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A ORDEM JURÍDICA
MEDIEVAL
A ORDEM JU R ÍD IC A M ED IEVAL
Pa o l o G rossi
A O R D EM J U R Í D I C A M E D IE V A L
l i wm/martinsfontes
SÁ O P A U L O 2014
Esta obra f o i pu blicada originalm ente em italiano com o título
L ’O R D íN E G IU R ID IC O M E D IE V A LE
í f e d iç ã o 2 0 14
G ro ssi, Paolo
A ord em ju ríd ica m edieval / P aolo G r o s s i; tradu ção de D en ise Rossato
A g o s tin e tti; revisão técnica de R ica rd o M arcelo Fonseca. - São Paulo :
E ditora W M F M artins Fontes, 2 0 14 . - (Biblioteca ju ríd ica W M F)-
13 -12 6 7 2 C D U - 3 4 :9 4 (io o ) ” o 5 ”
I. IN TRO D U Ç ÃO 5
II. PR ESSU P O ST O S O R D EN A D O R ES 2 1
III. A E S P E C IF IC ID A D E DA E X P E R IÊ N C IA EM FO R M A Ç Ã O E
SEU S IN ST RU M EN T O S IN T E R P R E T A T IV O S 47
IV. F IG U R A S DA E X P E R IÊ N C IA 10 7
V. P R E SE N Ç A JU R ÍD IC A DA IG R E JA 1 3 5
SE G U N D A P A R T E • E D IF IC A Ç Ã O D E U M A E X P E R IÊ N C IA
JU R ÍD IC A . O L A B O R A T Ó R IO S A P IE N C IA L 15 5
V I. A M A T U R ID A D E DE U M A E X P E R IÊ N C IA JU R ÍD IC A E SUAS
T IP IC ID A D E S E X P R E SS IV A S 1 5 7
í. Entre os séculos XI e XII: continuidade e maturidade dos tempos
- 2. Os sinais da continuidade: o “princeps-iudex” e a produção do
direito. O poder político como “iurisdictio” - 3. Os sinais da
continuidade: a “lex” como revelação de uma ordem jurídica
preexistente. A consciência da filosofia política - 4. Os sinais da
continuidade: a “lex” como revelação de uma ordem jurídica
preexistente. A consciência da ciência jurídica - 5. A civilização
tardo-medieval e sua dimensão sapiencial. O papel primordial da
ciência na sociedade - 6. Experiência jurídica e ciência jurídica.
A experiência confia à ciência a sua edificação - 7. A “solidão” da
ciência jurídica medieval, a busca de um momento de validade e a
redescoberta das fontes romanas: “glosadores” e “comentadores” - 8.
A ciência jurídica entre validade e efetividade - 9. A ciência jurídica
medieval como “interpretatio” - 10 . A dimensão funcional da
“interpretatio” - 1 1 . Os sinais da continuidade: a “aequitas” e a
dimensão factual do direito - 1 2 . Os sinais da continuidade: o
costume e a dimensão factual do direito - 13. Os sinais da
continuidade: dimensão factual do direito e novas figuras jurídicas
- 14. Os sinais da continuidade: perfeição da comunidade e
imperfeição do indivíduo
V II. P R E SE N Ç A JU R ÍD IC A DA IG R E JA 249
V III. P L U R A LISM O JU R ÍD IC O DA ID A D E M ÉD IA T A R D IA :
D IR E IT O COM UM E D IR E IT O S P A R T IC U L A R E S 2 7 3
índice onomástico, 3 1 3
PRIMEIRA PARTE
F U N D A Ç Ã O DE U M A E X P E R I Ê N C I A
J U R Í D I C A . A O F I C I N A DA P R Á X I S
c a p í t u l o t r ê s
a E S P E C IF IC ID A D E D A E X P E R IÊ N C IA
EM F O R M A Ç Ã O E S E U S IN S T R U M E N T O S
IN T E R P R E T A T I V O S
lidade ju ríd ica, que convém identificar e fixar desde já, pois fu n
cionarão com o instrum entos interpretativos iniciais e esclarece
dores da experiência em form ação: fatos de civilização jurídica,
vivid os com o valores duradouros, ligados à autêntica fisionom ia
dessa civilização, garantes e testem unhas de sua especificidade.
D issem os valores duradouros, e isso exige um esclarecim ento.
A m aior parte desses valores será tão duradoura a ponto de tran s
por, num único salto, o período de fund ação e im pregn ar tam
bém o segundo m om ento m ais propriam ente edificador, mais pro
priam ente sapiencial: são aquelas características peculiares que
constituem o direito m edieval, o m odo m edieval de sentir e de
viver a ju rid icid ad e, representando a con firm ação da profunda
unidade da experiên cia objeto de nosso estudo. O bviam ente v a
m os falar delas desde já, m as nosso estudo irá referir-se a toda a
Idade M édia e será em basado nas fontes docum en tais referentes
a um período h istórico que ultrapassa o século de transição entre
os dois m om entos: o século XI.
Tais posturas (que para nós se tornam instrum entos im pres
cindíveis de interpretação) parecem -nos ser, em p rim eiro lugar
(acim a de tudo), a incom pletude do poder político; em segundo
(lugar) - e em decorrência disso - a relativa indiferença do poder
político pelo direito, com a conseqüente autonom ia deste últim o
e com um acentuado pluralism o ju ríd ico; por fim , a conseqüente
factualidade e historicidade do direito. E isso acom panhado de
duas certezas fundam entais: a im perfeição do indivíduo e a perfei
ção da com unidade; o direito com o ordem , com o ordem jurídica.
