acim a do poder.
O panoram a que se apresenta aos olhos do h istoriad or é e x ­
tremamente variado, com plexo, talvez até confuso. Se pluralism o
significa confluência de contribuições e um concurso valioso de
várias experiências, para o m odesto nível da vid a cotidiana a c o n ­
vivência não pode d eixar de registrar m isturas, sobreposições,
conflitos. O princípio da cham ada personalidade do direito m o s­
tra inevitavelm ente os m uitos inconvenientes do fracion ism o ju ­
rídico a que dá lugar.
É preciso notar que a própria vida cotidiana - m ais que o
príncipe relativam ente indiferente - é que irá pretender a supera­
ção do princípio de personalidade. E serão sobretudo os costum es
- mais que os atos norm ativos - que prom overão tentativas de
composição, elaborando regras e soluções unitárias para um a área
territorial definida e criando, portanto, os em briões dos futuros
direitos territoriais29. A ssim , o m om ento de fundação da experiên ­
cia jurídica m edieval dem onstra - m esm o nas reviravoltas de seu
devir - um a dim ensão claram ente consuetudinária. N essa d im en ­
são, que é essencialm ente pluralista, residem sua possibilidade de
resgate e sua força histórica. M as verem os m elhor esse aspecto um
pouco m ais adiante.

6. Sua h istoricid ad e

De tudo o que dissem os até agora, de cada um a das p e cu lia ­


ridades até aqui evidenciadas, deriva o últim o elem ento caracte-
rizador do novo direito: a historicidade. E neste contexto enten­

' 9 Calasso, Medioevo dei diritto, cit„ pp. 184 ss.


7 4 •A O R D E M J U R Í D I C A M E D I E V A L

dem os por historicidade a fidelidade da representação ju ríd ica às


forças que circu lam e agem na sociedade, razão pela qual o tecido
form al do direito - longe de se afastar da sociedade em seu devir
- ao contrário, segue-lhe o curso, m antendo-se em estreita ade­
rência às necessidades e às idealidades que pouco a pouco sur­
gem na vida associada.
E não po deria d eixar de ser assim . O direito, precisam ente
p o r seu não estatalism o e por seu contínuo origin ar-se no social
e do social, não sofre os artifícios de um a elaboração burocrática.
O direito é e continua a ser fruto da história, participante vivo da
história. Sua canalização nas vertentes extrem am ente m óveis do
costum e e sua aversão a ser im obilizado na letra rígida de um co ­
m ando autoritário perm item que ele adquira e con serve o bem
suprem o de um a íntim a coerência com as estruturas e com o es­
pírito da civilização subjacente. O direito não é instrum ento co er­
citivo dessa civilização, m as seu espelho e intérprete.
G raças a sua factualidade e a sua conseqüente vocação - com o
verem os - para se expressar na m ais factual das fontes, o costum e,
jam ais renuncia ao requisito da plasticidade, m ostrando-se geral­
m ente com o um a sedim entação aluvial em m ovim ento e em pere­
ne m odificação, continuam ente incerta, por estar destinada a v a ­
riar de um lugar para outro e de um a época para outra.
À s garantias form ais da generalidade, da abstração, da rigidez
- que são as garantias incorporadas à lei m oderna a ordem con-
suetudinária m edieval contrapõe a exigên cia da norm a particular
e plástica, em perfeita aderência ao corpo social. E prefere-se pa­
gar o preço - na verdade alto - de toda construção usual: a alu-
vionalidade, a assistem aticidade e, sobretudo, a incerteza.
Entregue à sensibilidade dos operadores práticos, desprovida
quase totalmente de m odelos prefabricados, essa ordem vive, com o
nunca, a experiência do “cotidiano” e do “p articu lar”. Para perce­
b er essa situação, basta um exam e ainda que superficial da práti­
F U N D A Ç A O DE U M A F . X P E R I E N C I A J U R Í D I C A • 7 5

