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Religiões e Prisões

Agradecimentos

Agradecemos aos Agentes Religiosos que fertilizaram, com suas


idéias e experiências, o ciclo de debates sobre religiões e prisões
realizado no ISER, ponto de partida desta publicação.
Diretoria
Sérgio Goes de Paula
Nair Costa Muls
Andres Cristian Nacht
Antônio César Pimentel Caldeira
Eduardo Sales Novaes

Secretaria Executiva
Samyra Crespo

COMUNICAÇÕES DO ISER n. 61

Conselho Editorial
Ana Maria Quiroga
Regina Reyes Novaes
Rubem César Fernandes
Samyra Crespo

Organizadores deste número


Ana Maria Quiroga
Christina Vital
Flávio Conrado
Marilena Cunha

Revisão
Wagner Guimarães

Secretaria
Helena Mendonça
Cleber Victorino

Agradecemos à ICCO (Organização


Intereclesiástica para a Cooperação
ao Desenvolvimento – Holanda) pelo
apoio à Área de Religião e Sociedade.

Design Gráfico e Editoração


Design Genuíno
Bernardo Lac, Maria de Oliveira

Foto de Capa
Mariana Magro/Divulgação ALERJ

Impressão
Gráfica Minister
Religiões e Prisões
7 APRESENTAÇÃO
Regina Reyes Novaes

RELIGIÕES ATRÁS DAS GRADES:


OLHAR DOS PESQUISADORES

13 Religiões e Prisões no Rio de Janeiro:


presença e significados
Ana Maria Quiroga

22 Católicos e Evangélicos
em prisões do Rio de Janeiro
Edileuza Santana Lobo

30 Religiosidade: mecanismo de sobrevivência na pe-


nitenciária feminina do Distrito Federal
Laura Ordóñez Vargas

40 Religião, vida carcerária e direitos humanos


Rita Laura Segato

PRESENÇA E PRÁTICAS RELIGIOSAS


NAS PRISÕES

47 Ciclo de Debates sobre Religiões e Prisões:


visão inter-religiosa
Maria das Graças de Oliveira Nascimento

53 A Casa do Perdão: resistências e estímulos


aos umbandistas
Flávia Pinto

57 Missão metodista nas prisões


Edvandro Machado
60 Assembléia de Deus: trabalho com internos e
famílias
Pr. Vicente de Paulo Nascimento

63 O trabalho dos batistas nas prisões


Adenice Barreto Batista

68 Os apenados no trabalho de assistência religiosa


Amanda dos Santos Lemos

CONVERSÃO: TESTEMUNHOS ACERCA DA


EXPERIÊNCIA PRISIONAL

75 Trajetórias religiosas e experiências prisionais:


a conversão em uma instituição penal
Eva Lenita Scheliga

86 O reino e o reinado: vivências de um egresso


Ronaldo Monteiro

92 Missionários do Rock: uma história de “conversão”


pela música
Christina Vital
Edileuza Santana Lobo
Elisa Gomes
Mariana Leal

DOSSIÊ

103 As condições de encarceramento no Rio de Janeiro


João Trajano Sento-Sé
Ignacio Cano
Marcelo Freixo
Eduardo Ribeiro
Elionaldo Julião
Regina Reyes Novaes
Antropóloga
Presidente do Conselho
Nacional de Juventude Apresentação
7

Religiões e Prisões
Composta por segmentos cada vez mais jo- des e pertencimentos religiosos, tornam-se
vens, a população carcerária parece viver um as religiões braços auxiliares dos governos
“caminho sem volta”. Sem minimizar outras promovendo “pacificação” e ordenamento
tantas e diversificadas expressões de violências do precário sistema penitenciário? Enfim, em
(físicas e simbólicas) presentes no cotidiano sua constante busca de fiéis, as religiões nas
das grandes cidades brasileiras, ainda somos prisões são apenas “funcionais” ao sistema?
freqüentemente impactados por cenas de Ou, para além das “acomodações alienantes”,
motins que eclodem no interior do chamado as religiões podem ser vias tanto para a huma-
“sistema prisional”. nização das relações quanto para a reinserção
societária? As perguntas são antigas e quase
Nestes momentos, fica evidente o fracasso universais. O que, então, há de novo na polê-
da gestão governamental e salta aos olhos o mica e no Brasil?
quanto falta para que os órgãos fiscalizado-
res do sistema penitenciário cumpram seu Em seu artigo que abre esta publicação, Ana
papel. De fato, de maneira geral, as prisões se Maria Quiroga observa que, hoje, por parte
tornaram espaços caracterizados pela ausên- da sociedade brasileira pode-se observar um
cia de bens materiais básicos – como água, movimento de evitação em relação à realidade
sabonete e papel higiênico; pela ausência de prisional e ao destino dos detentos. Contu-
atendimento médico; pela marcante presença do, e ao mesmo tempo, cresce o número de
de tortura, tratos desumanos e humilhações. grupos e instituições religiosas que solicitam
Por outro lado, também nestes momentos de credenciamento para o exercício de atividades
crise evidenciam-se os complexos desafios que de assistência espiritual nos presídios. Nem
são colocados para os organismos dos Direitos sempre foi assim.
Humanos e para outras tantas organizações
da sociedade civil que buscam saídas e alter- No Brasil, como lembra Edileuza Santana
nativas de re-socialização com o objetivo de Lobo, em artigo também publicado neste
reverter este processo no qual se conjugam número de Comunicações do ISER, desde o
carências e violações. Menos evidentes, no en- século XIX, o cumprimento de pena esteve
tanto, são os desafios e as repercussões sociais associado com educação moral, trabalho e re-
da crescente presença das religiões no universo ligião. Naquele contexto, a assistência religiosa
penitenciário. nas prisões era atribuição exclusiva da Igreja
Católica, religião oficial e dominante. Mais
Sem dúvida, relacionar Religiões e Prisões é tarde, com a separação entre Igreja e Estado,
sempre polêmico. Às prisões cabe punir e criar preconizada pela Constituição Republicana,
condições para recuperar cidadãos. Às religiões outras religiões, sobretudo as evangélicas e
cabe acolher, perdoar, redimir, converter para espíritas, também se aproximaram das pri-
recuperar espíritos. Ao mitigar o sofrimento sões brasileiras. Em cada período histórico,
dos corpos, aportando curas e doações de bens portanto, as relações entre religiões e prisões
materiais, acabam as religiões por desobrigar refletem transformações na sociedade e no
o poder público? Ao mitigar o sofrimento campo religioso brasileiro. Como caracterizar
das almas, produzindo conversões, identida- o presente?
8 No que diz respeito à sociedade, o Estado Focalizando as religiões no interior das pri-
brasileiro continua não dando condições e sões, comecemos pelo o que é menos visível.
garantias de vida àqueles que se encontram No conjunto dos artigos aqui publicados,
Comunicações do ISER

sob sua tutela. Porém, nos últimos anos há Laura O. Vargas registrou a presença de novas
ainda um agravamento da situação decorrente alternativas religiosas no interior das prisões
da corrupção policial, das disputas entre “co- referindo-se a manifestações religiosas infor-
mandos” do narcotráfico e, também, da ação mais não cristãs tais como budistas, místicas
de facções do tráfico no interior do próprio e da Igreja Messiânica. Por outro lado, vários
sistema penitenciário. artigos fazem referência aos espíritas. Ainda
assim, são escassos os parágrafos dedicados
No que diz respeito ao campo religioso, a a esta presença. Talvez isto ocorra porque os
maior oferta de alternativas religiosas revela espíritas kardecistas, historicamente legiti-
o enfraquecimento da equação “ser brasileiro/ mados por sua “obra social”, são pouco pro-
ser católico”. Em tempos de globalização, selitistas. A ênfase filantrópica dos espíritas,
ao almejado estado secularizado soma-se em seu exercício da caridade cristã, muitas
uma maior circulação de símbolos e credos vezes faz invisível o seu viés religioso. O que,
incentivando o pluralismo religioso.Ou seja, de certa forma, retira os espíritas kardecistas
no momento atual as autoridades religiosas tanto da competição por fiéis quanto do alvo
tradicionais perderam a exclusividade na das críticas de religiosos e ativistas de Direitos
tarefa de transmissão, de geração a geração, Humanos.
das imagens do mundo. Hoje são várias e
diversificadas as fontes doadoras de sentido Certamente por outros motivos, também as
para a vida, entre elas estão as explicações e religiões afro-brasileiras, tão presentes no
práticas religiões. Brasil profundo, se tornam pouco visíveis
nos presídios. Como afirmam Maria da Graça
Segundo o nosso último Censo demográfico Nascimento e Flávia Pinto, em artigos também
do (IBGE 2000), as principais mudanças que aqui publicados, as religiões afro brasileiras
caracterizam o campo religioso brasileiro hoje ocupam posição subordinada no campo re-
são: a diminuição percentual de católicos ligioso: na sociedade e também dentro dos
(83,76% em 1991; 73,77% em 2000), o cresci- presídios. Isto pode ser justificado tanto pelo
mento dos evangélicos (9,05% em 1991; 15, preconceito histórico ainda existente em um
45% em 2000) e o aumento dos “sem religião” país colonizado nos moldes da cultura católi-
(4,8% em 1991; 7,4 % em 2000). Paralela- ca, quanto pelas características de seus rituais
mente, vários estudos têm demonstrado que que pressupõe espaços apropriados para o
entre aqueles que se classificam como “sem transe, para o uso de variado vestuário, para
religião” apenas uma parcela mínima se diz a utilização de determinados instrumentos
“ateu” ou “agnóstico”. Entre “os sem religião” de percussão. E, ainda, como conta Flávia
destacam-se duas virtualidades: em uma delas Pinto, pela dificuldade se caracterizar como
estão aqueles que optaram por “acreditar em uma instituição religiosa formal que atende
Deus, mas não ter religião”, rejeitando pacotes os requisitos exigidos para credenciamento
institucionais e fazendo suas sínteses pesso- junto aos presídios.
ais, bem ao espírito da época; na outra estão
aqueles que estão em trânsito, isto é em busca Contudo, do (sugestivo) ponto de vista de
de novos vínculos institucionais. Em síntese, Rita Segato, a invisibilidade das alternativas
nesta configuração social, ampliam as possi- afro- brasileiras – sobretudo o candomblé- nos
bilidades de experimentação religiosa dentro, presídios poderia também estar relacionada às
fora ou à margem da religião de origem. Assim características das religiões “trágicas”. Estas,
como fora e dentro das prisões. colocam ao alcance das pessoas um conhe-
cimento mitológico e um vocabulário que licos. Quem pode garantir que determinado 9
permite ao ser humano suportar o seu destino pastor não seja ligado a um traficante ou à
trágico como consequência da presença do sua família? Ou que seja um charlatão com

Religiões e Prisões
mal no mundo, do sofrimento do mundo. Por interesses escusos? Isto porque em sua cons-
estas características, não seriam redentoras. tante segmentação os evangélicos produzem
Em contraposição às religiões trágicas, sugere denominações independentes entre si.
ainda Segato, as religiões de “superioridade
moral” entram nos presídios e monopolizam Por outro lado, o sentimento de alívio vem das
os discursos que permitem a redenção. A “pa- repercussões das conversões que, no interior
lavra”, neste contexto, é veículo imprescindível das instituições carcerárias, resultam em agre-
para a expressão da culpa, para o perdão e gação e “pacificação”. Não por acaso as notí-
para a redenção. Autêntica cosmologia cristã. cias de jornal registram conversões de famosos
Não por acaso, a Bíblia é a fonte discursiva traficantes; a presença de agentes religiosos
mais familiar e mais promissora no contexto que são chamados para mediar negociações
penitenciário. Localiza-se assim o tenso ponto entre facções e entre facções e as autoridades
de intercessão entre católicos e evangélicos. em momentos de rebeliões.
Vamos por partes.
Certamente, sempre há dúvidas sobre o utili-
Dentro das prisões, ou tratando com egressos, tarismo ou oportunismo dos beneficiários em
as Pastorais Católicas têm tradição. E têm relação a todas as religiões que adentram nas
a credibilidade social da religião, ontem e prisões. No que diz respeito às ofertas prove-
hoje, majoritária que não tem necessidade de nientes do mundo católico – bens materiais,
ampliar o rebanho. Seu objetivo é assistir os serviços religiosos ou à assistência jurídica
necessitados, para exercer seu papel espiritual -elas se fazem presentes entre católicos prati-
e social supletivo. É verdade que, historica- cantes e não praticantes, entre católicos que
mente, pesa sobre a Igreja Católica tanto a são também da umbanda, do candomblé ou
conivência com as violações praticadas por espíritas. Como detectar oportunismos por
autoridades constituídas quanto a pecha do parte de detentos, ou por parte dos agentes
assistencialismo. Porém, ainda que os grupos religiosos, no maior país católico do mundo
católicos carismáticos também façam cada vez onde convivem diferentes formas de “ser ca-
mais presentes, hoje são socialmente mais vi- tólico”? Já que diz respeito aos evangélicos,
síveis seus organismos que se especializam em a questão da “conversão” no interior das
promover os “direitos humanos” dos detentos, prisões sempre traz a questão da simulação,
contrapondo-se aos desmandos de autorida- do fingimento, da fraude. Questão difícil que,
des carcerárias e de governantes. muitas vezes, revela preconceitos. Fala-se em
simulação da conversão nos presídios como
Já os evangélicos que estão dentro das prisões, se houvesse em outros espaços sociais vias e
em suas inúmeras denominações históricas e métodos seguros para comprovar a “auten-
pentecostais, são sempre olhados de maneira ticidade” da conversão ou a “profundidade”
ambivalente. Ora produzem grande descon- da filiação religiosa transmitida de geração
fiança, ora provocam sentimentos de alívio. a geração.

A desconfiança vem, sobretudo, de seu afã As respostas a estas e outras questões não são
evangelizador, da explicita concorrência por simples. Estão a exigir várias escutas e uma
fiéis. Mas, vem também, da falta de uma ins- profunda revisão de conceitos e preconceitos.
tituição central que tenha autoridade para Apostando neste caminho, o ISER em parceria
responder por todos aqueles que se apresen- com a ICCO – Organização Intereclesiástica
tam como pastores, pastoras e leigos evangé- para a Cooperação ao desenvolvimento/Ho-
10 landa – realizou, sob a coordenação de Ana Graças de Oliveira Nascimento, do Movimento
Quiroga, em outubro e novembro de 2004, Interreligioso (MIR), faz um resumo das re-
um ciclo de debates sobre a atuação dos agen- flexões do ciclo de debates e apresenta, como
Comunicações do ISER

tes religiosos nas prisões do Rio de Janeiro. proposta ao final do texto, a necessidade de
Reunindo pesquisadores, agentes religiosos, uma maior integração das religiões no meio
profissionais da área de Serviço Social e Psi- carcerário. Flávia Pinto, que se reconhece como
cologia nos indagamos sobre os bálsamos, os militante dos direitos humanos e do movimen-
serviços e as perspectivas que as alternativas to negro, conta das dificuldades que encontra
religiosas apresentam para os detentos e para para adentrar nas prisões como agente de uma
os egressos. religião de matriz africana. Edvandro Macha-
do - como um “agente especial”, que não fica
Este número de Comunicações do ISER pu- cotidianamente “no front” e também participa
blica depoimentos e trabalhos apresentados dos Conselhos da Comunidade- analisa a si-
naquela ocasião e incorpora outros que tam- tuação dos agentes religiosos na prisão. Padre
bém trazem contribuições importantes para Vicente de Paulo Nascimento e a Missionária
a compreensão do tema. A publicação está Adenice Barreto Batista, como porta vozes de
dividida em quatro partes. suas Igrejas, desvendam a lógica missionária
e o sentido religioso constitui o alicerce de
Na primeira parte intitulada RELIGIÕES suas intervenções nas prisões. Já Amanda dos
ATRÁS DAS GRADES: OLHAR DOS PESQUI- Santos Lemos nos traz uma outra dimensão
SADORES, encontramos reflexões baseadas importante, muitas vezes esquecida por quem
em pesquisas quantitativas e qualitativas. Ana trata do tema: o papel que os prisioneiros que
Quiroga, Edileuza Lobo, Laura Ordóñez e Rita são também agentes religiosos desempenham
Laura Segato, com recortes e olhares diferen- na conversão e manutenção da “comunidade
ciados, trazem questões instigantes sobre o de irmãos”.
perfil dos presos e a composição dos agentes
religiosos hoje nas prisões do Rio de Janeiro, Na terceira parte, intitulada CONVERSÃO:
sobre a maior visibilidade dos evangélicos TESTEMUNHOS ACERCA DA EXPERIÊN-
pentecostais na prisão; sobre as diferentes ver- CIA PRISIONAL reúne três contribuições
tentes da atuação da igreja católica no Rio de sobre a vida no cárcere. Eva Lenita Scheliga
Janeiro e em Brasília. sobre outras linguagens analisa trajetórias e experiências de presos
e “conversões” (não religiosas) que também convertidos ao pentecostalismo. Ultrapassa a
produzem mecanismos de sobrevivência den- idéia corrente e generalizante de que detentos
tro das prisões, tais como a “conversão” ao convertidos estariam “se escondendo atrás da
homossexualismo ou ao ideário dos direitos Bíblia” e abre o leque das distintas possibilida-
humanos de um Projeto Social. des e ênfases presentes no processo de conver-
são em ambiente prisional. Ronaldo Monteiro
Na segunda parte, intitulada PRESENÇA fala, sobre religiões nos presídios, na primeira
E PRÁTICAS RELIGIOSAS NAS PRISÕES pessoa: relata o que observou e o que viveu
o leitor deste número de Comunicações do dentro do presídio, e após sua saída do cárcere.
ISER, terá acesso a ricos relatos de pessoas e Christina Vital, Edileuza Lobo, Elisa Gomes
instituições que desejam estar ou já estão nas e Mariana Leal analisam um filme intitulado
prisões do Rio de Janeiro. O tom desta parte é Missionários do Rock dirigido por Cleisson Vidal e
predominantemente coloquial. Cada um fala Andréa Prates. Tomando o documentário como
do seu ponto de vista, trazendo consigo suas um campo de pesquisa etnográfica, as autoras
crenças, seus desafios, as controvérsias e as am- analisam o caráter religioso que assume o pro-
bivalências. Olhares mais ecumênicos e olhares jeto musical e a “conversão” de seus integrantes.
mais confessionais. Assim sendo, Maria das Trata-se de uma banda de rock, formada por
três detentos na penitenciária Lemos de Brito. Aliás, é esse o sentido último deste número de 11
Diferentes entre si no que diz respeito às suas Comunicações do ISER preparado, com com-
trajetórias religiosas individuais, os “meninos” petência e com o objetivo de reafirmar valores

Religiões e Prisões
se inserem em um específico cenário do mundo e direitos de cidadania, por Ana Quiroga e sua
prisional: os festivais em que concorrem ban- equipe – composta por Christina Vital, Marile-
das de estilo gospel ou popular, nascidas nos na Cunha e Flávio Conrado, contando sempre
presídios. Este engajamento, via uma expressão com a cuidadosa arte editorial de Bernardo Lac.
artística, parece fazer diferença no cotidiano Vale a pena conferir.
dentro da prisão e também nas perspectivas de
vida dos jovens participantes.

No último bloco, temos a contribuição de


João Trajano, Ignácio Cano, Marcelo Freixo,
Eduardo Ribeiro e Elionaldo Julião, intitulada
AS CONDIÇÕES DE ENCARCERAMENTO
NO RIO DE JANEIRO. Trata-se de um dossiê
no qual informações relevantes e argumentos
analíticos se fazem presentes com o objetivo
de convencer as autoridades competentes da
necessidade urgente de transformar o sistema
penitenciário do Rio de Janeiro. Trata-se, de
fato, de um parecer técnico apresentado pela
equipe que compôs o Conselho da Comarca
que acompanhava as penitenciárias do Rio
de Janeiro. Publicá-lo aqui não tem apenas o
objetivo de disseminar informações e ampliar
o conhecimento. Mais do que isto, a idéia é pro-
vocar novas interlocuções entre pesquisadores
e agentes, leigos e religiosos, entre o mundo
secular e as instituições religiosas.

Enfim, para além da diversidade de confissões,


crenças, estilos, posições, oposições e inter-
pretações aqui reunidas, podemos dizer que
– entre aqueles que escrevem nesta publicação
– é possível encontrar um mínimo denomina-
dor comum. A saber: cada um, do seu ponto
de vista, “com suas armas e bagagens”, já se
empenha para combater a indiferença com o
que se passa de desumano atrás das grades. O
que se espera agora é que, cada um, também
a seu modo, possa contribuir para o combate
dos preconceitos e para ampliação do diálogo.
Afinal, para reverter a atual e complexa situa-
ção dos presídios brasileiros, que muitas vezes
parece se apresentar como um “caminho sem
volta”, é preciso juntar todos as energias e mi-
litâncias disponíveis.
Ana Maria Quiroga
Assistente Social,
Doutora em Antropologia
Pesquisadora do ISER Religiões e Prisões no
Rio de Janeiro: presença 13

e significados

Religiões e Prisões
O tema “religiões e prisões” vem comparecen- contato de presos políticos e das classes médias
do na cena pública cada vez que a questão pe- com a realidade prisional, bem como a afir-
nitenciária eclode através de evasões em massa, mação dos Direitos Humanos como questão
motins, tensões motivadas pela superlotação e reinvindicação, nacional e internacional,
carcerária etc. Pastores são chamados para a no final do período autoritário brasileiro e
mediação de conflitos. Igrejas se mobilizam latino-americano.
através de Comissões de Direitos Humanos.
Famílias de presos demandam a intermediação Assim, durante toda a década de 1980, o
de agentes religiosos para localização de seus sistema e as políticas penais foram objeto de
membros. importantes estudos: Pinheiro,1983; Paoli,
1982; Benevides,1983; Campos, 1986; Pai-
É como se as religiões estivessem garantindo xão, 1988a,1988b; Adorno, 1989, 1991, para
ou infundindo na população maior confiabi- citar alguns . Estes retomaram o processo de
lidade para ocupar espaços e exercer funções superação das matrizes histórico-religiosas
civis, em princípio, de responsabilidade de de nossas leis penais (como herdeiras das
1
órgãos técnicos ou do próprio aparelho de Ordenações Filipinas ) e a longa trajetória
Estado. de constituição da concepção racional de
crime/penalidade dentro de uma ordem legal
2
Essas formas de atuação das esferas religiosas autônoma centralizada e administrada pelo
nos contextos prisionais parecem ser novas e, Estado. Focalizavam, ainda, a implementação
a rigor, diferem do que caracterizou a tradição das políticas públicas penais, a degradação dos
dos estudos acerca da realidade prisional bra- equipamentos prisionais e, finalmente, eram
sileira, onde as religiões sequer eram conside- quase unânimes na constatação da falência de
radas. Pelo contrário, o enfoque dos estudos seus objetivos de recuperação. Muitos deles si-
voltava-se precisamente para a análise do nalizavam as crescentes tensões que envolviam
1 “O Livro V das Or- afastamento da religião como elemento consti- (e, ainda hoje, envolvem) o ambiente interno
denações Filipinas, como tutivo, quer das concepções de crime, quer das das prisões e os altos índices de reincidência
código penal que vigorou
no Brasil até 1830, foi de- medidas propostas para sua punição. que acompanhavam (e ainda acompanham)
finido por um historiador De fato, nosso contexto carcerário foi obje- seus egressos.
como um “catálogo de to de análises mais amplas, a partir do final
monstruosidades”... sua
definição de crime indica da década de 70, quando foram desenvol- Assim, de um lado, os estudos sociológicos
uma indiferenciação das vidas importantes formulações no campo da década de 1980 no Brasil reconstituíram
esferas religiosa, moral, da sociologia e da história social através de a trajetória do processo de racionalização da
política e legal” (Paixão,
1988a). estudos inspirados em Foucault e Goffman. concepção e tratamento do crime e seus ato-
2 Distint a de uma Obras como Vigiar e Punir, Manicômios, Asilos res; e de outro, analisaram a construção dos
ordem ético-religiosa, e e Conventos ou as teorias das Instituições Totais, sistemas e políticas penais, onde um dos me-
mesmo de uma ordem
repressiva fundada na guiaram uma série de análises sobre o sistema canismos centrais foi a separação e distinção
perspectiva normativa penal brasileiro. das concepções religiosas e morais das jurídi-
da comunidade moral de co-legais. Neste processo que remete a toda a
bases locais, sociologica-
mente tematizadas por Também contribuíram para a entrada da historiografia criminológica e construção dos
Durkheim. “questão penitenciária” na agenda pública o estados de direito:
14 • o crime, enquanto infração às leis da A presença e atuação
sociedade, se distinguiria da falta ou do das facções criminosas
pecado enquanto infração às leis divinas no interior das diferentes
Comunicações do ISER

ou da religião; unidades
• as prisões teriam que superar as dimen-
sões de espaços de custódia e castigo, O desenvolvimento das chamadas “sociedade
para assumirem o caráter, em princípio, de dos cativos” – uma sociedade dentro da socie-
instituições de disciplinamento, correção dade – que nasce do isolamento da população
e recuperação (ou reconstrução moral) carcerária, é fenômeno identificado internacio-
do interno; 3
nalmente já nos finais da década de 1950 . No
• as políticas penais deveriam objetivar caso brasileiro, e principalmente fluminense,
não apenas o cumprimento das penas uma definição mais nítida e com atuação
(ou das dívidas para com a sociedade) mais organizada das atuais facções emerge
mas a ressocialização do preso, o que no final da década de 1970, e desenvolve-se de
implicaria a introdução de outros serviços tal forma que passa a definir e diferenciar as
e técnicas profissionais de recuperação (o unidades prisionais de acordo às facções que
trabalho; o estudo; a assistência religiosa as dominam.
e social; a manutenção dos vínculos com
as famílias etc) O possível pertencimento a uma facção (que
muitas vezes é definido pelo local de origem
A assistência religiosa prevista como direito ou moradia do interno) é hoje um critério se-
nas políticas penais modernas permaneceu, letivo e classificatório básico para o envio dos
durante muitos anos, como um serviço apenados às diferentes unidades prisionais. Es-
restrito, de certa forma, a um pequeno con- tes passam a ser considerados, e controlados,
tingente de agentes, predominantemente como membros das facções que, não apenas
vinculados à Igreja Católica. Internamente, orientam comportamentos individuais, como
o acesso e a atuação destes agentes eram os disciplinam no sentido da manutenção de
coordenados pela direção dos estabeleci- compromissos normativos coletivos. Esses
mentos penais que, no conjunto de suas compromissos são, pois, produto da adesão
atribuições profissionais, considerava a (frequentemente compulsória) a valores,
atuação dos grupos religiosos como de ca- crenças e códigos rigorosos que prescrevem
ráter complementar, quando não, de caráter sistemas de lealdade e autoridade, papéis entre
absolutamente residual. os membros participantes, formas de relação
e resolução de conflitos, instituídos à base da
Entre os 20 anos que separam essa grande força e da violência exercida entre os próprios
onda de estudos sociológicos acerca da rea- apenados no interior das prisões. 3 O conceito “socieda-
lidade prisional e os dias de hoje, a situação de dos cativos” já aparece
em um trabalho clássico
tanto das prisões como da presença religiosa Segundo o estudo de Lemgruber (2005), 72% de Sykes, acerca das pri-
mudou radicalmente. dos estados brasileiros identificam e separam sões britânicas: “The So-
os presos por facções. ciety of Captives” – Prin-
Mudanças no ambiente pri- ceton University Press,
Princeton, 1958. Refere-se
sional Mudanças no perfil dos às formas de organização
presos social surgidas no interior
dos sistemas penais, que
Uma série de mudanças poderia ser apontada
articulam papéis e rígidos
no sistema prisional nos últimos 20 anos. Ape- Nos últimos anos, o perfil básico dos presos tem códigos de condutas aos
nas assinalaremos algumas, do nosso ponto sofrido grandes alterações. O que caracteriza o quais os internos devem
aderir, em troca do per-
de vista, fundamentais na análise da relação apenado típico no Rio de Janeiro, além de sua tencimento e da proteção
entre religiões e prisões. absoluta predominância urbana, é o fato de: interna e extra muros.
• ser um apenado mais jovem em que 41,5% violência e pela força. Os contextos prisionais 15
4
têm idade abaixo de 30 anos ; têm mantido formas extremamente desuma-
• ter níveis relativamente baixos de escola- nas e arbitrárias de tratamento dos presos,

Religiões e Prisões
ridade – 69,5% com 1º grau incompleto, que se manifestam nas condições precárias e
além de 10,4% analfabetos; insalubres das celas e outras instalações penais;
• ser condenado por ações criminosas con- nos abusos de autoridade e da corrupção no
tra o patrimônio e articulação ao tráfico de tratamento dos agentes de custódia; na in-
drogas; suficiência e nas deficiências do tratamento
• ter atuação ilegal de caráter mais coletivo alimentar e de saúde dos presos etc.
e organizado, o que significa o declínio do
“criminoso solitário”; Este conjunto de elementos, somado ao am-
• ter maiores noções de eficácia da ação biente de enorme insegurança e medo entre os
organizada, e da existência de seus direitos internos, constitui um caldo de cultura para
civis; rebeliões e motins cada vez mais brutais que,
• ser mais receptivo a padrões normativos periodicamente, impactam a sociedade. Nestes
da “sociedade dos cativos”– facções – mui- momentos, a invisibilidade do sistema e seus
tas vezes sendo socializado nas mesmas grupos humanos é desvelada. Entretanto,
pela própria dinâmica da desigualdade e como se trata de movimentos que eclodem im-
da territorialização da pobreza nos centros pulsionados por situações – limite, o desespero
urbanos. e o horror terminam sendo a forma através da
qual a população carcerária comparece na cena
Essas características, que mostram um apena- pública, reafirmando estereótipos de ferocida-
do potencialmente mais agressivo (ou menos de e monstruosidade que são construídos em
pacifico), não são totalmente generalizáveis. relação a ela.
Entretanto, elas passam a equivaler às carac-
terísticas de parte significativa dos internos, Além disso, considerando que hoje, grande
pouco tempo após a entrada no sistema, além parte da imagem que a sociedade tem de si é
de marcar os grupos que, por suas fortes arti- construída pelas mídias, e que a violência é um
culações internas e externas, ganham liderança de seus ingredientes de maior impacto, os mo-
e privilégios na dinâmica prisional. tins e rebeliões se transformam em sinônimos
ou retratos da realidade prisional.
Obviamente, os encarcerados mais pobres e
fragilizados, menos agressivos e organizados Neste contexto, e como resposta, a sociedade
constituem, talvez, a maior parte da massa amplia seu questionamento ao sistema de
carcerária. Esta vive imersa num ambiente de justiça penal, reivindicando seu endurecimen-
enorme insegurança e medo. to. Voltam a germinar propostas de soluções
“mais rápidas e definitivas” como as de ex-
A visibilidade dos motins terminar tais problemas e seus “portadores”.
e rebeliões Desenvolve-se, assim, uma relação paradoxal
onde a constatação da desumanização não é
Nos últimos anos tem ocorrido um aumento acompanhada por um apoio a políticas penais
das organizações de Direitos Humanos, uma humanizadoras ou de direitos humanos.
maior presença de instâncias do legislativo e
do judiciário junto às unidades prisionais, um Estas são vistas como “políticas de privilégios”
maior investimento na capacitação de agentes em relação aos “bandidos”. Pelo contrário, o
penitenciários. Entretanto, essas medidas não que ocorre muito frequentemente, quando
4 Dados do Ministério
da Justiça, fornecidos por têm sido suficientes para atenuar a tradição do contato da sociedade com a dinâmica
Julita Lemgruber (2005). multissecular de controle dos miseráveis pela prisional, é o aparecimento de inúmeras ma-
5
16 nifestações de apoio ao recrudescimento do
uso da força e da repressão sobre os internos, Número de instituições religiosas credenciadas
desconhecendo o efeito perverso que tais medi- nas unidades penais do Estado do Rio de Janeiro
Comunicações do ISER

das terminam por desencadear não apenas em


termos presentes, mas também, futuros.

A ampliação da presença re-


ligiosa

Enquanto é possível observar, por parte da


sociedade, um movimento de distanciamento
em relação à realidade prisional e ao destino
de seus encarcerados, um outro movimento,
em sentido oposto, vem sendo desenvolvido.
Trata-se do aumento do interesse dos grupos
52 69 98
religiosos pela realidade dos presos, vistos em 2000 em 2002 em 2004
como um campo fértil a suas tarefas de con-
versão e evangelização. dades penais do Estado do Rio de Janeiro
pode ser apreciada, no gráfico acima, através
A entrada e o exercício da atividade religiosa da comparação do número de instituições
nas Unidades Penais do Estado do Rio de Janei- religiosas credenciadas junto à Coordenação
ro vêm sendo sucessivamente regulamentada Técnico-Social, nos anos 2000, 2002 e 2004.
6
5 Vários estudos, base-
por portarias que normatizam o processo de ados em análise de “cartas
cadastramento de Instituições Religiosas; a Esse aumento não se distribuiu de maneira ao leitor” ou “mensagens
radiofônicas” em períodos
inscrição, o credenciamento, a capacitação e uniforme nos diferentes Complexos Peniten-
com ocorrência de tragé-
o Plano de Trabalho dos agentes, bem como ciários. Assim, tomando-se apenas dois impor- dias sociais ou de crises
as normas relativas a seu comportamento no tantes Complexos da cidade do Rio de Janeiro no sistema penal, como
Chacinas, rebeliões ou
exercício das atividades de assistência espiritu- – Bangu e Frei Caneca –, comparando-os entre
revoltas em presídios têm
al. Estão incluídas nas Portarias as interdições os anos 2002 e 2005, temos: apontado o significativo
de envolvimento, interferências e julgamentos número de apoios a um
“endurecimento” ou au-
em questões que extrapolem o âmbito do exer- • Em Bangu, deu-se um aumento signi-
mento da lógica repressiva
cício religioso, e as sanções a serem aplicadas, ficativo de internos, em quase todas as no tratamento com os in-
no caso de transgressões. unidades. Entretanto, o número de insti- ternos em geral, e com os
rebelados, em particular.
tuições religiosas credenciadas não teve
(Benevides, M. V. Opinião
Apesar destas normas, o que se observa é uma crescimento equivalente, sendo que em boa Pública: “carta dos leito-
certa aprovação (e frequentemente, incentivo) parte delas parece ter havido até redução res”,1983; Oliveira, L. “ Os
excluídos existem?”,1997;
à presença dos agentes, por suas contribuições quantitativa.
Caldeira, Tereza,” Direitos
no apoio social aos presos e pela colaboração • No Complexo da Frei Caneca, aumentou- Humanos ou privilégio de
no próprio processo de disciplinarização, uma se tanto o número de internos como o de bandidos”,1991; Ramos e
Musumeci, 2005)
vez que “preso convertido é preso mais calmo”. Instituições Religiosas atuantes no interior
6 Portaria nº709/ DE-
Sem dúvida, como assinalam vários estudos, das unidades. SIPE de 22/12/1992 pos-
inclusive alguns incluídos nesta publicação, teriormente pela Portaria
DESIPE/DG nº 716 de
as entidades religiosas, sobretudo as denomi- Cada uma das Entidades Religiosas creden-
03/11/1993; DESIPE/DG
nações evangélicas e pentecostais, constituem ciadas inscreve seus agentes para atuar nas nº 754, de 27 de junho de
uma enorme força no interior das diferentes diferentes unidades, além de possuir um 1996; Portaria DESIPE/
DG nº 770 de 19/ 04/ 2000,
unidades. representante legal junto à Coordenação de
e atualmente pela Portaria
Serviço Social. Cada agente pode atuar, no SSAUP-SEAP nº 005 de 31
A evolução desta presença em todas as uni- máximo, em duas unidades. de janeiro de 2004
Número de Internos e
Instituições Religiosas
por unidade penal

Número Número Número Número Variação Variação


de internos de instituições de internos de instituições do número do número
de internos de instituições
2002 2005 2002 – 2005 2002 – 2005 17

Religiões e Prisões
FREI CANECA 2.717 42 3.536 52 +30% +24%
PO 181 8 135 12 -25,5% +50%
Hélio Gomes* 566 5 1.091 6 +92,7% +20%
Heitor Carrilho 95 3 200 3 +110% nulo
Nelson Hungria – hoje Bangu VII 224 5 414 7 +84% +40%
Milton D. Moreira 1.007 7 1.005 8 -0,2% +14%
Lemos de Brito 549 9 593 11 +8% +37,5%
Hospital Central 95 5 98 5 -0,3% nulo

BANGU 9.312 68 11.631 73 +25% +7%


Alfredo Tranjan – Bangu II 670 7 811 5 +21% -40%
Serrano Neves – Bangu III 891 5 1.012 4 +13,6% -20%
Jonas Lopes – Bangu IV 887 5 1.038 3 +17% -40%
L. Pellegrino – Bangu I 45 2 44 2 -0,3% nulo
Talavera Bruce (feminino) 313 7 311 8 -0,7% +14%
Romeiro Neto (feminino) 28 – 421 5 +503% –
H. Psi. Roberto Medeiros 118 4 149 4 +26% nulo
Vicente Piragibe 1.381 7 1.363 5 -2,5% -29%
Esmeraldino Bandeira 969 8 996 6 +2% -25%
H. Dr. Hamilton Agostinho 76 5 68 7 -10,5% +40%
Moniz Sodré 1.323 1 1.372 3 +3,7% +200%
I.P. Plácido de Sá Carvalho 1.540 5 1.811 8 +17,6% +60%
C.C. Jorge Santana 452 1 721 2 +59,5% +100%
Sanatório Penal 112 4 63 4 +56% nulo
C.C. Pedro Melo 482 5 721 4 +49,6% -20%
C.C. Bangu V 493 2 730 3 +48% +50%

*Em 2002, ocupadas apenas 50% das vagas; **Ocupação parcial por obras. Fonte: Coordenação do Serviço Social – SEAP

Assim, as estatísticas referentes ao número de uma única representação por unidade penal,
agentes inscritos podem dar uma visão distor- outros grupos evangélicos se subdividem em
cida, na medida em que, um mesmo agente diferentes unidades de culto.
comparece simultaneamente em pelo menos
duas unidades. Da mesma forma, como pode É interessante notar, ainda, o significativo peso
ser visto no gráfico a seguir, as mesmas entida- da participação feminina no conjunto dos
des religiosas se repetem nas várias unidades agentes religiosos contrastando com o univer-
7 O ano de 2002 foi o
último para o qual obti-
penais, sendo que, no caso das instituições so dos internos, onde os homens são maioria
vemos os dados referentes evangélicas (notadamente Assembléia de absoluta.
a totalidade de agentes Deus e Batistas) uma mesma denominação
cadastrados. Para 2004,
obtivemos apenas os da-
comparece diversas vezes ligada a Igrejas-Ma- Desta forma, tomando-se os dados referentes
dos referentes às Entida- trizes sediadas em diferentes bairros da cidade. ao ano de 2002, nos dois maiores Complexos
des Religiosas inscritas e Desta forma, enquanto católicos, espíritas, e Prisionais da cidade a distribuição dos agentes
cadastradas e seus respec-
tivos representantes legais
outras Igrejas Protestantes de tipo histórico por Igrejas, por unidade penal e sexo, estrutu-
junto à SEAP/RJ (como Metodistas e Presbiterianos) possuem rou-se conforme a tabela a seguir.
Número de agentes religiosos por sexo/unidade penal em 2002
Agentes Agentes Agentes Agentes
Femininos Masculinos Femininos Masculinos

18

FREI CANECA 105 85 Bangu I – L. Pellegrino 3 3


São Dimas (Católica) 1 3
Comunicações do ISER

Conv. Batista Carioca 2 –


PO 30 19
Assembléia de Deus 25 7 Talavera Bruce
Igreja Batista 3 1
14 23
Batistas 3 7
Soc. São Dimas (Católica) 1 7 I. Esp. Amelie Boudet 2 3
Universal do Reino de Deus 1 4 São Dimas – Past. Penal 3 3
Universal Reino Deus 1 5
Hélio Gomes 11 8 União Evang. Pentec. 1 3
Batistas 4 1 Pent. Nova Vida 4 2
I. Esp. Amelie Boudet 3 –
São Dimas – Past. Penal – 5 H.Psi. Roberto Medeiros
Universal Reino Deus 4 2
12 15
Batistas 6 6
São Dimas – ( Católica) 1 7
Heitor Carrilho 6 8 Universal Reino Deus 5 2
Soc. São Dimas (Católica) – 5
Universal Reino Deus 2 3 Vicente Piragibe
Adventista 7º Dia 4 –
24 19
Assembléia de Deus 15 2
Igreja Batista 5 7
Nelson Hungria 6 16 São Dimas (Católica) 1 5
Batistas 1 4 Universal Reino Deus 3 3
I. Esp. Amelie Boudet 4 1 Metodista – 2
São Dimas – Past. Penal 1 4
Universal Reino Deus – 7 Esmeraldino Bandeira 29 10
Assembléia de Deus 12 1
Milton Dias Moreira 18 9 Igreja Batista 2 4
Assembléia de Deus 3 3 I. Esp. Amelie Boudet 3 2
Igreja Batista 3 1 São Dimas (Católica) 4 2
I. Esp. Amelie Boudet 4 1 Universal Reino Deus 5 1
Com. Arquidioce (Católica) 1 1 Evang. Graça em Unid. 3 –
Universal Reino Deus 3 3
Nova Vida 4 – Hosp. Dr. Hamilton Agostinho 5 10
Assembléia de Deus 2 –
Lemos Brito 31 14 Igreja Batista 1 2
Assembléia de Deus 4 – São Dimas (Católica) 1 5
Igreja Batista 5 1 Universal Reino Deus 1 3
I. Esp.Evangelio de Jesus 5 –
São Dimas (Católica) 2 6 Moniz Sodré
Universal Reino Deus 2 4
5 1
Universal Reino Deus 5 1
Congregação Cristã 5 –
Presbiteriana do R. Janeiro 5 –
Metodista 4 2 I.P. Plácido Sá Carvalho 15 13
Assembléia de Deus 5 –
Igreja Batista 3 1
Hospital Central 3 11 São Dimas (Católica) 1 4
I. Esp. Amelie Boudet 1 1 Universal Reino Deus 2 4
São Dimas (Católica) – 1 Nazareno – Grande Rio 4 4
Universal Reino Deus 1 5
Metodista 1 1
União Evang. Pentecostal – 3 C.C. Jorge Santana 2 1
Igreja Batista Edem 2 1
BANGU 120 148 Sanatório Penal 10
5
Assembléia de Deus 2 2
Alfredo Tranjan 10 15 I. Esp. Amelie Boudet 2 –
Assembléia de Deus 1 3 São Dimas (Católica) – 6
Igreja Batista 6 2 Universal Reino Deus 1 2
São Dimas (Católica) – 5
Universal Reino Deus 2 4 C.C. Pedro Melo 8 11
Maranata 1 1 Batistas 3 6
C.Arquidioc./S. Dimas 2 2
Bangu III – S. Neves 14 14 Universal Reino Deus 3 3
Batistas 3 1
I. Esp. Amelie Boudet 2 4 C.C. Bangu V 4 3
São Dimas – Past. Penal 2 3 Batista em Edem 1 1
Universal Reino Deus 7 2 Universal Reino Deus 3 2
Metodista – 4