Essas posturas e certezas estão no cerne não apenas do m o
m ento de fundação, m as de toda a Idade M édia, que será substan
cialm ente caracterizada por elas com o um todo. Por sua vez, uma
postura específica da cham ada alta Idade M édia é o naturalism o-
-prim itivism o, con d icionado por um notável vazio de cultura ju
F U N D A Ç Ã O DE UMA E X P E R I Ê N C I A J U R Í D I C A •4 9
4 Alguns podem considerar que essa afirmação foi desmentida por certos experi
mentos político-jurídicos notórios na Itália, por exemplo, o Reino da Sicília na
época de Frederico II, da Suábia. Sobre essa realidade político-jurídica ambígua,
ver detalhes mais adiante, à p. 164.
5 4 • A ORDF. M J U R Í D I C A M E D I E V A L
8 Ibid., p. 22 .
5 8 •A ORDEM JU R ÍD ICA MEDIE VAL
Os contornos torn am -se m ais nítidos e delin eiam -se con se
qüências precisas para nossa tentativa de com preensão histórico-
-jurídica.
Ver a síntese fornecida por Calasso, Medioevo dei diritto, cit., p. 117 .
68 ■A ORDEM JURÍDICA MEDIEVAL
23 Bellomo, Societá e istituzioni..., cit., pp. 175 ss. Para um enquadramento não
formalista do Edito, cf. G. Bognetti, VEditto di Rotari come espediente politico di
F U N D A Ç Ã O DE U M A E X P E R I Ê N C I A J U R Í D I C A • 69
5. Sua factualidade
una monarchia barbcirica (ed. or. 1957), atualmente in id., Vetà longobarda, v. IV,
Milão, Giuffrè, 1966. Foram escritas a esse respeito páginas sugestivas por P. M.
Arcari, Idee e sentimenti politici dellalto medioevo, Milão, Giuffrè, 1968, sobretudo
pp. 651-2.
26 F. Ganshof, Recherches sur les capitulaires, Paris, Sirey, 1958, pp. 72-4.
7 0 ■A O R D E M J U R Í D I C A M E D I E V A L
27 O primeiro pensamento que nos vem à mente refere-se a dois ensaios que circu
laram na Itália, precisamente: A. E. Cammarata, II significato e la funzione dei “fatto”
FUNDAÇÃO DE UMA EX PER IÊN CIA JU R ÍDICA • J 1
nell esperienza giuridica (ed. or. 1929), atualmente ín id., Formalismo e saperegiuri-
dico, Milão, Giuffrè, 1963, e Cesarini Sfor/.a, lixficto ius oritur, cit.
7 2 •A O R D E M J U R Í D I C A M E D I E V A L
6. Sua h istoricid ad e
30 Sobre esse papel impulsionador do notário, cf. sobretudo Vismara, Leggi e dottri-
na nella prassi notarile italiana dellalto medioevo (ed. or. 1979), atualmente in id.,
Scritti di storia giuridica, cit., v. II, e G. Nicolaj, Cultura e prassi di notai preirneriani.
Alie origini dei Rinascimento giuridico, Milão, Giuffrè, 1991.
31 A esse respeito, cf. mais adiante, às pp. j 29-32.
3 Adotamos aqui o termo “cultura" 11a sua acepção mais específica de educação
das capacidades intelectuais e, portanto, de um conjunto de conhecimentos. Na
linguagem de etnólogos e sociólogos, sobretudo do século XX, o termo sofreu uma
ampliação e também uma deformação, chegando a indicar o ambiente genérico em
que o processo educativo se desenvolve, assumindo, portanto, um significado sino-
nímico ao de civilização.
7 6 ■A ORDEM JU R ÍDICA MEDIEVAL
33 Outro tema é aquele que diz respeito à grande influência dos centros monásticos
sobre a própria estrutura econômica do território em decorrência de um patrimô
nio fundiário muitas vezes considerável.
F U N D A Ç Ã O DE UMA E X P E R I Ê N C I A ( U R Í D I C A • 7 7
noção de pessoa juríd ica. Todos sabem os que, seja qual for a li
nha doutrinai que se adote34, a noção de pessoa ju ríd ica - com o
tentativa b em -sucedida de entificação de um a realidade m etana-
tural que a natureza não entifica e até ignora - representa o b ri
lhante resultado de um procedim ento de abstração obtido por teó
ricos ou por operadores do direito. De fato, dizer que um conjunto
de pessoas físicas eleva-se a um a entidade - a associação - d ife
rente de cada um a daquelas pessoas e da som a delas, ou que um
conjunto de bens reunidos para um certo fim pode criar o ente
jurídico “ fundação”, significa recorrer ao princípio de que o direito
é criação hum ana, talvez além de e contra a natureza dos fen ôm e
nos, e que esse direito pode tranquilam ente abstrair-se dela.
O naturalism o protom edieval dificilm ente p o d eria aceitar
essa conclusão. E é por isso que dificu ld ad es e incom preensões
marcam a história da noção de pessoa ju ríd ica, no longo ca m i
nho que separa o m undo rom ano (onde era operacionalm ente
conhecida e aplicada com frequência) do m undo da Idade M éd ia
sapiencial (séculos X II-X IV ), quando será perfeitam ente teoriza
da e reapresentada à reflexão m od ern a por parte da gran de esp e
culação canonista35. Para a experiência em form ação que estam os
estudando, o difícil é a perfeita separação que a noção plena de
pessoa ju ríd ica postula entre criação ju ríd ica e realidade natural,
uma separação que, por não ser natural, revela-se inaceitável para
a nossa ordem fundam en tada no naturalism o; e não é de adm irar
que, na práxis eclesiástica, necessariam ente repleta de relações
entre indivíduos e instituições, o problem a de doações e legados
devotos se resolva no m ecanism o rudim entar, m as eloqüente, da