ca ju ríd ica, cam po preferido dessa laboriosa form iga da oficina


jurídica das fundações m edievais que é o notário30: sobre os v e ­
lhos esquem as dos form u lário s rom anos, ou deles prescindindo
totalmente, com um a liberdade e um a desenvoltura notáveis, ele
adapta e m od ifica, intui e cria figuras, com diagnósticos que
apontam sem pre para os fatos, para as instâncias concretas p ro ­
clamadas pelos fatos. E os instrum entos contratuais irão exaltar,
na variedade de seus conteúdos (pensem os, por exem plo, na e x ­
trema variedade dos contratos agrários), a referência à vida co ti­
diana, às estruturas concretas, aos usos estabelecidos na terra11.
Sob esse aspecto, o direito m edieval, em bora não se vinculando
a este ou àquele regime político, ou antes, por estar totalmente dis­
sociado de qualquer um deles, colore-se de um a intensa politicida-
de. M as, no caso, essa politicidade deve ser adm itida em sentido
lato; significa historicidade, especifica apenas a fidelidade da form a
à substância social e econôm ica, às idealidades e às necessidades
que circulam na grande “pólis” da sociedade civil com o fato global.

7. O declín io da cultura ju ríd ica . N a tu ralism o e


p rim itivism o n a fu n d ação da nova exp eriên cia

O período da fundação m edieval, do século V ao X I, não foi,


em geral, um a época de incultura, m as sim de um a cu ltu ra32 que
não circulava.

30 Sobre esse papel impulsionador do notário, cf. sobretudo Vismara, Leggi e dottri-
na nella prassi notarile italiana dellalto medioevo (ed. or. 1979), atualmente in id.,
Scritti di storia giuridica, cit., v. II, e G. Nicolaj, Cultura e prassi di notai preirneriani.
Alie origini dei Rinascimento giuridico, Milão, Giuffrè, 1991.
31 A esse respeito, cf. mais adiante, às pp. j 29-32.
3 Adotamos aqui o termo “cultura" 11a sua acepção mais específica de educação
das capacidades intelectuais e, portanto, de um conjunto de conhecimentos. Na
linguagem de etnólogos e sociólogos, sobretudo do século XX, o termo sofreu uma
ampliação e também uma deformação, chegando a indicar o ambiente genérico em
que o processo educativo se desenvolve, assumindo, portanto, um significado sino-
nímico ao de civilização.
7 6 ■A ORDEM JU R ÍDICA MEDIEVAL

Se é verdade que a sociedade civil não é p ercorrida, em ne­


nhum de seus estratos, nem sequer nos m ais elevados, p o r in s­
tâncias e ferm entos de cunho cultural, ainda assim é necessário
constatar a excelência dos estudos que surgem e se desenvolvem
em determ inados centros, p o r exem plo, em m uitas instituições
m onásticas. Trata-se, no entanto, de centros fechados e de um a
cultura feita por pou cos e para poucos: de fato, o m osteiro, lugar
de eleição da dim ensão cultural desses séculos, é por natureza
um a entidade propen sa à introversão, fechada em seu caráter de
com un idade separada e distinta, m ais sensível a um ideal de co ­
m u nicação e de abertura m etafísicas que so ciais33. N o âm bito g e­
ral, isto é, no plano filosófico, teológico e tam bém literário, se faz
sentir e se exalta o contraste entre um scriptorium m onástico, ci­
dadela cercada por um a profunda especulação, e o vazio que en ­
volve a sociedade no seu todo.
O m esm o não ocorre, porém , com aquela cultura especial, a
cultura juríd ica, que é a única a nos interessar aqui: o vazio nesse
cam po é quase total, e será inútil b uscar no O cidente um lugar
m esm o restrito e fechado em si m esm o que dê continuidade ao
aprofundam ento doutrinai dos clássicos e dos pós-clássicos, ou
que se aproxim e do trabalho dos m estres bizantinos no Oriente.
Faltam pessoas, propósitos, escolas. A lgun s h istoriadores do direi­
to, sobretudo de m uitos anos atrás, gostavam de im agin ar a exis­
tência de verdadeiras escolas de direito situadas em R om a e em
Ravena, continuadoras da mensagem científica antiga, mas trata-se
de ilações desprovidas de bases sólidas.
A realidade é m ais com plexa: a ciência do direito, pela v o ca ­
ção operacional que traz em si, não pode deixar de ter um vínculo