Fonte: Coordenação do Serviço Social – SEAP


Total de agentes religiosos • No conjunto de agentes religiosos presen- 19

por sexo em 2002 tes no universo prisional do Rio de Janeiro,


essas religiões juntamente com os católicos

Religiões e Prisões
e espíritas totalizavam 88% do número
51% geral de agentes religiosos.
234 agentes femininos
média: 2,12 agentes/unid.
Considerando, pois, os dados de 2002 relativa-
mente a todo o conjunto de unidades penais
49% do Rio de Janeiro, a presença numérica de
224 agentes masculinos
média: 2 agentes/unid.
agentes vinculados às cinco maiores religiões
e denominações estava assim configurada:
TOTAL 458 agentes Total de agentes religiosos
nas unidades penais do Rio
Fonte: Coordenação do Serviço Social – SEAP em 2002
outros
agentes 152 agentes
Estas tabelas permitem algumas observações 53 agentes religiosos da Igreja
religiosos
importantes acerca da presença das religiões ligados 12% Universal
a entidades 23%
nas prisões do Rio de Janeiro, no ano de espíritas
7
2002 : 8%

• Há um equilíbrio de distribuição por


sexo entre os agentes religiosos com uma
pequena maioria para as mulheres. Essa
18% 20%
maioria pode ser identificada tanto em 120 agentes 132 agentes
das diferentes missionários
termos percentuais, como nas médias da Igreja
Igrejas da 19%
Entidades/Agentes; Assembléia
126 agentes
Batista
de Deus
das pastorais
e entidades
• O equilíbrio da distribuição entre os sexos católicas

é quebrado quando são focadas especi-


ficamente cada uma das religiões e/ou Essa distribuição com grande ênfase nos
denominações: entre os agentes católicos, grupos evangélicos e pentecostais confirma
74% são mulheres; igualmente 58% dos as diversas análises acerca do fenômeno reli-
metodistas; 53% da Igreja Universal. gioso no contexto brasileiro contemporâneo,
onde vem sendo assinalado. Um crescimento
• Por outro lado, não existem mulheres entre do pluralismo nas opções de crenças e nas
os agentes religiosos das Igrejas Presbite- vinculações religiosas e doutrinárias em todas
riana, Adventistas e Congregação Cristã. as camadas sociais e, em especial, nas camadas
menos favorecidas da população nacional.
• Ainda que a média do número de agentes
por Instituição Religiosa seja em torno de De fato, desde o final dos anos 1980, com
quatro pessoas, algumas possuem médias maior incremento durante toda a década de
bem superiores. Este é o caso das Igrejas 1990, o campo religioso vem sofrendo impor-
Assembléia de Deus, da Igreja Universal do tantes mudanças, tanto através da quebra da
Reino de Deus e dos Batistas, cujas missões absoluta hegemonia da identidade católica
têm dado uma ênfase toda especial ao como identidade nacional, como da ampliação
trabalho de evangelização e conversão de do campo evangélico e pentecostal. Este tem
apenados. vivenciado uma enorme expansão através da
20 adesão pessoal de fiéis feita por rupturas e con- outro universo de “irmãos” em um contex-
versões (retiradas principalmente do campo to e ameaçador.
católico) aliada a um tipo de proximidade e
Comunicações do ISER

presença de templos, pastores, e outros agen- 3. O universo prisional, por suas carac-
tes religiosos nos diferentes espaços sociais, terísticas de isolamento e reclusão, pode
com ênfase nos bairros e áreas populares dos ser configurado como um espaço de con-
centros urbanos e rurais. versão: seja de arrependimento e conversão
à vida legal e ordeira (utopia das penas
Além disso, as religiões evangélicas têm utiliza- privativas de liberdade); seja de conversão
do elementos doutrinários e litúrgicos de gran- às carreiras criminosas (constatação da
de proximidade com a realidade das camadas realidade das instituições totais como
populares. Assim, a liturgia da Palavra onde é “escola de aperfeiçoamento” de práticas
dada grande importância ao testemunho da criminais), seja, finalmente, de conversão
conversão (legitimando e valorizando o “pas- religiosa ou de “conversão a Jesus”(objetivo
sado do pecador” convertido) representa uma do proselitismo religioso).
forma de inclusão e valorização da experiência
dos indivíduos julgados por faltas ou ilegalis- 4. Além do possível conforto espiritual
mos. A libertação pela fé, onde a “justiça divina transmitido pelas diferentes religiões den-
perdoa e liberta” mesmo que permaneçam as tro do universo carcerário, não há dúvida
“injustiças dos homens”; a atuação de seres de que elas representam uma razão legí-
sobrenaturais (demônios) responsabilizados tima de aglutinação interna, de proteção
como os verdadeiros autores dos crimes e para os indivíduos, além de representar
faltas humanas, tudo isso, são elementos da como que uma “terceira via” em face à
experiência religiosa evangélico-pentecostal dinâmica das facções. Neste sentido, algu-
que terminam dando sentido à situação vivida mas organizações religiosas estruturadas
pelos indivíduos em geral, e pelos encarcera- internamente às prisões têm apresentado
dos, em particular. uma estrutura de adesão, de compromissos
e lealdades a códigos de comportamento,
Alguns outros significados e de submissão a penalidades, extrema-
da presença religiosa nas mente rigorosas, que as aproximam das
prisões demais “sociedades dos cativos”. São lidas
como “facções do Bem”. Entretanto, não
Os debates no ISER, realizados no segundo há como ignorar que elas operam com
semestre de 2004, identificaram ainda outros dimensões igualmente opressivas sobre
significados da assistência religiosa nas pri- aqueles indivíduos que foram por elas
sões. Destacaremos alguns deles: convertidos.

1. Num universo absolutamente massifi-


cado e desumanizado, a assistência religio-
sa, mesmo que muitas vezes marcada por Bibliografia

uma lógica fundamentalista, tem represen-


tado uma oportunidade de singularização Adorno, Sérgio & Bordini, Eliana B. “Reincidência e Reinci-

dos indivíduos que dela participam. dentes Penitenciários em São Paulo” in Revista Brasileira de

Ciências Sociais. Anpocs, nº 9, vol. 3, fev. 1989;

2. Esta singularização opera em diferen-


tes dimensões: no acolhimento do preso e ______________. “A prisão sob a ótica de seus protagonis-

sua família; na justificação místico-religiosa tas” in Tempo Social. Revista do Dpto. de Sociologia, São

de sua culpabilidade; na atribuição de um Paulo, USP, 1991;


Benevides, M. Vitória. Violência, Povo e Polícia. São Paulo, Portaria DESIPE/DG nº 770 de 19/ 04/ 2000
21
Brasiliense,1983; Portaria SSAUP- SEAP nº 005 de 31 de janeiro de 2004

Religiões e Prisões
Caldeira, Tereza Pires do Rio. “Direitos Humanos ou privilégio

de bandidos: Desventuras da democratização brasileira” in

Novos Estudos, Cebrap, nº 31, São Paulo, 1991

Coelho, Edmundo Campos. “A administração da justiça

criminal no Rio de Janeiro” in Dados, nº 29 – 1, Rio de

Janeiro, IUPERJ, 1986;

Foucault, Michel. Vigiar e Punir, Petrópolis, Vozes, 9ª edição,

1991;

Goffman, Erwing. Manicômios, Prisões e Conventos, São Paulo,

Ed. Perspectiva, 1974;

Lemgruber, Julita. “Sistema Penitenciário Brasileiro”. Apre-

sentação UERJ, agosto de 2005;

Oliveira, Luciano. “Os excluídos existem? Notas sobre a

elaboração de um novo conceito” in Revista Brasileira de

Ciências Sociais, nº 33, ano 12, fevereiro, 1997;

Pinheiro, Paulo Sergio (org.). Crime, Violência e Poder. São

Paulo, Brasiliense, 1983;

Paoli, M. Célia. “Violência e Espaço Civil” in Violência Brasi-

leira, São Paulo, Brasiliense, 1982

Paixão, Antonio Luiz. Recuperar ou Punir? Como o Estado trata o

criminoso. São Paulo, Cortez, 1988

__________________. “Crime, controle social e consolidação

da democracia: as metáforas da cidadania” in A democracia no

Brasil: dilemas e perspectivas. São Paulo, Vértice, 1988;

Ramos, Silvia e Musumeci, Leonarda. Elemento Suspeito: aborda-

gem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Civilização

Brasileira/ CESeC, Rio de Janeiro, 2005;

Sykes, E. The Society of Captives. Princeton University Press,

Princeton, 1958.

Portaria nº709/ DESIPE de 22/12/1992

Portaria DESIPE/DG nº 716 de 03/11/1993;

DESIPE/DG nº 754, de 27 de junho de 1996;


Católicos e evangélicos Edileuza Santana Lobo
Doutoranda Antropologia e Sociologia
– PPCIS/UERJ

Professora do Colégio Mário Quintana

em prisões do Rio
– Penitenciária Lemos de Brito

22

de Janeiro
Comunicações do ISER

As prisões do Rio de Janeiro têm sido alvo do detentores do “capital religioso” e passam
interesse de religiosos que passaram a atuar a atuar como “multiplicadores da fé”. Vale
nesses espaços sociais, entendendo-os como citar aqui o Grupo de Evangelismo e Visitação
um campo fértil para o proselitismo religioso. da Congregação Lemos de Brito composto por
Nos últimos anos, grupos evangélicos com três ou quatro internos munidos de Bíblia
predominância de pentecostais passaram a que percorrem os espaços do cárcere, distri-
1
visitar os presídios com objetivo de converter buindo folhetos evangelísticos e, surgindo
os internos a sua crença gerando um grande a oportunidade, proferem uma oração ou
contingente de “irmãos encarcerados”. Pela leitura da “Palavra”.
visibilidade desses “crentes” nas prisões,
percebe-se que não é desprezível o número Os agentes religiosos externos realizam ritu-
de convertidos às igrejas evangélicas. Se exis- ais como batismos e ceias. Outros, pela proje-
te algum fenômeno religioso na conversão ção que alcançaram neste “campo religioso”,
destes grupos de internos, a meu ver, isto aparecem apenas em ocasiões especiais. Os
se dá de fora para dentro, com a presença espaços reservados para as atividades religio-
constante dos agentes religiosos de diversas sas não comportam o número de assistentes.
denominações revezando-se na evangelização Desta forma, geralmente, as reuniões aconte-
dos presos. cem nos pátios e quadras das unidades que
se transformam em “palcos” para dar lugar
A presença dos pentecostais no ambiente pri- a performances reveladas, por exemplo, nas
sional produziu uma nova dinâmica religiosa práticas de exorcismos. “Expulsar os demô-
neste espaço social. Hoje, é quase impossível nios” que se manifestam no corpo das pessoas
entrar em qualquer unidade sem notar a pre- integra a concepção sobre a possessão do
sença dos “crentes” que ali estão procurando “mal” nas igrejas pentecostais. Na prisão esta
distinguir-se como tais, guardando certa dis- prática ganha contornos especiais uma vez
tância da “massa carcerária”. A construção de que o crime cometido passa a ser concebido
uma nova identidade iniciada a partir de um como de responsabilidade do “demônio” que
“novo nascimento” é acionada também cor- se apossou do corpo de quem o cometeu.
poralmente: a visibilidade dos pentecostais
é percebida não apenas pela expressividade A conversão dos presidiários também gera
numérica, mas também pelo comportamento simpatias por parte dos administradores, já
e pela forma de falar e de se vestir. que esses entendem que os evangélicos geram
1 Como professora do
menos conflitos. Nas palavras de Gilson No-
colégio Mário Quintana,
Os cultos pentecostais nos presídios aconte- gueira, diretor do Presídio Muniz Sodré em na Lemos de Brito, tive a
cem diariamente. Para realizá-los, os agentes Bangu, também evangélico: oportunidade de receber
estes folhetos diversas
religiosos se revezam de acordo com a deno-
vezes nas visitas do citado
minação a qual pertencem. Também os que ali “O que mais quero é poder manter a cal- grupo à escola.
se converteram tornam-se agentes religiosos ma dentro da unidade; que todos estejam 2 Entrevista ao jornal
“Só Isso”, maio de 2005,
internos. Após um período de aprendizado da tranqüilos como estão agora. Com 1400
redigido e ilustrado pelas
fé, através dos estudos bíblicos e freqüência internos, não tenho ninguém no castigo internas da Penitenciária
2
assídua às atividades religiosas, tornam-se no dia de hoje” . Talavera Bruce.
Os agentes religiosos evangélicos têm relevância No Brasil, a religião tinha espaço garantido 23
6
social por se configurarem como alternativas desde a criação das prisões e era ocupado
de ressocialização (embora o efeito social da legitimamente pela Igreja Católica. Quase

Religiões e Prisões
presença evangélica nas prisões ainda necessita um século depois, as tarefas religiosas nas
ser mais estudado). prisões não se diferenciavam muito daquelas
do século XIX, época na qual o catolicismo
Os católicos, diferentemente dos evangélicos, era religião oficial do Estado. Nesse contexto,
fazem assistência religiosa sem pregar conver- o protestantismo era corrente minoritária
são e reagem criticamente ao avanço das igrejas que atuava clandestinamente, mas começava
evangélicas e às suas práticas proselitistas. a incomodar os católicos, por sua prática
Consideram-se, ainda, prejudicados por consi- proselitista. A partir do fim da monarquia,
derar que os diretores de unidades favorecem com a emergência do estado secularizado,
os “rivais”. novos grupos religiosos, como os evangélicos
pentecostais passaram a atuar livremente pro-
Neste texto, pretendo apresentar um breve tegidos pela separação entre Igreja e Estado
panorama da atuação dos agentes religiosos preconizada na constituição republicana.
católicos e evangélicos no sistema penal anali-
sando os diferentes mecanismos de ação destes Hervieu-Léger (1997) esclarece que o estado
grupos através da assistência social e da prática secularizado impulsionou o pluralismo re-
proselitista que resulta em disputas religiosas. ligioso ao mesmo tempo em que diminuiu
Esta pesquisa foi realizada entre 2001 e 2002 a influência da religião na sociedade. Esta
nos Presídios Helio Gomes e Nelson Hungria situação favoreceu a concorrência criando
no Complexo Frei Caneca e resultou na minha novos campos sociais como possíveis espaços
dissertação de mestrado (Lobo, 2002). de proselitismo e até de disputas religiosas.
Neste sentido, o lócus prisional passou a pre-
A prisão como campo senciar uma disputa religiosa onde católicos
religioso e evangélicos são os principais concorrentes
na distribuição de bens de salvação aos pre-
3 A construção da Casa Desde o século XIX, com a construção da Casa de sidiários. Outros grupos religiosos como os
de Correção teve início em 3
1834 onde atualmente é
Correção , a assistência religiosa nas prisões tor- espíritas e religiões afro-brasileiras, também
a Penitenciária Lemos de nou-se atribuição da Igreja Católica. A figura do atuam nas prisões, porém com menor inci-
Brito no Complexo Frei capelão já existia para dar assistência aos presos. dência.
Caneca.
4 Os Relatórios Minis-
Nos registros encontrados nos Relatórios Minis-
4
teriais da Casa de Correção teriais o agente religioso aparece descrito como Até a década de 1980, os meios de comuni-
estão disponíveis no em “médico espiritual que está constantemente cações não tinham muito acesso ao universo
http:crl.Edu/bsd/bsd/ha-
teness/minopen.html.
num hospital infeccionado”. Os penitenciaristas das prisões não podendo assim, apresentá-lo
5 Ver Bentham (2000), brasileiros do século XIX estavam afinados com à sociedade, situação que tem início com o
5
Beccaria (2002). o pensamento europeu dos reformadores que se fim do governo autoritário. Estudos e debates
6 Coleção de Leis do
Império, 1850 – Regu-
dedicaram a pensar a questão das prisões e cria- sobre a questão das prisões eram escassos
lamento para a Casa de ram modelos que associavam o cumprimento e passaram a ser mais freqüentes após o
Correção do Rio de Janeiro da pena com a educação moral, o trabalho e a episódio ocorrido em São Paulo conhecido
– Decreto 06/07/1850.
Trata dos serviços religio-
religião. No documento supracitado, aparecem como “massacre do Carandiru” que provo-
sos que o capelão deveria citações que nos revelam a preocupação da casa cou reações e manifestações de organismos
executar como “rezar mis- com assistência religiosa aos presos: nacionais, internacionais e da sociedade
sas aos domingos e dias de 7
guarda e executar tarefas
civil . Estes movimentos colaboraram para
concernentes à função da “As práticas religiosas, a constante assidui- evidenciar a precariedade das prisões brasi-
Igreja, determinadas pelo dade do capelão junto aos presos é assim, leiras, principalmente nos estados do Rio de
diretor da instituição”.
7 Ver Leal, 2001.
palpitante necessidade do sistema”. Janeiro e São Paulo.
24 As prisões brasileiras – com um sistema carce- Outro fator que aponta para a questão do
rário deficitário, celas superlotadas e ausência crescimento religioso é a iniciativa por parte
de políticas públicas que possam viabilizar do Departamento de Sistema Penitenciário
Comunicações do ISER

a garantia dos direitos humanos dos presos para controlar o fluxo crescente de agentes re-
– têm proporcionado iniciativas da parte das ligiosos nos presídios. Através da Portaria DG
igrejas evangélicas no intuito de promover nº 770 de 19 de abril de 2000 fica estabelecido
algumas transformações na realidade social o cadastramento das instituições religiosas
das prisões a partir da conversão religiosa dos interessadas em visitar os presídios e o creden-
detentos. Assim, os agentes religiosos externos ciamento de seus agentes religiosos.
passam a visitar diariamente os presos ajudan-
do a amenizar carências materiais e afetivas A atividade de assistência religiosa nas pri-
desses indivíduos e até de suas famílias. A pre- sões é regulamentada pela Lei de Execuções
sença dos pentecostais no ambiente prisional Penais (LEP), nº 7210 de 11 de julho de 1984,
revelou um campo de disputa na distribuição que regula o serviço de capelania no sistema
dos “bens de salvação” aos presidiários. penitenciário. “Art.24º – A assistência reli-
giosa com liberdade de culto, será prestada
A presença expressiva de evangélicos nas pri- aos presos e aos internados, permitindo-lhes
sões começou no final dos anos 1980. Antes a participação nos serviços organizados no
disso, a participação deles não se dava de for- estabelecimento penal, bem como a posse de
ma sistemática como hoje. “Era tudo muito livros de instrução religiosa”.
solto. Não havia compromisso”, conforme
declaração de uma missionária que entre- Percebe-se que as prisões não ficaram imunes
vistei. Outros agentes religiosos lembraram às transformações do campo religioso brasilei-
que, desde a década de 60, a Igreja Batista ro. O crescimento das igrejas pentecostais dos
e Assembléia de Deus visitavam as prisões, últimos anos também se reflete nas prisões.
geralmente em ocasiões especiais e datas Espaço tradicionalmente ocupado pela Igreja
festivas como Natal e Ano Novo. A atuação Católica, as prisões têm sido alvo da atuação
de agentes religiosos com objetivo conversio- expressiva de igrejas evangélicas que, a princí-
nista era incipiente e acontecia por meio de pio, têm logrado sucesso. Sua iniciativa combi-
iniciativas isoladas. na assistência social e proselitismo ao mesmo
tempo em que exercem suas práticas religiosas
A penetração das igrejas evangélicas em novos com autonomia e oposição aos católicos.
espaços sociais foi percebida e registrada por
8
estudiosos , que destacaram a militância dos A Pastoral Penal e os católi-
pentecostais em setores sociais marcados pela cos nas prisões
pobreza e desigualdades, locais marginaliza- 8 Ver Mariano, 2001.
dos, considerados por muitos como espaços de Embora não tenha tido o crescimento acen- 9 O padre Bruno Tro-
beta iniciou sua atividade
proliferação do crime e da miséria. Em favelas tuado que os evangélicos tiveram, a atuação como capelão nos presí-
e bairros de periferias o “tornar-se crente” dos católicos nas prisões nas últimas décadas dios do Rio de Janeiro des-
passou a representar uma alternativa de vida aumentou. Em 1975 foi criada a Pastoral Pe- de 1969 quando ingressou
no presídio Hélio Gomes.
para muitas pessoas, principalmente jovens. A nal com objetivo de ampliar o atendimento Ampliou suas ativida-
cada semana, no ano de 1992, surgiam cinco da Igreja Católica aos presidiários, conforme des para outras unidades
9
novas igrejas evangélicas (Fernandes, 1998). declaração do padre Bruno Trombeta . prisionais, tornando-se,
depois, coordenador da
É compreensível, portanto, que o movimento Pastoral Carcerária do
crescente de evangélicos se refletisse nas pri- “Quando nós começamos, nós começamos Estado do Rio de Janeiro
sões e que suas militâncias, naqueles espaços, a celebrar algumas missas por semana, de- até o seu falecimento em
março de 2003. Esta en-
tenham provocado algumas transformações pois percebemos que as missas eram muito trevista foi-me concedida
no seu cotidiano. procuradas e que não era possível ir ao em julho de 2001.
presídio fazer uma missa e esquecer daquilo “Eu sou o capelão do coletivo, não sou 25
que era a visão humana integral. Então eu o capelão dos católicos; os católicos es-
não posso no presídio, fazer simplesmente tão incluídos se quiserem descer, se não

Religiões e Prisões
uma missa e sair. Tenho que atingir uma quiserem descer não são obrigados [...].A
dimensão mais ampla, uma dimensão que nossa presença dentro dos presídios é uma
abrangesse o homem integralmente. Então preocupação com os direitos humanos
foi aí que se criaram dois outros pontos também, não é uma preocupação cultual
para o atendimento ao preso e a família do como fazem os evangélicos, culto, fazer
preso, que é a assistência social ao preso, culto. Eu não tenho essa preocupação, eu
à sua família e ao egresso e depois o aten- faço missa. A preocupação da presença
dimento jurídico”. da Igreja Católica é uma preocupação de
controle, do preso para não ser esmagado
A atuação dos agentes religiosos católicos nas pelo outro preso, para não ser esmagado
prisões é direcionada ao coletivo dos presos, pela direção e pelos guardas. Isso é a pre-
e, não é visível entre os católicos, a intenção ocupação nossa”.
de converter os presos, como afirmou o padre
Bruno: “A conversão é uma questão da pessoa A literatura produzida para a Campanha da
com Deus, creio que não devemos coagir nin- Fraternidade de 1997, cujo tema “A fraterni-
guém a se converter”. Nas prisões, a atuação dade e os encarcerados”, revela a preocupação
dos católicos consiste em missas, atividades de da Igreja Católica com o crescimento dos
aconselhamento, palestras, assistência jurídica evangélicos nas prisões:
e ajuda material para aquelas necessidades bá-
sicas que o Estado não fornece como também “Agentes da pastoral carcerária de várias
fazem os evangélicos. Embora desenvolvam Dioceses relatam que os presos católicos se
atividades consideradas relevantes, não alcan- ressentem da pouca atenção que recebem
çam a mesma visibilidade dos evangélicos, cujo da sua igreja. A presença das igrejas evan-
diferencial está na atuação direcionada aos gélicas é marcante e há muitos que nelas
indivíduos. Assim, através da conversão indivi- encontram motivações psico-religiosas
dual, os evangélicos vão formando uma rede de para a reconstrução da própria personali-
sociabilidade e alcançam maior visibilidade. dade“. (1997: 71)

Em 1978 a Pastoral Penal prestava assistência Naquele mesmo ano, a revista Manchete
religiosa a 10 presídios com 60 agentes religio- (25/01/1997) trouxe uma reportagem provo-
10
sos entre leigos, freiras e sacerdotes . Com o cativa com o título “Guerra Santa nos Presí-
crescimento da população carcerária, cresceu dios” na qual denunciava uma suposta reação
também a demanda pela assistência religiosa dos católicos ao avanço dos evangélicos no
nas prisões. No ano de 2002, os católicos esta- sistema penitenciário:
vam atuando em todas as unidades do sistema
penitenciário do Rio de Janeiro com 150 agen- “Nas hostes da Igreja Católica, nada causa
tes religiosos leigos, além dos clérigos. mais irritação do que insinuar que a escolha
do tema (da Campanha da Fraternidade)
É recorrente entre os agentes católicos a faz parte de uma estratégia para ocupar,
afirmação de que atuam diretamente com com maior intensidade, os presídios”.
o coletivo. O discurso dos católicos não é
predominantemente religioso, mas de cons- Ao mesmo tempo em que os católicos apela-
cientização dos direitos e deveres do detento vam à solidariedade para com os presidiários
10 Revista do Conselho
Penitenciário do Distrito no sistema penitenciário e também de defesa revelavam reação aos evangélicos. A concepção
Federal nº37 – 1978. dos direitos humanos: de que o presidiário é católico, embora não
26 esteja praticando a religião, está presente na daqueles que “se convertem” através do com-
literatura citada. “A falta de uma religião (ca- portamento. Procuram se diferenciar daquele
tólica) bem arrumadinha não é desculpa para característico da cadeia e uma nova identidade
Comunicações do ISER

as pessoas tentarem “converter” os presos ou corporal é acionada, na qual a Bíblia em baixo


jogar Deus na cara deles! Isto é um insulto”. do braço representa a “arma do crente, a espa-
(Valentini, 1995:19) A igreja deve estar pre- da da fé”. Além disso, o uso de roupas sóbrias,
sente no sentido de conscientizar o preso dos a mudança no modo de falar e gesticular, vêm
seus direitos e deveres e cobrar do Estado o configurar um comportamento adequado à
cumprimento dos direitos humanos para os condição de “irmão”.
presos. Tal concepção foi enfatizada pelo padre
Bruno Trombetta, “não estamos interessados Por outro lado, ser “crente” na prisão pode
em fazer proselitismo, queremos defender os também trazer benefícios para o preso na me-
direitos físicos e morais dos presos”. Assim, dida em que a adesão à fé e a adoção de novos
a postura dos católicos se opõe a dos evan- padrões de comportamento torna o “novo
gélicos na medida em que estes enfatizam a crente” objeto de atenção do agente religioso
conversão individual e direcionam suas ações que vai ajudá-lo, como a um “filho na fé”.
para atingir este objetivo, enquanto aqueles, Isto consiste em receber atenção especial no
exercem suas atividades religiosas direciona- sentido de orientá-lo no seu novo percurso e
das ao coletivo. ajudá-lo materialmente. Como efeito da nova
condição social do preso, a pressão do sistema
Sem dúvida, uma postura política, mas que sobre ele é, de certa forma, amenizada, uma
não resulta em mobilizações em termos de vez que “deixa de ser aquele detento que só
prática religiosa. Por outro lado, os evangé- pensa em fugir”. Outro aspecto ressaltado
licos com sua militância explícita produzem com freqüência pelos presos evangélicos e
agregação social ao apostar na transformação mesmo por aqueles que não participam de
individual através da conversão, na auto-esti- atividades religiosas, é que muitos se utilizam
ma pelo discurso do amor, perdão e libertação do expediente religioso para se protegerem, “se
e, por último, o sentido de pertencimento escondem atrás dos irmãos”. Isto se aplicaria
proporcionando assim a formação de um novo àqueles que estão condenados por estupro e
coletivo com uma identidade positiva. Esse temem represália do próprio coletivo.
percurso religioso é legitimado pelo uso da
“Palavra”, no caso, através dos textos bíblicos Várias são as denominações evangélicas que
que vão proporcionar o suporte para a atua- atuam nas prisões através de seus agentes re-
ção dos agentes religiosos e a reprodução dos ligiosos. No contexto da prisão, estes agentes
convertidos na prisão. não enfatizam a denominação a qual perten-
cem constituindo uma espécie de “ecumenis-
Atuação dos evangélicos nas mo evangélico” cujo objetivo é minimizar as
prisões diferenças doutrinárias em favor da unidade
do grupo. Dentre os evangélicos nas prisões, a
Historicamente, no Brasil, o “ideal cristão” presença de pentecostais é predominante sen-
de evangélico se constituiu em oposição à do a maior parte da Igreja Assembléia de Deus
religião Católica (Dreher,1997). Na concepção e da Igreja Universal do Reino de Deus.
evangélica, religião e vida cotidiana são inse-
paráveis. O compromisso de tornar visível a Apesar da variedade de atores e discursos
opção religiosa e, a demonstração da condição característicos dos evangélicos, estes se orga-
de “crente” é vista como testemunho da fé. De nizam espacialmente no sentido de incentivar
modo geral, na sociedade mais ampla e especi- a conversão do preso e a multiplicação dos
ficamente na prisão, isto resulta na distinção fiéis na prisão. Aceitar a crença evangélica na
prisão significa assumir um novo estilo de vida em que eles estão são as que dão menos 27
e novos padrões de comportamento. trabalho”.

Religiões e Prisões
Isto vai exigir do interno a busca do “aperfei- No discurso dos agentes religiosos evangélicos
çoamento cristão” , o que implica utilizar o é recorrente a afirmação de que a iniciativa das
tempo disponível para freqüentar os cultos da igrejas tem contado com apoio dos diretores
prisão e estudar a Bíblia. Este novo “ethos” de dos presídios pelos benefícios que suas pre-
crente evangélico vai se construindo no cotidia- senças trazem, principalmente, no sentido de
no das prisões, com a supervisão dos agentes que a religiosidade dos presos promove um
religiosos que as visitam com freqüência. Estes ambiente calmo na cadeia, conforme a decla-
organizam cultos e festividades, procuram en- ração de um delegado:
volver os familiares dos internos nas atividades
religiosas, promovem reconciliações familiares “Todas as vezes que acontece um batismo,
e até casamentos daqueles que, segundo os faço questão de falar aos presos. Acho esse
padrões evangélicos pentecostais, “não estão trabalho importantíssimo. Em primeiro
de acordo com a vontade de Deus”. lugar porque sentimos que, após esse
encontro religioso, os presos ficam mais
Outro fator que contribui para a visibilidade calmos. Em segundo, o trabalho que vem
dos evangélicos é a segregação do grupo em es- sendo desenvolvido pela igreja tem dado
11
paços definidos como “celas evangélicas”. Essa resultados”.
transformação no espaço físico das prisões
tem gerado descontentamento da parte dos Atualmente existem celas evangélicas em quase
católicos que identificam esta prática como todos os presídios do Rio de Janeiro. Cito aqui
uma espécie de privilégio concedido pelos o Presídio Hélio Gomes no Complexo Frei Ca-
diretores dos presídios. Os detentos, quando neca o qual visitei na ocasião da pesquisa. Em
se tornam evangélicos, passam a compartilhar 2002, aquela unidade possuía uma população
o mesmo espaço, separados daqueles que não carcerária de 920 detentos. Segundo informa-
professam a mesma crença. ções dos presos, oito celas eram ocupadas por
evangélicos, abrigando 30 homens em cada
Segundo declaração da missionária Adenice uma. Isso representava em média, 20% do con-
Barreto, a iniciativa das “celas evangélicas” tingente. Para uma boa convivência naquele
é importante para a consolidação da fé dos espaço, os detentos, orientados pelos agentes
novos convertidos: religiosos, estabeleceram algumas regras. A
manutenção dos cultos no interior das celas
“Começou pela população, daqueles que era mantida por uma liderança formada para
se convertem, ter dificuldade de leitura da este fim, sendo composta por dirigentes de cul-
Bíblia e oração. Eles queriam orar, fazer cul- tos, instrutor bíblico, tesoureiro (para recolher
tos e os ímpios não aceitavam. Havia uma o dízimo) e conselheiro. Além disso, criaram
divisão, porém, tudo o que o guarda e o um estatuto com as seguintes determinações:
diretor querem no presídio é tranqüilidade. não brigar nem discutir interpretações dou-
Se há tranqüilidade para eles, está ótimo. trinárias das igrejas, não falar palavrões, não
Então, o que aconteceu: houve uma reivin- contrair dívidas, o uso de aparelhos de rádio
dicação daqueles que se convertiam e de e televisão deveria se restringir aos programas
nós enquanto capelães, para que houvesse edificantes ou educativos. O não cumprimento
espaço para aqueles que querem seguir a do estatuto implicava advertência ao compa-
“palavra”. E aqueles que não querem, que nheiro quanto a seu desvio de conduta. Caso
continuem no seu convívio de bebida, de houvesse reincidência, o interno retornaria ao
11 Jornal Folha Univer-
sal de 01/08/2001. prostituição, do que quiserem. As galerias convívio com os “pecadores”. Em entrevista
28 recente, um detento da Lemos de Brito que presídios do Complexo Frei Caneca, onde fiz
em 2002 estava no Hélio Gomes revelou que a pesquisa e nas conversas com agentes reli-
atualmente na Lemos, nem todos os presos giosos católicos, inclusive na época do padre
Comunicações do ISER

evangélicos vivem segregados em tais celas. Bruno Trombetta, observei que o catolicismo
Disse também que as regras não são tão ali praticado guarda semelhanças com a igreja
rígidas quanto no outro presídio e que até progressista no seu engajamento na luta pela
alguns presos que têm bom comportamento justiça social em favor dos direitos humanos
são aceitos no grupo. Um outro interno tam- dos presos. Uma agente religiosa com quem
bém na Lemos de Brito, revelou que prefere conversei recentemente revelou que, com
conviver na galeria dos “não crentes”, pois ali os presos sua prática religiosa é baseada na
podem surgir oportunidades de evangelizar “espiritualidade chão” da corrente inaciana,
os companheiros. Nesta unidade, segundo voltada para reflexão sobre os atos cometidos
informação recente do pastor Vicente, agente e a consciência da responsabilidade sobre
religioso da Igreja Assembléia de Deus, a Con- os mesmos. Com a morte do padre Bruno,
gregação da Lemos de Brito tem 125 membros o discurso de defesa dos direitos humanos
ativos (batizados e filiados à Igreja Assembléia dos presos ainda continua presente, embora
de Deus Parque Aliança em Duque de Caxias). enfraquecido. Se o Grupo de Renovação Caris-
Além disso, informou o pastor, “tem aqueles mática pode ser identificado como movimento
que não são membros da igreja, mas freqüen- de reação da Igreja Católica ao avanço pente-
tam os cultos para receberem benefício social, costal nas prisões do Rio de Janeiro, o grupo
como leite para aqueles que tomam remédio e ainda não chegou.
alguns artigos de primeira necessidade”. Num
universo de aproximadamente 550 internos, Bibliografia

não é desprezível o número de pentecostais.


Se a adesão religiosa é estratégica e se produz BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. SP: Ed. Martin

efeitos sociais efetivos, são questões ainda não Claret, 2002

respondidas. Vale questionar também, se ou-


tras iniciativas estão sendo implantadas para BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. Belo Horizonte: Autêntica,

oferecer ao preso melhores condições para o 2000

cumprimento da pena e o possível retorno à


sociedade. BIRMAN, Patrícia. “Males e Malefícios no Discurso Neopentecostal”

in: O Mal à Brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Uerj, 1997

Conclusão
BIRMAN, Patrícia e LEITE, Marcia Pereira. “O que aconteceu

Nas prisões do Rio de Janeiro, a presença dos com o antigo maior país católico do mundo?” in: Brasil – Fardo do

agentes religiosos por um lado tem provocado passado, promessa do futuro. Dez ensaios sobre política e

mudanças no ambiente prisional e, por outro, sociedade brasileira. BETHEL,Leslie (org.) RJ: Ed. Civilização

transformado líderes religiosos em parceiros Brasileira, 2002

do Estado na administração de conflitos nas


prisões, algumas vezes até, atuando com certa CNBB – Manual da Campanha da fraternidade, 1997

autonomia em situações de rebeliões.


CNBB – Como Fazer Pastoral Carcerária. Rio de janeiro:

Enquanto a visibilidade dos evangélicos nas Ed. Vozes, 1995

prisões está crescendo, percebo a atuação dos


católicos enfraquecida. O número de agentes COELHO, Edmundo Campos. A Oficina do Diabo. Crises e

religiosos é reduzido, as reuniões acontecem conflitos no sistema penitenciário do Rio de janeiro. Rio de Janeiro:

uma vez por semana e segundo informações Espaço e Tempo/IUPERJ, 1987

dos internos, são pouco freqüentadas. Nos


DREHER, Martin N. “Protestantismo Brasileiro – Um Mundo
29
em Mudança” in: Estudos Leopoldinenses Vol.1 nº 2, 1997

pg.139-161

Religiões e Prisões
FERNANDES, Rubem Cesar. (et al.) Novo Nascimento – Os

Evangélicos em Casa, na Igreja e na Política. Rio de Janeiro: Ed.

Mauad, 1998

HERVIEU-LÉGER, Daniele. “Representam os surtos emo-

cionais contemporâneos o fim da secularização ou o fim da

religião?” in Religião e Sociedade Vol. 18-1,1997

KANT, Roberto L. MISSE, Michel e MIRANDA, Ana P. “Vio-

lência, criminalidade, segurança pública e justiça criminal

no Brasil: Uma bibliografia.” Rio de Janeiro: RBIB nº 50,

2000 pg. 45-123

LEAL, César Barros. Prisão: Crepúsculo de uma era Belo Hori-

zonte: Del Rey, 2001

LOBO, Edileuza Santana “Igrejas atrás das Grades”: Um

estudo sobre a atuação de católicos e evangélicos no sistema

penitenciário do Rio de Janeiro. IFCS-UFRJ, Dissertação de

mestrado, 2002

MARIANO, Ricardo. “Análise Sociológica do Crescimento

Pentecostal no Brasil.” Tese de doutorado. São Paulo: USP,

2001

ORO, Ari Pedro. Avanço Pentecostal e Reação Católica. Petrópolis:

Vozes, 1996

PAIXÃO, Antonio L. Recuperar ou Punir? Como o Estado trata o


criminoso. São Paulo: Ed. Cortez e Associados, 1987
Religiosidade:
mecanismos de sobrevivência
Laura Ordóñez Vargas
Mestre em Antropologia – UNB

30 na Penitenciária Feminina
do Distrito Federal
Comunicações do ISER

Este trabalho é fruto da minha dissertação de Deus. Os outros dois são católicos: a Pasto-
de mestrado, cujo trabalho de campo foi rea- ral Carcerária e a Oficina de Oração Católica.
lizado na Penitenciária Feminina do Distrito Além desses, há um grupo não religioso, os
Federal (PFDF), tendo a religião como chave Narcóticos Anônimos (NA), que é conside-
de entrada neste universo social. A realidade rado pela instituição como “grupo religioso”
que se desvendou ao longo da pesquisa mos- porque também ajuda as internas.
trou-se rica e complexa em relação à imaginada
inicialmente. Assim, o “religioso” junto com Para a pesquisa entrevistei os agentes religio-
outros aspectos da vida prisional feminina sos da Igreja Batista Primeiro de Julho que
como as formas de sociabilidade e a homosse- trabalham com as mulheres presidiárias há 8
xualidade compõem o tripé analítico da minha anos; da Igreja Batista Filadélfia, presente há
interpretação. Tal análise supõe um recorte de 14 anos; da Igreja Batista Central de Brasília;
gênero, visto que a cultura carcerária feminina da Igreja Assembléia de Deus, que trabalha há
configura dinâmicas específicas e particulares, 4 anos na penitenciária; da Pastoral Carcerária,
quando comparadas às dinâmicas na cultura presente há 12 anos, e, finalmente, do Grupo
carcerária masculina. de Oração Católico que atua com as mulheres,
há 7 anos.
Neste trabalho, analiso o aspecto religioso
sem desconsiderar sua interdependência com Dentre os diferentes grupos evangélicos atu-
outros dois aspectos acima referidos. Para antes na penitenciária, cuja maioria é batista,
tanto, primeiro realizo uma breve etnografia existem diferenças de “usos e costumes”, mas
descritiva sobre a forma como opera a religião não de doutrina, pois a base é o Evangelho.
na PFDF: as diversas igrejas que assistem as Deste modo, todos os agentes religiosos dos
internas, o sistema de participação nos cultos, grupos batistas consideram suas igrejas “mais
as manifestações religiosas informais, entre liberais, mais avivadas e alegres, porque nos cul-
outros. Em seguida, apresento minha escolha tos batem palmas e cantam”. A agente religiosa
analítica para explicitar o papel que os grupos da Assembléia de Deus revela as diferenças de
religiosos e o discurso cristão desempenham atuação. Descreveu sua igreja como sendo mais
nesta instituição total, conforme a perspectiva ortodoxa nos usos e costumes dentro e fora
dos diferentes atores da comunidade prisional, dos cultos: “nós, assembleianos, não batemos
com ênfase na voz das presidiárias. Esclareço, palmas nos cultos, não assistimos televisão,
ainda, que meu propósito não é fazer uma con- escutamos só música religiosa, as mulheres não
tribuição ao campo dos estudos da religião. podem cortar o cabelo, entre outras coisas”.

Etnografia Dentre os grupos católicos, a Pastoral Car-


cerária constitui-se como uma divisão das
Na PFDF há onze grupos religiosos para assis- pastorais sociais que fazem parte da Igreja
tir as internas. Dentre esses, nove grupos são Católica. Por outro lado, o Grupo de Oração
evangélicos de diferentes denominações: seis católico é independente da Igreja, mas realiza
grupos Batistas; dois grupos da Assembléia de oficinas com as internas tendo como base do
Deus e um grupo da Igreja Universal do Reino seu trabalho, os preceitos católicos.
O contato entre os agentes dos diversos grupos Em junho de 2003, a Fundação INTEGRA 31
religiosos acontece uma vez por ano, quando (Instituto de Integração Social e de Promoção
se reúnem na penitenciária para planejar e à Cidadania), cuja presidente é Weslian Roriz,

Religiões e Prisões
distribuir os dias e horários da assistência re- esposa do governador do DF, e a vice-presiden-
ligiosa. A distribuição dos horários, segundo te, Lucia Vittá, que lidera os grupos de oração
alguns agentes religiosos, é negociada entre a católicos, construiu no Bloco III de regime
administração e os grupos conforme a dispo- fechado uma Capela Católica e, ao lado, um
nibilidade de tempo dos mesmos. Deste modo, espaço ecumênico evangélico. Ambos os es-
cada grupo evangélico, dos nove, assiste às paços são destinados à realização dos cultos
internas um ou dois dias do mês; o grupo de com as internas desse bloco. No momento da
Oração Católica realiza duas oficinas ao ano, pesquisa alguns cultos eram realizados ainda
de quatro meses cada uma, e nesse período no pátio e outros nesses espaços. No Bloco I,
assiste às internas quatro dias por mês, ou de regime semi-aberto, os cultos evangélicos
seja, uma vez por semana; a Pastoral Carcerária são realizados no pátio e, nos dias de sábado
ingressa na penitenciária nos três primeiros que correspondem à Pastoral Carcerária, as
sábados do mês e ministra a missa durante internas são levadas ao Bloco III para assistir
um destes sábados; e finalmente, o grupo de aos trabalhos de evangelização ou à missa.
Narcóticos Anônimos assiste às internas uma Segundo estatísticas de junho de 2004, ingres-
vez por mês, aos sábados. saram na penitenciária 44% de católicas, 27% de
evangélicas e 1% de espíritas, de um total de 300
Para entender o sistema de participação nos internas. Os 28% restantes não informaram ou
cultos é preciso descrever, a grosso modo, o não possuiam religião. Essas estatísticas reve-
complexo penitenciário da PFDF que se divide lam que 49% das internas assistem aos cultos
em quatro blocos. No Bloco I ficam as inter- evangélicos e 35% às missas católicas. Não quer
nas em regime semi-aberto e os homens de dizer que a adesão das internas seja exclusiva,
tratamento psiquiátrico. O Bloco II destina-se visto que, na realização da pesquisa, muitas
exclusivamente aos escritórios administrativos responderam participar de ambos os cultos.
dos agentes penitenciários e funcionários. O
Bloco III abrange a maior parte da população Por motivos de “segurança”, isto é, para contro-
carcerária, ou seja, as internas em regime fe- lar as brigas no pátio, a administração mudou
chado. Esse bloco, por sua vez, está dividido o sistema de participação das internas nos
nas alas A, B e C. Finalmente, há o Bloco IV cultos. O novo sistema começou a vigorar em
que não está em funcionamento. Janeiro de 2005. Deste modo, foram criadas
duas listagens únicas: a evangélica de qualquer
No momento da pesquisa, a participação das denominação e a católica fazendo com que as
internas nos cultos evangélicos dependia da internas tenham que escolher entre o evangelis-
coincidência entre o horário designado ao mo e o catolicismo. Também foi determinado,
grupo religioso e o horário do “banho de sol” de forma contrária ao sistema anterior, que as
no pátio. Assim, por exemplo, se aquelas que internas a participarem dos cultos ou missas
ocupam a ala C se encontrassem no pátio no devem ser aquelas que estão nas celas e não as
horário da Igreja Primeiro de Julho assistiam que se encontram no pátio em “banho de sol”.
ao culto. No entanto, para participar dos dois Assim, por exemplo, se a ala C encontra-se no
grupos católicos, era preciso inscrever-se numa pátio, são as internas da ala A ou B as que as-
lista, dado que os sábados eram os dias agen- sistem aos cultos realizados obrigatoriamente
dados para a Pastoral Carcerária. Também, nos espaço religiosos.
se fazia necessário agendar a participação no
Grupo de Oração que realizava sua assistência Dentro da penitenciária observei dois cultos
em forma de oficinas. religiosos nas duas Igrejas Batistas: a Batista
32 Central e a Batista Primeiro de Julho (IBPJ). sejável e forçada da instituição no reduto da
O primeiro foi realizado no pátio da ala do individualidade da presidiária. Resulta no con-
regime semi-aberto com a participação de 16 trole de todos os aspectos da sua vida e da sua
Comunicações do ISER

internas e o segundo no espaço de realização rotina e da invasão da sua reserva simbólica


dos cultos evangélicos, contando com a pre- individual (Foucault,1975). Em função desse
sença de 25 internas. Os cultos seguiram a processo que sofre a identidade da presidiária
mesma liturgia das igrejas evangélicas de fora: e do contexto de poder/submissão exacerbado
o momento de cantar e louvar e o momento da em que é colocada examinarei, a seguir, minha
palavra do pastor que inclui a leitura da Bíblia. escolha analítica.
Igual a todos os cultos dentro da penitenciária,
estes tiveram duração de uma hora e meia a Como já afirmei anteriormente, o papel
duas horas. que desempenham os grupos religiosos e o
discurso cristão, ou seja, o aspecto religioso,
Além dos grupos e dos cultos religiosos evan- constitui uma das partes de um tripé analíti-
gélicos e católicos, a prática religiosa se estende co – formado também pela “sociabilidade” e
a manifestações informais entre a população pela “homossexualidade” – que atuam como
carcerária que – de forma individual ou grupal tecnologia e estratégia de poder e de controle
– durante as noites, nas celas ou em outros institucional e administrativo sobre a massa
espaços, se reune em campanhas, jejuns, gru- carcerária com a finalidade de tê-la mais dócil
pos de oração e leitura da Bíblia. Há também, e menos “revoltada”. Atuam ainda como meca-
segundo as internas, manifestações religiosas nismos de “adaptação-resistência” que adotam
informais individuais não cristãs como de as internas para driblar e mitigar as tensões e
espíritas, budistas, místicas e da Igreja Mes- as dores do dia a dia do aprisionamento e para
siânica. Cabe ressaltar ainda que, na PFDF, sobreviver ao extremo estado de repressão e
algumas internas não têm religião. Em relação contenção em que se encontram submetidas,
às práticas das religiões afro-brasileiras como segundo a máxima de Foucault (1976) que diz
o candomblé e a umbanda, não encontrei que “onde tem poder, tem mecanismos de re-
nenhum indício da sua presença na penitenci- sistência”. Tal relação entre poder e resistência
ária. Segundo o relatado por todas as internas apresenta-se, no contexto carcerário, de uma
que entrevistei e pelas agentes penitenciárias, forma veemente e gritante.
essas práticas religiosas não fazem parte do
cotidiano prisional. O conceito de mecanismos de adaptação-resis-
tência é híbrido. Nele comportamentos e dis-
Escolha Analítica cursos aparentemente adaptativos aparecem
simultaneamente como formas de resistência.
Em primeiro lugar destaco o fato de tratarmos, O discurso híbrido é aquele onde falam conco-
neste trabalho, com sujeitos multiplamente mitantemente e em tensão o sujeito reduzido
excluídos: são mulheres, pobres e não-brancas. a uma posição de subalternidade e o sujeito
A esses fatores soma-se o processo de aprisio- rebelado, insatisfeito (Segato, 2003:249). Es-
namento que produz outra exclusão: são “cri- ses mecanismos são espaços intermediários e
minosas”. Dois ritos de passagem marcam o brechas do sistema prisional, onde a vida e a
processo de mudança identitária das internas, singularidade pedem passagem subordinadas
a saber, o momento de ingresso no sistema e o e limitadas ao poder e controle e, ao mesmo
de saída. Observamos que a antiga identidade tempo, em coexistência negociada com eles.
que a mulher dispunha quando em liberdade
fica suspensa e nasce a identidade de mulher Dessa forma, a religiosidade, a sociabilidade
encarcerada que é institucionalizada. Essa e a homossexualidade como mecanismos
nova identidade resulta da intromissão inde- de adaptação-resistência são cruciais para a
sobrevivência da presidiária que depende de aos olhos do mundo, consegue se singularizar 33
um equilíbrio entre submissão, adaptação e aos olhos de Deus.
resistência.

Religiões e Prisões
Por meio da extrema individualidade em
As estratégias de poder e controle institucio- relação ao coletivo, dos envolvimentos ho-
nais incidem sobre as formas de sociabilidade e mossexuais como alternativa restante de
as relações interpessoais fomentando um am- sociabilidade, solidariedade e afetividade,
biente de extremo individualismo, pois com a e através da religiosidade como refúgio e
existência de união e de solidariedade coletiva alívio espiritual, as presidiárias resistem e se
é mais difícil controlar a massa carcerária. adaptam à realidade prisional, preenchem de
Deste modo, desenvolve-se o sistema prêmios sentido a nova identidade e a vida atrás das
e castigos que incentivam a lealdade para com grades, bem como criam caminhos de volta
as agentes penitenciárias. Como mecanismo de à singularidade expropriada pela instituição.
“adaptação-resistência” as internas produzem Singularidade vital que se realiza de diversos
um duplo isolamento, ou seja, “isolamento modos: a partir de si mesma, a partir de uma
dentro do isolamento“ que se configura de outra interna e a partir da divindade.
modo particular numa penitenciária feminina
se comparada a uma masculina. É uma forma Papel dos Grupos
de guardar para si um resto de identidade, a Religiosos: Como Poder e
constituição de uma reserva de subjetividade Controle
intocada em meio a um contexto que ‘institu-
cionalizou’ sua identidade. Na penitenciária masculina do DF comu-
mente conhecida como a ‘Papuda’, os grupos
Os envolvimentos homossexuais são percebi- religiosos, particularmente, os evangélicos,
dos como conseqüência da repressão e das difi- constituem uma segunda administração pe-
culdades impostas pela instituição às relações nitenciária e concentram o poder de decisão
sexuais e afetivas heterossexuais. As relações entre a massa carcerária. Os espaços físicos e
homossexuais atuam como mecanismo de simbólicos exclusivos dos crentes são espaços
adaptação-resistência para algumas internas, de resolução dos conflitos e de proteção contra
pois criam uma alternativa de solidariedade, de a violência e os juramentos de morte entre os
sociabilidade e de afetividade, em pares, dada grupos de internos (Segato, 2001). O mesmo
a dificuldade de organizar-se em grupos. Com não acontece na PFDF devido ao baixo índice e
isso, desenvolve também uma singularidade e grau de violência física e devido à inexistência
um senso de identidade frente a um outro, no de mortes entre as internas. Deste modo, a
caso, a parceira. organização política, econômica e espacial da
massa carcerária feminina não está vinculada
A presença dos grupos religiosos e a circulação aos grupos religiosos.
do discurso religioso atuam como uma estraté-
gia indireta da instituição para manter calma Na perspectiva de agentes penitenciários e
e dócil a massa carcerária. Para as internas, não penitenciários, a assistência religiosa, bem
assistir aos cultos e a presença dos grupos re- como a circulação do discurso religioso cristão,
ligiosos são formas de passar o tempo de ócio, desempenha um papel positivo do ponto de
de escutar palavras de conforto, de ter canais vista individual e institucional. Com isso, para
de contato com pessoas de fora do presídio. A as agentes e a administração penitenciária, os
adoção do discurso religioso cristão por parte grupos religiosos constituem um mecanismo
das internas é uma forma de criar sentido, fi- indireto, mas efetivo, de controle sobre a massa
nalidade e transcendência à vida intramuros, carcerária, uma vez que sua presença no coti-
onde aquela que não consegue se singularizar diano prisional suaviza e ameniza as tensões
34 diárias das internas tornando-as mais dóceis. “Nosso objetivo é transformar elas para
Assim, afirmaram: Cristo, levar a palavra de Deus, a Bíblia e a
palavra da verdade. Agora, tem dias que a
Comunicações do ISER

“É um culto de apoio para as internas gente mostra o céu, e tem dias que a gente
válido e positivo. Também nos ajudam a mostra o inferno para elas” (Assembléia
ter as internas menos revoltadas” (Agente de Deus).
Penitenciária).
“Gosto de fazer trabalho ecumênico por-
“Os grupos são ótimos, ajudam as inter- que no final, o que é religião? É re-ligar o
nas e dão palavra de conforto, são grupos homem com Deus, então é isso que nos
religiosos e ao mesmo tempo terapêuticos. fazemos, não vamos discriminar religião.
Eles dão sossego às internas” (Agente Pe- Para nós o conhecimento bíblico é funda-
nitenciária). mental, por isto, nosso objetivo é evange-
lizar, levar a palavra de Deus e ressocializar
A psicóloga da instituição reforça o papel dos as pessoas” (Pastoral Carcerária).
grupos religiosos como mecanismo de con-
trole indireto assim como o equipara ao papel Para os agentes religiosos o trabalho de assis-
do tabagismo e das drogas. Em sua opinião tência religiosa na penitenciária constitui-se
todos eles ajudam a tranqüilizar as internas em uma forma de realizar sua missão filan-
e a diminuir a ansiedade que, na situação de trópica e proselitista:
encerramento, é muito alta:
“Muitas falam para nós, que o que a gente
“Os grupos têm uma função de trabalhar faz é um conforto espiritual. A gente faz um
a auto-estima, trabalhar a questão do per- trabalho de evangelização sem discrimina-
dão. Eles trabalham o momento presente, ção de religião, é um conforto para elas e
não olham as causas, a origem. Essen- para nós. Eu falo para elas: a sociedade
cialmente, a função deles, é uma função pode falar que vocês são lixos, mas vocês
ansiolítica. Eles diminuem a ansiedade, são lixos recicláveis, são super importan-
através da reza compulsiva, da leitura tes” (Pastoral Carcerária).
compulsiva da bíblia, dos cantos. É uma
forma de diminuir a ansiedade geral com “Eu não as vejo como pragas, as vejo como
todos os limites que a gente possa ver, mas pessoas que podem ser recuperadas pelo
é uma função. Tem que ter alguma forma. poder de Deus, como pessoas carentes, que
Do mesmo modo que o tabagismo, a ma- precisam ajuda, por isso eu vou lá, com o
conha, as drogas, como tem os remédios. propósito de levar algo de Deus para suas
Os grupos têm uma função sadia, pelo vidas ”(I. Batista Central de Brasília).
menos abaixa a ansiedade e não tem efeitos
colaterais químicos.” Os grupos religiosos promovem ajuda mate-
rial com a doação de cestas básicas às famílias
Para os grupos o papel e o objetivo principal das internas mais carentes e de objetos de uso
do seu trabalho, dentro da penitenciária, são a pessoal e de asseio para as internas e seus be-
evangelização e a conversão religiosa como se bes como fraldas, absorventes, desodorantes,
evidencia nos seguintes depoimentos: cremes, sabonetes, entre outros. Eles também
são os maiores doadores para os eventos
“A nossa pretensão é a conversão usando festivos da instituição, mas na atual gestão,
a Bíblia como instrumento. Se você prega a contribuição material dos grupos é feita
para 100 mulheres e uma aceita, isso já é indiretamente às internas via administração
vitória” (Primeiro de Julho). penitenciária.
Religião: Discurso dominan- A presença de grupos de religiosos além 35

te e mecanismo de adapta- de proporcionar às internas um suporte


ção-resistência emocional, são um parêntese no cotidiano

Religiões e Prisões
prisional que as anima e lhes dá força para
Do ponto de vista das internas, os grupos reli- suportar o cativeiro. Do mesmo modo, o
giosos atuantes e o discurso cristão presente na discurso de “libertação”, principalmente dos
prisão desempenham um papel de profunda grupos evangélicos, ao dialogar por oposição
eficácia individual sobre o grupo de mulheres com a realidade do aprisionamento, coloca
que compõem: uma oferta alternativa de “liberdade” numa
situação onde o desejo de ser livre se torna
“Os grupos são um ‘refrigério’ para nossa muito presente.
alma, eles são divinamente maravilhosos.
Nós somos muito carentes da palavra Uma das entrevistadas e ex-presidiária relata
de Deus aqui dentro, a gente enfraquece sua experiência de “libertação” quando esteve
sem o grupo religioso, eu mesma estava pela segunda vez dentro da penitenciária:
fraca. O aprender vem de ouvir, ouvir é
fundamental ” “O encontro com Deus foi à segunda vez
(Interna). que estive na cadeia. Da primeira vez eu
não fui tocada, o que me mantinha era
“Os grupos são maravilhosos, ótimos, é saber que meu filho estava me esperando.
muito bom. Dão uma paz de espírito muito Da segunda vez, eu sentia a necessidade
grande. São muito significativos, dão pa- de um encontro com o Senhor. Aí, eu
lavras de conforto e levantam o ânimo da estava caminhando no pátio e encontrei
gente. Deus para mim mudou tudo, é ele um folheto que me tocou profundamente
que me dá forças para superar e suportar e rapidamente. Falava que tinha dois deu-
tudo o que eu já vi e já vivi, se não fosse ses: deus e o diabo, ou eu escolhia a vida
por Ele acho que não agüentaria Para mim ou escolhia a morte. Nesse momento eu
a cadeia é um lugar que o diabo fez e nem fui tocada no coração, de um momento
ele suportou ficar, deixou para nós... ” para outro eu aceitei Jesus. Desde esse dia
(Interna). somos só eu e Deus. No outro dia falei com
os irmãos da Igreja Primeiro de Julho e me
“Adoro os grupos religiosos, a gente aqui converti. Sou outra pessoa, me libertei. A
dentro precisa orar, dá mais força para vida que estava levando ficou para trás,
a gente conversar e trocar palavras com já não penso mais em traficar, agora só
Deus” (Interna). quero ser uma pessoa honesta e trabalhar.
Foi uma mudança de vida, de hábitos, de
Como outra face da mesma moeda, para as in- desejos, de tudo. Muda-se do ódio para o
ternas, a presença dos grupos religiosos, bem amor (Ex-Interna).
como a adoção do seu discurso, são como um
mecanismo de ‘adaptação-resistência’. Dada Do mesmo modo, as internas reconhecem o
a necessidade e a possibilidade os grupos e o valor do aprendizado religioso que se realiza
discurso religioso preenchem de sentido e de na cadeia:
finalidade a vida atrás das grades para muitas
internas. Através deles, as internas se singu- “Por uma parte eu acho ruim ter vindo à
larizam frente a Deus e frente aos agentes cadeia, mas por outra acho bom, porque
religiosos. Aliás, o discurso cristão é profes- eu aprendi, aprendi como realmente é re-
sado e está completamente internalizado na alidade, porque lá fora eu estava sendo in-
narrativa das internas. duzida pelo inimigo, estava fazendo obras
36 malignas que não é a favor de Deus. Se eu ou de católica, “limpam” seu estigma de crimi-
não tivesse estado aqui dentro não teria nosas. Isto lhes ajuda a viabilizar alternativas
aprendido tudo o que aprendi” (Interna). de emprego por meio das pessoas da igreja,
Comunicações do ISER

pastores, padres ou “irmãos de fé“. Foi o caso


Antônia, uma das duas internas com quem tive de duas ex-presidiárias que entrevistei:
contato na minha primeira entrada no cárcere,
chegou a referir-se à cadeia como a melhor alter- “Eu cuido de uma velhinha que é mãe de
nativa de sobrevivência colocada por Deus: uma irmã da fé. Foi muito difícil arrumar
esse emprego porque se eu falava que era
“Cadeia foi a melhor coisa que me acon- ex-presidiária para as pessoas aí não ia
teceu, eu agradeço estar aqui, se eu não conseguir nada. Eu não vou falar e não
tivesse sido recolhida estaria morta. Eu era vou mentir. Mas se não me perguntam
muito viciada, muito, eu já nem...eu estaria eu não vou falar, vou ficar calada. Se me
morta mesmo. Foi Deus quem me colocou perguntam eu falo” (Ex-Interna).
neste lugar, aqui eu conheci nosso Pai
Salvador. Desde que conheci a palavra do O universo prisional é um lugar pobre de
Senhor, a Antônia que entrou, morreu.” alternativas discursivas. Nesse contexto, o dis-
curso cristão ou de ‘superioridade moral’ se faz
Agna, que tem uma condenação de 50 anos, onipresente e concentra, monopoliza e regula
não comete suicídio porque o suicida, na “lei a palavra no cárcere e, com ela, as vias de acesso
de Deus”, é condenado: ao bem, à auto-reflexão, à auto-avaliação e à
redenção. A conversão religiosa passa a ser o
“Eu vou te falar a real aqui, porque não único caminho possível para transformação
é da lei de Deus, se não eu se mataria. Se individual. Ainda que existam outros discursos
não existisse Deus, se não estivesse na lei circulando no universo prisional, como o dis-
de Deus que o suicida é condenado, eu se curso psiquiátrico, psicológico e de narcóticos
suicidaria, porque eu preferiria eles terem anônimos, o discurso cristão preenche o leque
me dado uma sentença de morte, porque de alternativas discursivas que a instituição,
aos poucos eles estão me matando.” por meio dos grupos religiosos, privilegia e dis-
ponibiliza às internas. Deste modo, o discurso
Mesmo sem acreditar na doutrina proferida bíblico, na PFDF, torna-se o recurso discursivo
pelas igrejas, algumas internas assistem aos mais rico para as internas: “é ele e somente ele
cultos porque estes são espaços e momentos que, na maioria dos casos, preenche a lacuna
que preenchem o tempo de permanência no das figuras discursivas características do en-
ócio e permitem contato com o mundo de fora. cerro prisional” (Segato, 2001:138). Aliás, a
Isto porque os cultos são uma das escassas Bíblia, é o único livro que as internas podem
alternativas de sociabilidade, de conforto e de possuir nas celas e nos pátios sem nenhuma
transcendência na cadeia: restrição. É necessária a presença de outros
arcabouços discursivos através dos quais as
“Aqui nós temos sede da palavra de Deus, presas possam assumir seus crimes e suas vi-
de conversar com pessoas que não sejam das com uma atitude responsável e reflexiva:
daqui, senão a gente fica muito reprimida” “onde é responsável quem se torna capaz de
(Interna). responder pelo que fez frente aos outros e de
recuperar o sentido dos seus atos de forma
Os grupos religiosos, em algumas ocasiões, reflexiva e crítica” (Segato, 2003).
atuam como agentes de re-inserção ou de
“purificação social” para as ex-presidiárias que Questiona-se, com isso, a “contenção da pa-
adotando a identidade religiosa, de “crente” lavra” no universo prisional que impede as
internas de relatar suas autobiografias a partir aquilo que é errado. Conversão tem que 37
de múltiplas vias discursivas; e que não limitem ser diária. A cadeia é uma faculdade do cri-
nem polarizem a concepção de si mesmas sobre me. A pessoa entra com um crime simples

Religiões e Prisões
supostos dicotômicos, descontínuos e exclu- frente à sociedade e a pessoa sai realmente
dentes como os que estão contidos no discurso revoltada. Então tem que realmente mudar,
cristão que, ao focar e trabalhar o presente do senão nós vamos ter reincidências constan-
sujeito, ignora e apaga os contextos originários tes” (Pastoral Carcerária).
destas mulheres.
Entre católicos e evangélicos há variações fren-
Cabe ainda questionar a relação que se estabele- te à conversão. Entre o discurso da Pastoral
ce entre conversões e reincidências. É necessário Carcerária e o discurso dos grupos evangélicos,
ouvir as presidiárias que não aderem aos grupos grosso modo, podemos dizer que o católico
religiosos, assim como as internas que, ainda explicita uma preocupação social que é mais
que se filiem a esses grupos, mantêm compor- condizente com a realidade e com o contexto
tamentos e práticas que, para tais religiosos, são que envolve as internas, enquanto o evangélico
inaceitáveis. A homossexualidade, por exemplo, manifesta uma preocupação de tendência mais
claramente se distancia do modelo “do bom e individual, uma preocupação com a relação da
do certo” que propõe o discurso cristão. Este pessoa com Deus.
discurso na PFDF cria uma equação que equi-
para conversão religiosa com re-socialização da Por trás das conversões religiosas evangélicas,
interna. Propõe um modelo de transformação segundo Rita Segato (2003:7), existe um vo-
individual que necessariamente passa pela cabulário de “morte” e “renascimento”, onde
conversão religiosa, onde, pela “intervenção e o sujeito nega absolutamente reconhecer-se
poder de Deus“, a interna “morre“, deixa para nesse outro, que perpetrou o crime. Essa es-
trás sua anterior vida de criminosa – associada tratégia de ter sido outro, já morto, faz com
à influência do demônio e do mal – e renasce que a pessoa se exima da sua responsabilidade
para uma nova vida, convertida numa nova e desconheça a razão dos seus atos passados,
pessoa de Deus e do bem: deslocados e não assumidos, pelo sujeito que
se diz atual. Assim, por exemplo, se uma in-
“Do mês de janeiro a agora (julho) já se terna assaltou, matou ou traficou, seu crime,
converteram 100. A gente oferece: quem avaliado em termos de pecado, fica sob a res-
quer aceitar a Jesus aí, quem quer levanta ponsabilidade da ação do diabo ou de algum
a mão. Isso é conversão. Na hora que ela encosto que decidiu no lugar dela.
fala eu quero, isso é conversão. A nossa
conversão é aceitar a Jesus como o senhor e Desse modo, na conversão religiosa dos
salvador da vida. Se alguém levanta a mão, evangélicos, a responsabilidade pelas ações
essa pessoa está mudando o modo de viver passadas do sujeito encarcerado é depositada
por outro modo, pelo nosso modo. Nós nas ações do “inimigo” e a responsabilidade
não fumamos, não fazemos coisa errada, das ações presentes e futuras ficam nas mãos
somos pessoa do bem, só orar...isso é uma de Deus. Para quem já está sob um regime
conversão. A pessoa se libertou do pecado, tutelar, privado de toda singularidade e res-
não vai querer mais matar, mais assaltar, ponsabilidade, depositar o pouco que resta de
mais mexer com drogas, vai se converter. si no poder e na vontade divina não contribui,
A vida de ontem fica para trás” (I. Batista de forma alguma, com o suposto de devolver à
Filadélfia). sociedade um indivíduo preparado para viver
em liberdade. Segundo agentes penitenciários,
“A conversão é mudar de vida, mudar agentes religiosos e internas são comuns os
de caminho, realmente abandonar tudo casos de ex-dententas que se converteram na
38 prisão e ao alcançarem à liberdade reincidiram católico, é repressivo e radical frente a esta
no crime e voltaram para a cadeia: prática na PFDF:
Comunicações do ISER

“Tem realmente poucas internas que, “A homossexualidade é um negócio demo-


quando saem, continuam freqüentando a níaco, mulher com mulher, homem com
Igreja. Estas mulheres lutam como umas homem, nós somos contra. A gente então
leoas todos os dias para não roubar ou não tenta botar religião na cabeça delas. A
traficar, ainda vendo os filhos com fome. palavra de Deus diz que vão para o inferno,
Outras aparecem na Igreja no começo, isso é coisa do demônio. Se as mulheres são
para pedir cestas básicas para suas famílias lésbicas e aceitam Jesus, elas têm que dei-
e depois, somem e voltam para o crime e xar. Geralmente quando são lésbicas elas
para cadeia” (I. Primeiro de Julho). ficam sem religião, porque elas sabem que
estão erradas.” (I. Batista. Filadélfia)
“ Tem muita gente que se escuda atrás da
Bíblia, tipo um falso profeta, que fala de “A gente mostra que mulher com mulher
Deus, mas a mente está virada para o cri- é pecado. A gente mostra como o diabo
me. Têm umas que se convertem somente tenta as pessoas a fazer coisas erradas,
aqui dentro. Quando saem começam a cair coisas que são abomináveis aos olhos de
na gandaia, esquecem de Igreja, esquecem Deus. Quando a bíblia fala do lesbianis-
de tudo, caem nas drogas e voltam para mo fala que é pecado. Elas vão receber a
cadeia. Isso acontece muito” (Interna). punição pelo seu erro, Deus castiga e ele
sabe direitinho como cobrar” (Assembléia
Os parâmetros do discurso cristão colocam, de Deus).
às vezes, metas e modelos tão inatingíveis que
impedem as internas de se pensar como “uma A homossexualidade é uma prática muito
boa pessoa”. Observamos tal situação nos de- freqüente no contexto prisional e a homofo-
poimentos de algumas internas que mudaram bia exacerbada dos grupos religiosos afasta as
sua forma de agir e de pensar, acreditam em mulheres deles, mas não necessariamente da
Deus, mas não conseguem se considerar con- religião, criando conflitos entre a sexualidade
vertidas, ou seja, suficientemente “boas”: e a religiosidade das internas:

“Eu não sou convertida, a pessoa converti- “A mulher da batista me ajudou muito
da é mais sábia e eu não tenho toda aquela durante todo o tempo que estive aqui, mas
sabedoria. Às vezes sou muito esquisita, quando falaram para ela que eu estava com
pois como levo tanto tempo aqui, às vezes outra mulher, ela ficou doida e me disse
fico revoltada, não quero falar com nin- que não acreditava isso de mim, que não
guém, fico isolada, mal-humorada, por isso fosse decepcionar ela, que se eu estivesse
não me acho convertida” (Interna). com outra mulher ela não ia a vir mais a
me visitar. Aí eu fiquei pensando, porque
“Aqui dentro não vou me converter, porque na bíblia diz que o homossexualismo é
você vê pessoas que é só sair do culto e abominável aos olhos de Deus. Ai eu fico
já estão te batendo com a mesma bíblia. pensando também esse lado, de eu não
Seguir Jesus é difícil e aqui dentro mais” receber uma benção de Deus, de ele não
(Interna). olhar para mim porque sigo o caminho do
homossexualismo. Eu no começo fiquei
Do mesmo modo, neste modelo do “bem” muito confusa, mas o que eu estava sen-
cristão, a homossexualidade é “pecado”. tindo era mais forte, aí eu comecei a me
Assim, o discurso evangélico, diferente do afastar das religiões, de orar, voltei a fumar,
pegava pouco a Bíblia. Eu sabia que o que Life: Religion and Personal Identity among Pentecostal Ex-Al-
39
eu estava fazendo era errado” (Interna). coholics in Sweden”. In Jan-Ake Alvarsson & Rita Laura Segato

(eds): Religions in Transitio: Mobility, Merging and Globalization

Religiões e Prisões
“Eu acho o lesbianismo mais afetivo e mais in the emergence of Contemporary Religious Adhesions. Swedem:

carinhoso, mas na lei de Deus está homem Uppsala University Library, 2003.

com mulher e vice-versa, se não fosse peca-


do seria ótimo. Eu acho que é pecado e que SEGATO, Rita Laura. “Religião, Vida Carcerária e Direitos

eu sou pecadora, porque não é da lei de Humanos”. In Novaes Regina (org.). Direitos Humanos, Te-

Deus, não é certo. Mesmo eu crendo e acre- mas y Perspectivas. Rio de Janeiro: ABA/ MAUAD/ Fundação

ditando em Deus eu continuo no pecado, é Ford, 2001.

isso. Mas eu prefiro ficar com mulher. Para


mim lidar com isso é muito difícil porque eu ---------------- “El Sistema Penal como Pedagogia de la Irrespon-

fico em dúvida e com raiva. Eu quero seguir sabilidad y el Proyecto Habla Preso: el derecho humano a la

a bíblia, mas é muito difícil para mim, eu palabra en la cárcel”. En: Serie Antropologica # 329. 2003.

não gosto de homem” (Interna).

Segundo as internas, existem mais “conversões


sexuais” do que religiosas na penitenciária:
um maior número de internas vira lésbica
do que “crente” ou católica. A penitenciária
disponibiliza às internas o acesso ao discurso
cristão que monopoliza as escassas alternati-
vas discursivas do universo prisional, como já
salientamos anteriormente.

Para muitas internas, o papel que desem-


penham os grupos religiosos e o discurso
cristão constitui, junto com a sociabilidade e
a homossexualidade, um dos mecanismos de
adaptação-resistência, ou seja, atuam como
caminhos de volta à singularidade dentro do
contexto prisional. Neste processo podem
singularizar-se diante de si mesmas, das par-
ceiras e do Deus cristão. Estes compõem o
tripé fundamental para preencher de sentido
e dar finalidade à vida e ao dia a dia atrás das
grades. Constituem-se em razões essenciais
para a sobrevivência ao aprisionamento.

Bibliografia

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Rio de

Janeiro: Petrópolis, Vozes, 1987.

__________________. Historia de la sexualidad: La voluntad del

saber, Tomo 1, México: Siglo XXI, 1984.

RICHETTE, Christian. “I´ve Got The Promise of an Eternal


Religião, vida carcerária Rita Laura Segato
Antropóloga
Professora do Departamento
de Antropologia da UNB

40
e direitos humanos
Comunicações do ISER

O Trabalho na Papuda Neste primeiro período, o que mais impres-


sionava eram as ótimas condições de trabalho
Freqüento o presídio masculino de Brasília, que a gente tinha, quase as de um terapeuta:
desde 1993, e desenvolvi nele dois projetos conversas íntimas, até com almofadões no
diferentes, além de ter orientado algumas chão e bastante privacidade para podermos
pesquisas de alunos realizadas nesse e em dialogar com o preso, tentar entender que
outros estabelecimentos penitenciários da fantasmas habitavam a mentalidade de um
cidade. Minha primeira pesquisa no espaço estuprador.
carcerário começou, como disse, em 1993,
no presídio conhecido como “Papuda”, que O primeiro grande descobrimento da pesquisa
era uma antiga fazenda; porém, seu nome foi perceber que o mesmo estranhamento e es-
oficial é Centro de Internação e Reabilitação panto que qualquer leitor sente ao ler sobre um
do Distrito Federal (C.I.R.). Tanto esse como crime horrendo numa página de jornal é sen-
o outro projeto posterior foram realizados tido também, a respeito desse ato, por quem
junto a alunos: alunos de antropologia, um dia o perpetrara, quando esta pessoa já se
de psicologia, de direito e uma equipe de encontra há algum tempo presa e condenada.
trabalho dentro da cadeia. O que tentarei A passagem desse ato ou da sua memória para
mostrar aqui é em que momento a religião o discurso, pelo menos e caracteristicamente
finalmente entrou no campo dos fenômenos para o Brasil, é marcada por intenso pudor e
interessantes para a compreensão do ambien- repressão. O condenado em questão manifes-
te carcerário. ta um estranhamento perante aquele gesto e
experimenta o crime como ininteligível desde
O que deu início, em 1993, a essa longa rela- sua nova perspectiva.
ção da Universidade de Brasília com a cadeia
da cidade foi uma solicitação do Secretário A segunda grande percepção estava relacio-
de Segurança do Distrito Federal, naquela nada à carência de léxico, de ferramentas
época, o Coronel Brochado, que demandou discursivas, à falta de exposição a discursos
à Universidade que produzisse um conhe- que estes presos revelavam, mostrando-se,
cimento sobre a violência sexual na cidade, portanto, impedidos de operar um processo
pois, nas estatísticas, Brasília figurava com de reconhecimento e de elaborar uma versão
o maior índice desta violência do país. Para possível da sua identidade e de seu drama de
responder a essa solicitação, o Reitor Ibañez vida. Essa impossibilidade de “narrar-se” não
chamou a um grupo de professoras da UnB pesava somente em relação a nós, que querí-
que trabalhavam com a questão de gênero amos saber, mas em relação a eles mesmos e
para entender a questão da violência sexual à sua própria necessidade de se analisarem de
no âmbito local. Desde o começo, eu pedi alguma forma, para refletirem sobre sua ação.
para trabalhar com os estupradores conde- A ferramenta por excelência para esta análise
nados, interessada nos enigmas que segura- é a palavra, e este recurso se faz disponível so-
mente albergava a memória das pessoas que mente na medida em que se toma contato com
tinham sido capazes de perpetrar esse tipo uma variedade de discursos mais sofisticados
de violência. que poderão logo ser manipulados na perse-
guição de um sentido para o feito – perante si examinar esta proposta exaustivamente na 41
mesmos e perante os outros. presente ocasião, mas basta dizer que entendo
o direito à redenção como dependente de um

Religiões e Prisões
Em terceiro lugar, vem a relação particular que ato de auto-perdão, por sua vez, dependente
os presidiários estabelecem com a religião, tema de um desenvolvimento do sentido da respon-
1
da palestra de hoje . Dentro do universo de re- sabilidade. Isso quer dizer que o ato de auto-
cursos discursivos rudimentares no interior da perdão referido se encontra longe de um ato
cadeia, o recurso do discurso bíblico vai ser, no de esquecimento. Ambos processos somente
mais das vezes, o recurso discursivo mais rico podem desenvolver-se quando duas condições
com o qual a maioria destas pessoas vai estar se encontram garantidas:
em contato. É ele e somente ele que, na maior
parte dos casos, preenche a lacuna das figuras 1. a vida num ambiente com recursos dis-
discursivas característica do encerro prisional. cursivos ricos em figuras de reconhecimen-
Uma das entrevistas com um dos estuprado- to e capaz de informar a auto-indagação
res foi reveladora deste aspecto particular de e a reflexão;
carência: o preso fez esforços por relatar-nos 2. a possibilidade do registro, da circulação
uma tentativa de conversão que realizou e seu e da inserção extra-muros (além cárcere)
subseqüente fracasso. O seu enunciado foi o das narrativas resultantes. Quer dizer que,
seguinte: “eu quis ser bom, mas eu não posso nesta perspectiva, “o direito à redenção”
ser bom. Eu tentei me tornar um irmão na ma- está profundamente atrelado ao “direito
neira de vestir, de falar. Estudei a Bíblia, tentei à palavra”, este último nos dois sentidos
obedecer aos preceitos e às exigências que os já mencionados: como “acesso à palavra”
irmãos têm obrigação de obedecer. Mas não e como “projeção da palavra”.
consegui, eu fracassei. Eu sou mau”.
Este desenvolvimento de conceitos deslan-
Dois Direitos Humanos chou, como vinha relatando, quando percebi
ausentes nas Declarações que acontecia, no presídio, um verdadeiro mo-
e Pactos Internacionais: nopólio das vias de acesso à redenção. Tratava-
à Redenção e à Palavra se, e ainda se trata, de um monopólio religioso
que concentra e regula, também, o acesso à
No seu livro Nova Criminologia à luz do Direito palavra no cárcere. Os cristianismos, particu-
Penal e da Vitimologia, Antonio Beristain faz re- larmente os pentecostalismos e, mais tarde,
ferência a um direito humano faltante, que ele a missão carismática, que classifico como
descreve como “o direito ao perdão” – ativo ou religiões de “superioridade moral”, detinham,
passivo, total ou parcial – como direito básico como ainda detêm, as vias de acesso ao bem,
de todas as pessoas e, portanto também, dos os discursos para que as pessoas possam se
autores de faltas, de delitos e de crimes graves. dizer boas, sendo o texto bíblico a grande fonte
Esse não está formulado expressamente em dessas figuras. Fora delas, nenhum outro tipo
nenhuma das declarações, nem nos pactos de narrativa capaz de providenciar às pessoas
internacionais. Mas, segundo nossa opinião, com recursos discursivos para elaborar um
1 A autora refere-se ao
curso “Direitos Humanos,
deve reconhecer-se teórica e eficazmente, em discurso de auto-indagação, auto-avaliação e
Temas e Perspectivas”, nível universal, nacional e local. (p. 58) de aspiração moral se encontrava à mão.
atividade prevista em um
convênio de cooperação
entre a Associação Bra-
A partir da minha experiência na Papuda, iden- Contra o monopólio cristão
sileira de Antropologia tifiquei a necessidade de formular um direito do discurso da redenção
– ABA e a Fundação Ford, humano próximo – mas não idêntico – ao que
realizado entre novembro
e dezembro de 2000 na
Beristain aponta, mas que eu definiria como Eu classifico as religiões em dois grandes gru-
sede do ISER. “o direito humano à redenção”. Seria longo pos, as religiões da “superioridade moral”, ex-
42 pressas principalmente pelo cristianismo, lho que exige muita força, exige uma atividade
que possibilita o acesso ao bem, mas também interna muito grande, e exige uma capacidade
detém o monopólio do bem, dos discursos do de falar, de falar para si e sobre si, de refletir, de
Comunicações do ISER

bem, e as religiões que defino como “trágicas”, elaborar um discurso. Eu acreditava ser muito
paradigmaticamente o candomblé, pelo qual o difícil para os presos terem isso devido às suas
que se faz é colocar ao alcance das pessoas um condições de educação e à exposição a uma
conhecimento mitológico e um vocabulário cultura muito rudimentar que existe dentro do
que permite ao ser humano suportar o seu presídio, onde os contatos afetivos, amorosos,
destino trágico, mas que não pretende superar são escassos, quando não inexistentes.
este destino e sim possibilitar que a pessoa
possa se situar em relação ao mundo. Este é Assim sendo, o direito à redenção é exatamente
um discurso que garante também uma forte este direito a encontrar uma forma de se dizer
estrutura moral para suportar a tragicidade bom, de se dizer capaz de ser bom, mas isto
do destino humano como conseqüência da dentro de uma quantidade de perspectivas
presença do mal no mundo, do sofrimento mais ampla e não dentro de uma perspectiva
no mundo. religiosa única, fechada. O outro direito que
mencionei, o direito à inscrição discursiva
As religiões de “superioridade moral” entram no mundo, poderia ser descrito da seguinte
nos presídios e monopolizam os discursos que forma: se o mundo é um lugar onde circulam
permitem a redenção, e é isto que o exemplo e se entrecruzam uma grande quantidade de
citado do preso que não conseguiu “ser bom” discursos, uns mais audíveis, outros menos au-
expressa. Não havia outro caminho possível díveis e outros completamente silenciados, não
para ele poder chegar a se considerar bom ou basta que você tenha liberdade para falar, para
capaz do bem. poder se expressar e dar opinião. Eu diria que
algumas garantias devem existir para que nar-
Isto me levou a propor um projeto que eu idea- rativas de identidades e sensibilidades diversas
lizei e que se chamou “Fala Interno – O Direito possam ser construídas, em primeiro lugar, e
Humano à palavra no cárcere”. Esse projeto, logo inscritas, tornadas audíveis, reproduzidas
quando foi escrito e teve seu financiamento e distribuídas amplamente dentro da grande
aprovado no Ministério da Justiça tinha como arena de interlocuções que é hoje o mundo.
eixo uma discussão sobre um par de Direitos
Humanos que não se encontra registrado na O discurso do preso é, por um lado, um dis-
Declaração Universal. Tinha como base o arti- curso completamente inaudível, circunscrito,
go 19, que se refere à liberdade de expressão e amuralhado e, pelo outro, o preso é, como um
opinião, e eu entendi o projeto como atenden- diretor de disciplina me confidenciou sem
do a uma demanda pelo desdobramento deste pudor algum: “preso duas vezes: da cadeia e
artigo, que descrevi como sendo “o direito da religião. Sem o concurso da religião, não
à inscrição discursiva no mundo”. O outro poderíamos mantê-los aqui”. Então, foi com
direito que eu busquei estar contemplando é base nestas duas propostas – o direito à reden-
“o direito humano à redenção”, mas não uma ção e o direito à inscrição discursiva – que nós
redenção monopólica, antes uma redenção realizamos este projeto chamado “Fala Inter-
pluralista, por caminhos variados. no: o direito humano à palavra no cárcere”.
Levamos lá para dentro pessoas da cidade de
Estas duas formulações estão profundamente Brasília que fossem reconhecidamente boas
vinculadas entre si, porque o que o preso quer na sua capacidade de articular e escrever pala-
é refletir sobre o que ele fez, compreender-se e vras, tais como um sambista que teve algumas
encontrar uma saída, pois o trabalho de saída composições gravadas por Bezerra da Silva e
da repetição do ciclo da violência é um traba- obteve o Prêmio Sharp por uma composição;
um rapper famoso na cidade que ganhou um O Papel da igreja 43
prêmio da MPB pelo melhor clipe do ano 1999; evangélica no CIR
poetas reconhecidos; jornalistas, etc.