33 Outro tema é aquele que diz respeito à grande influência dos centros monásticos
sobre a própria estrutura econômica do território em decorrência de um patrimô­
nio fundiário muitas vezes considerável.
F U N D A Ç Ã O DE UMA E X P E R I Ê N C I A ( U R Í D I C A • 7 7

necessário e insuprim ível com a sociedade e traz inevitavelm ente


os sinais dos m ovim entos que a percorrem . D esm oronada a velha
estrutura estatal, desm oronada a velha cultura ju ríd ica que nela
estava solidam ente ancorada, o regim e consuetudin ário desses
séculos não parecia sentir a necessidade de um a reflexão d o u tri­
nai de caráter científico. M elhor dizendo: não podia senti-la. A
ciência, para con stru ir seus edifícios, precisa de conquistas c o n ­
solidadas e assentadas sobre as quais erguer validam ente um a re­
flexão. M as na nova oficina m edieval, a práxis edifica, dia após dia,
o seu direito, plasm ando-o e diversifican do-o conform e as e x i­
gências dos lugares e das épocas, m ostrando-se com um a fisio n o ­
mia incrivelm ente heterogênea e irredutível à unidade.
O m aterial ju ríd ico, nesse caso, sofre de um a incandescência
que é de fato fonte de perene coerência, m as tam bém de perene
incerteza. N o laboratório em pírico dos juizes e dos notários, ju l­
gado após julgado, ação privada após ação privada, m ais que a
tentativa consciente de construção de um edifício socioju ríd ico,
existe a sensibilidade para identificar e fixar, nos diagnósticos s e m ­
pre apropriados das sentenças e dos negócios, um a consciência
renovada do real, que contribui - sem dúvida, de m aneira in con s­
ciente, mas eficaz e duradoura - para a sedim entação dessa co n s­
ciência, para que ela se aprofunde nas raízes m ais recônditas do
costume. Por toda a duração de um tão atarefado canteiro de obras,
o problem a era - e continuaria a ser - tipicam ente operacion al;
era e continuaria a ser sem pre con fiado à práxis. A p rópria escola,
nesse contexto histórico, longe de ser um a trin cheira científica,
uma leitura do m undo em term os de ciência, propõe-se com o
subordinada à p ráxis e a ela condicionada.
N inguém po deria seriam ente negar a existência de escolas de
direito nesses séculos. O im portante é não deturpá-las, com o m u i­
tas vezes se fez, m ovid os p o r entusiasm os reconstrutivos. N ão te­
7 8 ■A O R DEM JU R ÍD ICA MEDIEVAI,

m os a presença de espaços de apurada reflexão científica, mas


sim plesm ente escolas de form ação profissional onde, com recu r­
sos intelectuais rudim entares, os aspirantes a juizes e notários re­
cebem as noções ju ríd icas indispensáveis para m elhor exercer
suas funções. N essas escolas, os instrutores preparam para o
exercício de um a profissão, m as são alheios a qualquer instância
de caráter autenticam ente cultural.
M as isso era o suficiente para um m om ento histórico em que
o problem a vital, do ponto de vista socioju ríd ico, ainda não era o
do esboço de um a arquitetura geral, e sim de um a análise circu n s­
tanciada, da identificação e da reunião de m aterial para a con s­
trução que se estava delineando a cada dia, m as que dem o n stra­
va, cada vez m ais, estar em contínua form ação. O período que vai
do século V ao X I se apresenta aos nossos olhos com o a o ficin a da
práxis, o laboratório ativo onde se m olda um costum e jurídico,
elaboran do-o desde os alicerces; um costum e cujo traço de o rig i­
nalidade está nessa oficin a e nessa atividade prática de exp eriên ­
cia vivenciada. É ali, e apenas ali, que con serva os seus valores.
O historiador reconstrutor, em sua exigência de compreensão,
deve pressupor esse vazio cultural e, longe de concentrar sua aten­
ção em produções doutrinais da época, necessariam ente rudim en­
tares e m odestas, deve inclinar-se com hum ildade para observar e
indagar o com plexo esforço recriador de um a civilização que se
realiza em piricam ente em outro plano e em outro nível. Em outras
palavras, a inexistência - ou a existência m arginal e incipiente - de
um a doutrina deve apenas nos conduzir a buscar em outro lugar o
sentido e o alcance de um ambiente histórico, evitando o beco sem
saída de apreciações negativas prefabricadas, mas, antes, respeitan­
do suas com plexas configurações e valorizando-as.
De fato, o vazio de um a cultura ju ríd ica é p ara esses séculos,
assim com o a incom pletude do pod er político, um a circunstância
FU N D A Ç Ã O DE U M A E X P E R I Ê N C I A J U R Í D I C A • 7 9

de extraordinário relevo e à qual se vincula, com o falávam os agora


há pouco, um a acentuada m arca de originalidade. Sem co n d icio ­
namentos de caráter cultural, dentro do am plo espaço reco n h eci­
do pelos detentores do poder público, a práxis pode trabalhar sua
capilar construção com um a extraordinária adesão aos fatos e às
estruturas. O direito, no âm bito desse relativo vazio, redescobre
então a sua vocação natural para assentar-se em dados estru tu ­
rais, para adaptar-se aos fenôm enos na sua naturalidade e m ate­
rialidade.
Tal construção, em bora absolutam ente pobre de traços espe­
culativos, tem um a força histórica notável. Será um a interpretação
do mundo fenom ênico e social inclinada a reproduzir fielm ente
os dados deste m undo, talvez até a suportá-los; será um canal de
interlocuçâo constante com a realidade externa, sem pre con duzi­
do com hum ildade, talvez com passividade. O operador ju ríd ico
não deve vangloriar-se de se propor a isso, pois não é o tradutor
em termos ju ríd icos de um irrefreável anseio de poder no mundo.
Se o b servarm os retrospectivam ente, a práxis desses séculos
mostra-se com o um a m iríad e de atos, cada um dos quais, tom ado
individualm ente, é insignificante na sua parcialidade, m as se in ­
sere com todos os outros num sentido, num a direção: a elabo ra­
ção, dia após dia, de um a ordem fundam ental, que redescobre o
único valor aceitável e perseguível num m u ndo desordenado e
caótico: o valor do efetivo.
A efetividade é a regra vencedora dessa experiência jurídica
em formação, pois, na sua falta de referências a um a elaboração
humana e à sua hierarquia de valores artificiosos, recorre aos fatos,
àqueles fatos que por si m esm os encontram na história cotidiana a
força para se destacar dos outros, para durar, para ter repercussão,
pois a efetividade não precisa depender de m odelos, m odelos de
que a nascente realidade m edieval é absolutamente pobre.
8 0 •A ORDEM JURÍDICA MEDIE VAL