Religiões e Prisões
Sobre religião, especificamente, muitos dos
O Projeto Fala Interno levou à cadeia dois presos com quem nós atuamos são pessoas
tipos de oficinas da palavra, quatro oficinas que já professavam algum credo religioso. A
de gêneros populares: samba, rap, cordel, maior parte do grupo que foi beneficiada pelo
mamulengo, e quatro oficinas de gêneros eru- nosso projeto é de católicos carismáticos, e o
ditos: teatro, jornalismo, poesia e linguagem restante é de convertidos à religião evangé-
cinematográfica. Esta última, ministrada pelo lica que atua na “Papuda”. Lá dentro não há
cineasta André Luis da Cunha, foi a única a diferentes igrejas evangélicas atuando, mas
ter continuidade numa oficina de produção há uma única igreja evangélica unificada, que
de roteiros praticamente até hoje; vários in- não admite, naquele espaço, diferenciação de
ternos se encontram escrevendo histórias em denominações, para não perder a posição de
formato técnico de roteiro e obtivemos um maioria dentro do presídio. O importante é
financiamento do Pólo de Cinema e Vídeo do que ali a hegemonia da presença evangélica é
DF para realizar um filme documentário sobre inconteste. Os católicos carismáticos fizeram
O Dia de Visita. sua entrada mais recentemente, nos últimos
cinco anos, e constituem uma missão que
Atendemos noventa e oito presos na cadeia trabalha basicamente com educação musical
que, na época, abrigava mil e duzentos inter- e com a formação de um grupo de MPB – o
nos, ou seja, isto ficou bem aquém do que eu Exodus.
queria, e atendemos, naturalmente, os presos
que já estavam mais disciplinados, o que na É interessante perceber que estes grupos
cadeia se chama de presos “pacificados”, mas evangélicos fazem parte da administração
a intenção era de atingir o preso que está no da comunidade carcerária, ou seja, não so-
fundo do pátio, o que realmente não tem mente desenvolvem um trabalho religioso,
acesso à palavra nem à redenção, aqueles mas tomam conta da organização de todas
que são mais arredios em relação a todas as atividades do dia a dia, administrando
estas formas de missão, obras sociais, obras a prestação de serviços tanto daqueles que
filantrópicas que existem dentro da cadeia. são convertidos como daqueles que não o
Portanto, o projeto ficou muito restrito, pois são: distribuem cargos, selecionam desde
só atendeu aqueles que já faziam parte de ou- quem trabalha na faxina até quem vende
tros projetos, de outras obras de ação social. na cantina, que necessariamente não pode
Mas, de qualquer forma, eu acho que foi uma ser uma pessoa evangélica, pois ocorrem ali
experiência positiva. O aspecto mais definitivo transações que não são condizentes com a
desse empreendimento foi a fundação, dentro moral e os valores evangélicos.
do presídio, de uma Casa da Cultura, separada
da ala destinada à educação e administrada O grupo evangélico possui um efetivo poder
pela Fundação de Apoio ao Preso Trabalhador de gestão: é uma igreja, uma ação religiosa,
– FUNAP, cujo presidente, por lei, é designado mas seu campo vai muito além dessa in-
diretamente pelo Governador do Estado. A cumbência. O grupo é realmente quem or-
Casa da Cultura é um espaço onde artistas ganiza a comunidade carcerária e estabelece
da cidade vão ensinar e ajudar os presos a o diálogo, o vínculo entre a administração
desenvolver sua capacidade comunicativa e de policial da cadeia e a gestão e organização
expressão. É um espaço mais livre e criativo do da comunidade carcerária. Isto é muito in-
que a Ala Educativa ou, pelo menos, para isso teressante porque também é possível identi-
temos lutado e insistido com as autoridades. ficar lá dentro outro grande poder: o poder
44 dos “patrões”. Patrões são as pessoas que Uma crítica ao discurso cris-
possuem a capacidade de empréstimos e de tão do bem na cadeia
circulação interna de recursos, que assumem
Comunicações do ISER

uma atribuição “bancária” e que, juntamente No Brasil, há poucos seguimentos quantitati-


com o poder do grupo evangélico, exercem vos ao longo dos anos que permitam hoje falar
o controle político e a gestão religiosa de com segurança sobre os índices de reincidên-
forma bastante cooperativa. No que diz res- cia. Mas, em geral, o conhecimento prático dos
peito à administração da vida da população guardas carcerários e as estatísticas existentes
carcerária, eles trabalham em ótimo acordo. mostram que o grau de reincidência entre os
Os “patrões”, com sua capacidade de em- convertidos não apresenta diferença notável
préstimo e liderança nos negócios ilícitos, com as dos não-convertidos. Estes números,
funcionam com conselheiros dentro da igreja que não são definitivos, pois, como disse, não
evangélica. Eles não podem ser pastores, mas existem realmente estudos confiáveis de longo
exercem a função de conselheiros informais prazo sobre o tema no Brasil, podem nos dar
dentro da igreja. uma idéia.

A igreja transforma o espaço do caos, que é o Uma pessoa que eu conheci – um pastor
espaço da força e da violência, em um espaço evangélico que se converteu na cadeia após ser
de convívio, em um espaço do discurso. O condenado por estupro – saiu da prisão apro-
papel da igreja é não somente converter, mas ximadamente um ano depois de me conceder
também transformar relações que seriam uma entrevista e voltou pouco tempo depois.
semelhantes às de um “estado de natureza” Qual pode ser então a nossa interpretação
em relações discursivas, coloca à mão um dis- sobre estes discursos de conversão? Para ana-
curso para que as pessoas possam diminuir lisar a eficácia de uma pena, de um castigo,
seus conflitos com menor recurso ao poder nós temos duas alternativas: ou apelar para
de morte. Ela instala estes conflitos num estudos estatísticos, por enquanto incomple-
campo discursivo e os media, tanto entre tos, ou partir para a análise do discurso, o que
evangélicos como entre presos que não são significa entrar num terreno muito instável,
evangélicos (Marques 1998). de muita controvérsia, mas o único caminho
hoje à disposição.
O meu projeto objetivava levar outras formas
de introduzir e articular discursos lá dentro, Em minha opinião, o discurso do preso con-
formas estas que pudessem de alguma ma- vertido constitui uma “mimese regressiva”.
neira romper este monopólio cristão sobre E o que vem a ser isto? As classes populares
a resolução de conflitos e acesso à superio- produzem discursos miméticos sobre as pro-
ridade moral, ao prestígio moral. Por que duções culturais e sobre as formas de expressão
esta tentativa minha pode-se interpretar da classe dominante. Uma “mimese progressi-
como uma iniciativa anti-religiosa? Em pri- va”, contraposta a uma mimese regressiva, se
meiro lugar, pelo incômodo quase natural define por imitar um modelo dominante adi-
frente a qualquer tipo de monopólio, de cionando-lhe comentários que desestabilizam
fechamento das alternativas, da redução do o próprio poder citado na mimese. Exemplos
pluralismo das sensibilidades e as escolhas. são o culto de possessão registrado no famo-
Este fechamento do campo discursivo me so filme Les Maitres Fous de Jean Roux, assim
parecia pior que os próprios muros da prisão. como as análises do poder mágico dos xamãs
E, em segundo lugar, porque analisando os colombianos de Michael Taussig. De modo
discursos das pessoas convertidas, via-se a oposto, o que eu estou chamando de “mime-
cópia pouco convincente de um discurso do se regressiva” é exatamente a imitação que o
“bem” cristão. preso faz do discurso do “bem”, copiando um
discurso cristão, com seus valores familiares e um sujeito novo, “cristão”, “ressurrecto”, que 45
suas fórmulas de boas maneiras e repetindo o repete mimeticamente o discurso do “bem” so-
mesmo, ad infinitum. O que impressiona é a for- bre si mesmo, alienado do seu próprio passado

Religiões e Prisões
ma mecânica em que são aplicadas as fórmulas e desprovido do potencial crítico que somente
discursivas, sem introduzir-lhes comentários a mimese progressiva executa, ao introduzir
alusivos à situação específica vivida pelo preso um comentário crítico, algum grau de tergi-
ou suas famílias. versação irônica, na sua apropriação da cultura
dominante através de uma cópia alterada.
Na mimese progressiva, quando se comenta o
sistema que é mimetizado, tem-se um efeito Bibliografia

desestabilizador e o sujeito está ali implicado,


o comentário recai criticamente sobre o siste- Beristain, Antonio: Nova Criminologia à luz do Direito Penal e

ma e a dominação e reverte de forma libertária da Vitimologia. Brasília: Editora da Universidade de Brasília,

sobre o sujeito, fazendo uma referência cifrada 2000.

a sua própria condição subalterna.


Marques, Ildeu: “A Autoridade Legitimada pelo Procedimen-

Na mimese regressiva, o sujeito copia assumin- to. Uma Etnografia sobre a Autoridade em uma Instituição

do sem reservas a fala do outro, dominante, Penal.” Monografia defendida no Depto. de Antropologia da

sobre si. Ele assume e copia a fala dominadora Universidade de Brasília. Brasília, 1999.

– do cristão, do pastor, do sacerdote, daquele


que está identificado com o “bem”, com a lei.
Assim sendo, nega sua própria condição e
sacrifica seu lugar de fala, seu lugar de sujeito
diferenciado, contraventor.

Uma das conseqüências da mimese moral


regressiva é que produz discursivamente a
morte daquele que cometera o crime. Aquele
que matou, que estuprou, que causou so-
frimento não existe mais. Nesta elaboração
sobre o crime não há verdadeiramente uma
continuidade, não há uma reflexão profunda
sobre o que ele foi e sobre o que ele pode voltar
a ser. É estabelecido como um dogma o evento
de sua própria morte, não recuperando as
condições sociais sob as quais foi perpetrado
o ato violento. Como conseqüência disso,
não se realiza o percurso reflexivo que traz o
momento do crime ao momento atual para
sua reelaboração numa aceitação de responsa-
bilidade. O aprendizado religioso sob o modo
da mimese regressiva tem como seu correlato
lógico instaurar um novo sujeito que não se
reconhece nem se implica nas condições de
produção do seu crime. Esta modalidade de
conversão estabelece um corte radical entre
um sujeito “morto”, desaparecido, responsá-
vel, mas que hoje não pode prestar contas, e
Maria das Graças
de Oliveira Nascimento
Membro do Movimento Inter-Religioso
do Rio de Janeiro – MIR
Ciclo de Debates sobre
Religiões
visão inter-religiosa
e Prisões 47

Religiões e Prisões
Espiritualidade 4 Trajetórias dos egressos convertidos:
nos presídios experiências e desafios para as Igrejas e
para a Sociedade.
Superpopulação nas celas, condições de vida
desumanas e facções criminosas, entre outros Em nossa pesquisa, pudemos observar o
fatos, constituem o pano de fundo no qual se processo que envolve complexas situações
insere as ações que devem ser pensadas sobre a intrincadas na rede social e analisáveis a partir
questão da espiritualidade nos presídios, casas de uma dicotomia bem simples: incluídos e
de custódias, casas de passagem e hospitais excluídos. Tal dicotomia revela a perversidade
psiquiátricos. É possível nestes ambientes con- de todo um sistema.
versar com Deus, Alá, Jeová, Oxalá, Jesus entre
os muitos nomes pelos quais as diferentes reli- A seguir algumas questões serão colocadas no
giões denominam os Seres Maiores? Algumas sentido de alimentar o processo de reflexão a
tradições religiosas encontraram a resposta partir de um olhar inter-religioso, onde a es-
estabelecendo pontes para o caminho do en- piritualidade apresenta-se como um caminho
contro, de homens ou mulheres cumprindo para o resgate do ser humano encarcerado.
pena nestes locais, com seu Eu mais interior,
apresentando-as no Ciclo de Debate, Religiões Porque trabalhar a
e Prisões, realizado em outubro e novembro questão da espiritualidade
de 2004. nas prisões

A grande contribuição do encontro foi tornar Na perspectiva religiosa, o ser humano atrás
mais conhecidas algumas questões que envol- de grades traz, em si, a esperança e o desejo da
vem a população carcerária e as atividades que liberdade; há sempre a possibilidade de um
vêm sendo desenvolvidas, por tradições religio- novo viver, um recomeço com mais dignidade
sas estruturadas, para este fim, através de pasto- e respeito, cabendo um amplo trabalho na área
ral carcerária, como é o caso das igrejas cristãs religiosa através de agentes religiosos.
(católica e evangélicas), e de outras religiões que
estão começando agora, como é o caso da Casa O amparo legal para o desenvolvimento des-
do Perdão, de confissão umbandista. tas atividades é a Lei 7210, de 11 de julho de
1984, da Lei de Execução Penal, na Seção VI,
As temáticas tratadas foram: Artigo 24, que define a forma de assistência
religiosa aos detentos, na medida em que
1 Igrejas atrás das grades: o olhar dos estabelece:
pesquisadores;
2 Credenciamento de agentes reli- Art. 24. A assistência religiosa, com liberda-
giosos: as responsabilidades do sistema de de culto, será prestada aos presos e aos
penitenciário; internados, permitindo-se-lhes a participa-
3 Dilemas e perspectivas do trabalho ção nos serviços organizados no estabeleci-
nas prisões: pontos de vista de agentes mento penal, bem como a posse de livros de
religiosos; instrução religiosa.
Entidades religiosas cadastradas
em 2000 e 2002 nos presídios
do Estado do Rio de Janeiro

Entidades Entidades
cadastradas cadastradas

2000 2002
Entidades
48 § 1º No estabelecimento haverá local apro- com cadastro
pendente
priado para os cultos religiosos.
§ 2º Nenhum preso ou internado poderá ser
Assembléia de Deus 16 24 5
Comunicações do ISER

obrigado a participar de atividade religiosa.


Batista 16 15 5
Católica 3 7 –
No nível estadual, as portarias da Secretaria
Espíritas 4 6 –
de Administração Penitenciária estabelecem
Universal Reino Deus 1 1 –
as normas e condições para o trabalho de
assistência religiosa nos estabelecimentos Nova Vida 1 3 –

prisionais do Estado. É assim definido insti- Metodista 1 1 3

tucionalmente o que é permitido ao trabalho Congregacional 1 1 1

do agente religioso que desenvolve atividades Prebisteriana 1 1 –

que levam a igreja, o templo e a casa de santo Adventistas 7º Dia 1 1 –

até as prisões, difundindo valores como a Evangélica Graça em Unidade 1 1 –


solidariedade, o amor impessoal e o respeito Igreja Missionária Jesus Cristo 1 1 –
à dignidade do ser humano. Evangélica Petencostal 1 1 –
Igreja Quadrangular 1 1 –
Como bem apontou um ex-detento presente Nazareno 1 1 –
ao ciclo de debates, é preciso entender que exis- Pentecostal Boas Novas Fristo – 1 –
te uma diferença entre os direitos do cidadão Congregação Cristã – 1 –
– o que paga os impostos, e, em contrapartida Maranata – 1 –
tem o direito à segurança e os direitos huma- Divulgadores Teocráticos – 1 –
nos, que se referem aos seres humanos sem Jesus Cristo é a Porta 1 – 1
distinção de cor, raça, sexo, religião. Nesta Outras* – – 4
categoria é que estão os presos, pois assim lhes
Total 51 69 19
está sendo garantido o respeito à dignidade
humana.
(*) Pentecostal Ebenezer – Missão Almas de Cristo, Cristo Vive, Ceiga de Cabo Frio.
Olhando o trabalho das Fonte: Secretaria de Administração Penitenciária, Divisão do Serviço Social,
2002, Rio de Janeiro
igrejas atrás das grades

O crescimento das igrejas evangélicas, em es- realizadas dentro de um presídio e que contra-
pecial as neopentecostais, vem, de certa forma, riam a legislação, pois há práticas de exorcismo
preocupando os outros segmentos religiosos. com o propósito de retirar o “demônio” do
Tal crescimento vem também se constituindo corpo do detento. Após o ritual o detento de-
num foco de pesquisas acadêmicas, na medida punha como convertido declarando a certeza
em que indicadores estatísticos mostram o de que “só Jesus salva”.
avanço dessas em relação às religiões ditas
históricas, conforme pode ser visto no qua- Será que é esta a palavra que os detentos ou-
dro abaixo, distribuído durante o ciclo de vem ou querem ouvir?
debates.
Será que as outras tradições com amplo traba-
A principal pergunta dos pesquisadores é que lho na Pastoral Carcerária, cujas diretrizes são
tipo de método está sendo usado: conversão definidas pela CNBB – Conferência Nacional
ou não-conversão? dos Bispos do Brasil – que defende a linha dos
Direitos Humanos, em especial a dignidade do
A exposição de um vídeo mostrava a atuação homem, não estão dando conta da solidão e
de um pastor da Igreja Universal em atividades carência de afeto dos detentos?
É fato que neste contexto de solidão, carência Em comum nos relatos feitos durante o evento 49
e ociosidade, qualquer atividade religiosa ficou a certeza de que o preso é um grande
aberta constitui-se num evento também problema para a sociedade na medida em que

Religiões e Prisões
social e os detentos acabam participando se constitui numa ameaça, recaindo sobre ele
de todas. Por outro lado, é fato constatado toda sorte de críticas e condenações.
também pelos agentes religiosos que há mu-
danças significativas no padrão de conduta Identifica-se assim um eixo de trabalho fun-
dos detentos que se “converteram” à religião damental junto às comunidades religiosas no
evangélica: postura compenetrada, voltada sentido de esclarecê-las quanto à situação dos
para o controle e domínio do “demônio”, detentos e conscientizá-las de que sem o apoio
transferindo do detento para este “demônio” e a solidariedade deles, o homem ou a mulher
a responsabilidade pelos atos que causou a que vive ou viveu a experiência do cárcere car-
infração que os levou até às grades. regará para o resto de suas vidas as marcas da
condenação, ficando muito difícil sua acolhida
Outro fato importante também relatado no e integração à sociedade.
ciclo é que os “convertidos” são transferidos para
a galeria de protestantes, nas quais são garanti- O papel dos agentes religiosos
dos aos seus ocupantes um padrão de higiene e
limpeza superiores ao da massa carcerária, além Segundo depoimento de um agente religioso:
de conviver num ambiente mais amigável. Para “Nós não nos lembramos deles, mas eles sem-
a direção do presídio isto é ótimo na medida em pre se lembram de nós”. Tal agente se refere
que lidar com os convertidos é bem mais fácil. ao fato de que atos simples como conversar,
ouvir, alimentar a chama divina em cada um,
Num segundo patamar estão as religiões ca- realizados nas visitas aos presos, ficam para
tólicas e espíritas, cada uma com 10 entidades sempre registrados.
cadastradas.
Isto dá uma pequena amostra do papel estra-
A igreja católica tem como principal objetivo tégico que o agente religioso pode exercer no
assistir ao preso religiosamente, não significan- processo de transformação de seres margina-
do, necessariamente, convertê-lo ou impor uma lizados e excluídos da sociedade.
prática religiosa, mas sim “... ter os sentimentos
de Cristo Jesus para realizar uma pastoral de Na maioria das tradições religiosas seus orga-
escuta e da solidariedade, já que o preso vive nizadores, gurus, mentores de alguma forma
uma experiência permanente de solidão. Por vivenciaram no nível do real ou do simbólico
isso, a Pastoral Carcerária, de forma amiga, a experiência da prisão e a pessoa interessada
deve preencher o vazio, possibilitando ao preso em participar neste serviço deve ver em cada
uma partilha fraterna, marcada pela absoluta rosto que está no cárcere o próprio rosto
1
confiança”... daquele que é reverenciado na sua tradição
religiosa.
As religiões de matriz africana apresentaram as
dificuldades enfrentadas por uma casa de um- A Pastoral Carcerária, por exemplo, ligada à
banda para obter o cadastramento, bem como CNBB, propôs que a conduta do agente diante
das dificuldades de realizar os rituais devido ao do preso deve ser a mesma que Cristo teria. Re-
fato de que os instrumentos religiosos como o comenda também que o preso, ao ser visitado,
tambor, não são permitidos. Observaram que deve sentir-se gente, pois o cristão que escolhe
1 Ver site
as músicas de louvor nos cultos evangélicos têm este serviço precisa saber distinguir entre o
www.pastoralsocial.org.br
2 Ver site nível sonoro superior a dos tambores, mas ainda pecado e o pecador. O agente deve despir-se
2
www.pastoralcarceraria.org.br assim são permitidas. de preconceitos, assim como o fez Jesus .
Agentes Religiosos por
Igrejas e Sexo, 2002

Agentes Agentes Comparação


Femininos Masculinos do número
de agentes
por sexo

50 A proximidade entre o agente religioso e o


preso de uma forma fraterna e amiga cria vín-
culos que permitem escutar suas principais Universal 81 71 53%
Comunicações do ISER

preocupações, que são, em geral, relacionadas Batista 56 76 58%


à família. Católicos 93 33 74%
Assembléia de Deus 32 88 73%
Foi consenso entre os agentes presentes ao Espíritas 18 35 66%
ciclo que os trabalhos desenvolvidos junto Metodistas 14 10 58%
às famílias dos detentos constitui uma estra- Nova Vida 2 8 80%
tégia de apoio num momento difícil para as Congregação Cristã nulo 10 100%
partes. Por exemplo: os agentes operam como Nazareno 4 4 50%
elo entre o detento e sua família; levam, para Evangélica Pentecostal 6 1 86%
os primeiros, informações sobre seus familia- Presbiteriana nulo 5 100%
res e mostram a estes a importância de sua Movimento dos Encarcerados 4 1 80%
presença e apoio para o restabelecimento da Adventistas nulo 4 100%
dignidade do detento. Igreja da Graça nulo 3 100%
Maranata 1 1 50%
Mas quem é este agente
Total 311 350 53%
religioso?

No quadro abaixo, dados da Secretaria de


Administração Penitenciária para 2002, in- Agentes religiosos
formam que existem 661 agentes religiosos por religião outros*
cadastrados, dos quais 61% estão cadastrados Metodistas 8%
como pertencentes às Igrejas Universal (23%), 4% Universal
Espíritas
Batista (20%) e Assembléia de Deus (18%). 8% 23%

A Igreja Católica (19%), os Espíritas (8%) e os


Metodistas (4%), constituem um segundo gru-
18%
po de maior participação no total de agentes Assembléia
religiosos.
de Deus 20%
Batistas

Em relação à distribuição por gênero, verifica- 19%


Católicos
se que a maioria é de homens (53%), já que a
figura masculina é um fator de segurança para
os trabalhos em instituições penitenciárias. A (*) Nova Vida, Congregação Cristã, Nazareno, Evangélica Pentecostal, Presbiteriana,
Movimento dos Encarcerados, Adventistas, Igreja da Graça, Maranata.
Pastoral Carcerária acredita que a equipe deve Fonte: Secretaria de Administração Penitenciária, Divisão do Serviço Social,
2002, Rio de Janeiro
ser mista porque se não houver homens jun-
tos, é praticamente impossível um carcereiro necessariamente, à disposição das mesmas
deixar a equipe entrar no pátio do sol e até nas em realizar um trabalho sujeito a reações
3
celas dos presos . contrárias de seus familiares e até de membros
da própria comunidade religiosa. No entanto,
Exceções são feitas às igrejas Católica (74%), para o agente atuar no presídio é preciso ser
Metodista (58%), Universal (53%), Evangélica respaldado pela Igreja.
Pentecostal (86%), Movimento dos Encar-
cerados (80%), cujas mulheres estão efetiva- Outro eixo de atividade dos agentes religiosos
mente compromissadas com este trabalho. é com os profissionais que trabalham nos es- 3 Ver site
O compromisso dessas agentes relaciona-se, tabelecimentos prisionais. É necessário muito www.pastoralcarceraria.org.br
diálogo para diminuir resistências, pois muitos existem políticas públicas que dêem garantias 51
consideram perda de tempo a visita da Igreja. de trabalho.
Autoritarismo, desconfiança, sarcasmos, entre

Religiões e Prisões
outros empecilhos, são colocados. Os preconceitos, medos e inseguranças quanto
à possibilidade de cometerem o mesmo ou
Como conduta de trabalho a Pastoral Carcerária outro delito os fazem marginalizados, sendo
recomenda que o agente religioso acompanhe dificultado o seu ingresso no mercado formal
os presos humanamente, isto é, como pessoa de trabalho. Agentes religiosos presentes ao
humana, e o agente também como pessoa hu- debate afirmaram que muitos detentos ganha-
mana “... sem estar jogando religião ou devoção ram liberdade, mas ficaram devendo às facções
em cima dele a toda a hora! Aliás, religião não criminosas as quais estavam ligados. Ao sairem
é o problema número um dos presos. A sua das prisões eles têm de pagar as dívidas e, por
liberdade o é. Religião costuma ser problema isso, muitas vezes retornam à vida do crime.
número um de Pastorais Carcerárias ou dos Nesse contexto, os egressos convertidos teriam
Movimentos Católicos de leigos. A maioria dos melhores condições de retorno com o apoio
presos tem Deus e religião, de alguma maneira, das instituições religiosas.
não a nossa maneira, mas, sim, a sua maneira,
que tem de ser respeitada e reverenciada, porque O depoimento de um egresso pertencente à
4
é dom de Deus para ele.” Acredita-se que esta ADHONEP – Associação de Homens de Ne-
postura está associada à premissa básica para o gócios do Evangelho Pleno, que possui o De-
trabalho inter-religioso nos estabelecimentos partamento de Prisões com ampla experiência
5
prisionais. em trabalhos nas prisões do Estados Unidos
– revelou que, a partir da mobilização de em-
Um trabalho de sensibilização junto às dife- presários, autoridades e homens de negócio,
rentes tradições religiosas poderá resultar num trabalha no sentido de ser um instrumento
plano de trabalho conjunto, dinamizando e ex- no processo de ressocialização do preso, co-
pandindo a espiritualidade dos detentos, a partir operando para uma efetiva reintegração do
de uma educação de valores. Mais recentemente homem à sociedade, ao convívio da família e
desenvolve-se a linha da Justiça Reparativa, que ao mercado de trabalho. Tal agente também
propõe “que muito mais que culpabilização, providencia todos os meios para a profissiona-
punição e retaliações do passado, passe-se a pre- lização e capacitação técnica de muitos deles.
ocupar com o restabelecimento e a restauração Alerta, ainda, para o fato de que a passagem
de todas as relações que foram afetadas, em uma pela instituição penitenciária faz com que o
perspectiva focada no presente e no futuro”. egresso seja eliminado tão logo a empresa saiba
do antecedente criminal de seu empregado.
Ainda é um sonho, mas ao religioso cabe ajudar
a construir um mundo de paz e felicidade, e, Como uma saída, identifica a criação de coope-
principalmente, sem exclusão. rativas ou associações que ajudem o egresso a
se inserir no mercado informal através da pres-
O que se ouviu sobre a tra- tação de serviços de reparos, obras, artesanato,
jetória dos egressos conver- produção caseira de doces, a fim de que comece
tidos a reestruturar sua vida. Finalmente, este agente
religioso apresenta feliz o depósito em conta
Ao longo dos debates a questão dos egressos corrente recebido pela venda de agendas feitas
foi tocada muitas vezes. O que vai acontecer a partir da reciclagem de papel.
4 Ver site quando o detento cumprir a pena e passar à
www.pastoralcarceraria.org.br
5 Ver site condição de egresso? Notadamente a socie- Contrário a este depoimento, outros agentes
www.adonep.org.br dade não está preparada para recebê-lo. Nem mostraram que há mais evidências de insu-
52 cesso do que de sucesso nos seus trabalhos, 2 Estabelecer um programa de treina-
agravado pelo desemprego atual: se não existe mento e apoio aos agentes inter-religiosos
emprego para o “cidadão de bem” como haverá com base em valores, evitando deste modo
Comunicações do ISER

para o homem ou a mulher com antecedente o proselitismo. O programa deverá abordar


criminal? também como se deve dar o relacionamen-
to com os agentes públicos, responsáveis
Caminhos e possibilidades pela guarda nos estabelecimentos prisio-
para a implantação do nais;
movimento inter-religioso
nas Prisões 3 Formar uma rede de apoio ao traba-
lho, tanto em relação ao detento quanto ao
Diante do quadro exposto entende-se que o egresso, através da indicação para empre-
trabalho inter-religioso, estruturado através sas do mercado de trabalho, da formação
de valores, é um dos caminhos possíveis para de cooperativas, formação da mão de obra
a ampliação das possibilidades de uma melhor especializada em consertos, construções,
compreensão do mundo por parte do deten- entre outros;
to e estabelecimento de alicerces para a sua
transformação. 4 Realizar um amplo trabalho de divul-
gação junto à mídia, tanto interna quanto
Neste sentido, deverão ser formadas equipes externa a suas tradições, no sentido de
de trabalho compostas por representantes de mostrar:
várias tradições que tenham como principais
objetivos: • a situação dos detentos que têm direitos
garantidos pela Constituição Brasileira;
1 Desenvolver atividades levando em • a importância do apoio às famílias dos
consideração o respeito à escolha religiosa detentos, em especial aos filhos menores,
do detento; tentando diminuir os impactos negativos
na formação dos mesmos;
2 Alertar o agente religioso sobre a • a importância da realização de atos de
necessidade de alimentar a chama interna solidariedade, visando contribuir para a
de cada um dos detentos em meio à difícil inclusão deste segmento através da com-
situação de solidão e desprezo na qual pra de artesanatos produzidos nas celas,
vivem; fornecimento de materiais, instrumentos,
livros, entre outros, contribuindo para a
3 Acompanhar as famílias dos detentos, melhoria das condições de vida;
desenvolvendo atividades no intuito de
recuperar os elos familiares. 5 Implantar políticas públicas que dêem
condições aos egressos de obter trabalho
Estando de acordo com esses objetivos, sugeri- digno, evitando seu retorno às condições
mos que as tradições interessadas se articulem que propiciaram a realização do delito;
no sentido de:
6 Contribuir para um melhor conheci-
1 Apoiar todas as iniciativas já em curso mento da realidade dos detentos através
pelas instituições religiosas, como da Pas- da realização de pesquisas qualitativas e
toral Carcerária, da CNBB e da ADHONEP, quantitativas, planejadas e coordenadas
mapeando suas experiências de sucesso por pesquisadores apoiados pelos agentes
a fim de ter um referencial para futuros religiosos.
trabalhos;
Flávia Pinto
Mãe de Santo da Casa do Perdão

Casa do Perdão:
resistências e estímulos
aos umbandistas
53

Religiões e Prisões
Nós somos um Centro de Umbanda atuante nos, pois sou militante dessa área. Falo sobre
no sistema prisional e não temos como falar o Movimento Negro porque sou do Movimento
do nosso trabalho sem relatar as dificuldades Negro e a maioria é negra dentro do sistema
para a nossa entrada no sistema e a grande prisional. Falo sobre cidadania, família e
dificuldade que temos ainda com o precon- ressocialização.
ceito e com a discriminação religiosa intra
e extramuros. Foi muito difícil a conquista A grande preocupação da Casa do Perdão é o
desse espaço e de respeito. Fomos para o egresso. Desenvolvíamos atividades sociais
presídio exatamente porque identificamos, no nosso terreiro como alfabetização e curso
como religiosos, haver grande necessidade, de artesanato, mas não atendíamos a ex-pre-
por parte desse grupo social, de assistência re- sidiários. Fui percebendo como fazer com
ligiosa. Percebemos que os idosos e as crianças esses indivíduos. Por mais que se questione
já têm muitas ofertas de trabalho religioso, uma cesta básica, um cheque-cidadão, eles
mas sabemos que no sistema prisional não são paliativos que atendem às necessidades de
é assim. Por trabalhar, ou melhor, por ter- quem tem fome. Não sou a favor de política
mos um centro em uma favela, observamos assistencialista, mas, às vezes, ela é impor-
as dificuldades que enfrentamos para não tante. No entanto, percebemos que isso não
deixar os jovens entrarem no tráfico. Esse é dava para fazer. Busquei pesquisas e percebi
um caminho tentador. Tentei conversar, mas que um ex-presidiário tem três vezes mais
meus argumentos eram fracos diante dos chances de matar, de ser agressivo do que
R$ 400,00 semanais que os jovens podiam aquele que não passou pelo presídio, pelo fato
ganhar nessa atividade criminosa. Não fun- de ele ter conhecido o “inferno”. Aquele que
cionou aqui fora e partimos para a ação nos não foi ainda para o presídio não conheceu
presídios. Foi muito difícil sermos aceitos ali. o inferno. Então, ele teme a cadeia, o outro
O DESIPE “embarreirou” o tempo todo. Ou não teme porque já passou por lá. Eu fiquei
melhor, não posso dizer “o DESIPE” nem “o buscando o que fazer e chegamos à conclusão
Governo”, mas pessoas pouco esclarecidas, de de que tínhamos de elaborar um projeto, uma
mentes fechadas, fanáticas e bitoladas, que atividade só voltada para o egresso porque a
nos discriminaram, nos desrespeitaram. Só gente sabe que a realidade do egresso é outra,
entramos porque o assunto foi para o jornal principalmente dentro do campo religioso.
e o DESIPE, no dia seguinte, nos aprovou em
menos de 24 horas. Mas fomos fortes e não Não podemos maquiar a realidade: muitos
desistimos. largam as religiões as quais se filiaram antes de
entrar nos presídios, sejam católicos, evangé-
O trabalho da Casa do Perdão no presídio licos, umbandistas ou espíritas. Ao firmarem
existe desde 2003. É embrionário. Não temos contato conosco lá dentro, reativam isso.
condições de apresentar dados empíricos de Entretanto, temos clareza de que muitos se
um trabalho de 15 ou 20 anos como fazem envolvem de novo com a religião somente pela
os católicos. Não temos isso, mas temos um ociosidade. Pensam: “Estou ocioso. O que me
trabalho diferente, que não enfatiza somente oferecerem está bom. Ou picolé ou pimenta,
a questão religiosa: falamos de Direitos Huma- eu vou pegar”. Quando voltam e dão de cara
54 com o mesmo meio do qual participavam deles e pude ir à escola. É muito complicado
antes de serem presos, é muito difícil supor- lidar com essa questão na cabeça de pessoas
tar não ter o dinheiro para o leite. Não estou com pouca instrução. Poucas rompem o gue-
Comunicações do ISER

vitimizando ninguém, pelo contrário. Mexo to como eu rompi para ter um esclarecimento,
na ferida dos presidiários. Minha palestra para ter uma outra capacidade de entendi-
é: “Você se desviou do seu comportamento mento da vida. Larguei o trabalho, era gerente
padrão. Será que você nasceu pensando: eu de uma empresa e ganhava relativamente bem,
quero assassinar, eu quero traficar? Quais mas falava que ia ao presídio toda sexta-feira
eram os seus objetivos com três, quatro, e meu patrão, obviamente, não entendia. Ele
cinco anos de idade?”. Trabalho muito nesta devia pensar: “O que essa mulher com esse
questão, pois temos de ter cuidado, senão o terno e com esse salto alto vai fazer num
indivíduo volta para a sociedade cobrando presídio? Ou ela é mulher de traficante ou
o que nós oferecemos lá dentro, uma vez ela é maluca e não faz bem para a imagem da
que quando ele volta a sociedade não sorri, empresa”. Então tive de sair e foi um preço
a sociedade “bate”. Então, eu preciso que ele muito caro que paguei: tenho marido, tenho
tenha uma consciência. Não vou culpá-lo filho fazendo faculdade... é complicado. Meu
porque ninguém é perfeito, mas mostro a ele professor de Direito foi o único a entender
que houve um desvio comportamental ainda meu trabalho. O de Matemática quase me
que ele não tivesse uma visão de sociedade, reprovou. E o de Direito foi muito solidário
uma formação religiosa e até mesmo uma comigo por ser sensível à área judicial.
formação educacional. E falo mais à vontade
ainda por ter o histórico de ter sido filha de Então, a gente teve essa grande dificuldade.
traficante, ter ficado com minha mãe morta Como já disse, as religiões de matriz africana
por três dias dentro de casa e ter superado não têm um órgão gestor — o pai de santo ou
tudo isso, e não foi com revolta, nem com a mãe de santo não são pagos para exercer essa
arma e nem com nada disso. função — e ficamos sem suporte. Tivemos inú-
meras dificuldades com a questão financeira,
É difícil realizar o trabalho nas prisões porque até porque a maioria dos médiuns do terreiro
as religiões de matriz africana, ao contrário são pessoas pobres, da comunidade e algumas
das demais religiões, não têm um órgão ges- filhas de santo que tenho são até mulheres de
tor. Na nossa Casa do Perdão nada é cobrado, presidiários.
é um trabalho completamente filantrópico e
tudo é organizado, mas há um custo para ir o Enfim, a Palavra de Deus é ótima, mas é delica-
presídio e não tínhamos como financiar isso. do falar dela para quem está numa situação
Para tanto, fomos literalmente andando até o de conflito com a sociedade. Portanto, tive o
presídio e não fomos uma vez só. É uma boa cuidado de procurar uma área neutra para
distância da Casa até lá: são cinco bairros de montar nossa base, por causa da questão dos
diferença. Não falo isso me martirizando por- comandos (facções que atuam no crime “orga-
que nós, como agentes religiosos, entendemos nizado” no Rio de Janeiro), uma situação que
que é um dever. Não existe bônus por isso, é me chocou ao entrar no presídio. Quando
o dever. A religião tem de sair dos muros e é estamos fora dos presídios, não temos idéia da
muito desgastante, pois eles nos “sugam”. periculosidade do que significa um comando.
Então, é preciso atentar para o local onde será
Faço um trabalho de acompanhamento com o atendimento do egresso a fim de que não
a família porque não acredito em ressocializa- nos restrinjamos a um desses grupos.
ção sem a família. Não dá, não consigo acredi-
tar. Meus pais morreram drasticamente, mas Meu discurso ia ao encontro da linguagem de-
tive avós que amenizaram a falta que sentia les por vários motivos. Primeiro porque eu era
uma novidade. Muitos queriam a umbanda de igual para igual, senão fica muito difícil 55
ou o candomblé lá dentro, mas não foi fácil. para eles. E mesmo assim nunca me faltaram
Eu não posso fazer meu culto normal, tradi- com respeito. Meu marido já foi lá comigo e

Religiões e Prisões
cional do meu segmento religioso lá dentro, nem o apresentei como meu marido. Ele foi
porque — o que está lá dentro do presídio é como mais um integrante do Centro, coisa
um pedaço da sociedade que foi para dentro que ele não é na verdade, mas foi como mais
do muro, portanto, o preconceito que há um integrante a fim de que ele ficasse à von-
aqui fora, há lá também — envolve atabaque, tade para poder acompanhar esse trabalho.
envolve transe mediúnico etc. Sou sensível, Porque a nossa casa, a nossa família tem que
uma pessoa de mente aberta. Por isso, quando ter sensibilidade com esse trabalho. A minha
entrei no presídio, não tinha a intenção de mãe (minha avó, que me criou) não é sensível a
fazer culto porque sabia que ia estar exposta esse trabalho e eu a ignoro porque eu acredito
a muita coisa, inclusive pela densidade es- nele, assim como alguns pais de santo não são
piritual, emocional e psíquica que existe ali sensíveis. Ignoro e vou seguindo em frente.
dentro. Então fui dar palestras, pois na minha
instituição religiosa, ao contrário da maioria A minha preocupação com o egresso é pro-
das tradições religiosas de matriz africana, funda e precisamos de recursos para ajudá-lo.
trabalhamos com palestras no terreiro toda Não dá para ajudar só com boas intenções,
terça-feira, onde realizamos esclarecimentos. ainda mais sabendo, como eu sei, o que
Essa forma de entrada foi interessante porque acontece quando o ex-presidiário volta para a
eles escolhem o tema e não eu. Eu não chego lá favela de onde ele saiu. É voltar e ouvir: “Tudo
pra falar: “Hoje eu vou falar de perdão, hoje eu bem? Vai lá, teu posto é esse”. É assim, sem
vou falar de orixás, hoje eu vou falar de Cristo, demagogia nenhuma, é exatamente o que
hoje eu vou falar de oferenda...”. Nós vamos acontece. Até porque alguns “rodaram” [fo-
falar do que eles quiserem. Assim, eles esco- ram presos] devendo [dinheiro para o tráfico].
lhem o tema e a atividade flui. Na primeira Então, têm que pagar. Vai ficar desfilando na
palestra fui embargada por um “irmãozinho favela sem pagar? Não vai, vai ter que pagar.
fanático” e eu não sabia como proceder. Mas E aí, pouco tempo depois reincide na vida do
Deus é completamente perfeito, cada vez mais crime. Eu já vi casos de meninos que eram
constato isso. Os próprios detentos reagiram apenas “vapor”, que nem arma usavam porque
de forma muito harmônica, não houve ten- nem todo “vapor” usa arma e quando voltou
são, não houve problema. Eles falaram: “Nós para a rua era o “bicho”, matava um por dia.
não paramos a tua missa, nós não paramos Por quê? Porque fez um “cursinho” de homem
o teu pastor. Então, você não vai parar ela. mau dentro do presídio. Então, tudo isso me
Saia daqui.” E ele saiu. Ele me provocou e me preocupou muito.
desrespeitou, mas foi o único problema que
eu tive lá. Algo que vem me preocupando cada vez mais,
principalmente por ser da área de Direitos
Depois desta situação nunca mais tive pro- Humanos, do Movimento Negro, por ser
blemas, embora seja relativamente nova e dirigente de uma instituição religiosa que é
mulher. Ser mulher e ser mais velha passa discriminada, embora eu saiba me defender
pela figura materna, mas ser mulher e ser muito bem, é a forma que vêem as religiões,
nova não passa despercebido num presídio o hiato que existe entre as religiões. Às vezes
onde a sexualidade não está em dia, onde a é chato. A Casa do Perdão não tem dinheiro
sexualidade está à flor da pele, onde há pes- e, por isso, eu falo dessa maneira simples,
soas com muita liberdade sexual. E eu lá den- sem microfone. Um outro “irmãozinho” mais
tro, tento fazer um discurso na língua deles. fanático ligou o aparelho da igreja evangélica
Não falo difícil, falo no linguajar deles, falo para abafar minha voz. E eu, graças a Deus,
56 inspirada pelo alto, falei: “Eu não posso e o Pastor Vicente outra, mas a nossa fala re-
gritar, estou com problema de garganta. plica uma certa diversidade que traduz para
Vocês podem se aproximar?”. E eles se apro- eles que somos tolerantes, que vivemos em
Comunicações do ISER

ximaram e eu falei mais baixo ainda e todos harmonia, traduz uma série de outras coisas,
me ouviram. Quer dizer, eu fico preocupada mas não uma briga.
com ‘como é que esse sujeito volta?’ Sabemos,
como dirigentes religiosos, que é mais fácil a Acho isso muito importante. É uma coisa
ressocialização se o indivíduo está envolvido que a gente vem fazendo do lado de fora
com a religião, seja ela qual for. A gente sabe da prisão através do MIR, através de várias
disso, mas o que me preocupa é até que ponto atividades ecumênicas. Acho isso brilhante,
ele está de fato envolvido com essa ressocia- maravilhoso e poderíamos até convidar ou-
lização uma vez que o DESIPE proíbe o meu tros segmentos religiosos que não estão aqui
1
adjá , proíbe o meu atabaque, mas o DESIPE representados neste momento, como os Hare
não proíbe a guitarra, não proíbe o microfone, Khrisnas, por exemplo. Faço isso dentro da
não proíbe o pandeiro. E o DESIPE alega que minha Casa de Santo. Recebo pastor, padre,
meu atabaque e meu adjá podem se tornar hare krishna, cigano, enfim, recebo todo
instrumentos de morte, armas lá dentro. mundo e são convidados imediatamente a
Agora, o fio da guitarra e o pandeiro podem fazer uma oração na sua tradição. Quer dizer,
ser, igualmente, instrumentos utilizados para quando as pessoas saem de lá, saem assim, no
fazer armas. O DESIPE sabe, passamos por mínimo: “Nossa, o que foi isso? De onde eu
uma série de entrevistas, que sou uma pessoa estou saindo? De um terreiro de umbanda?
esclarecida e que deixei claro que só faria o Será que é isso mesmo?”. O Maharaji quando
culto verdadeiramente de umbanda quando foi lá parou a favela toda, porque o Maharaji
sentisse que havia preparo. Esse preparo não tem aquelas vestes. A favela corria atrás dele e
é da noite para o dia. E eles até gostam muito as crianças andando atrás mexendo na roupa
da palestra, muitos falam assim: “Nossa, eu dele e ele naquela calma que lhe é peculiar.
não sabia que era assim”. Falamos de deter- Foi tão curioso aquilo, foi tão engraçado! E
1 Sineta de metal com-
minadas práticas religiosas, da falta de ética as crianças ficaram assim hipnotizadas; foi
posta de uma, duas ou
existente em toda religião, enfatizamos que comentário em toda a favela. mais campainhas utili-
há os dirigentes éticos e os dirigentes não- zadas por pais-de-santo
(Babalorixás e Ialorixás)
éticos e quando a gente esclarece essas coisas Bem, estamos avançando! Os terreiros de ma-
para incentivar o transe.
que acontecem dentro da religião – como triz africana começam, a partir dessa aceitação Também chamado Adja-
comercializar a religião ou fazer pedidos maus da Casa do Perdão, a querer aproximar-se e está rin.
2 Depende do sentido,
– eles gostam e tenho certeza de que a gente sendo muito bom o retorno deles. Eles têm
pode ser a sessão espírita
avança muito. solicitado. No recadastramento não fui eu em si, ou seja, o ritual
quem procurou o DESIPE, foram três assis- litúrgico como um todo,
ou pode também ser no
Preocupo-me em como eles nos vêem e gos- tentes sociais diferentes me ligando porque
sentido de: “correr uma
taria de propor um evento ecumênico no eles pediram a umbanda lá dentro. E pediram gira” que normalmente é
presídio. Eu queria muito. Ontem estava muito. Foi complicado o horário, a agenda, um termo utilizado por
entidades e que significa
numa palestra onde estavam reunidos: matriz conciliar um dia para atender. E eu disse:
que eles estarão verifi-
africana, pastor presbiteriano, batista, judeu “Fala que eu não vou fazer uma sessão, não cando um determinado
2 3
e falamos sobre intolerância religiosa. Assis- vou fazer gira , não vou fazer shirê . É a mãe de assunto e procurando
uma solução para o con-
timos a um vídeo sobre o MIR, Movimento santo que vai entrar de calça jeans, no muito
sulente.
Inter-Religioso, e cada vez mais penso nessa com uma guia no pescoço, discretamente.” 3 É o conjunto de cân-
integração. Se o preso vir briga inter-religiosa O trabalho tem avançado nesse sentido, mas ticos seqüenciais feitos
no inicio de todas as ses-
não vai se agarrar na única coisa que tem para está se construindo e esperamos depois trazer
sões em homenagem e
se agarrar quando sair da prisão. Ele tem de resultados mais empíricos. Por hora, é isso o saudação a cada Orixá ou
ver que eu falo uma coisa, Padre André outra que podemos falar. entidade cultuada.
Edvandro Machado
Pastor e Coordenador da Pastoral
Carcerária da Igreja Metodista
Missão metodista
nas prisões 57

Religiões e Prisões
Ao iniciarmos o trabalho de evangelização em sociedade”. A LEP está em acordo com as
nas prisões do Rio nos fizemos a seguinte determinações das Nações Unidas, que enten-
pergunta: Quem é o preso? Precisávamos dessa dem que o “objetivo último da justiça penal é
resposta, pois ele seria o “objeto” de nossa a reinserção social do delinqüente”.
evangelização, o nosso alvo. Podemos dizer
que o preso é aquele que vitimou alguém, que Ao tomarmos conhecimento do alto índice de
descumpriu a lei e que foi de encontro a um retorno ao cárcere de pessoas que mal saíram
bem tutelado, guardado pela norma penal. dele, – aproximadamente 85% – passamos a
Vendo assim, é correto o cumprimento de entender que a real finalidade da pena de pri-
uma punição. Mas se olharmos as estatísticas são é o isolamento social do preso. A reclusão
1
relativas aos presos de nosso Estado veremos funciona, assim, como uma forma de “vin-
que, em sua grande maioria, o preso é jovem, gança da sociedade ofendida”, sem nenhuma
pobre, de baixa escolaridade e sem qualificação preocupação de reintegração social, transfor-
profissional. Sob esse ponto de vista podemos mando o texto da lei em simples “hipocrisia
2
dizer que o preso também é vítima. Vítima da jurídica” .
desagregação familiar, de um modelo econô-
mico excludente, que nega chances até aos A resposta à pergunta inicial – Quem é o
mais qualificados. preso? – e as questões suscitadas por ela,
foram fundamentais para orientar a prática
Não estamos de forma alguma defendendo de evangelização da Igreja Metodista em
a impunidade, mas entendemos que a pena meio à realidade carcerária. Outro fator que
de prisão deveria ser apenas para pessoas sem nos ajudou a alcançar este objetivo foi a rica
nenhuma possibilidade de convivência social tradição teológica da qual somos herdeiros.
e que o direito penal e a restrição da liberdade A antropologia Wesleyana, ao contrário de
não solucionam um problema gerado no “ber- outras correntes teológicas, entende o homem
ço da miséria”. Acreditamos que a solução para como criado à “imagem e semelhança de Deus”
tais males está na diminuição dos contrastes e que isso permanece mesmo após o pecado
1 66,5 % da população
carcerária nos presídios da sociais, do fosso que separa ricos e pobres em original (Burtner e Chiles, 1995). Esta imagem
cidade do Rio de Janeiro nosso país e em medidas que possibilitem a está “gravada em nossa alma por obra do Deus
é composta por negros e
reintegração do indivíduo que sai da prisão. Onipotente” (Stokes, 1986). Isso confere valor
pardos; 52,7% é de jovens
entre 20 e 29 anos; 43% e dignidade ao homem, não importando em
tem de 4 a 7 anos de ins- No Brasil, a Lei de Execução Penal (LEP), base qual estado se encontre.
trução, 23,66% de 1 a 3; e
legal do sistema penitenciário, diz no seu
13,49% tem menos de 1
ano ou não tem instrução primeiro artigo que o objetivo da execução John Wesley, fundador do Metodismo, lutou
alguma. FONTE: Centro penal é “efetivar as disposições de sentença com denodo pela humanização dos presídios
de Políticas Sociais da
ou decisão criminal” e também “proporcionar e do sistema prisional. Inúmeras foram as
Fundação Getúlio Vargas
a partir de dados do Censo condições para a harmônica integração social pessoas a quem J. Wesley inspirou. Um dos
de 2000. do condenado e do interno”. No seu décimo seus discípulos mais notáveis foi John Howard,
2 Para saber mais sobre
artigo nos diz que “a assistência ao preso e ao responsável pela reforma do sistema prisional
as incoerências do sistema
prisional, ver Augusto internado é dever do Estado, objetivando pre- inglês no século XIX. Entre ele e seu mestre
Thompson (1991). venir o crime e orientar o retorno à convivência uma estreita amizade se firmou (Camargo,
58
1986). Com isso entendemos que a nossa vo- mas entendo que sem algum tipo de ética
cação histórica é promover uma evangelização de co-responsabilidade nenhuma mudança
integral, que enxerga o homem conectado ao significativa acontecerá.
Comunicações do ISER

seu meio e que o pecado não é só individual,


mas também social. Temos como missão O art. 80 da Lei de Execução Penal prevê
denunciar este modelo de sociedade desigual, que em cada comarca haja um Conselho da
o que também, é uma missão evangélica e Comunidade com atribuições de fiscalizar o
humanitária. cumprimento da pena. Temos participado
ativamente deste Conselho junto com outras
Sendo assim, atuamos em duas frentes: entidades, fazendo visitas aos presídios, ave-
riguando suas instalações e entrevistando os
1) Fazemos evangelização nas unidades presos. A participação da Igreja neste Conse-
penais; lho na comarca do Rio tem sido fundamental
2) Unimos-nos a outras organizações, para nós e isso vai além da evangelização
religiosas ou não, na promoção da vida e tradicional.
da dignidade humana.
Entre os momentos mais marcantes na parti-
Dizer para quem está preso que ele é a personi- cipação neste conselho, citamos nossa visita
ficação mais clara da exclusão social de nosso à Casa de Custódia de Benfica, junto com o
país, apesar de ser uma afirmação verdadeira, juiz titular da Vara de Execuções Penais do
não lhe traz benefício algum. Ele, mais do Estado e outras organizações que compõem
que ninguém, sabe disso. Pregamos a graça o Conselho, horas após o incidente conhecido
de Deus, que atinge o indivíduo, dando-lhe por todos, onde pudemos ver os sinais do que
esperança e paz. foi aquela noite de horror e conversar com os
3
presos que sobreviveram . A pedido dos pre-
A Lei de Execução Penal prevê, no art. 4º, sos ligamos para seus familiares informando
que o Estado deverá recorrer à cooperação que estavam vivos, ficando cada organização
da comunidade nas atividades de execução responsável por uma parte da lista. O que
da pena e da medida de segurança. Júlio mais me emocionou foi a resposta dos fami-
Fabrini Mirabete (1997), ao comentar este liares. Logo após me identificar como pastor
artigo relata que em países escandinavos há e informar o nome daquele que sobreviveu
muitos voluntários (professores, pastores eles diziam: “Glória a Deus” ou simplesmen-
evangélicos etc) que colaboram com os pro- te “Aleluia”. Neste momento não consegui
bations officers, supervisionando diretamente conter o choro.
o criminoso em prisão aberta, como também
na Holanda, onde existe uma longa tradição Em uma das últimas visitas do Conselho a
de trabalho voluntário nessa área organizado uma unidade penal, a insalubridade do am-
pelas igrejas. biente e o descumprimento à Lei de Execução
Penal e às Regras Mínimas para o Tratamento
Qualquer ação que vise à reintegração social do Preso estabelecidas pela ONU eram algo
deste indivíduo não depende, a meu ver, so- gritante: presos convivendo com esgotos,
mente de uma política pública, de uma ação ratos, friagem e doenças. Um dos presos, en-
formal do Estado, mas sim da participação tre as grades, me perguntou: “O Senhor está
do conjunto da sociedade. Cuidar para que passando mal, não?” Respondi que sim. Ele
haja real diminuição dos altos índices de retrucou: “Imagine eu, Doutor, que estou aqui
reincidência penal deve ser uma preocupação dia e noite”. Na assembléia posterior a esta
de todos. A idéia não é substituir o Estado em visita foi pedida pela quase unanimidade dos 3 Ver Ignacio Cano et all.
suas funções, nem isentá-lo de suas culpas, conselheiros a desativação de tal unidade. nesta publicação.
Ir ao presídio é uma atividade para poucos pobreza expressavam sua fé e espiritualidade 59
até mesmo porque é uma unidade de segu- a partir de fervorosos hinos. Enfim, “Que o
rança. Há restrições ao número de agentes Nosso Senhor Jesus Cristo abençoe a todos”.

Religiões e Prisões
religiosos de cada instituição para entrar nos
dias de culto, mas dada a carência completa Bibliografia

de recursos da quase totalidade dos presos,


o trabalho externo das Igrejas locais se torna BURTNER, R. W. e CHILES, R. E. (org). Coletânea da teologia

de fundamental importância. Neste sentido de Wesley. São Paulo. Igreja Metodista, Colégio Episcopal. 2ª

tentamos envolvê-las neste tipo de trabalho. ed. 1995. p. 103-104.

Um sabonete, que para nós tem pouco valor,


chega a ser moeda de troca, na prisão. CAMARGO, Báez, Gênio e espírito do metodismo wesleyano. São

Paulo. Imprensa metodista: 1986. p. 59.

Numa das reuniões do Conselho, recebi uma


ligação em meu celular, de uma senhora, lide- MIRABETE, Julio Fabrini. Execução Penal.Comentários à Lei n.

rança em uma de nossas Igrejas, informando 7.210 de 11/7/84. São Paulo, Editora Atlas: 1997 p. 48.

que seus membros se cotizaram e estavam


fazendo diversos kits, contendo: pasta de STOKES, Mack B. As crenças fundamentais dos metodistas. São

dentes e sabonete entre outros itens de higiene Paulo, Imprensa Metodista, 1986 p. 59.

pessoal para doação nos presídios. Pude relatar


isto aos outros conselheiros, o que foi um mo- THOMPSON, Augusto. A Questão Penitenciária. Rio de Janeiro.

mento importante para o nosso trabalho. Ed. Forense: 1991.

Percebo que o interesse de nossas Igrejas Locais


vem aumentando dia a dia; prova disto são
as palestras agendadas a pedido delas, onde
sempre somos interpelados sobre formas de
um envolvimento maior. Estas palestras têm
se tornado um importante momento na vida
da Igreja. Entendo que o preso nos evangeliza
a todos, pois traz no rosto algo que não que-
remos ver: o enorme fosso social que separa as
pessoas neste país.

Realizamos encontros anuais com militantes


dos direitos humanos, autoridades do Estado
e especialistas na área carcerária, sempre no
intuito de gerar consciência e uma ação efetiva
por parte da sociedade. Já foram realizados seis
encontros, todos nas dependências do Centro
Universitário Metodista Bennett.

Para finalizar, acho marcante o fervor de al-


gumas denominações evangélicas dentro das
prisões: há até pastores presos consagrados
pelas respectivas igrejas. Pela convicção com
que expressam sua fé, lembram-me as antigas
igrejas de escravos e afro-descendentes nos
Estados Unidos que, em meio ao racismo e à
Assembléia de Deus: Pr. Vicente de
Paulo Nascimento
Pastor da Assembléia de Deus
Coordenador da Assistência aos Peniten-

trabalho com internos


ciários do município do Rio de Janeiro

e famílias
60
Comunicações do ISER

Trabalhar em várias frentes entidade. E encaminhamos esse pessoal para


a área profissional. Ou seja, acompanhamos a
Como eu havia falado no início da minha parte religiosa, a parte de formação cultural
apresentação, esta é a primeira reunião de que e a parte profissional.
participo e me sinto muito honrado com este
convite. Trabalho já há quinze anos nesta área Com a saída do preso, acompanhamos e
e vi o colega falando das dificuldades, mas encaminhamos para a igreja que eles irão
realmente, hoje, está até melhor. participar, seja a igreja católica, seja espírita,
enfim, é um trabalho interdenominacional.
Eu coordeno trinta agentes religiosos e nós Encaminhamos e acompanhamos até que ele
temos, além da parte religiosa e dos cultos, esteja realmente firme com a sociedade.
projetos culturais, que são os cursos. Temos 2
cursos teológicos e cursos para eliminação No PO , onde estou há 12 anos, são vários
do analfabetismo. Há dois anos atrás, con- projetos. Já formamos quatro turmas, pois o
1
seguimos junto com a Alfalit , que é uma policial, de um modo geral, só sabe manejar
ONG evangélica, preparar alguns professores arma. É raro algum que tenha outra profissão.
nossos, através da ASSIAPERJ (Associação das Se ele não tiver um patrimônio antes de ter
Igrejas Evangélicas Atuantes nos Presídios do sido preso, é a família que vai ter de ajudar.
Rio de Janeiro) uma entidade que coordenei
há quatro anos. Trabalhar com a família

São várias as denominações que trabalham Quando formei a ASSIAPERJ foi mediante as
dentro das Unidades e coordeno esse grupo dificuldades que eu comecei a ver não só do
de igrejas e os representantes da denominação interno, mas também da família. A inquie-
da qual pertenço, que são trinta agentes. Nós tação do preso se dá pela situação em que se
trabalhamos no Pedrolino de Oliveira (PO), encontra a família lá fora: como é que a mãe
na Lemos de Brito, na Milton Dias Moreira; está, como é que a esposa está, os filhos como
passei no Hélio Gomes muito rápido, foi só é que estão:falta alimento, falta roupa, falta
o curso de alfabetização; também, na Água escola. Essas 30 pessoas da minha equipe, tra-
Santa, e em Bangu, na Tavalera Bruce e na balham de segunda a segunda. Quarta-feira,
Esmeraldino Bandeira. Estamos presentes eu fui à Cachoeira de Macacu atender duas
também na Unidade semi-aberta, que é a famílias da Lemos de Brito. Há sete meses
Plácido de Sá Carvalho. Desenvolvemos a eles não visitavam o preso e o rapaz estava
parte religiosa e a parte cultural, que são os ficando numa ansiedade, numa inquietude
cursos: temos o curso básico em teologia tremenda. E nós visitamos, levamos roupa,
com duração de dois anos, gratuito, para alimento; os filhos estavam fora da escola e
os internos e para quem quiser fazer; temos os encaminhamos para lá, demos material e
cursos profissionalizantes de elétrica e ele- retornamos. Fomos a São Paulo atender mais
uma família que o preso não via também há 1 Alfabetização através
trônica, e o preso ao sair recebe certificado. da Literatura
Os professores são registrados no CREA e o dois anos. Consegui localizar os parentes 2 Unidade prisional
curso é reconhecido por qualquer empresa e e a esposa em São Paulo. Quer dizer, é um para policiais.
trabalho gratificante. Eu era um empresário, identifico a comunidade à que ele pertence e 61
tinha uma microempresa e deixei tudo para conheço as dificuldades sociais do local. Por
me dedicar totalmente a esse trabalho social. exemplo, em Vigário Geral, nós tivemos um

Religiões e Prisões
Como sou formado em pedagogia (área de caso seriíssimo. Fiz um trabalho em Lucas e
educação), dou aula à noite e trabalho du- isso favoreceu. A favela de Lucas agora inva-
rante o dia nos presídios do Rio. diu Vigário Geral e eu tinha uma família do
PO que morava em Vigário Geral, aliás, mora
“Gabinete pastoral” ainda. Só que Vigário Geral era do Comando
Vermelho e o cabelo do jovem era vermelho
No início, o trabalho era voltado só para o – uma apologia ao Comando Vermelho. Se o
interno, mas comecei a perceber que mesmo outro grupo o pega, o mata. Quando Lucas
com a religião, ele permanecia ainda ansioso invadiu Vigário Geral, esse garoto que morava
e inquieto. Criei um sistema dentro das Uni- lá dentro não se ligou nesse detalhe. Quando
dades através da Direção, que é um sistema invadiram, o Terceiro Comando assumiu
chamado de “gabinete pastoral”, onde nós Vigário Geral e eles começaram a procurar
trabalhamos mais o lado psíquico da pessoa. esse jovem para matar. Só por causa do ca-
Montamos uma agenda e, às terças-feiras belo. E o rapaz tinha saído do PO e estava
faço atendimento, na Lemos de Brito, das no Batalhão de Choque, onde nós temos
13 às 17h, somente no gabinete pastoral um trabalho também. E ele desesperado me
– e isso tem melhorado muito. O próprio disse que os traficantes estavam procurando
diretor começou a perceber que o compor- ele para matar. E aí vem o relacionamento, o
tamento do preso mudou, que ele já estava trabalho, a confiança que até os traficantes
se estabilizando psicologicamente devido a têm nosso trabalho. O pessoal cria um sis-
esse tratamento. Inclusive alguns diretores tema, um clima tenso (“puxa, trabalhar no
de outras Unidades me convidaram. Por isso presídio!”), mas o interno, o preso, tendo
já vamos para a oitava Unidade. Eu tenho religião ou não, respeita os agentes religiosos.
mais dois colegas que são profissionais da E durante esses anos de trabalho no cárcere,
área de psicologia, dois terapeutas clínicos, nunca tive notícia de um padre aprisionado,
de psicanálise clínica, e dois psicólogos. Isso encarcerado, nem algum agente religioso.
não interfere no trabalho da assistente social, Eles são conscientes do nosso trabalho. Estive
mas ao contrário, ajuda pois esse serviço lá em Lucas, procurei o chefe do comando da
fica bem puxado para ela, devido a grande área naquele momento e conversei acerca do
quantidade de internos – são muitos, mil, garoto. Ele emitiu uma ordem para Vigário
mil e pouco, oitocentos. Para a psicóloga Geral para que não tocasse no garoto porque
trabalhar com todos eles é difícil e, como era conhecido do Pastor Vicente.
nós já estamos diretamente com os inter-
nos, temos maior facilidade. Eu atendo em Houve um episódio há dois meses atrás na Le-
torno de oito a dez pessoas por dia dentro mos de Brito com o Diretor. Um dos presidiá-
da Unidade. Trabalhando na área do caráter, rios que encabeçou umas quatro rebeliões na
da personalidade. Milton Dias e umas quatro fugas, os diretores
não o queriam. E ele se converteu lá na Lemos
Os agentes religiosos são de Brito; fizemos um culto e ele disse: “eu
respeitados quero, quero mudar a minha religião, quero
ser um camarada religioso. E ele realmente
Faço trabalho em favela – Morro do Alemão, mudou. Quando foi para Lemos, já havia uma
Complexo Nova Brasília, Nova Holanda previsão de mudança para Ary Franco. Mas
– então, eu conheço muito essa parte social. ele já estava no grupo de discipulados, que é o
Quando começo a trabalhar com o preso, já trabalho de conscientização e as palestras que
62 a gente faz durante três meses antes de ele se Trabalho gratificante
batizar. A gente faz uma palestra de conscien-
tização em relação ao caráter, personalidade, Quando deixei a minha empresa, passei para
Comunicações do ISER

temperamento, onde se explica, através da ge- um colega e fui me dedicar à educação para que
nética, do ponto de vista biológico, o motivo eu pudesse fazer esse trabalho. A minha recom-
pelo qual ele adquiriu aquele caráter: como pensa toda é essa: ver o cidadão, que não tinha
ele foi formado, o que ele herdou dos pais, nenhuma perspectiva de vida, ressocializado e
dos avós etc. O diretor ia transferi-lo, mas reintegrado à família e aos seus filhos através
acreditei no trabalho que estava sendo feito do casamento. Trabalhamos também com a
e percebi que valia a pena, era gratificante. Eu parte social do casamento, a parte de cidada-
cheguei lá numa sexta-feira, e ele estava no nia. Estamos fazendo na Lemos de Brito três
isolamento e iria ser transferido. Foi quando casamentos por mês. O pessoal normalizando
conversei com o diretor e informei que ele a situação, regularizando. Nós temos, na nossa
estava no meu grupo de palestra. Entretanto, associação, um departamento jurídico, com
diretor foi rápido em dizer: “esse camarada um juiz e três advogados que são totalmente
não presta, nenhum diretor quer ele, como é voluntários. Todos os processos, habeas-corpus,
que eu vou ficar com ele na minha unidade? intervenção jurídica, nós fazemos através dos
Ele vai encabeçar fuga...” Então, falei: “se nós advogados, reemissão de habeas-corpus. É uma
não dermos uma chance ao cidadão, como é estrutura que a sociedade não conhece, não
que nós vamos provar que ele pode mudar tem noção de como realmente é esse trabalho.
ou que ele teve uma chance de mudar? No A idéia de quem está de fora é que: nós vamos
morro ou na favela, ele já não teve escolha, só fazer a parte religiosa, mas existe um proces-
não teve chance. Não teve opção social, não so de ressocialização dos que estão lá dentro
teve chance educacional.” É o que nós vemos que é muito gratificante. Então, notar que
nas favelas, é o que nós vemos agora no morro um policial que só sabia atirar, saiu com uma
do Alemão: crianças com 9 anos com “AR- outra profissão, desenvolvendo uma outra
15” ou pistola. Estão recrutando as crianças. área profissional, é gratificante. Percebemos
Uma criança de 10 anos para “endolar” droga que realmente vale a pena.
ganha R$ 150,00 por semana. Dessa maneira,
ganhando R$ 600,00 por mês pode até com-
prar tênis de marca, e por isso não sai daquela
área. Esse garoto quando a polícia bate ali é
o primeiro a se entregar; enquanto os outros
fogem, ele fica de “bucha”. E é preso, só que
é menor, já conhecemos o processo, ele vai
sair daqui a pouco. E o que acontece? O
Diretor me deu a chance e o rapaz hoje está
totalmente tranqüilo. A esposa tinha abando-
nado, mas conseguimos localizá-la, fizemos
a ressocialização no casamento, se batizou e,
hoje, ele é membro da igreja lá dentro. Ele é
um desses exemplos em que o Diretor diz: “É!
Realmente eu preciso confiar nesse trabalho,
e crer que a ressocialização pode acontecer”.
É um exemplo disso lá dentro da Lemos de
Brito. No Ary Franco, também, temos uns
quatro que eram considerados perigosos e
hoje estão totalmente ressocializados.
Adenice Barreto Batista
Capelã Prisional das
Igrejas Batistas Cariocas
O trabalho dos batistas
nas prisões 63

Religiões e Prisões
Para além do trabalho Além do trabalho religioso, nós trabalhamos
religioso também na área educacional. Sou professora
e deixei o magistério para abraçar esse mi-
Sou missionária urbana pela Convenção nistério como capelã prisional. E, por conta
Batista Carioca e atuo dentro das unidades disso, nós temos investido também na área
prisionais do Rio há 20 anos, desde 1985. da educação. Organizamos já duas escolas.
Atualmente, eu coordeno o trabalho pela Um centro educacional que leva o meu nome,
Convenção Batista Carioca e atendo a 18 no Complexo da Frei Caneca, onde desenvol-
unidades prisionais: Complexo da Frei vemos cursos de informática junto com o
Caneca, Complexo de Bangu, Evaristo de CDI, alfabetização e ensino até a 8ª série. A
Moraes e Casa de Custódia de Magé. Nós tra- segunda escola que nós entregamos ao Esta-
balhamos com uma equipe muito abençoa- do é no Muniz Sodré. Então, temos investido
da. Várias igrejas nos ajudam e até pessoas também na área educacional porque, rece-
não vinculadas a igrejas evangélicas, como bendo os internos no Ary Franco — quando
empresários, como é o caso lá em Magé, convidada pela Secretaria de Administração
onde temos um empresário que é católico Penitenciária, naquela época, DESIPE — às
e tem estado conosco lá, doado cadeiras e sextas-feiras, nós fazíamos um censo junto
participado dos cultos. com a responsável pela área educacional,
social e a direção – constatamos que muitos
Faço assistência no Complexo Frei Caneca, ali não sabiam ler nem escrever. Levando
na Unidade Milton Dias e sou a capelã da estudos bíblicos, nós também ouvimos
Hélio Gomes, desde a época que comecei, muitos dizerem que não poderiam participar
há 20 anos. Trabalhamos com assistência porque não sabiam ler nem escrever. Como
religiosa, que é nosso objetivo maior, ou professora, e tendo clareza de que através
seja, levar a evangelização à população do conhecimento o homem pode também
carcerária de nosso Estado. Através dessa mudar, nós iniciamos um processo na área
evangelização, buscar um reencontro com educacional e, hoje, já estamos implantando
eles mesmos, através da auto-estima, um a terceira parte na Casa de Custódia de Magé.
reencontro com Deus e, conseqüentemen- Lá, estamos com 25 internas já matriculadas
te, a valorização moral, que eles perdem ao para, em fevereiro, iniciarmos o curso de
assumir a identidade de marginalizado. Pois alfabetização.
quando eles são considerados marginais, são
também ética e socialmente marginalizados. Um outro exemplo é a escola do Muniz So-
Então, quando eles entram no sistema, dré. Hoje o galpão onde é a escola, qualquer
perdem um pouco de sua identidade como um pode ir visitar. Antes tinha aqueles mil
seres humanos. Eles ganham um registro e trezentos jovens sem nada para fazer, sem
geral, que é um número, e muitos até nem nenhuma estrutura, jogados literalmente no
se conhecem entre si, senão pelo número. galpão atrás do Esmeraldino Bandeira. O gal-
Eles têm sempre que estar com o número na pão estava desativado, os esgotos entupidos e
ponta da língua pra poder receber qualquer não tinha água. Eles dependiam da água, da
assistência. luz e do esgoto do Esmeraldino e dormiam
64 no chão. Então aqueles jovens começaram Os encontros com
a se revoltar, tinham brigas todos dias, re- os egressos
beliões. Chegamos ali em um clima tenso,
Comunicações do ISER

terrível. Conseguimos chegar até aqueles Desenvolvemos também um trabalho de


jovens, conquistá-los, porque nós precisamos acompanhamento a esses homens, agora com
conquistar o coração do ser humano, e não a implantação do projeto Luz da Liberdade,
chegar brutalmente. Eles precisam se sentir porque uma de nossas preocupações nesses
amados, mesmo que eles estejam errados. E vinte anos como capelã prisional, exercendo
eu consegui, pela graça de Deus, conquistá- esse trabalho em caráter integral — manhã,
los, e hoje, eu falei pra eles: nós vamos fazer tarde e, às vezes, até a noite, quando há uma
uma escola. Então, o local que era um castigo, solicitação da direção para que nós estejamos
um galpão enorme onde ficavam aqueles jo- na Unidade — temos observado que após o
vens jogados, olhando por aqueles buracos de cumprimento da pena perdemos um pouco
ferro, hoje é uma linda escola. Mas como foi o contato porque são muitas unidades, são
construída? Sem um centavo do Estado, nem muitos presidiários. Eu atendo em média 5
um grão de areia do Estado. Meus joelhos unidades por dia e, durante a semana quase 3
dobrados, minha luta em busca de ajuda. E mil presidiários. Não individualmente, lógico,
o diretor fez questão de colocar uma placa porque nem poderia, mas através de palestras,
lá para qualquer pessoa ler. Ele fez questão, cultos, estudos bíblicos, trabalhando em gale-
não fui eu, eu não queria porque não é esse o rias ou com eles juntos. E quando eles saem,
nosso propósito, mas ele colocou lá “Escola muitos entram em contato conosco. Mas
realizada pela missionária Adenice”. Tudo outros não entram porque vão para outros
bem, mas hoje aqueles jovens estão com ou- estados, outros lugares e nós perdemos o
tro referencial. Se quem trabalhou lá antes contato. Mas Deus tem me dado muita alegria
chegar hoje não reconhece. Além do excelente em receber o feedback através de alguém, seja
diretor, nós temos trabalhado junto à equipe de um funcionário do sistema, seja através de
que ele conseguiu. Hoje nós temos curso de uma outra pessoa, de empresas, como, por
artesanato, curso de primeiros socorros, e exemplo, foi o caso de uma empresa de Ban-
estamos lá com outros cursos implantados gu, em que alguns estão trabalhando e quase
e a nossa escola imensa para qualquer pessoa todos eles sempre falam sobre a missionária.
ver o que era antes e o depois. Então, eu creio Enfim, a minha dificuldade era exatamente
que é por aí. Eu acho que é a soma de todos, essa: acompanhar e saber daqueles que se
é a ajuda de todos, mas que cada um possa firmaram, que continuaram ou rescindiram
fazer algo. Isso é que é importante. no crime, essa era uma de nossas preocupa-
ções. Então, nós estamos com esse projeto
Além destas atividades, trabalho também Luz da Liberdade, que visa exatamente fazer
com a família do preso através do nosso pro- um cadastramento daquele ou daquela que
jeto Culto da Família, de acompanhamento à nós acompanhamos para não perdermos o
família. Não tenho uma equipe de visitação contato com eles.
formada talvez tão bem como a do pastor
Vicente. Nós estamos formando agora, é Muitos ligam pra mim: são pais, mães, espo-
uma das coisas que tenho batalhado. Havia sas. Outros mandam bilhetinhos através de
uma equipe para visitação, mas essa equipe, alguém. E outros, reencontro em situações
infelizmente, por problemas até de traba- variadas, como indo falar em igrejas, como
lho, se dissipou, mas estamos montando ocorreu recentemente, em Niterói. Estive
novamente essa equipe. A demanda é muito numa região chamada Porto Novo e lá eu
grande porque o que mais o preso quer é ter reencontrei um jovem que eu acompanhei no
a família por perto. presídio Evaristo de Moraes, um ex-traficante.
Eu tinha perdido o contato com ele, mas ele “Olha, missionária, a senhora se esqueceu de 65
está lá naquela igreja, está trabalhando, está mim? Essa aqui é a minha esposa. A senhora
bem, é o diretor do centro de recuperação por me acompanhou na unidade tal, eu era aquele

Religiões e Prisões
onde ele passou. E o pastor disse: “olha, eu rapaz que tocava o violão.”
queria muito que a senhora viesse aqui para
conhecer uma pessoa”. E encontrei também Então, a gente não sabe quais são as vitórias,
outro, ex-sequestrador, que nós atendemos porque essa vitória é muito grande, os frutos
também na Frei Caneca, na época em que estão aí espalhados. Que não haja o reconhe-
trabalhava na Lemos Brito — eles me chamam cimento da mídia, que não haja o reconheci-
muito para várias unidades, mas não tenho, às mento até da própria sociedade, isso pra mim
vezes, condições para atender a todas as uni- não faz muita diferença. O importante é cada
dades. Mas, graças a Deus, Ele tem levado ou- um cumprir com o seu dever, cumprir com sua
tras pessoas para fazer esse trabalho. Temos, missão, em cada local. E tenho acompanhado
acho, 68 igrejas que trabalham, são pessoas muitas famílias totalmente restauradas, famí-
totalmente envolvidas. Isso os cadastrados, lias que verdadeiramente estavam destruídas:
fora os que vão voluntariamente, vão durante mulher para lá, filhos para cá e o pai na prisão.
as visitas, entram durante as visitas e fazem o Hoje estão todos juntos.
trabalho voluntário sem o cadastramento.
O perdão de Deus
As conquistas e vitórias que temos alcançado
são exatamente estas. É quando sou solicitada Hoje pela manhã, houve o testemunho de um
para ir a uma casa, rever uma família que foi dos rapazes que, por problemas de briga na
totalmente reconstruída através de nossos unidade, terminou assassinando uma pessoa,
atendimentos, de nossa equipe, vidas que e ele não conseguia se perdoar. A pior dificul-
foram restauradas. E já posso ver ali o João dade do ser humano é não se perdoar porque
Severino, ex-traficante, hoje membro de nossa é muito complicado trabalhar assim. E nós
igreja, casado com uma menina conhecida trabalhamos essa parte exatamente da culpa.
minha, também missionária. Fui madrinha Quanto Deus pode ajudar, quanto Deus pode
do casamento junto com meu esposo, e volta perdoar e aquele jovem realmente encontrou
e meia, estamos sendo padrinhos de casamen- paz através disso, da nossa palavra de que Deus
tos. Nos revemos através de encontros, nos pode perdoar. Através de um contato com este
transportes, nos pontos de ônibus, ou em Deus, através de uma confissão, ele poderia
qualquer lugar, e eles me reconhecem: “Oi mis- encontrar a paz que procurava. E esse rapaz
sionária Adenice, lembra de mim? A senhora realmente conseguiu encontrar essa paz, nós
me atendeu em tal unidade”. Esses dias, estava realizamos o seu batismo. Logo depois, sua
entrando na Convenção Batista, na Rua Sena- companheira o procurou e nós realizamos o
dor Furtado, quando vi um casal atrás de mim. encontro deles porque ela o odiava muito pelas
Quando já ia entrando no portão, ele gritou e coisas que ele fez, mas ela também conseguiu
eu parei. Nos dias de hoje é meio complicado, a perdoá-lo. Hoje, eu tive a notícia de que eles
gente não tem como não desconfiar de alguma vão casar agora no final do mês e esperam a
coisa, era uma pessoa de que não me lembrava. minha visita lá no casamento. A sogra ven-
O que acho muito bonito é esse feedback, nós do a mudança, deu uma casa para os dois e
não nos lembramos deles mas eles sempre se eles estão conseguindo móveis, segundo me
lembram de nós. Porque é o amor, exatamen- informaram, sem saber de onde vêm. Então,
te essa atenção de que o ser humano precisa são pequenas parcelas, são coisas minúsculas,
para se levantar quando ele está caído, é essa mas que somando no todo, com cada trabalho,
mão estendida de todos juntos num mesmo com cada um fazendo sua parte, formamos um
objetivo. Isso é muito importante. E ele disse: grupo grande.
66 A discriminação lado emocional. Somos missionários, enfren-
tamos todas as coisas, mas o lado emocional
A nossa dificuldade consiste, em primeiro lu- também é abalado um pouco. E aquele jovem
Comunicações do ISER

gar, exatamente pelo enorme problema social segurando naquela grade chorava muito.
que nós temos, especialmente quando eles Primeiro, ele estava lá no canto da cela e eu
saem das prisões. Lá dentro é tranqüilo tra- disse para o pessoal: “E aquele menino?” Res-
balhar com eles. Eu sou considerada mãe dos ponderam: “chegou anteontem, missionária,
presidiários, assim eles me chamam. Minha mas ele está muito abalado, ele diz que é só
casa é enfeitada, eles estão sempre me dando viciado, pegaram ele com umas drogas”. E
presentes, sabem a data de aniversário do ele veio chorando: “Missionária, por favor,
meu casamento, do meu aniversário, do meu me tire daqui. Eu só sou usuário, eu preciso
esposo, dos meus filhos, eles estão sempre na- de tratamento e não de cadeia”. Então, isso é
quela alegria de poder demonstrar de alguma uma coisa que tem acontecido. Meninos que
forma o carinho que eles têm por nós. E uma sobem o morro, por causa do vazio ou de al-
das dificuldades é saber o que fazer quando guma situação, para buscar drogas e quando
eles saem porque são muitos os que me ligam: descem, se os policiais pegam no flagrante, é
“missionária, a senhora pode pedir a Deus por preso e autuado como tráfico.
mim porque eu estou com uma entrevista
para um emprego e estou apostando muito Nós estamos com uma situação delicada, já
nesse emprego”. E de repente, três ou quatro falei isso para várias autoridades, em alguns
dias depois, nem ele me liga, mas uma outra debates, em faculdades, ou em locais onde
pessoa falou: “fulano mandou avisar que ele podemos falar, e até com nossas autoridades
foi na entrevista, passou, deu tudo certo, mas carcerárias mesmo, e, graças a Deus, tenho
quando olharam a carteira dele – presidiário notado uma abertura de mente para as pe-
– mandaram ele vir daí a um mês e ele entendeu nas alternativas. Porque o problema não é
que ele estava sendo recusado”. Então, como só prender, prender é tão fácil. Ali na Casa
bem falou o Doutor Odiney, no gabinete dele, de Custódia, seis mulheres grávidas, presas,
numa conversa que tivemos recentemente: também porque estavam com drogas para
“esse preconceito, essa discriminação, essa difi- ganhar “um dinheirinho”, segundo elas me
culdade da aceitação dessas pessoas que saem, falaram. Nós estamos com um problema sério,
ainda que recuperadas, ainda que totalmente socialmente falando, em termos de emprego.
ressocializadas, querendo uma chance pela As pessoas estão tendendo muito para a venda
sociedade, não há como ignorar”. Essa tem de drogas e isso está dando muito flagrante.
sido uma das maiores dificuldades. Há uma menina ótima na Casa de Custódia,
assim como também na Nelson Hungria;
Falta trabalho para tenho encontrado meninas excelentes que sim-
os jovens plesmente estavam com o namorado, quando
ele foi pego com drogas e ela foi presa junto.
Os desafios, nós encontramos a cada dia. O Não adianta explicar à polícia.
crescimento da população carcerária se dá
principalmente pelo aumento assustador do Precisamos ver esse desafio do crescimento
número de jovens. No Ary Franco, na galeria cada vez maior da população carcerária, pois
B, que é a galeria do Comando Vermelho, tra- não existe nenhum programa no nosso Go-
balho realizando às vezes oito cultos, depois verno. Agora, essa nova política penitenciária
desço para a galeria A, que é no subsolo, – onde através dessa secretaria está mudando um
aquele jovem, que eu nunca esqueço, marcou pouco, mas ainda a passos muito lentos. E
muito a minha vida. Fiquei até um tempo sem estamos vendo isso: pessoas com todo vigor,
poder ir lá porque nós temos também o nosso jovens que chegam simplesmente porque
são usuários e saem de lá como verdadeiros 67
traficantes já para pegar uma gerência de boca-
de-fumo como um me falou: “Missionária,

Religiões e Prisões
me tira, por favor, dessa cela porque já estão
querendo me aliciar para quando sair daqui,
ir para uma gerência de boca-de-fumo e não
sei como dizer “não” – estou com medo”. São
jovens amedrontados, que não têm nenhuma
ajuda, não há psicólogos suficientes para
ajudá-los. Esse tem sido um desafio. Não sei
se os outros que trabalham percebem a difi-
culdade de atender a todos, de fazer algo. Eu
também vejo, que há um descaso de algumas
autoridades quando as igrejas tentam ajudar.
Não há um programa de governo. Simples-
mente prender e jogar debaixo do tapete não
vai resolver. Essas pessoas vão voltar para a
sociedade, vão retornar e o que podemos fazer
para que, ao retornarem, eles possam tomar
um novo rumo.