Na verdade, o m odelo existe, m as não é prefabricado em toda


a sua precisão obrigatória po r um a com un id ade hum ana que o
assum e com o valor; pelo contrário, jaz, rarefeito, no m undo dos
fenôm enos, naquele m undo que os ju ristas cham am de m undo
dos fatos. Sua realização consiste, portanto, apenas num a ade­
quação aos fatos, num a conform idade plena a eles. Há, em sum a,
um a redescoberta da estruturalidade do direito, do fato de ele ser
fo rm a de estruturas naturais, étnicas e econôm icas, com um a v o ­
cação a nunca se distanciar das estruturas, m as sim a segui-las
com fidelidade, ainda que essa fidelidade signifiqu e assistem ati-
cidade e incerteza.
Esse é o ponto central daquela atitude geral da nossa experiên­
cia jurídica, que pode ser corretam ente qualificada com o “ natura­
lism o jurídico” do prim eiro período m edieval, entendendo-se com
isso muito sim plesm ente um direito incapaz de se distanciar dos
fatos, efetivando um a form a elem entar que a eles se adapta, a eles
se m olda e neles se fundam enta. Se, ao falar de form alism o ju ríd i­
co, referim o-nos a um sistema cujos institutos encontram sua ra­
zão de ser sobretudo num artifício hum ano - a form a - do qual
apenas, prescindindo da conform idade daquele ao real, adquirem
a m arca da validade, certam ente “form alism o jurídico” e “natura­
lism o jurídico” são dois m odos opostos de resolver o problem a da
organização jurídica. Enquanto o form alism o insiste e apela para a
possibilidade de a ação hum ana se distanciar da natureza das coi­
sas, o naturalism o se m ostra dependente dela. Neste último, a for­
m a - que é a roupagem obrigatória de toda realidade jurídica - é
apenas um indispensável sinal traçado, com figuras m ínim as e tos­
cas, sem pre sobre o esquem a oferecido pelo único m odelo vivo re­
pleto de autoridade intrínseca: o reservatório dos fenômenos.
N enhum exem plo, entre os m uitos que se poderiam aduzir,
serve para sustentar essas afirm ações m elhor que a história da
F UND AÇÃO DE UMA E X P E R I Ê N C I A J U R Í D I C A • 8l

noção de pessoa juríd ica. Todos sabem os que, seja qual for a li­
nha doutrinai que se adote34, a noção de pessoa ju ríd ica - com o
tentativa b em -sucedida de entificação de um a realidade m etana-
tural que a natureza não entifica e até ignora - representa o b ri­
lhante resultado de um procedim ento de abstração obtido por teó­
ricos ou por operadores do direito. De fato, dizer que um conjunto
de pessoas físicas eleva-se a um a entidade - a associação - d ife­
rente de cada um a daquelas pessoas e da som a delas, ou que um
conjunto de bens reunidos para um certo fim pode criar o ente
jurídico “ fundação”, significa recorrer ao princípio de que o direito
é criação hum ana, talvez além de e contra a natureza dos fen ôm e­
nos, e que esse direito pode tranquilam ente abstrair-se dela.
O naturalism o protom edieval dificilm ente p o d eria aceitar
essa conclusão. E é por isso que dificu ld ad es e incom preensões
marcam a história da noção de pessoa ju ríd ica, no longo ca m i­
nho que separa o m undo rom ano (onde era operacionalm ente
conhecida e aplicada com frequência) do m undo da Idade M éd ia
sapiencial (séculos X II-X IV ), quando será perfeitam ente teoriza­
da e reapresentada à reflexão m od ern a por parte da gran de esp e­
culação canonista35. Para a experiência em form ação que estam os
estudando, o difícil é a perfeita separação que a noção plena de
pessoa ju ríd ica postula entre criação ju ríd ica e realidade natural,
uma separação que, por não ser natural, revela-se inaceitável para
a nossa ordem fundam en tada no naturalism o; e não é de adm irar
que, na práxis eclesiástica, necessariam ente repleta de relações
entre indivíduos e instituições, o problem a de doações e legados
devotos se resolva no m ecanism o rudim entar, m as eloqüente, da

34 Pretendemos nos referir às muitas, às demasiadas, talvez extenuadas e extenuan­


tes disputas teóricas travadas na ciência jurídica moderna sobre o tema da pessoa
jurídica, a partir de Friedrich Karl von Savigny, no curso destes últimos dois séculos.
35 Cf. mais adiante, na segunda parte, cap. VII.
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doação ou do legado não à paróquia ou à abadia - que, com o