No meu coração, como capelã, como educa-


dora é possível ver essas pessoas saindo com
um novo referencial, com uma mudança, mas
que a sociedade também esteja pronta para
receber. A igreja, os segmentos religiosos de-
vem apoiar o trabalho. Há vinte anos, já venho
fazendo isso e vejo, a cada dia, crescendo mais
a necessidade de mais pessoas se envolverem
nesse trabalho. Mas é o que acontece depois
que tem me preocupado. E também, temos
que nos mover um pouco para que nossos
governantes tomem uma atitude diante da
realidade de nossa população carcerária sem
nenhuma perspectiva, nem mesmo lá dentro.
Até mesmo querer fazer uma faxina é motivo
de briga. Quantas vezes, tenho apartado briga
entre eles porque querem fazer uma faxina,
para remissão de pena, principalmente, para
os que têm crime hediondo e não podem
apelar. Só podem ter remissão de pena através
da faxina, que é um trabalho que eles fazem
sem ganhar nada. Trabalham para o Estado e,
às vezes, trabalham até duas horas da manhã
– é a hora que eles requisitam – para ganhar
um dia de pena para três dias trabalhados. É
a forma que eles acham. E fora isso, não vejo
muita coisa sendo aplicada.
Os apenados no trabalho Amanda dos Santos
Lemos
Assistente Social
Ex-estagiária de Serviço Social

de assistência religiosa
da Penitenciária Esmeraldino
Bandeira

68
Comunicações do ISER

Muito se fala do papel exercido pelo assistente Todos os encontros foram registrados em
social como responsável pela coordenação das áudio, para que se mantivesse a fidelidade
atividades religiosas desenvolvidas no âmbito dos diálogos. As gravações foram previamente
prisional, mas pouco se falou do apenado autorizadas por todos os entrevistados.
como parte atuante deste processo. A partir
da minha experiência de estágio no Serviço O “monitor” como expres-
Social da Penitenciária Esmeraldino Bandeira, são da participação
no trabalho de coordenação da assistência
religiosa, surgiu o interesse em compreender Tomamos como ponto de partida para realiza-
melhor as relações e a dinâmica deste proces- ção deste estudo o fenômeno da participação
so, onde percebemos efetiva participação dos dos “monitores” da Penitenciária Esmeraldino
internos. Bandeira no processo de planejamento e de-
senvolvimento das atividades de assistência
O universo investigado foi constituído por religiosa. O aspecto central presente na fala de
sete instituições religiosas, representantes todos os “monitores” com relação aos motivos
de diferentes credos com um total de 22 para a participação é a “possibilidade de levar
agentes religiosos cadastrados. Além disso, a palavra e, assim, se aproximar de Deus, tra-
entrevistamos 1 assistente social responsável zendo novas almas para o seu rebanho”.
pela coordenação do trabalho, 1 represen-
tante da Segurança da Unidade Prisional e “Precisamos levar a palavra de Deus para
1
aproximadamente 8 apenados “monitores” . todos, porque só eu sei o que Deus fez na
Inicialmente, tentamos realizar encontros minha vida.” (Encontro I)
grupais com os “monitores”. Entretanto,
com a ausência de muitos, decidimos rea- “O significado (da participação) é fazer a
lizar encontros individuais e, em seguida, obra de Deus, diz a bíblia que nós temos
com os agentes religiosos. O tema gerador a que ir por todo mundo e pregar o evange-
ser desvelado nesses encontros grupais foi a lho a toda criatura, então precisamos falar
“participação”, restringindo esta categoria às de Jesus pra todos, o importante é trazer as
práticas da assistência religiosa, onde busca- pessoas para a presença de Deus.”
mos compreender a percepção dos apenados (Encontro III)
sobre a experiência vivida.
Para estas pessoas a possibilidade de pregar e
Posteriormente, realizamos encontros indivi- evangelizar sua experiência com Deus repre-
duais com a assistente social, coordenadora do senta a proximidade com o Divino, é um ato
projeto de Assistência Religiosa, e com o chefe de agradecimento, pois, dedicando suas vidas
de Segurança, responsável pela integridade à pregação da palavra, eles estão retribuindo
1 Assim são denomina-
física e moral dos agentes religiosos e dos pró- os milagres atribuídos ao divino. Na perspec- dos os apenados que auxi-
prios apenados. Realizamos estes encontros tiva de realizar um trabalho de evangelização liam os agentes religiosos
com o objetivo de aprofundarmos a compre- e pregação da palavra, durante os encontros, no dia-a-dia da prisão, tan-
to na “organização, como
ensão do fenômeno da participação, do ponto muitos apenados, do grupo evangélico, pontu- na preservação e realização
de vista de todos os atores envolvidos. aram a necessidade da ampliação dos espaços de ritos religiosos”.
destinados à prestação da assistência religiosa. ao próprio Serviço Social para que este setor 69
Segundo eles, realizar os cultos apenas no “dê uma força” a sua causa.
templo em dias pré-determinados é muito

Religiões e Prisões
pouco, não atinge uma porção significativa “...depois a senhora conversa aí com o
da população presa. diretor, que nós tamos pedindo a ele tam-
bém uma tarde de salvação no pavilhão A,
“Tem que dar espaço pra gente falar de a gente tamo mandando carta pra rua pra
Jesus, é melhor ainda, seja culto com a fa- pedir material higiênico.” (Encontro VI)
mília, seja no pavilhão A, seja no pavilhão
B, o importante é trazer as pessoas pra “A gente quer fazer um culto, só da gente
presença de Deus.” (Encontro VI) interno, por isso que é bom se a senhora
passasse pro diretor para ele dá uma força
“O nosso objetivo é esse, garantir este espa- pra gente. Mesmo porque, a gente quer
ço. Nós tínhamos o culto com a nossa famí- fazer o culto lá pra vê se a gente traz mais
lia, também foi tirado, né?! Perdemos vários companheiro. ” (Encontro VI)
trabalhos aí, com certeza não vamos parar,
vamos continuar trabalhando, diz a bíblia Participar das atividades religiosas para estes
que a porta que Deus abre ninguém fecha apenados representa muito mais do que sa-
e a que ele fecha ninguém abre, (...) porque tisfazer uma necessidade ou ocupar o tempo.
se for de Deus não tem ninguém que possa Participar destas atividades para eles é “se
impedir. ” (Encontro II) entregar a Jesus, é a possibilidade de ter uma
nova vida, de transformar as suas próprias
Na percepção deste grupo, toda oportunida- existências”.
de deve ser aproveitada para a pregação do
evangelho e a busca pela ampliação e reco- “...a cadeia, o diretor, o chefe de segurança
nhecimento do espaço existente para a prática não pode transformar a vida de ninguém,
religiosa gerava uma grande mobilização por mas Jesus ..Ele pode, Ele é o Único que
parte dos “monitores”. Ao reivindicarem a pode transformar a vida da pessoa, quando
consolidação deste espaço e o apoio do Serviço a pessoa abre o coração pra Jesus tudo
Social, o grupo demonstrou consciência crítica pode acontecer.” (Encontro VI)
e conhecimento sobre a causa, caracterizando
a existência de um movimento organizado. “Quando eu vivi no mundo, eu só fiz coisa
errada... olha aí onde eu acabei... eu não
Mas a abertura deste espaço não é algo assim era santo, não, andava com más compa-
tão simples. Devemos lembrar que tudo isso nhias e fiz tudo que não presta. Foi quando
ocorre em um estabelecimento prisional eu encontrei Jesus e a minha vida mudou,
que deve cumprir determinadas normas de eu era maldição, hoje em dia, eu sou bên-
segurança que preservem a integridade física ção.” (Encontro II)
e moral de todo aquele que neste estabeleci-
mento se encontrar. Neste cenário, várias são “Viver com Deus é melhor, eu era católico
as dificuldades encontradas para a expansão e larguei tudo, acabei na cadeia. Hoje eu
da evangelização, pois é difícil criar canais sei que a gente precisa ter uma religião.”
de pregação sem comprometer as normas de (Encontro I)
segurança da Unidade.
Durante os encontros realizados, percebemos
Na tentativa de consolidar o espaço destinado que o grau de participação dos “monitores”
à evangelização, este grupo busca parcerias difere de acordo com a denominação religiosa
internas e externas, muitas vezes se reportando à qual estão vinculados. Há uma maior mobi-
70 lização por parte dos apenados “evangélicos”, “Eles participam da missa, fazendo leitu-
o que torna este grupo mais organizado, inde- ras, eles fazem a limpeza da igreja, a gente
pendente e, conseqüentemente, participativo. chega, aí a capela está suja, aí eles vão,
Comunicações do ISER

Entretanto, isso não desqualifica os esforços pegam logo a vassoura com a maior boa
depreendidos por “monitores” de outras vontade, (...) a gente vê o interesse deles
denominações religiosas. Assim, no dia-a- de limpar a igreja, eles limpam, fazem a
dia da Unidade, eles escrevem a sua história leitura, dão os folhetos para os outros
e buscam a transformação deste espaço. A que estão chegando. Quase todos cantam
partir da determinação destes homens muito e fazem as orações, você vê eles muito
já foi feito e eles querem mais. Aos poucos participantes da celebração ou da missa.”
estes homens conquistam o espaço, o respeito (Encontro VII)
e a admiração daqueles que vivenciam esta
experiência. Na ótica deste grupo, participação nada tem
a ver com organização política, social e cul-
Pelas mais diferentes razões, sabemos que o tural. A participação está restrita a atividades
sistema atualmente não cumpre sua função de de ajuda como limpar o templo ou cantar nas
ressocializar os apenados. Diante desta carên- celebrações. Ainda assim, alguns agentes falam
cia, as atividades religiosas surgem como gran- com emoção sobre o envolvimento dos apena-
de incentivo para que os apenados “se tornem dos com a assistência religiosa. Os agentes da
novamente capazes de viver em sociedade”. Os Pastoral Penal (Igreja Católica) lembram, com
apenados que se dedicam às práticas religiosas emoção, a restauração da capela da Unidade,
acreditam que se aproximando de Deus estarão que foi possível graças à participação dos
se afastando do pecado, ou seja, do crime, que internos.
segundo eles “não leva a lugar nenhum”.
“Na construção da capela, o padre fez um
Os Agentes Religiosos agradecimento logo na inauguração da cape-
la. Foi um momento muito bonito, porque a
Os agentes religiosos das diferentes doutrinas gente via a luta deles, porque eles ficavam ali
reproduzem a mesma diferenciação que há dentro trabalhando... então, eles saíam de lá
entre os “monitores”. Ou talvez o processo e vinham ali para igreja, e depois eles tinham
seja inverso, e os monitores reproduzem a a felicidade, o prazer de dizer “eu ajudei a
diferenciação identificada entre os agentes. construir essa igreja”, aí eu conversava com
Os agentes das doutrinas católica e espírita eles, tinha um que fazia tanta coisa ali que
têm uma compreensão semelhante acerca a gente até se surpreendia! (...) Todos eram
da participação dos apenados no desenvolvi- voluntários, não foi ninguém obrigado a ir,
mento das atividades de assistência religiosa. ao contrário, o construtor tinha dificuldade
Segundo eles, a participação é algo positivo de tantos quantos queriam participar.” (En-
que proporciona a transformação e ocupa as contro VII)
vidas das pessoas encarceradas, afastando-os
do convívio com “o que não presta” e possibi- Os agentes religiosos acreditam que a as-
litando a reaproximação com Deus. sistência religiosa configura-se como um
instrumento imprescindível para processo
“...a religião consiste nisso, em você rein- de ressocialização do interno. Segundo eles,
tegrar o homem ao caminho da espiri- o Estado deixa lacunas na administração de
tualidade sem religiosidade piegas, mas seus estabelecimentos prisionais, o que oca-
sim, religiosidade da reintegração dele siona a revolta dos presos contra a sociedade,
na consciência com seu Deus, que é a dificultando sua reintegração. Neste cenário,
natureza...”(Encontro V) as instituições religiosas realizam mais que
um trabalho religioso, elas desenvolvem, em posição política. Em princípio eles concordam 71
paralelo, atividades sociais e materiais, ameni- com os demais agentes, e dizem perceber a
zando os sentimentos de revolta e vingança que participação dos apenados como positiva e

Religiões e Prisões
o apenado nutre contra a sociedade durante o importante,
período de reclusão.
“visto que o alvo da igreja é dar assistência
Esta postura das instituições religiosas atrai os a estes homens, cuidar do seu lado espiri-
apenados e “proporciona uma transformação tual (...)” (Encontro VIII)
na vida daqueles que aceitam e congregam a
palavra de Deus”. Ao aprofundarmos o diálogo, percebemos que,
para eles, a assistência religiosa assume dimen-
“A gente acredita que esse trabalho, quan- sões mais amplas. Na realidade, as instituições
do a pessoa freqüenta assim, ele já muda evangélicas formam um movimento organiza-
um pouco a sua vida pública. Então, ele do e dão todo um tratamento diferenciado à
saindo daqui, ele vai repensar duas vezes questão da religiosidade.
no que vai fazer. Todos nós somos passíveis
de erros, agora, é preciso que a gente não “Uma vez ele crendo e aceitando as escri-
repita esse erro. Muitos falam que hoje não turas, com certeza ele mudará o caráter...
fariam o que fizeram no passado, pela pala- Nós acreditamos nesta mudança, até
vra que foi passada foi se refletindo. Então, porque essa credibilidade que nós damos,
às vezes, a pessoa erra por causa de quê? já é baseada em fatos, em obras que são
De uma palavra, né?!” (Encontro VII) realizadas na vida deles. Eles mesmos tes-
temunham aqui dentro e quando saem pra
“Essa é a conscientização que nós damos liberdade, quando são crentes, abraçaram
a eles, é uma conscientização, mais de va- a fé de verdade, a gente faz uma espécie de
lores humanos, de reintegração social do acompanhamento na sua vida, então com
que, praticamente, uma religião, porque isso vamos ver se eles não mais voltam para
eu considero uma religião aquela que dá aquela vida anterior, não mais pensar em
a consciência do homem ao seu Deus, não roubar, não mais enganar, não mais pen-
importa qual.” (Encontro V) sar em mentir... Agora, a visão, o interesse
deles mudou, através das escrituras, dos
“De repente, eles vêem porque já estão ensinamentos. Isso levou a eles a mudan-
cansados de não adquirir nada na vida, ça de caráter, por isso, que ele é o nosso
não construiu nada, é só derrota e isso a alvo...” (Encontro VIII)
gente usa até para fazer as pregações. As
orientações batem em cima disso: o que “Deus está sempre acima. Ter suas vidas,
você fez até hoje? O que você adquiriu?” realmente, transformadas só depende
(Encontro VIII) deles, tem uns que a gente vê que é um
processo, não é de imediato e nós temos
Por outro lado, ao nos aproximarmos dos trabalhado em cima disso.” (Encontro V)
agentes religiosos, pregadores da doutrina
evangélica ou protestante, nos deparamos com Os agentes religiosos evangélicos fazem ques-
outra realidade, marcada por um universo de tão de reafirmar que o trabalho deles não se
representações e significações. resume à pregação do evangelho: a “obra” que
eles realizam é muito maior, perpassando o que
Logo nos primeiros encontros, percebemos eles chamam de assistência social e material,
que a concepção de participação destes agen- reconciliação de famílias, acompanhamento e
tes era mais ampla, bem próxima de uma orientações sentimentais.
72 “(...) é evidente que a gente não pode secretário, o R.. Eu sou o segundo dirigente,
esquecer um pouco do social, que isso o Z.L. é o primeiro dirigente, tem o tesourei-
chamamos de bem material...” ro, o L. D. e tem o secretário. Ah! e o A. M.
Comunicações do ISER

(Encontro VIII) dá aula, ele é o professor, ele que dá aula


do estudo bíblico.” (Encontro II)
“(...) esse trabalho é um trabalho que tem
que se prolongar acerca do atendimento a Diante do número expressivo do grupo evan-
eles, acerca dos familiares deles, que nós gélico, a Direção da Unidade concedeu a estes
também temos um trabalho, porque quan- apenados uma cela. Na cela B-6, do Pavilhão
do eles vêem na freqüência, eles passam B, funciona a sede desta organização e todos
pra nós o problema da família lá fora, a os membros da “Diretoria da União e o mi-
gente vai atrás dessa família e tenta ajudar.” nistério” moram nesta cela. Durante a noite,
2
(Encontro V) depois do “confere” , estes presos se reúnem e
promovem cultos de louvor, vigílias, estudos
A União Evangélica como bíblicos, orações, seções de descarrego, enfim,
organização social desenvolvem todas as atividades inerentes a
uma igreja.
Ao buscar a consolidação do movimento de
participação, o grupo evangélico demonstrou “(...) a gente tem na cela: 2º feira – culto
maior engajamento e determinação, o que de adoração, das 19 às 20h; 3ª feira – cul-
levou à organização coletiva destes apenados, to de estudo; 4ª feira – não tem nada por
dando origem à União Evangélica Esmeral- causa da visita, depois da visita a pessoa
dino Bandeira. Ao nos debruçarmos sobre a está cansada, a gente faz só uma oração e,
compreensão do fenômeno da participação depois, na 5ª feira, tem o culto de oração e
no desenvolvimento da assistência religiosa, domingo é culto de louvor e assim vai indo.
nos deparamos com outro fenômeno, o da E tem campanha de oração, começa às 10
organização. Segundo os entrevistados, a horas da noite, só que aí, os irmãos oram
União Evangélica Esmeraldino Bandeira é uma em silêncio pra não incomodar as pessoas
instituição religiosa, fundada por apenados do lado, vai até 4 e meia, cinco horas da
e agentes religiosos (alheia ao conhecimento manhã... mas é por dupla, um ora, aí vai
das autoridades legais), com o propósito de chamar o outro.” (Encontro VI)
acabar com a desunião entre as instituições
evangélicas credenciadas para desenvolver tra- Além disso, os “monitores” evangélicos são
balho religioso dentro desta Unidade Prisional. responsáveis por auxiliar os agentes religio-
Entretanto, esta nova instituição demandaria sos com listas de autorização para acesso aos
responsabilidades e atribuições que não pode- cultos, além da identificação de demandas que
riam ser exercidas pelos agentes religiosos. Com deverão ser levadas aos agentes.
isso, os apenados tomaram a direção desta nova
congregação, dividindo competências e respon- O desvelamento deste fenômeno foi uma
sabilidades, elaborando propostas e criando grande surpresa, não só para o Serviço Social,
2 Contagem numérica
regras para o convívio social. A União Evangéli- mas também para a Segurança da Unidade,
dos presos. Na Penitenci-
ca Esmeraldino Bandeira, funciona como uma que acreditava que a União Evangélica Esme- ária Esmeraldino Bandeira
igreja, composta por Pastor Presidente, 1º e 2º raldino Bandeira era uma instituição religiosa é realizado às 8 horas,
quando acontece a troca
Secretários, Tesoureiros, Evangelistas, Coral, legalmente reconhecida, tamanho o grau
da turma de guardas e às
Professores Bíblicos e Dizimistas. de organização e representatividade destes 17h30, quando a cadeia
apenados. Nós, enquanto pesquisadores, nos é “trancada”. Em caso de
dúvida, é realizado con-
“O Z. L. é o presidente, o A. M. ajuda a assustamos, também, com a magnitude desta
fere nominal em todas as
gente na parte da secretaria, mas tem outro “obra”. Segundo os “monitores”, através do celas.
dízimo dos freqüentadores, foi possível re- raldino Bandeira. Os “monitores” passaram a 73
formar a Igreja e equipá-la com instrumentos ser responsáveis pela divulgação dos cultos,
musicais, bancos novos e construir uma pis- identificação de demandas, preparação das lis-

Religiões e Prisões
cina no altar, onde são realizados os batismos tagens de acesso aos cultos, além de organizar
nas águas. batismos e casamentos.

Entretanto, realizar uma “obra” desta dimen- “Eles que se organizam, tem os dirigentes,
são requer a participação de muitas pessoas. tem o secretário, cada um tem uma função
Foi daí que surgiu a necessidade da criação ali dentro, eles entre eles e nós. Eles que-
desta organização, uma vez que os agentes reli- rem um aval nosso quando têm alguma
giosos só comparecem à Unidade uma vez por dificuldade que não podem resolver. Eles
semana, no máximo duas, o que não dá conta vêm aos agentes e divulgam: quando se
da demanda. A União Evangélica surge como tratar de pessoas que foram batizados
“suporte” para as igrejas evangélicas, não só pela Batista, aí eles passam os problemas;
para dar apoio logístico, mas, principalmente, quando quer ser desligado, passa pra nós,
para aproximar as diversas entidades evangéli- pra cada um conforme o trabalho de cada
cas, que, segundo os próprios agentes, agiam um, por denominação. Um membro nosso
de maneira isolada. Assim, com a criação desta quando é batizado pela nossa denomi-
organização, o trabalho evangélico tornou-se nação, lá fora a gente dá cuidados a ele,
mais eficiente, organizado e centralizado, pois igual aos da Assembléia são cuidados pelo
o mais importante é a pregação do evangelho pessoal da Assembléia. Então a gente tem
e a salvação de almas. esse trabalho, pra não ficar uma pessoa
sobrecarregada.” (Encontro V)
“Eu não estava aqui pra pregar a minha
Igreja Batista, como a Assembléia, não, Ao término de cada encontro, percebíamos que
como a Universal também não. Cada igreja a assistência religiosa reúne um universo de
trabalha dentro do seu dia com tudo pra significações e representações. Por trás das prá-
não ter essa desunião e nós somos vitorio- ticas religiosas, existe uma força superior que
sos, porque conseguimos fazer isso, então, motiva e inspira apenados e agentes religiosos
foi fundada a União dos Evangélicos. Ainda na busca da transformação, não só das pessoas,
têm alguns poucos que se separam, mas mas também, do próprio espaço institucional.
com tempo nós sabemos que vão se apro- Ao defenderem a ampliação de um espaço
ximar, mas, está muito melhor do que era que permita a participação dos apenados e a
há 4 anos atrás...” (Encontro V) ampliação da pregação do evangelho, estes ho-
mens acabam por promover um movimento de
“Olha, a União Evangélica aqui já estava tamanho e proporções inacreditáveis. Talvez
sendo cogitada há mais de cindo anos nem eles próprios tenham essa consciência.
atrás, porque as igrejas, cada uma tinha Esta realidade é extremamente relevante para
um grupinho, então cria-se um clima tipo o Serviço Social, que tem de pensar sua missão
guerra fria, então atrapalhava, mas se fa- diante deste fenômeno que, sem dúvida algu-
lávamos da mesma coisa, do mesmo Deus, ma, já faz parte do dia-a-dia da Penitenciária
porque não acabar com isso? Aí chegamos Esmeraldino Bandeira.
à conclusão que isso tem que acabar!”
(Encontro VIII)

O movimento de união cresceu, ganhou força


e tornou-se a maior manifestação de dedicação
e organização dentro da Penitenciária Esme-
Eva Lenita Scheliga
Ms. em Antropologia Social
pela PPGAS – UFSC
Trajetórias religiosas e
experiências prisionais: 75

a conversão em uma instituição penal

Religiões e Prisões
A conversão como processo Penso que as respostas a estas questões podem
estratégico ser procuradas a partir da compreensão do
fenômeno da conversão religiosa por parte
A conversão religiosa no universo prisional é dos detentos. Minha intenção neste artigo é,
um fenômeno muitas vezes associado – como portanto, chamar atenção para alguns dos sen-
pude ouvir de alguns informantes durante tidos atribuídos pelos detentos às experiências,
1
minha pesquisa – à idéia de que a maioria dos religiosas e prisionais, por meio de um código
detentos convertidos estaria “se escondendo de crenças por eles compartilhado. Compre-
atrás da Bíblia” durante o cumprimento de endo o fenômeno da conversão religiosa, em
2
suas sentenças. Seguindo esta linha de racio- especial a igrejas de orientação pentecostal ,
3
cínio, a conversão religiosa seria definida em como um processo estratégico que concede
termos das possíveis causas e motivações; em novos significados às práticas e, desta forma,
se tratando de detentos, a conversão religiosa altera as relações entre os diferentes grupos
1 Esta pesquisa origi-
nou minha dissertação seria o resultado de uma tentativa de “enga- de detentos e destes com o mundo. Tomo
de mestrado em Antro- nar” ou de suprir suas diversas “carências”. A a conversão, portanto, como um processo
pologia Social na UFSC. individualmente elaborado e que, assim, apre-
A pesquisa de campo foi conversão religiosa poderia, assim, significar a
realizada entre abril e “salvação” do detento em relação aos perigos senta arranjos muito particulares quanto à
novembro de 1999 em produzidos na situação de encarceramento, seqüência de etapas de conversão percorridas
duas unidades penais do e quanto aos significados atribuídos a cada
Paraná: a Prisão Provi- como por exemplo “acertos de contas” entre
sória de Curitiba (PPC) detentos, humilhações, privações materiais e uma delas. Mas é, sobretudo, um processo
e a Penitenciária Central da intimidade, abusos de autoridade por parte compartilhado, estruturado socialmente e de
do Estado (PCE), ambas uma forma singular neste universo prisional.
de segurança máxima e de funcionários e outros detentos.
destinadas à população
carcerária masculina. (Cf. Assim compreendida, a conversão religiosa é As experiências
Scheliga, 2000).
2 A maior visibilidade reduzida a uma ação intencional do detento de conversão religiosa
do fenômeno de conver- para obtenção de benefícios no interior da ins-
são religiosa ao pentecos- tituição em que se encontra. Mas este é apenas Passo então a apresentar resumidamente
talismo está vinculada alguns dos relatos sobre conversão religiosa
ao habitus que produz a um dos pontos de vista sobre a conversão reli-
experiência religiosa pen- giosa. Além disso, tal perspectiva parece pouco que obtive. Organizei-os de forma a salientar
tecostal. Secundariamen- oferecer para a compreensão do fenômeno as temáticas que foram recorrentes a todos
te, ao número de grupos os “testemunhos” e que surgiram de maneira
pentecostais presentes nas religioso no interior das unidades penais. Por
unidades penais. que algumas denominações religiosas seriam explícita e implícita na fala destes conver-
3 Estou tomando o mais atuantes que outras? Por que algumas re- tidos. Reconheço que seria possível propor
conceito de estratégia no outros arranjos, mesmo porque a riqueza de
sentido empregado por ligiões seriam coibidas e outras incentivadas?
Bourdieu (1990), isto é, Em que medida a “manipulação” da conversão elementos que estes relatos expressam não
como o domínio prático de pode ser sustentada diante de uma vigilância pode ser circunscrita a uma única situação
uma lógica, adquirido pela ou temática. Mas cabe observar que a forma
experiência; nesta pers- acirrada produzida, sobretudo, pelos próprios
pectiva, estratégia jamais pares? Estas são apenas algumas questões que como estou apresentando estes relatos está
é uma escolha consciente apontam à necessidade de observar a conver- vinculada à idéia da conversão como processo
e individual, guiada pelo estratégico – o que não significa que todos
cálculo pragmático ou por são religiosa em unidades penais por meio de
motivações afetivas. outros parâmetros. os convertidos percorram este caminho da
76 mesma forma, ao mesmo tempo ou com a valor negativo para se referir ao momento da
mesma intensidade. detenção: “mundo desabado”, “momento mais
difícil”, “a vida parecia ter acabado”, “sentia-se
Comunicações do ISER

O “fundo do poço”: crise e um morto vivo”, enfim, “o fundo do poço”.


sinais
As categorias que caracterizam o período
Gostaria de iniciar minhas considerações sobre anterior à conversão estão imbuídas da idéia
a conversão religiosa com um trecho do relato de que um sentido para as suas vidas estava
de Renato, integrante da Igreja Evangélica ausente (daí a sensação recorrente de “vazio
Assembléia de Deus: interior”) o que, por sua vez, explicaria o envol-
vimento com drogas, bebidas e crime, além da
“Vivi muitos anos distanciado de Deus, ausência de perspectivas futuras. O “depois”
quando em 1996 me encontrava em uma é pintado com cores mais alegres: a maioria
situação bastante complicada juridicamente afirma ter percebido mudanças em sua vida
e em todos os aspectos da vida, estava no e com relação a sua família; alguns detentos
fundo do poço, como diz o dito popular. Foi afirmam inclusive que o convívio com outros
neste momento que tive um encontro real detentos e com os funcionários foi alterado,
com o Senhor Jesus e Ele mudou minha vida. para melhor.
(...) Ele falou comigo, dizendo-me: ‘Filho,
levanta que tenho planos contigo, farei de Em diversas ocasiões pude ouvir o quanto é
você um grande ministro de meu Evangelho’. valorizada pelos detentos a presença da família
Isso se cumpriu em um curto espaço de tem- neste processo de conversão: alguns detentos
po. Sessenta dias de convertido, fui separado afirmaram que a conversão religiosa e/ou a
para a obra de Deus.” “retomada” da trajetória religiosa reaproxi-
mou-os de valores aprendidos na infância e
O trecho acima é significativo para ilustrar a adolescência, junto à família. A família tanto
trajetória de alguns detentos que se converte- é um ponto de referência para o “retorno”
ram após terem sido presos. O momento da pri- como pode ser uma justificativa para o tempo
são é retratado, muitas vezes, como o instante “afastado de Deus” – quando se trata de não
em que atingiram “o fundo do poço” – local que praticantes.
se caracterizaria pela sujeira e solidão, espaço
que não apresenta mais saídas, a não ser um Para outros detentos, a conversão religiosa
retorno para a direção contrária. O “retorno” surge como uma situação de aproximação
é a metáfora para aquilo que os detentos com- dos familiares; em alguns casos, a conversão
preendiam como conversão. Converter-se a religiosa do detento implica, também, a con-
alguma religião, além de significar este retorno, versão religiosa de membros de sua família.
é também compreendido como uma “tomada A conversão resulta, portanto, na construção
de atitude” que, de acordo com os convertidos, e consolidação de uma vasta rede de sociabi-
divide mundos e etapas da vida. lidades e lealdades. Cabe observar que esta
rede não é circunscrita aos limites do presídio
Os detentos quase sempre iniciaram seus nem limitada às relações de parentesco. O
“testemunhos” relatando o momento crítico estabelecimento de vínculos sociais e afetivos
no qual o processo de conversão religiosa te- entre os detentos também não é algo exclusivo
ria sido iniciado – coincidente, muitas vezes, aos convertidos, mas o que me parece central,
com o momento da prisão. A crise é marcada no caso deles, é como a religião atribui um
por situações por eles consideradas como sentido às relações produzidas no espaço es-
sofridas e dolorosas, sendo bastante comum pecífico da prisão e no mundo, de uma forma
a utilização de expressões marcadas por um mais ampla.
Retomando a idéia de crise, vale dizer que ela convertido deposita confiança no plano divino 77
não é, necessariamente, o primeiro passo para e busca, na “justiça dos céus”, discernimento
a conversão religiosa. Em alguns casos, este para agir com relação à “justiça dos homens”.

Religiões e Prisões
momento crítico é compreendido como um É interessante notar, portanto, como o “ren-
momento em que se sente uma “força sobre- der-se a Deus”, aqui, significa submeter-se a
natural” porque o detento já teve, em outros uma vontade divina que ressignifica as regras
momentos, sinais da presença divina. Todos jurídicas.
os detentos – em maior ou menor grau – ex-
perimentaram o contato com o divino através Um exemplo, neste mesmo sentido, é o de
de visões em sonhos (como Felipe e Fábio, que Renato. Momentos após a prisão, Renato afir-
apresentarei adiante), vozes e toda uma gama mou ter tido o seguinte diálogo interno: “Falei
de sensações como calores, tremores, calafrios, pra mim: ‘quer saber de uma coisa? Eu não vou
que podemos explicar como efeitos de uma falar nada pra eles. Não vou confessar nada.
operação simbólica que o envolve. Eu não vou colaborar em uma vírgula, apesar
das circunstâncias, o que tinha de acontecer já
“Aceitei Jesus!” aconteceu, agora daqui pra frente é o seguinte:
eu vou fazer meios de mais a frente poder me
Para alguns detentos, a conversão religiosa defender’. E busquei essa força e consegui isto,
é definida como um evento que se dá num a partir daquela hora, sabe? Não sei aonde.
momento especial e é definitiva. Este é o caso Bom, foi de Deus, né?”. Ao optar por não de-
de Renato, que “dobrou um joelho de uma só por, o detento não estava apenas assegurando
vez”. A conversão anunciada como “instantâ- seus direitos (mantendo-se calado para só falar
nea” e “definitiva” pode ser explicada, por um acompanhado por um advogado), como trans-
lado, pela significativa experiência sensorial ferindo para outra instância o julgamento dos
produzida no momento da decisão de “aceitar seus atos. E adotando o repertório religioso
Jesus”. Por outro, pelo repertório religioso que para compreender estas ações, atribuiu novos
orienta sua visão de mundo e faz com que significados para os delitos; eles estavam pre-
atribua novos significados aos episódios que vistos por Deus como um meio de fazer com
constituem sua trajetória. Vale lembrar que que ele descobrisse o “verdadeiro caminho”.
muitos detentos já haviam participado de dife-
rentes denominações religiosas e dispunham, Seguindo a lógica de que “Deus escreve certo
portanto, de um conjunto de códigos religio- por linhas tortas”, converter-se não significa,
sos para interpretar as situações que viviam e portanto, estar a salvo de cometer “deslizes”
que lhe permitiam operar uma distinção entre e/ou sofrer “quedas” em sua trajetória de con-
o período anterior e o posterior ao momento vertido, dentro ou fora dos limites da peniten-
da conversão. ciária. Da mesma forma que existem “barreiras
mundanas” que se interpõem à trajetória de
O “aceitar Jesus” também está relacionado ao conversão “lá fora” – muitos afirmaram que
“entregar-se nas mãos de Deus”. Uma situação os delitos cometidos e/ou pelos quais eram
observada que explicita esta nova postura acusados e estavam detidos aconteceram num
frente ao mundo, e neste contexto específico curto período em que “deslizaram na fé” e se
que é a prisão, é a postura dos detentos com afastaram da “vida cristã” – a “batalha” conti-
relação à avaliação periódica a respeito de seu nua na unidade penal.
comportamento, o exame criminológico. Mui-
tos detentos afirmaram “entregar nas mãos de O “testemunho” mais exemplar, neste sentido,
Deus os seus exames”, compreendendo que é novamente o de Renato. No momento da
era esta atitude que fazia com que obtivessem prisão Renato sentiu “algo diferente”, que fez
avaliações positivas e ganhassem benefícios. O com que ele decidisse não depor. Após diversas
78 transferências de unidades Renato chegou à De acordo com a tradição protestante, todo e
Prisão Provisória de Curitiba e nesta unidade qualquer fiel tem a possibilidade de se trans-
penal, “balançou” novamente, esquecendo o formar num anunciador do discurso religioso.
Comunicações do ISER

“compromisso” assumido no momento da Daí parece decorrer a importância concedida


apreensão pela polícia. Um indício deste “ba- aos “testemunhos” que durante os cultos inter-
lançar” foi seu envolvimento com atividades calam-se às orações. Os “testemunhos” dos já
mundanas: por ter um curso de arbitragem convertidos não raras vezes foram determinan-
– possivelmente cursado ali na unidade, tes nas opções religiosas de outros detentos. E
durante o cumprimento de outra pena – era mais do que isso. É interessante pensarmos o
constantemente chamado para apitar partidas quanto estes “testemunhos” podem ser lidos
de futebol dos times de detentos. Outros agra- como momentos privilegiados de transmissão
vantes para este “balançar” eram os convites dos saberes e de uma ética religiosa.
recebidos de outros detentos para que ele par-
ticipasse de planos de fuga. O “compromisso” É, portanto, bastante significativa a atuação
só foi cumprido quando um dia acordou “deci- dos agentes religiosos da própria instituição
dido”, sentindo a necessidade de “desenvolver penal e um tanto relativa a importância daque-
o aspecto espiritual de sua vida”. les que visitam os detentos periodicamente.
Os pastores e obreiros “de fora” são agentes
Provações, como estas, são recorrentes. Aquilo que legitimam o que os detentos convertidos
que os convertidos entendem como o precon- realizam quotidianamente: de acordo com
ceito da “massa carcerária” e dos funcionários os pesquisados, quase todos lêem trechos da
por eles serem “evangélicos” também seria Bíblia para outros detentos e já os convidaram
uma provação a ser quotidianamente enfren- para participar dos cultos de suas igrejas; todos
tada na prisão. Cabe ressaltar que os “deslizes”, também afirmaram conversar sobre religião
as “quedas” e os “balanços” parecem fazer com outros detentos e seus companheiros de
parte, de acordo com os detentos, de uma “pro- cela (vale observar que todos dividiam cela com
vidência” divina. Os deslizes, portanto, seriam outros convertidos, ainda que estes detentos
provações necessárias para o fortalecimento da não fossem, necessariamente, da mesma de-
fé e ao mesmo tempo para o fortalecimento do nominação religiosa).
“eu” perante Deus e os homens.
Ao mesmo tempo em que todos podem anun-
Evangelização, chamado e ciar os ensinamentos bíblicos e testemunhar
missão “o poder de Deus sobre suas vidas”, alguns
seriam eleitos para organizar a “comunidade”
Ainda de acordo com os convertidos, neste de fiéis. Estes convertidos receberiam um “cha-
plano divino no qual a prisão está inserida mado” não apenas para se integrarem ao grupo
como tempo e espaço de provações, descoberta religioso, mas também receberiam a “missão”
do “verdadeiro caminho” e fortalecimento da de conduzi-los. Este seria, por exemplo, o caso
fé, também está inscrita a prática de evange- de Felipe, dirigente da Igreja Missão Final, de-
lização e/ou missão. Para os convertidos, a nominação de orientação pentecostal fundada
permanência no pátio, por exemplo, não tem por ele no interior da Penitenciária Central do
apenas o significado de descanso e socializa- Estado. Felipe teria tido uma visão reveladora
ção, como parece ser para os demais detentos; ainda na adolescência, enquanto freqüentava
para os diferentes grupos de detentos de orien- a Assembléia de Deus:
tação pentecostal, a permanência no pátio está
associada, fundamentalmente, à pregação dos “Deus me levou a um certo lugar, um monte
Evangelhos, aos “testemunhos” e ao “arreba- chamado Morro do Mato. E, nesse lugar,
nhamento” de novos fiéis para suas igrejas. Deus me levou em visão até este lugar, onde
lá eu cheguei em cima do monte e comecei a Fábio, Rômulo era um “crente que perturbava 79
preparar um altar. Comecei a juntar pedras, muito”, devido a seus comentários pejorativos
lá em cima (na visão) e fazer um altar. Então sobre a origem nordestina do vizinho. Fábio,