ente, escapa ã percepção ju ríd ica da época - , e sim aos m uros da
igreja ou ao santo padroeiro, duas realidades em cuja existência o
hom em m edieval, certo de suas convicções m ateriais e religiosas,
efetivam ente acredita36.
N esse am biente naturalista tam bém é possível com preender
m elhor o princípio da cham ada “personalidade do direito”, que
vim o s se d ifu n d ir nesses séculos e cujas prim eiras justificativas
históricas já fornecem os. D e fato, para explicar a afirm ação do
princípio concorrem , além de um sentim ento orgulhosam ente
possessivo em relação a um patrim ônio consuetudinário ligado à
vid a histórica de um éthnos, tam bém influências naturalistas pre­
cisas encontradas sobretudo nas linhas do pensam ento da trad i­
ção germ ânica: o direito surge com o patrim ôn io próprio e espe­
cífico de um determ inado gru po étnico, por estar estreitam ente
vin culado às pretensas características raciais diferenciais desse
grupo. Enquanto p ertinência e p rivilégio daqueles que partilham
do m esm o sangue, o direito é - com o tal - intransm issível além
do lim ite dos “con sangu ín eos”.
M as não é só isso: a vocação geral da ordem ju ríd ica para se
construir em perfeita conform idade às estruturas torna-se, em m u i­
tos casos, um a sujeição tão passiva a elas a ponto de fazê-la ad q u i­
rir um preciso caráter infraestrutural; e o clim a de naturalism o se
enreda num verdadeiro “p rim itivism o ju ríd ico ”. E aqui, para que

36 Ampla documentação em F. Schupfer, II diritto privato dei popoli germanici con


speciale riguardo aWItalia, I, Le persone. Lafamiglia, Cíttà di Castello, Lapi, 1907,
pp. 177 ss.; P. S. Leicht, II diritto privato preirneriano, Bolonha, Zanichelli, 1933,
PP- 55- 7 ; P- Frezza, “ 1,’ influsso dei diritto romano giustinianeo nelle formule e
nella prassi in Italia”, in Ius romanum medii aevi, parte 1, 2, c ee, Mediolani, Giuffrè,
1974, p. 70. Todavia, o significado da imputação ao santo padroeiro foi, a nosso
ver, totalmente malcompreendido por Leicht e Frezza, e indica que não se alcan­
çou “a consciência da personalidade do ente instituído” (ao contrário do que pre­
tendia Frezza).
FUNDAÇÃO DE UMA EX PER IÊN C IA JURÍDICA • 83

as qualificações não deem lugar a equívocos, precisam os nos d e ­


ter um m om ento para esclarecer esse esquem a interpretativo que
consideramos particularm ente inerente à sociedade protom edieval.

8. Sobre o p rim itivism o protom edieval, em p articu lar

Utilizar sem elhante esquem a para um período h istórico pode


ser desconcertante, se tiverm os em m ente o uso geral e costu m ei­
ro dos term os “ prim itivo” e “p rim itivism o”, segundo o qual essas
acepções servem para caracterizar ou a m ais rem ota pré-história
ou as relíquias pré-históricas ainda hoje existentes, descobertas e
estudadas pelos etnólogos. Sendo assim , vale a pena esclarecer
que, quando usam os aqui essas qualificações, pretendem os nos
referir especificam ente a um a noção interpretativa, elaborada com
precisão pela doutrina etn o-sociológica, segundo a qual o p rim i­
tivo não é necessariam ente um sujeito que se coloca, por si só,
fora do processo histórico de civilização, m as sim um sujeito que
se distingue apenas por um a caracterização an tropológica p a rti­
cular, passível de ser encontrado sob determ inadas circu n stân ­
cias, em cada m om ento h istórico37.
Em outros term os, o p rim itivo não é, com o quer o nosso sen ­
so com um , um selvagem da idade da pedra, o h om em do paleo-
lítico ou da m ais profunda selva am azônica, m as um sujeito c u l­
turalm ente m uito pobre que tem um a relação psicológica singular
com a realidade externa. Ele não pode d eixar de se in serir num
ambiente onde a relação entre natureza e sujeito é m arcada p o r
uma evidente desproporção entre aquela e este, por u m a p red o ­
minância daquela sobre este com o agente civilizador.

3 Sobre o primitivismo como esquema antropológico, e particularmente sobre o


primitivismo como esquema interpretativo da realidade histórica protomedieval,
so nos resta remeter a Grossi, Le situazioni reali..., cit., pp. 42 ss., em que se utilizou
esse esquema para uma compreensão histórico-jurídica mais adequada.

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