Religiões e Prisões
eu com a minha Bíblia, abri a minha Bíblia e sentindo-se ofendido, respondia os insultos
coloquei aberta sobre o altar. E ali eu dobrei com palavras ofensivas. As constantes discus-
meu joelho diante do altar, levantei as mi- sões culminaram numa briga entre os dois,
nhas mãos e quando eu ergui a minha voz, com Fábio correndo atrás do vizinho armado
um raio do céu desceu em forma de pirâmi- com um pedaço de pau para agredi-lo. O clima
de e envolveu a mim e o altar, sabe, e com de animosidade entre os vizinhos continuou
este envolvimento daquela claridade, daque- após este episódio. Meses depois Fábio foi
la luz vindo do céu, desceram dois seres de preso e permaneceu incomunicável durante
5
branco e se posicionaram a minha direita e a uma semana . Passados os dias de isolamento,
minha esquerda, junto com a luz, sabe?”. Fábio recebeu a visita do vizinho pastor, o qual
lhe presenteou com um hinário.
Felipe relatou que depois de ter esta visão,
contou tudo a sua mãe, que teria então lhe dito É interessante notar, mais uma vez, a impor-
que a visão tida era um “ministério”, isto é, um tância da atuação de agentes religiosos na
“dom” oferecido por Deus, como o “louvor”, conversão de novos fiéis e na transmissão do
a “pregação da palavra” e o “evangelismo”. O repertório religioso. Se, nos casos apresenta-
pastor responsável pela Assembléia de Deus dos anteriormente, eram os “testemunhos”
confirmou a opinião da mãe de Felipe. A visão pessoais que fundamentalmente reforçavam
de Felipe interpretada como um dom divino o convite para participação nas atividades
4 Penso que a infor-
mação obtida junto a um transformou-se, como o fato de ter “nascido litúrgicas, aqui, no caso de Fábio, é a atitude
agente penitenciário pode em berço evangélico”, num elemento legiti- de Rômulo que impulsiona a conversão de
ser levada em consideração. mador da sua posição como dirigente de uma Fábio. O hinário simboliza o interesse de Rô-
Conversando a respeito da
pesquisa e mais propria- igreja de orientação pentecostal. mulo sobre sua pessoa e, mais que isso, o valor
mente sobre a constituição que a “missão” porta para estes convertidos:
da Igreja Missão Final, fui Sua iniciação precoce nos saberes religiosos, superação de mágoas e procura do bem estar
informada que Felipe “não
tinha muito espaço ali a prática contínua como fiel da Assembléia do outro.
dentro”. Sua participação de Deus e a visão reveladora fizeram de Felipe
na Assembléia de Deus um detento capacitado – aos seus olhos e pe- Fábio relatou que depois desta visita, “fez um
era limitada bem como as
possibilidades de ascensão rante os demais convertidos – para anunciar propósito com Deus”, ou seja, um acordo:
na hierarquia interna, fato o discurso religioso. Esta nova denominação Deus o tiraria daquele lugar e ele, em troca,
que não correspondia às religiosa segue os mesmos princípios e proce- tornar-se-ia um evangelista. O primeiro “resul-
expectativas de Felipe que
pretendia desenvolver o dimentos litúrgicos da Assembléia de Deus, tado” deste acordo surgiu no prazo de quinze
“ministério” oferecido por como pude observar (e que o próprio Felipe dias: Fábio afirma ter ampliado o seu espaço
Deus na sua adolescência. reconhece como semelhante). A constituição de circulação na delegacia – que ele exprime
5 Segundo o detento,
este é um procedimento da Igreja Missão Final foi então interpretada como ter saído “de dentro da ala” e ter tido
usual da polícia – o que, como a concretização do “verdadeiro” signifi- permissão para ficar no corredor. Desde então
4
no entanto, penso estar cado da visão . Fábio afirma estar “evangelizando”.
relacionado ao tipo de
acusação feita em seu
caso: estupro. Nestes ca- Outro caso particular é o de Fábio. A prisão e A trajetória religiosa de Fábio inclui o batismo
sos, é comum que os de- a conversão deste detento ocorreram no ano na Igreja Pentecostal Família do Senhor Jesus
tentos “peçam seguro” ou
que os próprios funcioná- de 1992. Até então Fábio dizia ter “ódio de e a freqüência aos cultos da Assembléia de
rios detenham o acusado crente”: em parte, em sua opinião, por não ter Deus na Penitenciária Central do Estado. O
numa cela de segurança herdado dos pais uma “cultura evangélica”; primeiro “sinal” a respeito de sua missão foi
máxima, isolada do “con-
vívio” e das possibilidades em parte, pela convivência com seu vizinho recebido enquanto Fábio ainda freqüentava
de agressão física. Rômulo, pastor da Igreja Deus é Amor. Para a Assembléia de Deus: “Deus me deu uma
80 visão que eu tinha que ir pra lá ajudar eles Mateus, Marcos e no livro de Lucas, [onde]
[Pastor Felipe e outro diácono]. Eu fui, e passei fala das três pedras, da pedra angular e nos
pro [ministério do] Pastor Felipe, a gente tá três livros fala que Jesus é a principal pe-
Comunicações do ISER

fazendo uma obra junto”. Foi neste período dra.(...)


que Fábio teve outro “sinal” sobre a sua mis-
são. Desta vez, um sonho, de maneira muito E dois dias logo após o Senhor Deus me deu
semelhante à de Felipe: um estatuto, me deu os itens e normas, me
deu a placa da igreja. Eu consultei o Senhor:
“ Eu vi aqui do lado do pôr do sol, tinha “Senhor, mas eu tô no ministério do Pastor Feli-
uma serra, (...) tinha uma chuva caindo pe, da Missão Final, e como que o Senhor coloca
naquela serra, uma chuva muito bonita. um ministério na minha mão? É para abrir aqui,
Aquela água corria em cima daquela serra, é para mandar para fora?”
assim, mas de repente uma pedra abriu.
Então mandei pro dirigente daquela obra
(...) voou água e barro pra todo o lado. E
que eu tava lá fora, o Bruno, um excelente
aquelas pedras vinha na minha direção. Aí
dirigente, entreguei na mão dele. Ele saiu da
eu me escondi, disse que dentro de uma
igreja A família do Senhor Jesus e nesta se-
casa. Assim quando eu saí na porta, quando
mana passada ele abriu o ministério A Pedra
eu olhei, aquelas pedras ia passando assim.
Angular. Esta semana, com certeza, estão
Ia passando uma pedra na frente (...) uma
os papéis na mão do advogado, pra gente já
pedra angular, e uma outra atrás, do mesmo
registrar a obra. E está uma benção de Deus.
modelo, do mesmo tamanho, da mesma
Alugamos templo, temos já vinte membros,
cor. E pra trás três pedrinhas coloridas, cor-
graças a Deus, está funcionando a obra lá
de-rosa. Eu via uma pastagem muito verde,
fora e eu estou aqui aguardando a liberdade
assim, muitos animais, gados brancos.
pelo Senhor, meu Deus”.
Eu acordei e fiquei perturbado com aquele
sonho. Porque aquilo ali era uma visão de
É possível reconhecer neste relato de conversão
Deus, não era um sonho comum, era uma
diversos aspectos comuns aos demais “tes-
visão espiritual.
temunhos”: uma crise que desencadeia uma
Quatro dias depois eu estava fazendo uma “vontade de mudar” alguns aspectos individu-
ais e ao mesmo tempo, situações vividas; um 6 “Porquanto é por Ele,
visita a uma igreja aí e ali dentro daquela que ambos temos acesso
igreja eu abri a palavra. Orei e abri a palavra trânsito religioso, que obedece tanto critérios junto ao Pai num mesmo
para que Deus me desse um discernimento objetivos quanto subjetivos; uma conversão espírito. Conseqüente-
gradual que se confirma através de “sinais” e mente, já não sois hóspe-
do que era aquilo. E daí quando eu abri a des nem peregrinos, mas
palavra, caiu lá no livro de Efésios, capítulo que orienta suas ações; reproduz uma estra- sois concidadãos dos san-
6
02, versículos 18, 19 20, 21 e 22 , que fala tégia, não necessariamente consciente, mas tos e membro da família
simbolicamente eficaz, que tem efeitos valori- de Deus, edificados sobre
ali de Jesus, que ele é a principal pedra da o fundamento dos após-
esquina, a pedra angular. zados como positivos pelo próprio convertido tolos e profetas, tendo por
e pelos pares que compartilham a cosmologia pedra angular o próprio
Então compreendi que aquelas duas pedras pentecostal. Cristo Jesus. É nele que
todo edifício, harmonica-
que o Senhor me mostrou, vindo uma atrás mente disposto, se levanta
da outra, na altura de três metros, revolucio- As mudanças: o que se tem até formar um templo
nando, seria um ministério que Deus estava e o que se vê santo no Senhor. É nele
que também vós outros
colocando na minha mão. E as duas pedras entrais conjuntamente,
simbolizava o Pai e o Filho e as três pedri- O desejo de mudança aparece, muitas vezes, pelo Espírito, na estrutura
nhas pra trás eu não compreendia o que num momento de crise e/ou na revelação, do edifício que se tornas a
habitação de Deus” (Bíblia
que era. Eu fui pedir discernimento pra Deus no êxtase; é testado continuamente e recom- Sagrada, Epístola aos Efé-
e Deus me deu discernimento pelo livro de pensado com mudanças concretas de status sios, 2: 18 – 22).
e condições de existência. De acordo com os “personalidade” do convertido refletem-se 81
convertidos, a conversão sempre produz mu- nas relações sociais em que ele se insere. Cabe
danças. Aliás, quase todos os “testemunhos” observar que nesta categoria surgem adjetivos

Religiões e Prisões
foram iniciados com a conceituação da con- que qualificam positivamente o detento e res-
versão religiosa como uma mudança. saltam sua capacidade de “convívio”. Seguindo
com a classificação nativa, poderia afirmar que
A idéia recorrente é de que a conversão é uma tais atributos pessoais foram internalizados
transformação radical do viver, caracterizada através da conversão religiosa e com o convívio
pelo afastamento das “coisas do mundo”. com outros convertidos.
Podemos interpretar a conversão como um
processo que promove a ressignificação de Daquilo que os detentos afirmam ser as carac-
práticas, bens e, sobretudo, de representações; terísticas dos pentecostais, penso ser possível
em outras palavras, os princípios religiosos deduzir o que eles afirmam ser as mudanças
não apenas remetem a um outro mundo, como produzidas pela e na conversão. De acordo com
constituem um novo universo simbólico para os convertidos, suas relações sociais pautam-se
o convertido. Este sistema de disposições in- pela solidariedade e pela ordem. Por contraste,
ternalizadas tem efeitos sobre os detentos que as relações sociais entre os detentos descren-
compartilham as mesmas crenças. tes seriam caracterizadas, de acordo com os
pesquisados, pela desconfiança e desordem.
De acordo com os detentos pesquisados, as Ser solidário, calmo, responsável e obediente
mudanças provocadas na e através da con- são atributos que teriam sido aprendidos com
versão são visíveis. Ao mesmo tempo em que o convívio com outros convertidos e pressu-
a mudança diz respeito a “atitudes”, ela é põem um controle sobre a “natureza” humana
exteriorizada em “comportamentos”. É algo e/ou um embate com “forças maléficas” que
que se tem e que se vê. O “comportamento” se objetivam de diversas formas (por exemplo,
7 Neste universo, “ví-
cio” é compreendido quase está, na lógica destes convertidos, referido a nos “vícios”, nas brigas com outros detentos e
que indistintamente como ações “mundanas”, à visualização imediata na “precariedade” da estrutura física e humana
fumar, ingerir bebidas
do “crente”. Sob este rótulo estão reunidas as a serviço do sistema penitenciário).
alcoólicas, usar “drogas” (e
sob esta denominação são manifestações exteriores das “atitudes” que,
igualmente incluídas di- no entanto, podem ser manipuladas durante A mudança que se sente – e/ou que se tem
versas substâncias, como
a interação entre os detentos e destes com os – internamente é, também, exteriorizada. O
maconha, cocaína, heroí-
na e crack, dentre outras), funcionários e familiares. Por esta razão, por “comportamento” dos convertidos deveria
participar de “jogos de mais que afirmem que o comportamento do ser “exemplar”: supõe cuidados com a higiene
azar” e/ou “prostituir-se” 7
convertido é diferente do comportamento dos pessoal e vestuário; abandono de “vícios” ;
(manter relações sexuais
com vários parceiros). Os demais detentos, os próprios detentos admi- “andar sempre junto”; “ler a Bíblia diariamen-
“vícios” são representados tem que este não é um elemento suficiente te”; participar de vários momentos de oração,
negativamente pelos con-
para defini-los como “convertidos”. O que os realizados individualmente ou em grupo; je-
vertidos, ao passo que an-
tes da conversão, tinham definiria como “convertidos” seria algo além juar periodicamente; participar de atividades
outros significados e, em das “aparências”. Comportamentos podem propostas pela instituição penal; adequar o
alguns casos, faziam par-
ser rotinizados, controlados pelo detento e vocabulário, não utilizando palavrões e gírias
te do cotidiano. No caso
específico dos detentos, pelos pares, mas, de acordo com os convertidos da prisão.
os vícios estão diretamen- pesquisados, “atitudes” não. Mudanças de ati-
te associados ao espaço
tude, ainda de acordo com esta lógica, somente Pode-se afirmar, portanto, que há a adoção de
do pátio (caracterizado
como antagônico ao es- seriam produzidas a partir da intervenção de uma nova rotina bem como a vigilância desta
paço da capela e mediado uma força divina. rotina pelos pares. Ao mesmo tempo em que
pelo espaço escolar) e aos
existe a idéia de que seria “mais fácil ser cren-
detentos “perigosos”. Em
resumo: referem-se ao Tais mudanças atingiriam a “personalida- te” e manter-se convertido durante o período
“mundo do crime”. de” do detento. Os atributos que definem a de reclusão (o que, por outro lado, também
82 possibilitaria a proliferação de casos de “falsos Trajetórias que se
crentes”) há um intenso – mas nem sempre entrecruzam: algumas
explícito – controle realizado pela “massa” e considerações
Comunicações do ISER

pelos próprios convertidos sobre o comporta-


mento dos convertidos e a cobrança constante Apesar das especificidades de cada um dos re-
de que se cumpram determinadas prescrições. latos de conversão, é possível reconhecer neles
Infringir estes códigos é uma atitude que colo- alguns elementos comuns – aspectos estes que,
ca o detento numa situação pouco confortável: penso, constituem traços estruturantes destas
por não ter respeitado as regras dos grupos experiências como ações estratégicas. A ob-
religiosos, ele tende a ser banido deste grupo; servação de tais aspectos recorrentes permite
por ter simulado a conversão e não ter agido melhor compreender os múltiplos significados
de forma coerente, isto é, de acordo com as atribuídos à conversão e, por conseguinte, ao
expectativas realizadas sobre os convertidos, fenômeno religioso no interior das unidades
o detento perde o respeito da “massa”. penais.

Notem como as características auto-atribuídas Se para todos os detentos pesquisados a con-


pelos convertidos ao pentecostalismo, ou me- versão foi entendida como uma mudança de
lhor, a própria condição de convertido remete vida, para cada um deles ocorreu um momento
a uma série de valores que, de certa forma, crítico específico em que esta mudança se
“neutralizam” as representações associadas à fez necessária; todos os “testemunhos” são,
condição de “bandido” e de presidiário – ou, portanto, redutíveis à idéia de “crise”, muito
pelo menos, parecem diminuir o estigma de embora ela se configure de diferentes formas
presidiário. A conversão ao pentecostalismo para cada um deles – quando, por exemplo,
configura-se, assim, em mais um elemento são observadas as condições precárias a que se
para redefinir as fronteiras simbólicas entre está submetido, ou ainda quando se percebe
“bandidos” e “trabalhadores” (cf., dentre ou- a necessidade de novos sentidos, pois tudo o
tros: Ramalho 1979 e Zaluar 1994). que está passando é “perda de tempo”. En-
quanto para a maioria dos convertidos a crise
Além disso, cabe observar que são comumen- foi produzida, em maior ou menor grau, pela
te os hábitos acima mencionados que fazem precariedade das condições de existência na
os detentos de confissão pentecostal serem prisão e o “desejo de mudança” estava muito
considerados pelos demais funcionários, bem associado ao desejo de terem esta situação
como pelos detentos, como mais “calmos”, alterada, para outros detentos a crise foi provo-
“obedientes” e, supostamente, mais aptos para cada pela comparação de diferentes condições
a ressocialização; estas representações, por sua de encarceramento e representada como um
vez, fazem com que os convertidos desfrutem processo racionalizado, como efeito de uma
de alguns “benefícios” como, por exemplo, a reflexão pessoal acompanhada por um desejo
permanência em alas classificadas como mais de mudança interna e inúmeras interrogações
“tranqüilas”. Através da conversão religiosa, sobre sua identidade.
o detento pentecostal parece conquistar não
apenas um novo espaço físico (como a nego- Mesmo quando os detentos não tiveram ou
ciação da permanência em celas de presos com não explicitaram ter tido um momento de crise
semelhante confissão religiosa, reconhecidos (o que talvez se explique, pelo menos em parte,
pela instituição como menos “perigosos”), pela filiação religiosa anterior ao momento
mas principalmente um novo status: o reco- da prisão), surgiu em seus testemunhos um
nhecimento de que ele participa do universo momento de “queda”. Este momento corres-
pentecostal, faz com que ele redefina as rela- ponde, nestes casos, a um afastamento dos
ções de poder das quais faz parte. princípios cristãos que seguiam. A experiência
religiosa é, portanto, um processo não-linear pessoal – que se dá pela transformação de seu 83
marcado por diferentes etapas, por idas e vin- status religioso e social – e de contrato com as
das, “quedas”, “deslizes” e “retornos”. Vários divindades: se Deus quiser, Deus irá transfor-

Religiões e Prisões
detentos apresentaram em seus “testemu- mar a vida do detento; para que Deus queira
nhos” estes elementos: estavam convictos de esta transformação, o detento deve “fazer o
sua fé num primeiro momento; abandonaram propósito” de se converter.
o “compromisso” por um período, para depois
retomá-lo num terceiro momento. Esta “reto- A religião cumpre aqui seu papel mediador
mada” da trajetória religiosa passa a ser com- entre os detentos convertidos e o sagrado ao
preendida, pela maioria, como a confirmação mesmo tempo em que atua no interior do eu
senão mesmo a própria conversão religiosa ao propiciar as transformações de que tanto
ou, em outras palavras, a adesão definitiva a nos falam eles próprios. As mudanças internas
determinado repertório religioso. são reconhecíveis, segundo os convertidos
pesquisados, pela exteriorização de atributos
Além disso, a “queda” e/ou a “crise” surgiram e condições capazes de distingui-los de outros
aos olhos dos convertidos como parte de um detentos e lhes determinar uma posição espe-
plano divino, “uma providência de Deus”. cífica no campo de relações que travavam e a
Parecem etapas necessárias para a confirmação que estavam submetidos na unidade penal e
da fé e o “merecimento da graça”. Justifica-se fora dela.
não o crime cometido, mas a vivência na unida-
de penal; a privação da liberdade, como muitos É interessante notar como o princípio de
repetem, adquire o sentido de libertação: “foi obediência a Deus se sobrepõe ao princípio
preciso vim para a cadeia para saber o que de obediências às regras do “sistema peniten-
é ser livre”, sintetizou Ernesto. A conversão ciário”. Quando nos “testemunhos” é mencio-
religiosa, ao conceder sentidos específicos às nado o “mal” que pode surgir à frente do fiel,
ações dos convertidos, oferece o senso de coe- entre outras referências (como por exemplo,
rência para as situações vividas dentro e fora os demônios e tentações) estavam implícitas
da instituição penal. as situações de confronto entre os detentos,
em função de diferentes interesses e pontos
Portanto, não me parece apropriado pensar de vista – as “confusões dos pátios”, como
que para aqueles detentos a prisão significas- se referiram os funcionários. Evitar as brigas
se um castigo; no limite, penso ser possível e as “confusões”, para o detento evangélico,
afirmar que a prisão é compreendida por não era apenas uma atitude defensiva ou
estes detentos como uma dádiva divina. Nos produzida pela internalização das regras de
relatos que obtive, a prisão é compreendida “bom comportamento” que a instituição penal
mais como uma forma de aprendizado, tanto determinava, mas também e principalmente
de regras sociais supostamente ausentes em uma forma de por em prática um princípio
suas vidas como (e talvez principalmente) das ético de respeito e um mandamento cristão
“regras de Deus” ou daquilo expressado como que se traduz na máxima “amai-vos uns aos
“princípio de obediência” que conduziria a outros”.
uma vida “santificada”.
Aprender e praticar estes princípios seria
Este “encontro com Deus”, do ponto de vista difícil, segundo os detentos. Primeiramente,
psicológico, é acompanhado de uma “renúncia porque se trataria de um embate de forças re-
de si” (James, 1995). Mas cabe observar que tal conhecidas como inerentes aos seres humanos:
renúncia é orientada pelos códigos religiosos a conversão não é e jamais será definitiva, na
que este detento passa a compartilhar com medida em que não há “garantias” para manter
outros fiéis, entre eles, a idéia de salvação esta condição de convertido uma vez que se
84 trata de uma luta, conforme os testemunhos, é compreendida como um “chamado divino”,
contra a natureza humana. Em segundo lugar, como uma “missão” a ser seguida – algo que
porque a conversão é compreendida como um me parece próximo da idéia de vocação, muito
Comunicações do ISER

aprendizado constante, o que implica, neces- embora difira desta pela idéia muito presente
sariamente, erros e acertos, fracassos e êxitos da “aceitação da caminhada” e não como mero
na vida de cristão. Tornar-se um evangélico convite ou imposição divina (a idéia de vocação
pareceu estar associado, ao menos para estes determinada e da qual o fiel não pode escapar
detentos que pesquisei, à observação cuidado- e precisa aceitar).
sa de princípios éticos e práticas religiosas que
se opõem às coisas do “mundo”. Como busquei demonstrar, as trajetórias re-
ligiosas distintas confluem na transformação
A prisão, nesta perspectiva, pode ser entendida do status (religioso e prisional) dos convertidos
tanto como um espaço privilegiado que põe pela ressignificação de atributos pessoais: de
a salvo o fiel das “tentações” (“É mais fácil “bandido inteligente” e bem relacionado, antes
ser crente aqui dentro”; “quando facilita as da conversão, eles passam a ser tratados como
coisas, aí fica tudo fácil, a gente abandona, “dirigentes inteligentes e bem relacionados”,
não mantém aquela vida diferente”), como comentário que diversas vezes pude ouvir de
um tempo sabático, que propicia a reflexão agentes penitenciários e funcionários que
e, de certa maneira, a purificação deste novo mantiveram contato contínuo com o grupo
ser produzido pela conversão religiosa, pre- de pesquisados. A conversão religiosa trans-
parando-o para a reinserção no mundo com formou o “bandido” que traía a mulher num
novos propósitos e perspectivas de vida. Mas o homem que “honra a Deus e a sua família”;
espaço-tempo da prisão é ambíguo. As adversi- Fábio, que tinha “ódio de crente”, tornou-se
dades poderiam se tornar tanto um aliado na um “evangelista da Palavra”. Caso semelhante
“luta” cotidiana de “seguir na batalha”, quanto ao de Raul, que se definia como ‘‘desestrutura-
elementos desmotivadores e propiciadores de do” e depois se percebeu como “estruturado”
novos “deslizes” e “quedas”. Aprender a ser através das regras da prisão, da constituição de
pentecostal era também, nesta perspectiva, um laços familiares, da participação nas atividades
aprendizado difícil por estar sendo realizado organizadas pela instituição penal. As mu-
num espaço cuja estrutura física é precária e danças que me relataram os detentos surgem
no qual a convivência é marcada pela descon- sempre como mudanças de pólos, no caso, de
fiança constante. uma posição considerada negativa – primeira- 8 Note-se o valor sim-
mente pelos outros (a família, os funcionários, bólico (particularmente
Para os que já participavam – assiduamente “a sociedade”) e, com a conversão, por eles alto) da conversão ao pen-
tecostalismo: eles eram
ou não – de alguma denominação religiosa, próprios – para uma posição valorizada por tidos como detentos que
8
a conversão é tida como uma “retomada” e, eles e pelos demais como positiva . “davam menos trabalho”,
para estes detentos, ela também produziu quer por fingimento ou
por convicção religiosa; se-
mudanças de status social e religioso, mas, As diferenças entre as experiências religiosas riam mais “comportados”,
sobretudo, conferiu um sentido adicional à residem, pois, nos significados atribuídos de “tranqüilos” e “equilibra-
prática religiosa: a transmissão dos conhe- acordo com cada uma das filiações religiosas e dos” e, por isso, não se
envolviam em “confusão”;
cimentos religiosos para outros detentos. A nas interpretações subjetivas – mas socialmen- enfim, seriam mais “soli-
prisão se configura como uma oportunida- te produzidas – dadas a cada uma das etapas dários” e “sensíveis”. Cabe
de para confirmar a fé e realizar atividades ou temáticas que caracterizam a conversão observar que são estas
representações acerca dos
evangelizadoras, além de permitir uma nova como um processo estratégico. Daí decorrem efeitos da conversão que
compreensão para os “sinais” recebidos antes e as ênfases, em alguns casos, na revelação, no permitem a formulação
durante a experiência prisional. Como mencio- êxtase e noutros, na prática cotidiana de re- da idéia de que a religião
seria benéfica porque per-
nei em muitos “testemunhos”, a crise expressa forço do “compromisso”. Mas as experiências mitiria a “estabilidade”
de diferentes formas é seguida da conversão e de conversão religiosa são estruturadas de das unidades penais.
maneira semelhante, como busquei retratar: SCHELIGA, Eva L. (2000), “E me visitastes quando estive
85
todos os detentos, em meu ponto de vista, preso” – sobre a conversão religiosa em unidades penais de

compartilhavam de um mesmo habitus, apreen- segurança máxima.” Florianópolis: Dissertação de Mestrado

Religiões e Prisões
dido e reproduzido de diferentes formas e que em Antropologia Social, UFSC.

expressava tanto a condição de aprisionado


como a de convertido. Este habitus podia ser WEBER, Max. (1977), “Sociologia de la comunidad reli-

reconhecido nas práticas realizadas no interior giosa”. In: Economia y Sociedad. México: Fondo de Cultura

das unidades, na forma como os detentos se Economica.

relacionavam entre si e com os funcionários e


nas diversas representações produzidas neste ZALUAR, Alba. (1994), A máquina e a revolta – as organizações po-

contexto. E estas visões particulares do que é pulares e o significado da pobreza, 2ª ed. São Paulo: Brasiliense.

a conversão religiosa refletem uma visão mais


ampla sobre o universo em que estão inseridos
e produzem ações estrategicamente orientadas
– sendo este o aspecto que merece atenção na
avaliação da relação entre religiões e prisões,
em minha análise.

Bibliografia

BÍBLIA SAGRADA. (1985), São Paulo: Ed. Ave Maria. 50ª

ed.

BOURDIEU, Pierre. (1989), O poder simbólico. Lisboa: DIFEL

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– um estudo sobre a natureza humana. São Paulo : Cultrix.

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RAMALHO, José R. . (1979), Mundo do crime – a ordem pelo

avesso. Rio de Janeiro: Graal.


O reino e o reinado: Ronaldo Monteiro
Membro da Adhonep – Asso-
ciação de Homens de Negó-
cio do Evangelho Pleno

86
vivências de um egresso
Comunicações do ISER

Vida de preso e vida de de liberdade. Fui fazer assistência a uma fa-


egresso mília que estava lá fora, quando vi uma mão
balançando chamando por mim. Vi um com-
Há 8 meses estou em liberdade condicional. panheiro que cumpriu 17 anos de pena. Ele
Fui condenado a uma pena muito longa. O saiu e estava me pedindo para colocá-lo num
homem que comete um delito e termina no ônibus para a Central do Brasil. Ele nem sa-
sistema penal ganha de presente um “pacote” bia para onde ir, pois não tinha parentes. Do
no qual vêm a discriminação, a falta de opor- lado de fora, liguei para a direção da Lemos
tunidade, a ausência de trabalho, a falta de de Brito e começamos a saga. Ele não podia
um abraço da sociedade, que esquece que o ficar na Margarino Torres (Casa do Egresso)
homem volta para ela como estiver. porque não tinha vaga; não tinha como ficar
em hotel porque não tinha documento; e às
Ao sair da prisão, não passei fome, mas tive duas e meia da manhã, cheguei na casa da
de amargar dia após dia as dificuldades de minha mãe com todos dormindo no chão e
não ter dinheiro, nem emprego. Nasci numa arrumei um cantinho na cozinha para dor-
família bem estruturada. Fiz primeiro, se- mir, eu e ele. Deus é muito bom e o diretor
gundo e terceiro graus. Fiz faculdade, duas, da Lemos de Brito entrou numa luta com o
mas não concluí nenhuma. Fui oficial do Secretário e com a Coordenadora do Serviço
Exército. Sou diferente daquelas pessoas Social e, finalmente, conseguimos colocá-lo
que sempre tiveram dificuldades. Mesmo na Casa do Egresso.
com toda essa diferença positiva, as pessoas
não me acolheram quando saí. Achavam Um outro caso foi com um egresso que já ha-
que eu não precisava, diziam que não tinha via cumprido vinte anos de pena. Fui buscá-lo
espaço. Quando saí da prisão, tinha um juiz, e, também, não tinha família. Infelizmente,
um advogado, minha família e amigos me essa é uma realidade. Vivemos isso todos os
esperando, mas isso não é comum para os dias, mas tem o lado bom. Nós temos uma sé-
presos. Comemorei a saída com amigos e rie de companheiros muito boa. Eu tentei até
parentes, mas ao final, peguei minha mala e recursos para registrar esses homens e alguns,
disse para minha esposa que estava voltando já estão trabalhando. Seja em multinacionais,
e que ia para a Casa do Egresso, que é uma ou em funções de lideranças religiosas evan-
unidade prisional de regime aberto. Disse que gélicas, católicas ou espíritas.
queria ver o que acontecia com aqueles que
não tinham família. Não consegui lugar na Nós temos um companheiro espírita que está 1 Programa
Casa do Egresso porque tinha requisitos aos terminando Direito na Universidade Cân- público do estado
quais não me enquadrava. Do mesmo modo, dido Mendes, está trabalhando numa casa do Rio de Janeiro de
1
tentei no hotel da “Rosinha” , mas como teria kardecista e ajuda outras pessoas. Há outro hospedagem a pre-
que apresentar documentos de trabalho que que trabalha numa grande empresa, está para ços populares para
comprovassem que morava longe do Centro assumir um cargo muito bom. As grandes trabalhadores que
da cidade, também, não consegui. empresas não aceitam ex-presidiários e esse circulam no Centro
amigo kardecista tem me ajudado muito a da cidade e residem
Voltei ao Lemos de Brito depois de 23 dias entender esses mecanismos das empresas. em áreas distantes.
Temos a tristeza de um outro companheiro, imediato, realizar um trabalho autônomo. 87
um dos homens mais organizados que conhe- Pintar uma parede, bem ou mal, vai ter tra-
ci no sistema. Em todas as unidades por onde balho tanto para o profissional quanto para

Religiões e Prisões
passou, ia trabalhar em gabinete. Trabalhou aquele que só sabe pintar uma parede. Vai
no Hélio Gomes e organizou o serviço jurí- depender dele. E lá dentro da nossa comuni-
dico, organizou o serviço social, organizou dade sempre vai haver um barraco precisando
o gabinete. Ele saiu da prisão e, com dois passar um rolo. Não vai ganhar R$ 500,00,
meses na rua, conseguiu emprego numa em- mas vai ganhar R$ 50,00, que dá para fazer
presa. Em menos de dois meses, estava para uma compra para casa.
ser promovido até que descobriram que ele
era egresso e foi mandado embora. Teve um Vamos ter um curso na Avenida Brasil, na
segundo emprego que, quando descobriram, FIOCRUZ, sobre gestão, e a minha filha Cás-
também, mandaram embora. Já está num sia vai no meu lugar. Formamos uma parceria
terceiro emprego e tomara que não tenha sido com o projeto Bicho da Seda. Vão fazer uma
dispensado. No primeiro mês de trabalho em capacitação. Para os grandes projetos isso
uma rede de móveis em Caxias foi o primeiro sempre acontece, mas para os pequenos, não,
vendedor da loja. Todo mês de trabalho, era e nós conseguimos. Isso vai ser muito impor-
o primeiro vendedor. Ele estava com medo tante para podermos estar dividindo essa
de ser demitido porque já tinha três meses, e fatia do bolo e para podermos proporcionar
chegou o momento de saberem das informa- uma opção melhor de vida para esse povo.
ções cadastrais dele. Um outro saiu, passou
em todos os exames para o Metrô para ser A maior dificuldade da minha vida... já estive
condutor, mas na hora não foi admitido por em unidade de mais de 200 homens que pas-
ser ex-presidiário com pena acabada. Essa é savam as facas nas grades e diziam que iam
a realidade que nós temos. matar a gente. Isso não passou perto do que
eu passei no primeiro mês da minha saída. Fui
Experiências em curso: bus- chamado para visitar umas crianças, que são
ca de alternativas de rein- meninos de rua, ali atrás da Central do Brasil,
serção e testemunhos na Boa Esperança. Foi a primeira vez que a
Adhonep me pediu isso. Quando cheguei lá,
Semana passada, tive minha carteira assinada. tinha umas 20 crianças, uma educadora, o
Estou trabalhando no Ministério de Prisões pastor e a senhora de Minas, a empresária que
2
da Adhonep que é uma Associação de ho- me convidou. Pediram para eu dar meu tes-
mens de negócio, de empresários. Ela é uma temunho. Antes, a senhora colocou um hino
das poucas saídas para quem tem no coração para tocar e os meninos e meninas fazendo
um compromisso social. sinais – parecia Sodoma. Um levantou, outro
se aproximou do rádio e daqui a pouco deu
Algumas senhoras que formam o apoio fe- uma pancada. A ONG é financiada por uma
minino, empresárias, mulheres de negócio, instituição da Holanda e tem muitos cuida-
senhoras da sociedade, artistas fizeram uma dos na repreensão das crianças. Naquela hora,
convenção estadual no hotel Sheraton esta mandei parar tudo que eu ia cantar para eles.
semana e decidiram abraçar esta causa. Le- Cantei uma música que eu sempre canto e ao
vantaram através dos chás que elas realizam, final um menininho perguntou se o homem
2 A s s o c i a- só com mulheres, recursos para as oficinas de da música era eu. Disse que sim, que eu estive
ção de Homens agricultura, minhocário, eletricista predial com o Escadinha, com o Gregório, com o Uê,
de Negócio do – porque não adianta só curso, eles têm que e perguntei se já tinham ouvido falar. Foi
Evangelho Pleno. ser empregados... temos levantado a bandeira quando eles começaram a prestar atenção.
(www. adhonep.org.br) de oferecer alguma coisa para, pelo menos, de Uma garotada muito difícil, uma bagunça,
88 uma marginalidade diferente, sem conceito, recursos e pagar bem com a participação do
sem respeito, agressiva, drogada, e isso às 10 funcionário. Então, é ter alguém que admi-
horas da manhã. No final, cantamos aquela nistre, alguém que vai pintar, alguém que vai
Comunicações do ISER

música “Quero que valorize o que você tem” fazer uma obra. Ou seja, é uma empresa que
e aí começaram a cantar. Mas antes disso, faz o papel de cooperativa tendo o capital
perguntaram se eu conhecia esse e aquele, fechado. Vocês acreditam em milagre? Estou
me perguntaram até qual era meu vulgo. empregado com carteira assinada, vou receber
Uma coisa incrível para adolescentes de 13, meu primeiro salário, mas com muita dificul-
15 anos. No final, umas meninas se chegaram dade. Recebi R$ 1.400,00 da Fundação Santa
e me pediram um jogo de camisa, pois só os Cabrine, que era o meu fundo que estava no
meninos tinham. Disse que tínhamos um Banerj. Nós vendemos quase R$ 4.000,00 para
projeto no qual existia um time feminino e a Ação Comunitária, para a Esso. Este ano
que iria levá-las, mas ainda não consegui um cada um dos amigos que trabalha na oficina
transporte. Assim melhora a auto-estima. vai ganhar em torno de duzentos reais e vai
Eles jogam ali na Central, num campo de fu- poder levar uma compra de Natal para sua
tebol, mas os meninos têm camisa, e elas, não. família. Então é nisso que acreditamos.
É importante se trabalhar com essas crianças
de rua. Quando eles encontram alguém que O papel do Estado e os Di-
tem uma vida, uma experiência, eles param reitos
porque até então eles afrontam a religião, as
autoridades, e é muito difícil. A cooperativa para nós, para os egressos, só
vai funcionar se tiver um abraço do Estado. Se
Cooperativas ou empresas? há um serviço e o Estado passa para a coope-
rativa de ex-presidiários vai gerar emprego e
Nós começamos a fazer uma cooperativa cidadania. Se deixar para a iniciativa privada
dando curso para mulheres. É preciso dizer não vai ser assim, pois ela vai querer o lucro
que a cooperativa é uma empresa e tem fins só para si. Por exemplo, comida de preso.
lucrativos. Quando nos voltamos para isso, Preso não come galinha? Come. É uma delícia
já temos uma dificuldade porque para quem quando tem galinha! Por que não tem uma
vive naquele meio é difícil lidar com a auto- cooperativa com um galpão para criar galinha
nomia. E na cooperativa, os donos são vinte. que o Estado compra mais caro? Só não dá
Outra coisa é que a empresa mais cara que para competir com a Rica e a Sadia porque
existe é a cooperativa. Manter uma coopera- eles põem cem mil pintos para em trinta dias
tiva é mais caro do que manter uma empresa sair o frango. Tem que ter a mão do Estado.
qualquer. Outra dificuldade: cooperativa de Não como a mão de “paizão”, mas a mão
quê? Ou seja, precisamos de vinte pessoas que profissional. É o que digo, se a Prefeitura tem
desempenhem a mesma atividade. É muito de limpar aquela rua ali, porque não põe uma
mais forte, é melhor ter uma prestadora de cooperativa para trabalhar ali como gari? As
serviço onde um só tem que mandar e mes- comunidades não têm como absorver aquela
mo isso é difícil, ninguém quer e é por isso mão de obra.
que estou acreditando na Adhonep. Enfim,
é caro ter uma estrutura para ressocializar. Nós temos um apoio muito grande, e eu não
Primeiro tem de formar, depois abrigar e posso deixar de lembrar de muitos homens
depois custear. Só é fácil fazer em parceria do Estado. São pessoas atuando de forma
com todas as denominações juntas. Então isolada, onde as coisas deveriam vir como uma
não vejo a cooperativa como uma solução. A política pública. Talvez se o sistema abraçasse
empresa é uma solução se tem alguém com de forma contundente, a sociedade fosse que-
compromisso social para manipular bem os rer participar. Na bíblia diz assim: “como é
que vou saber, se ninguém me ensinou? Como último, acabou o projeto e não tirei os meus 89
vou conhecer, se ninguém me mostrou?”. Isso documentos. A direção do Lemos Brito hoje
está em Atos dos Apóstolos. é bem consciente e sabe da importância do

Religiões e Prisões
documento aqui fora.
Se eu chegar num presídio e disser: “olha, você
tem direito, você tem direto”, eu não entro O Reino e o Reinado
mais lá. Não vão deixar. Se eu quiser mostrar
ao homem a cidadania e levar o conhecimento A divisão religiosa dificultou muito o cresci-
pleno da cidadania, não permitem a minha mento do encarcerado. Sou evangélico, mas
entrada. Quem tem de militar é o corpo venho de uma família católica e de prática
técnico que tem um conhecimento técnico, espírita na adolescência. Fiz todos os cur-
quem tem de gritar são as instituições, como sos que são oferecidos pela Igreja Católica.
o ISER, a Ação Comunitária, que trabalham Encontrei uma coisa que me ajudou muito
com isso e são ouvidas porque têm a mídia. Se quando saí, que foi a opção pelo evangelho. A
o preso militar é sufocado. Se nós, em campo conversão foi dentro do cárcere. Mas, apenas
restrito, tentarmos levantar esta bandeira, nós pela religião não acredito. Porque existe a
perdemos o acesso ao presídio. visão do reino e a do reinado. Na maioria das
denominações, o mais forte é a visão do reina-
Os direitos são vistos – eu tenho estudado do e não do reino. Então você não consegue
isso – não como um remédio para a inclusão trabalhar. Você é católico ou espírita e tem
social. Eles são vistos como uma ação para o um trabalho bem forte, mas não consegue
indivíduo dentro do cárcere, eles são vistos porque nós vivenciamos isso, há uma divisão.
como uma mordomia. E há pessoas na mídia Nós ajudamos em tudo, mas não pode haver
que falam que bandido bom é bandido morto mistura, e quem é do social não pode fazer
e formam uma opinião. Direitos humanos são isso. Eu ia à missa e fui proibido de trabalhar
para todo homem. Todo homem e não para na minha área religiosa, embora “papai do
todo cidadão porque o condenado perde a Céu” nos instrua para fazer trabalhos, levan-
cidadania, mas a Carta Maior diz que os Di- tar a igreja, fui proibido de estar no púlpito
reitos Humanos são para todos os homens. por participar de missa, por participar de
Se vendêssemos a idéia de que é preciso dar trabalhos sociais com não evangélicos.
um remédio onde todos sairão ganhando,
vamos conseguir. A mãe perde o filho para o O reinado é você ter alguma coisa. Trabalhei
tráfico de drogas e, a isso, estão todos sujeitos. com 14 igrejas evangélicas dentro do Hélio
Gostaria de ter resposta para uma coisa, mas Gomes e do Lemos de Brito. As lideranças
quem sabe disso é Deus. Mas gostaria de saber dessas igrejas são pastores e fundadores.
como lidar com a mãe que também é vítima? Saíram de outras igrejas e fundaram essas.
Como lidar com a mãe que perde o filho para Trabalhar junto é relativo. Trabalhamos com
a prisão, que tem os filhos atrás das grades? a Assembléia de Deus e com a Batista e você
Eu não sei como lidar, mas elas têm o direito diz que está precisando comprar uma caixa
como mãe. de remédio e o integrante diz que não tem
nem o dinheiro da passagem, ou seja, está
Em 2002, uma assistente social da SUAM trabalhando porque recebeu no coração,
(Sociedade Unificada de Ensino Superior foi movido pelo amor maior e está ali. Mas
Augusto Motta) esteve na Lemos de Brito a igreja dele tem mais de mil membros que
e nos ajudou a tirar a documentação de dizimam, tem culto quase todos os dias e
identidade. O projeto foi interrompido, pois tem oferta em todos os cultos. E será que
acharam que era muita mordomia para o não tinha condição de ajudar este irmão que
preso. Eu tentei ajudar os amigos, fiquei por precisa? Veja bem, aí é reinado.
90 Religião e missão escolar, curso de informática, esporte, teatro.
Estamos em São Gonçalo abertos para a visita
A missão daquele chamado por Deus, não im- de todos. Até falei esses dias que vou parar.
Comunicações do ISER

porta se é evangélico ou católico, é falar de Je- Para manter isso só Deus sabe o que tivemos
sus, é falar de Deus. Tem a missão de anunciar de fazer, a gente tira de nós próprios e da
o evangelho: “Ide e pregai o evangélico para família para manter. Mas Deus sabe de todas
toda a criatura”. O evangelho é um só. Cada as coisas e me disse para ficar quieto porque
um apresenta-o a seu bel-prazer. Acredito que Ele estaria mandando alguém lá para ajudar a
a missão nossa não é converter, pois senão resolver os problemas. Estamos com algumas
entramos no proselitismo, que é você fazer promessas de ajuda. Deus mandou agora uma
alguém como você quer que ele seja. Nossa educadora para reforço escolar porque a gente
missão é dar a mão, é mostrar o caminho e ficava se revezando, eu e minha filha.
ele se faz. Estamos dentro de uma linha pe-
dagógica que todo mundo hoje prega que é a O número um a estender a mão tem de ser o
do Paulo Freire. Não tenho nada para ensinar Estado. Todos nós somos responsáveis, temos
a ninguém, tenho é que mostrar o caminho e de estender a mão, mas há o reinado. Vou a
tirar as dúvidas. Nosso primeiro projeto não alguns jantares evangélicos da Adhonep antes
religioso foi em 1994 e deu origem a uma de viajar e vou dizer que a maior ajuda que
porção de coisas assim – inter-religiosas – e tive foi da Pastoral. Mesmo sendo evangélico
trabalhamos juntos – católicos, evangélicos tenho de dizer isso. A igreja evangélica tem
– com os internos e depois pedimos ajuda de acordar um pouco.
aos agentes religiosos. Conversei bastante
com muitos agentes e eles diziam que aque- Ontem uma senhora me chamou para con-
le que quer ser plenamente ressocializado, versar e disse o seguinte: “Você não conhece
mudado, ele precisa primeiramente de Deus o meu marido”. Disse que não conhecia. Tive
agindo. Depois, querer, é muito importante um problema com um garoto na turma de
ter a família ou alguém que faz o seu papel informática. Ele tem nove anos e está apresen-
ouvindo, orientando; precisa do Estado aju- tando todas as características de quem está
dando com políticas públicas, sociais. Muitas no tráfico. Disse para ele que não precisava
vezes, a filha não respeitava mais o pai, não o dele como aluno, mas que se ele quisesse ficar
considerava como tal. A religião é importante que ficasse e eu ia gostar disso. Disse que ele
sim, mas nós, os agentes, falamos de Deus. era muito importante para nós. Disse que
Mas a religião está em Deus? Não sei! Alguns eu não era “coleguinha” dele para ele falar
homens lá dentro pedem ajuda para os filhos, daquele jeito comigo sendo eu seu professor.
porque se nós não tivermos um trabalho para O pai e a mãe dele são meus alunos e, pela
tirar as crianças desse caminho da margina- maneira dele agir, eles devem saber. E ontem
lidade, vai virar uma bola de neve que não se essa senhora me chamou e disse que preci-
poderá mais controlar. Nós temos aproxi- sava da minha ajuda. Apresentou a situação
madamente 200 mil presidiários no Brasil. e disse que conhecíamos o marido dela com
A necessidade de vagas é de mais de 100 mil um certo nome, mas que o verdadeiro nome
sem contar o que nós temos de crianças, que era outro. O marido dela era gerente de uma
não estão dentro dessa estatística, e poderão “boca” e, uma vez, estava ela com o marido e
ser os futuros presos. a filha trabalhando na boca de fumo, passou
um homem no caminhão e perguntou para o
Nossa amiga do Ministério da Pastoral, que marido se ele queria que a mulher e os filhos
tem uma ajuda da Oficina de Presos, está tivessem aquela vida para sempre e ofereceu
proporcionando a mais de 100 crianças e a ele um trabalho formal. Quer dizer, ele ge-
famílias alfabetização para adultos, reforço renciava o tráfico no local, mas ganhou um
emprego, comprou um terreno, construiu 91
sua casinha, hoje trabalha com transporte de
carga para outros municípios, tem seu carro

Religiões e Prisões
e ninguém sabe quem era aquele homem
anteriormente, pois ele nem era dali. Ele não
está em nenhuma religião, a mulher veio para
a religião porque quem a ajudou foi uma
pessoa religiosa, mas ele, não, e mesmo assim
tem uma vida digna. Ele teve a oportunidade
e foi em frente, mas quantos querem essa
oportunidade e não tem?

Às vezes, basta ouvir...

Temos medo principalmente de sermos dis-


criminados. Esta semana ouvi algo que foi
muito importante para mim, pois fala sobre
rejeição. Era uma pessoa falando sobre dis-
criminação e dizia assim: “você não é o que
as pessoas dizem, você é o que Deus diz que
você é”. Num jantar aqui no Porcão Rio’s, fui
falar pela Adhonep. A proposta dela é fazer
o que uma igreja comum não faz. As pessoas
não vão ao culto escutar a Palavra, mas vão a
um chá, a um jantar e outros eventos. Nesse
jantar dei esse testemunho que dei para vocês
aqui. Estava lá sentado, levei uma fita para o
rapaz do som gravar o meu testemunho a fim
de corrigir alguma coisa. Quando cheguei, só
ouvi ele dizendo que tinha de matar, que era
a segunda vez que levavam o som dele. Na
frente de todo mundo, eu disse que tanto ele
quanto eu estávamos no lugar certo e na hora
certa. Perguntei a ele se podia dar um abraço
nele e ele ficou sem entender nada. Sentamos
à mesa e os convidados foram me anunciar e
tinha pessoas de alta patente e outras auto-
ridades assistindo e fiquei pensando como
ia me apresentar, mas lembrei da fita e fui lá.
Naquele momento senti que eu não era o que
diziam de mim e é importante falar para esses
garotos que eles não são o que dizem que eles
são: vagabundos, marginais, bandidos. Não
dá para ter auto-estima sendo tratado assim.
Quantos homens já chegaram me pedindo
ajuda e queriam só ser ouvidos.
Missionários do Rock:
1
Christina Vital
Doutoranda em Antropologia
– PPCIS/UERJ. Pesquisadora do
ISER – Profª Sociologia UGF

uma história de “conversão” pela música Edileuza Santana Lobo


Doutoranda Antropologia
e Sociologia – PPCIS/UERJ.
Profª Colégio Mário Quintana
– Penitenciária Lemos de Brito
92
Elisa Gomes
Mestranda em Ciências Sociais
– PPCIS/UERJ
Comunicações do ISER

Mariana Leal
Jornalista. Mestranda
em Antropologia – PPCIS/UERJ

Introdução Missionários: história de uma


banda
Neste artigo, abordaremos o processo de filma-
gem do documentário Missionários (2005) de Uma banda toca a música “Fábrica” do grupo
Cleisson Vidal e Andréa Prates e a construção Legião Urbana. Dezenas de pessoas assistem ao
da identidade dos músicos pertencentes à show no auditório da Universidade Cândido
banda documentada. Assim como disse Iara Mendes(UCAM), em 2004. Cases com instru-
Rolim (1998) ao analisar A Tún Pade de Pierre mentos, guitarras e movimentos sincronizados
Verger, dizemos também que Missionários não à música e takes de pessoas que mais tarde
pode ser visto sem antes ser minimamente identificaremos como familiares dos presos
contextualizado, pois muito da sua riqueza nos chamam a atenção. Assim começa o docu-
está nos bastidores e na qualidade de vida dos mentário Missionários que conta a história de
seus personagens. Buscamos falar dos anos um grupo de rock formado por três detentos
de pesquisa, da filmagem, dos conflitos dos – condenados em média a 20 anos de prisão
diretores entre si com seu “objeto” e como su- por latrocínio – na penitenciária Lemos de
peraram as dificuldades impostas pelo campo Brito no final dos anos 1990. A apresentação
para revelar uma história que julgaram “fan- contou com várias músicas; mas, por que
tástica”. Para tanto, realizamos duas entrevis- esta seria selecionada para abrir o filme? Já
tas semi-estruturadas com os dois diretores e poderíamos observar aí uma estratégia dos
promovemos um debate sobre o documentário diretores e desvendar alguma identificação
com a presença de alunos da UERJ e dos di- entre “observadores e observados”? Talvez
retores numa sessão do filme no Programa de sim. A letra da música vocalizaria os desejos
2
Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ . e sentimentos dos presos na medida em que
Foi, então, que um manancial de questões se expressa o clamor de pessoas que se sentem
colocou para nós: como os diretores realizaram injustiçadas pelo sistema fabril que lhes nega
esse documentário? Quais os seus propósitos? a liberdade, que subjuga o mais fraco. Expressa
Como equacionar os interesses distintos? a insatisfação daquele que não pode mais ver o
Como os integrantes da banda influenciaram “céu azul” porque foi substituído pelo “cinza
na seleção das imagens? Os diretores tinham da fábrica”.
consciência da relação dialética que se formou
1 Este artigo é fruto
e transformou observados e observadores? As A idéia de documentar a banda Missionários das reflexões feitas e apre-
ambigüidades e contradições eram recorren- do Rock surgiu do encontro entre os diretores sentadas como trabalho
final do grupo das autoras
tes nos discursos proferidos, assim como os Andréa Prates e Cleisson Vidal no contexto
para a disciplina Metodo-
estigmas, as intenções conflitantes, a própria carcerário. Cleisson atua como diretor de fo- logia II do Curso de Pós-
categoria da “confiança” como elemento tografia. Realizou documentários e é pós-gra- Graduação em Ciências
Sociais PPCIS/UERJ no
fundamental do entendimento entre as par- duando em História da Arte. Por sua inserção
1º semestre de 2005.
tes envolvidas, direta ou indiretamente na profissional, aceitou o convite da banda para 2 Agradeço às pro-
produção deste documentário. Elaboramos fazer a gravação de um videoclipe do trabalho fessoras do PPCIS/UERJ
Márcia Leite e Patrícia
este trabalho na perspectiva de compreender dos “meninos” na prisão. Andréa Prates se
Birman pelo estímulo
alguns dos sentidos imbricados na construção aproximou do grupo pela via institucional. e ajuda na organização
deste material visual. Ela tem formação em História e foi convidada deste evento.
a ocupar o cargo de assessora de Joel Rufino, obscura e perversa como apresentam ser a 93
4
subsecretário de Direitos Humanos e Sistema realidade carcerária .
3
Penitenciário.

Religiões e Prisões
“Por definição, acreditamos que alguém
O encantamento dos diretores foi grande. A com um estigma não seja completamente
vontade de fazer um projeto com a banda era humano. Com base nisso, fazemos vários
comum, assim como uma particular admira- tipos de discriminações, através das quais
ção por André Cabral, um dos integrantes da efetivamente, e muitas vezes sem pensar, re-
banda. A respeito do primeiro contato, Cleis- duzimos suas chances de vida. Construímos
son disse: “Então fui lá e conheci o André, o uma teoria do estigma, uma ideologia para
Paulo e o Luciano e tinha o Renato baterista”. explicar sua inferioridade e dar conta do
A ordem de citação dos nomes durante toda a perigo que ele representa, racionalizando
entrevista parece revelar suas preferências. Ele algumas vezes uma animosidade baseada
prossegue: “De cara já tive uma certa identifica- em outras diferenças tais como as de classe
ção. Muito com o André que é muito querido, social”. (Goffman, 1980: 15).
muito aberto e depois com os outros até pela
idade”. Andréa também revela sua afinidade Nesse mesmo trabalho, Goffman assinala o
maior com o “preso injustiçado” que repre- fato de que ainda que o ex-interno volte para
senta o André na história dos Missionários. Nas a sociedade “extra-muros” ele conserva de sua
palavras dela: “Fui conhecer os meninos, fui experiência social na instituição total, de tipo
conversar com eles e, claro, caí de amores ali. presídio, uma posição social diversa da que
No meu caso, sobretudo, com o André Cabral, possuía antes de seu ingresso na instituição,
que é um garoto. É impressionante a forma uma posição negativa marcada por um estig-
5
como ele lida com as questões. Ele é muito ma . Existem ainda tentativas de afastar o es-
esforçado, muito atento, muito interessado. tigma social atribuído a alguém ou a um grupo
Ele lê muito. Noutro dia ele estava lendo ‘O como forma de humanizar esse indivíduo ou
Processo’ do Kafka. Eu não acreditei naquilo, uma dada coletividade e este é o movimento
ele lê e discute”. André, desde o início, foi que os diretores procuram realizar no docu-
“eleito” pelos diretores como o “mocinho” mentário. “Humanizar” os presos é uma forma
da história a ser contada no documentário. de aproximá-los de si e do público.
A maior afinidade com ele, relatada pelos
diretores, pode ser derivada da identificação Memórias: com a palavra os
com o temperamento afável do preso, pela presos e seus familiares
solidariedade em relação à (suposta) injustiça
3 Na época, final da no julgamento do seu caso, mas também pela Após as cenas do show na UCAM, tem início
década de 1990, essas se- sua inserção de classe – os diretores dizem entrevistas em close com André Cabral e Paulo
cretarias eram unificadas. que ele é de uma “família diferente”, de uma Giovanni, dentro da cadeia, sobre como co-
4 Para contexto carce-
rário nacional ver Coelho, “família estruturada” e que é de classe média. meçou a banda. O enquadramento fechado
1987; Lemgruber, 1999 e André foge, até onde nos é possível observar é uma opção constante, uma das estratégias
2000; Ramalho, 1979 no documentário, da representação social que promove a aproximação dos entrevistados
5 Sobre estigma do pre-
sidiário ver também o livro acerca do encarcerado, aproximando-se dos com o público.
Cabeça de Porco (Athayde, “normais” de Goffman. Fator ainda maior
Celso [et as.], 2005) no de encantamento por parte, principalmente André Cabral (28 anos de idade; preso há 9
qual Luiz Eduardo Soares
analisa os casos Escadi- de Andréa Prates, em relação a André deriva anos), guitarrista da banda, quando preso
nha e Marcinho VP, suas de seu gosto pelo conhecimento erudito ou na penitenciária Hélio Gomes, aprendeu a
trajetórias no crime e a acadêmico, sendo-lhe conferido assim maior tocar violão com um “colega de pena”. Ao ser
tentativa de mudança nos
rumos cristalizados pelas “humanidade” no sentido de que ele represen- transferido para Lemos de Brito, “caiu” numa
representações sociais. ta a “figura do bem” em meio a uma realidade cela próxima de Paulo Giovani (30 anos de
94 idade; preso há 12 anos), antigo conhecido de seu crime, sua condenação e os primeiros
de Luciano Wanderley (29 anos de idade; contatos com a cadeia. André Cabral percebeu
preso há 10 anos), amigo em comum. Na cela, sua diferença em relação à massa carcerária:
Comunicações do ISER

passavam noites discutindo religião dadas as “A maioria era de negros, eu era um dos mais
diferentes filiações: André é kardecista e Paulo brancos”, enfatiza.
evangélico. O gosto pela música, sobretudo
pela banda de rock nacional, Legião Urbana, As relações de poder no sistema carcerário co-
sucesso no Brasil nas décadas de 1980 e 1990, meçam a aparecer ao longo do filme na medida
era comum aos dois que fizeram disso uma em que os rapazes contam suas experiências
parceria inicialmente de voz e violão. com tortura e com situações de desrespeito em
relação aos presos. Os “meninos”, referência
André deu a idéia, conta Paulo no documen- carinhosa aos componentes da banda, na
tário, de colocarem mais instrumentos para fala da diretora Andréa Prates, encontraram
tocar e formar assim uma banda. Foi, então, dificuldades de várias ordens do início ao fim
que convidaram o Renato, um personagem da realização deste documentário.
que ocupa a cena pontualmente, pois o foco
é nos outros integrantes, para a bateria e o O primeiro dia de liberdade de Luciano e seu
Luciano para o contrabaixo. Este disse que encontro com a família foram documentados
passou muitas noites estudando música com e são alguns dos pontos altos de emoção do
o André, que não sabia exatamente o que filme. Logo depois, vem o depoimento de
estava ensinado para o colega, mas que os sua mãe sobre como era o filho, intercalado
dois buscavam “agradar aos ouvidos”. Já para com depoimentos dele, com um discurso
aprender bateria contaram com a ajuda de “regenerado”, condenando a “vida de malan-
um contato que o Arthur Nogueira, amigo dro” que tinha. A música, o projeto musical,
do André e então produtor musical, levou à as reportagens na mídia sobre a banda e o
penitenciária. Arthur é uma figura fundamen- sistema carcerário são temas das entrevistas
tal para o desenvolvimento dos Missionários do subseqüentes.
Rock. Além de ser incentivador incansável do
André – sempre levava fitas cassete e revistas Mais uma vez o lado de fora aparece e uma
de música para o amigo – deu apoio técnico música da banda é tocada no show da UCAM.
para que conseguissem sua primeira conquis- A letra é o gancho para apresentarem o filho
ta: o Primeiro Festival de Música do Colégio de André e sua esposa. Relações pessoais são
Mário Quintana no ano 2000. Segundo An- a tônica deste bloco, em que Paulo e André
dré, no festival “tinha um montão de cegos; falam de seus relacionamentos amorosos.
a gente tinha um olho e conseguiu ganhar”. Na seqüência, a mãe de Paulo fala sobre a
Daí em diante, o trabalho do grupo decolou: reconstrução da imagem do filho a partir
ganharam outros festivais, se apresentaram do pertencimento à banda. O irmão, em seu
em outras cadeias do sistema penitenciário depoimento, reforça a admiração por Paulo
e fora dele como na Universidade Cândido afirmando ser ele seu ídolo agora e promete
Mendes, na sala Baden Powel além de pro- ajudá-lo a arrumar um trabalho quando sair
gramas televisivos. As dificuldades, porém, da prisão. Senhor Gilberto, pai de André, entra
persistiram e foram largamente denunciadas em cena e narra o imenso afeto presente na sua
no documentário. relação com o filho.

Luciano Wanderley deu seu primeiro depoi- Punição e preconceito estão presentes nas
mento de fora, pois cumpria regime semi-aber- falas de Paulo e Luciano. André questiona a
to. Fala sobre crime, condenação e presídio. defesa da pena de morte. Afirma que até chegar
Sucedem-se entrevistas em que cada um fala ao presídio considerava que “todo bandido
era igual”. Aproximando-se da realidade car- Sucesso atrás das grades 95
cerária se descobre que não é assim. Quando
a liberdade volta a ser o tema da conversa,

Religiões e Prisões
Andréa Prates nunca havia estado numa
André afirma que a liberdade já não é mais sua cadeia. Chocou-se com os esquemas de segu-
prioridade: “não há nada que a liberdade me rança. Mas viria a se surpreender ainda mais
ofereça que eu já não tenha aqui dentro”. com a alegria presente no auditório onde os
“meninos” tocavam. Em suas palavras: “Vi os
A progressão de regime de Luciano que foi, por garotos tocando lá em cima, vi um auditó-
isso, transferido para uma prisão com regime rio cheio com presos, funcionários, direção,
semi-aberto, impôs dificuldades inesperadas mídia, um auditório cheio com todo mundo
ao curso da banda. A distância era apenas interagindo na coisa da música. E eu fiquei
uma das barreiras a superar, a mais evidente assim: ‘Meu Deus, que coisa maravilhosa!
delas. Outra foi superada pela postura firme Isso poderia ser uma constante no sistema
que, segundo o diretor do documentário, foi penitenciário, já pensou se todas as cadeias
assumida por Luciano diante dos apelos da fa- fossem desta forma?”.
mília para não mais integrar a banda. O receio
dos familiares talvez fosse a manutenção do O encantamento produzido em Cleisson e
contato com uma realidade com a qual ele de- Andréa pela existência daquele projeto musical
veria, cada vez mais, estabelecer afastamento numa prisão impulsionou-os a querer registrar
e incompatibilidades e não o reforço de laços tal história. A forma de registro inicialmente
e compromissos. A identidade de preso deve- era distinta: Andréa Prates tinha um projeto
ria agora ser reavaliada, e rechaçada. Luciano editorial e Cleisson um fílmico. Dinheiro não
estava como num purgatório preparando-se havia e essas dificuldades financeiras para a
– no regime semi-aberto que possibilita ao realização do projeto final perpassaram todos
preso trabalhar, estudar, estabelecer laços os quase três anos de gravação. Mas isso não
para além dos muros da prisão – para viver impediu o sucesso do documentário que foi
uma nova vida distante do estigma partilhado selecionado entre 600 filmes para integrar o
pelos presos. O medo do envolvimento em si- festival É Tudo Verdade, em 2005, tendo inte-
tuações que o levassem novamente ao presídio grado também a mostra do Filme Etnográfico e
orientava a posição dos familiares de Luciano, a mostra Novos Diretores, do CCBB, e do Fes-
sobretudo de sua mãe, em relação à banda. tival do Rio neste mesmo ano. O lançamento
do documentário Missionários foi no cinema
Mas uma situação emerge durante a realização Odeon, centro do Rio de Janeiro, e contou
do documentário e, se não coloca em xeque a com a presença dos presos e de seus familiares.
continuação da banda, nos faz refletir sobre Em outras oportunidades, o documentário foi
sua potência ressocializadora e sobre o “cará- apresentado em universidades e colégios.
ter religioso” que assume tal projeto musical
ao promover a “conversão” de seus integran- As dificuldades ligadas à entrada no sistema
tes: a morte do Luciano. E não foi uma morte carcerário perpassaram igualmente todo o
qualquer, foi uma morte ao lado do mais processo de realização do documentário. Fo-
6 Luciano Wanderley famoso narcotraficante do Brasil conhecido ram inúmeras as vezes que tentaram entrar
6
trabalhava em uma em- como Escadinha . A cena final apresenta os com a câmera e foram impedidos ou tentaram
presa de informática e foi “meninos” fora da prisão, mais precisamente
assassinado ao lado de exauri-los pensando, talvez, numa possível
José Carlos dos Reis Enci- num estúdio em Botafogo para a gravação do desistência do projeto. Além das dificuldades
na, o Escadinha, no carro CD da banda “Equilíbrio atrás das grades”. O para a entrada, também, foi delimitado o
do ex-traficante de drogas documentário começa e termina do lado de
no início do ano de 2005. espaço a ser utilizado, a saber, o auditório. A
As investigações do caso fora como se imagina a trajetória dos compo- relação tensa entre presos e diretores do filme,
não foram concluídas. nentes da banda. de um lado, e agentes penitenciários e direção,
8
96 da unidade, de outro, foi também objeto de música Flaviano enviado pela Secretaria de
atenção de Andréa e Cleisson. Goffman ob- Educação. Foi com a chegada deste professor
serva que nas instituições totais existem dois que a oficina foi transferida para o colégio. Foi
Comunicações do ISER

grupos distintos – internos e funcionários – e também com essa mudança que a diretoria e o
cada um tende a observar o outro a partir de referido professor deram início ao Festival de
estereótipos hostis. Música a se realizar anualmente com represen-
tantes de várias unidades prisionais cariocas.
“(...) a equipe dirigente muitas vezes vê os O objetivo primeiro deste projeto era revelar
internados como amargos, reservados e talentos e promover a união dos internos. O
não merecedores de confiança; os interna- Festival é dividido em duas categorias: Gospel
dos muitas vezes vêem os dirigentes como e Popular. Os Missionários do Rock foram os
condescendentes, arbitrários e mesqui- vencedores na categoria Popular em 2000 e a
nhos. Os participantes da equipe dirigente partir deste evento ganharam projeção dentro
tendem a sentir-se superiores e corretos; os e fora da Lemos de Brito. A administração
internados tendem, pelo menos sob alguns carcerária mudou e, a partir de 2003, o Festival
aspectos a sentir-se inferiores, fracos, cen- contempla iniciativas musicais somente dos
suráveis e culpados.”(Goffman, 1996:19) internos da unidade prisional onde o Colégio
Mário Quintana atua. Diante de tal depoimen-
Os diretores de Missionários afirmaram que no to pensamos: será que não dar relevo à Oficina
tocante à atividade cultural o sistema carce- Escola de Música Mário Quintana e à (prová-
rário não tinha nada a oferecer. Mas será que vel) importância que isso teve para a formação
esse discurso pode ser utilizado em relação a dos Missionários do Rock era uma estratégia
Lemos de Brito, penitenciária onde foi conce- para tornar ainda mais singular este projeto
bida a banda? Segundo entrevista realizada fílmico? Será que era uma estratégia para mar-
com um detento desta unidade, o Festival car a subjetividade, a identidade moralizada
de Música do Colégio Mário Quintana teve individualmente pela atitude “pró-ativa” de
início em 2000 e foi resultado da oficina de três presos que se tornam “sobreviventes” de
música iniciada no ano anterior por Claudi- um sistema que colaborou de todas as formas
7
nei, preso com formação técnica em música para a “submersão de suas almas”? A “conver-
e instrumento de sopro, mais precisamente, o são através da música” se tornaria ainda mais
saxofone. A oficina, antes de ser incorporada fantástica e a cultura – lato sensu – se tornaria
ao colégio, funcionava no Setor de Educação assim tão mais redentora?
da penitenciária oferecendo curso de teoria
musical em um ano e meio, com aulas diárias Os diretores no campo: re-
de segunda-feira a sexta-feira. O curso era lações de confiança
dividido em duas fases: a primeira de teoria
musical e a segunda de prática de instrumen- As reflexões de Cleisson a respeito das dificul-
to e solfejo. No conteúdo do curso constava dades para a chegada no campo e realização
ditado melódico, conhecimento de partituras do documentário nos remetem às observações
e linguagem cifrada. Da primeira turma de de Maggie (apud Patrícia Monte-Mór, 2005)
62 alunos, somente 25 concluíram com bom sobre o cinema documental e sua aproxima-
aproveitamento. Houve uma formatura para ção ao ofício do antropólogo no seu método
esses em 2000, ocasião na qual os alunos de pesquisa e na descrição realizada pelo
receberam um certificado de conclusão do documentário cinematográfico. Cleisson fala
curso. Dentre os presos contemplados nesta ainda da insistência no objeto, da imersão
formatura estava André Cabral, guitarrista e no campo e do quanto essa imersão somada
líder da banda Missionários do Rock. Ainda no à identificação com aqueles que “operavam” 7 O nome é fictício.
ano 2000 chegou ao colégio o professor de seu objeto de atenção, o grupo Missionários do 8 O nome é fictício.
Rock, foram fundamentais para a realização do que agissem da forma mais “natural” para um 97
documentário. Nesse processo de aproximação preso tentando fugir em uma das oportuni-
e identificação ganharam “confiança”, e essa dades criadas pela apresentação da banda ou

Religiões e Prisões
categoria assume papel central, na fala dos por eventuais saídas para estúdios. Por parte
envolvidos nesse processo. dos presos e seus familiares, a desconfiança
estava na possibilidade do reforço do estigma,
Como portadores do “estigma do perigo”, ou mesmo pela utilização dos depoimentos de
podemos dizer que os presidiários povoam o forma “apelativa e jornalística” como declarou
imaginário social como o “marginal” provo- um dos diretores, em entrevista. Através da fre-
cando uma sensação de insegurança-perigo qüência, da insistência na escuta, por um lado, e
nos que com eles têm contato. A desconfiança por suas desvinculações institucionais a órgãos
presente nos contatos iniciais foi mútua. Havia ligados ao sistema carcerário ou de segurança,
uma tríade de relações presentes na elaboração por outro, conseguiram que André, Luciano e
deste documentário, composta pelos diretores Paulo – os integrantes da banda que prestam
do filme, os presos e seus familiares. Na outra depoimento no filme – descobrissem que:
ponta, aí já na formação de outra figura geomé-
trica, está o sistema penitenciário e seus agentes “há pessoas compassivas, disposta a
investidos legalmente de poder para agir sobre adotar seu ponto de vista no mundo e a
aqueles por eles vigiados. Na primeira forma- compartilhar o sentimento de que ele é hu-
ção geométrica, o triângulo, a confiança dos di- mano e ‘essencialmente’ normal apesar das
retores do filme em relação aos presos/músicos aparências e a despeito de suas próprias
ocorre com o “aquebrantamento” do estigma dúvidas”. (Goffman. 1980: 29).
dado socialmente em relação a eles. A insegu-
rança dos presos e seus familiares em relação Referências negadas: cárce-
aos que se aproximam pode ser explicada de re na tela?
variadas formas. Privilegiaremos uma que vai
ao encontro da perspectiva teórica de Goffman Presídios e presidiários têm sido temas de
na qual o indivíduo estigmatizado e os que a outras produções, como os documentários O
eles estão ligados afetivamente partilham um prisioneiro da Grade de Ferro (de Paulo Sacramen-
sentimento de apreensão no contato com os to), O Cárcere e a Rua (de Liliana Shulzbach)
“normais” por não saberem previamente a for- e ficções, como Quase dois irmãos (de Lúcia
ma como serão recebidos e/ou identificados. Murat), Carandiru (de Hector Babenco), e o
recente seriado Carandiru – Outras Histórias da
“Essa incerteza é ocasionada não só porque rede Globo também baseado no livro de Dráu-
o indivíduo não sabe em qual das várias zio Varela, Estação Carandiru. Cada produção
categorias ele será colocado, mas também, aborda o tema a sua maneira, mas a dimensão
quando a colocação é favorável, pelo fato política e a violência estão presentes com fre-
de que, intimamente, os outros possam qüência. Na mídia, os presídios ganham des-
defini-lo em termos de seu estigma” (Goff- taque quando acontecem rebeliões e quando
8
man, 1980:23). há ações protagonizadas por presos famosos ,
como os recentes casos de Fernandinho Beira
As reações dos indivíduos estigmatizados po- Mar e Elias Maluco, para citar apenas alguns
dem variar, ainda segundo Goffman, entre o exemplos. Quando o presídio torna-se tema de
retraimento e a agressividade. A reação temida reportagens, é comum as autoridades compe-
8 Para ver o trat a- por parte dos diretores do documentário era, tentes aparecerem afirmando seu papel como
mento da mídia com o
por um lado, a de que se retraíssem e, não es- mantenedor da custódia dos criminosos com
sistema penitenciário ver
Inacio Cano, et all., nesta tabelecendo a relação de confiança, pudessem rigor. No entanto, em Missionários a intenção
publicação. não querer contar a história, e, por outro lado, não era documentar a violência, nem o defor-
98 mador cotidiano carcerário. A intenção era observadores e observados. É como se a câmera
mostrar algo que funciona, que redime e não os separasse dos “meninos”, mas que, em deter-
que corrompe. A corrupção, os escambos, o minados momentos, a fala era tão “colada” que
Comunicações do ISER

vício e o tráfico de drogas existem, mas não a câmera desaparecia. A esse respeito Consuelo
foram priorizados. E essa intenção de mostrar Lins adverte:
“o que funciona”, de mostrar a banda como
um projeto musical ressocializador surgiu no “Assim como os criadores do cinema-
contato dos diretores do filme. verdade, os franceses Jean Rouch e Edgar
Morin, Coutinho aposta na intervenção
Os diretores elaboraram um roteiro com as explícita para realizar um documentário.
questões centrais a serem abordadas, produ- Consciente de que qualquer realidade
zindo um material de quarenta ou cinqüenta sofre uma alteração a partir do momento
horas que, após a edição, foi compilado em em que uma câmera se coloca diante ou
um filme de 72 minutos. Os documentários no meio dela e que o esforço de filmá-la
revelam opções e tomadas de posição. O que tal qual é inteiramente vão, ele intervém,
é projetado na tela não é “a realidade”, senão, provoca e faz dessa metodologia, matéria
um recorte da mesma. A opção por não mos- a ser filmada.” (1987:7)
trar a face indesejada do sistema penitenciário
correspondia ao desejo de ter um diferencial no Ao mesmo tempo em que essa “magia” foi pri-
material produzido sobre um contexto tantas vilegiada, a “realidade” se impôs com a morte
vezes abordado sob a ótica do sofrimento e das de Luciano. Foram colocadas as cenas da morte
mazelas humanas. Esta foi a principal estratégia depois do material todo editado. O propósito de
fílmica de Missionários: aproximar o espectador denúncia, de reforço de um estigma somados
de cada integrante através de sua “humaniza- com uma perspectiva de mercado e a tenta-
ção”. Seu sistema é a oposição dentro/fora, tiva de fazer uma “homenagem ao morto” se
onde a liberdade e o contexto carcerário em misturam nessa seleção. O caráter “mágico”, a
crise são confrontados a cada seqüência. Cada transformação dos “meninos” pela música, pela
um dos integrantes da banda conta sua história, formação de uma banda com objetivos para além
o crime cometido – ou suposta e injustamente dos muros que os cercavam foram enfatizados
atribuído como no caso de André Cabral – como na opção de filmagem.
passou a viver no sistema carcerário, suas tenta-
tivas de fuga e como formaram a banda dentro As seqüências de filmagem não estão dispostas de
deste universo. Abordar essa dimensão familiar forma cronológica: shows, ensaios e entrevistas
e “humana” dos integrantes do grupo foi uma alternam-se. Oposições binárias se apresentam
estratégia fundamental para conseguir mobi- na montagem: dentro/fora, indivíduo/sistema,
lizar e emocionar a platéia. Assim, se formou liberdade/prisão, desumano/humano e pre-
a seqüência: “o início da banda, como se deu o sente/futuro. Essas oposições são trabalhadas
crime, a transformação pela música, a família nos depoimentos e nas músicas escolhidas para
e, no fim, o sonho, a perspectiva”. compor a trilha sonora do documentário.

A posição ambígua dos diretores em relação O processo de conversão


à objetividade, ou suposta objetividade, a ser pela música
alcançada no filme está presente em seus dis-
cursos. Ora salientam o distanciamento deles Ao longo da narrativa os personagens vão se
em relação ao grupo estudado, ora mostram “humanizando”, “recuperando-se moralmen-
o quanto são cúmplices da fala de seus inte- te” dos erros do passado que os levaram à
grantes. O “desaparecimento da câmera“, por condição presente. Tem-se, assim, a impressão
exemplo, pode revelar tal cumplicidade entre de que houve uma “conversão” dos indivíduos
através da música. A diretora diz que os inte- se ele não puder subsidiar coisa alguma? 99
grantes se transformam após o “encontro com Não tem razão para ser. E até levar esta
a música”. Até mesmo o mais “santificado” coisa para fora, acho que estes festivais

Religiões e Prisões
dos personagens da banda, André Cabral, são ótimos”.
apresenta essa mudança. Foi condenado
injustamente à prisão e cedeu aos esquemas A “transformação” é utilizada durante o filme
daquela instituição total – viciou-se em drogas, e citada nas entrevistas como uma categoria
tentou fugas, etc –, mas deixou isso no passado fundamental para o entendimento do que “re-
de sua história carcerária a partir da música. almente” os Missionários do Rock significam.
Nas palavras da diretora: A opção revelada pelos diretores nos remete
a análise feita por Márcia Leite Leite (2001)
“Já tinham passado pelo estágio de fuga sobre o documentário O Rap do Pequeno Prín-
e tinham encontrado uma possibilidade, cipe contra as Almas Sebosas quando afirma:
que foi a música. A gente tinha que colocar “O que o documentário nos revela a respeito de
aquela mudança que já tinha ocorrido. O Garnizé é que este escolheu para si o caminho
que é o grande barato do documentário? do rap e, desse modo, conseguiu escapar da
É esse momento da transformação. (...) , o violência: nem ‘alma sebosa’, nem justiceiro”
que aconteceu a partir do encontro com a (p. 165). Estar na banda era uma forma de
música, o anterior a isso é só ilustrativo, é lidar com a vida na prisão, de se distanciar da
só para situar, para contextualizar as pesso- massa carcerária em pensamentos e atitudes
as. (...) André Cabral diz no documentário, (as tentativas de fuga cessaram) e ao mesmo
ele só pensava em fugir. ‘A minha cabeça tempo de projetar uma vida “extra-muros”,
virou’. Ele fala e faz um movimento com a segundo o documentário nos apresenta. É
mão. Em todos os níveis, família, amigos, comum nas instituições totais de tipo presídio,
relações sociais e, ele, a perspectiva dele é um sentimento intenso de que o tempo em
um projeto de vida”. que se lá esteve é um tempo perdido. Segundo
Goffman (1996), este sentimento advém das
Os depoimentos seguem, então, uma lógica difíceis condições de vida nestas instituições,
que apresenta o passado do crime ou injustiça, as perdas de contatos sociais e a impossibi-
seguido da vida na prisão e deste “encontro lidade de adquirir nela algo que possa ser
transformador”. Os diretores parecem ter transferido para a vida externa. Provavelmente
assumido a idealização da banda como um isso explique o grande valor dado às ativida-
projeto de vida. Será que a banda tinha essa des que o autor define como “atividades de
dimensão desde o início, como nos fazem pen- distração”. Estas fazem o interno esquecer
sar? Ou será que foi uma idéia construída pelos temporariamente de sua situação real e se ligar,
diretores do documentário? Será, ainda, que de alguma forma, ao “mundo exterior”. No
a interação dos atores provocou perspectivas entanto, o documentário, as entrevistas com
diversas? Será que o ideal da banda formada os diretores e os depoimentos dos presos/mú-
dentro da prisão como um “projeto para fora” sicos procuram mostrar que o pertencimento
foi fruto dessa relação onde a troca de conheci- à banda ganhou dimensões maiores do que a
mentos e as expectativas foram reconstruindo existência da banda como uma mera “atividade
e atualizando realidades e sonhos? A diretora de distração”: ser da banda representava estar
afirma categoricamente: longe da vida do crime (não ser “alma sebosa”)
e estar atualizando uma forma de lidar com as
“Missionários do Rock não é uma banda injustiças “típicas” do sistema carcerário na-
de música, não pode ser vista só desta cional (não ser justiceiro). Na chave de leitura
forma, é um projeto de vida (...) Que sen- redentora, transformadora e “mágica”, o rap
tido tem em se fazer um trabalho desses tem um papel fundamental, como observou
100 Márcia Leite assim como o rock teve no caso Consuelo Lins, em uma análise dos filmes de
dos Missionários do Rock. Coutinho Santa Marta: Duas Semanas no Mor-
ro, Boca do Lixo e Cabra Marcado para Morrer,
Comunicações do ISER

A realização desse projeto musical na prisão ressalta a estratégia de filmar com o “outro”,
transformou subjetividades, relações afetivas interagindo e dando-lhe a palavra, da mesma
e de poder. As referidas mudanças nas relações forma que o entrevistado dá a palavra para o
afetivas configuram um ponto alto do filme. diretor.
No depoimento dos “meninos” e de suas fa-
mílias isso emerge. Segundo declaração dos “De fato, em muitos momentos, algo se
diretores do documentário, entre André Ca- constrói entre a palavra e a escuta que
bral e sua família, nas figuras de seu pai e sua não pertence nem ao entrevistado nem ao
irmã, nada mudou tanto, visto que a relação entrevistador. É um contar em que o real
“sempre foi muito próxima e muito querida. se transforma num componente de uma
Isso já existia e continuou”. A recuperação de espécie de fabulação, onde os persona-
laços familiares, a recolocação identitária dos gens formulam suas idéias, fabulam, se
presos em relação a suas mães e/ou mulheres inventam, e assim como nós aprendemos
é mais enfocada em relação ao Paulo e ao Lu- sobre eles, eles também aprendem algo
ciano. A seleção da fala das famílias pode ser sobre suas próprias vidas. É um processo
reveladora também da concepção dos diretores onde há um curto-circuito da pessoa com
a respeito de cada um dos integrantes da ban- um personagem que vai sendo criado no
da. No depoimento do senhor Gilberto, pai de ato de falar.” (Lins, 1998)
André, a banda não tem destaque. O enfoque
está na relação e na expressão do grande afeto. À guisa de conclusão
Não há o que ser recuperado, já que André
não é, do ponto de vista de sua família e dos Missionários é um documentário que toma
diretores, moralmente responsável por estar partido. Ele fala de personagens reais e os
na prisão. No caso de Luciano e Paulo, a fala “humaniza” diante das câmeras. Ele envolve o
dos familiares é no sentido do quanto essa espectador ao apresentar as famílias, as mães e
banda foi importante para a reconstrução dos seus sofrimentos, a separação e a reconciliação
“meninos” e para a relação com eles. Durante através da “conversão à música“. As questões
a apresentação de estréia do documentário mais freqüentemente apresentadas nos filmes
no Cine Odeon foi notório para os diretores e documentários sobre prisões como, por
o forte impacto para os músicos ocasionado exemplo, relações sexuais, promiscuidade,
pelos depoimentos de suas famílias. corrupção, crime, tortura, fugas, surgem como
pano de fundo. A emoção nos leva por outros
Equação desejada: denúncia caminhos que obscurecem uma mensagem
social X reconstrução identi- intrínseca à realização deste projeto fílmico:
tária o caráter instrumental da cultura. Ou seja,
a cultura não é só forma de “explosão de
A negociação entre os diretores do docu- simpatia”, tomando o termo emprestado de
mentário se dava no sentido de equacionar Adam Smith. A cultura, no documentário, é
uma perspectiva de denúncia social, somada mais do que distração. Ela tem um papel fun-
a proposta ressocializadora através da cul- damental para a produção, para a sociedade,
tura e outra que valorizava a experiência e a para a ressocialização do indivíduo. Nesse
subjetividade dos integrantes da banda, sem sentido, o “projeto para fora” que apresentava
seguir o formato clássico do documentário: a banda Missionários do Rock vinha ao encontro
depoimentos de autoridades, especialistas e desse ideal “redentor”. Outros grupos musicais
narrador com voz em off. existem na mesma penitenciária, mas são, até
onde nos foi possível observar, “formas de lidar LEITE, Márcia da Silva Pereira. “O Rap do Pequeno Príncipe
101
com a realidade imediata”. Expressavam a cul- contra as Almas Sebosas”. In: Cadernos de Antropologia da

tura pela cultura ou pelo lazer sem vinculação Imagem/Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Núcleo de

Religiões e Prisões
maior com “transformação” ou “produção”. Antropologia da Imagem – ano 6, vl.13 nº2, 2001.

Finalizamos, salientando nossa admiração LEMGRUBER, Julita. Cemitérios dos Vivos – Análise Sociológica de

pelo trabalho dos diretores Andréa Prates e uma prisão de mulheres. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1999.

Cleisson Vidal que revelaram em Missionários


os presos com dimensões de sensibilidade __________________. “Pena Alternativa: cortando a verba

distintas das apresentadas pelo senso comum da pós-graduação no crime“. In ALVITO, Marcos e VELHO,

acerca dos presidiários. O filme nos conduz a Gilberto (orgs.) Cidadania e Violência. Rio de Janeiro: FGV,

pensar que a última das virtudes da caixa de 2000.

Pandora ainda está na terra: a esperança.


LINS, Consuelo. “Imagens em Metamorfose”. Eco/UFRJ,

Bibliografia mimeo, 1998.

BIRMAN, Patrícia. “Yalorixás do Recife”. In: Cadernos de MONTE-MÓR, Patrícia. “Tendências do documentário etno-

Antropologia da Imagem/Universidade do Estado do Rio de gráfico” TEIXEIRA, Francisco Elinaldo (org) Documentário no

Janeiro, Núcleo de Antropologia da Imagem – ano 3, vl.7 Brasil – Tradição e Transformação Summus Editorial, SP, 2004.

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__________________. “Religião e filmes documentários no

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24. Rio de Janeiro, 2005. do Rio de Janeiro, Núcleo de Antropologia da Imagem – ano

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Janeiro: 2000.
João Trajano Sento-Sé
Ignacio Cano
Marcelo Freixo
Eduardo Ribeiro
As condições de
encarceramento
Elionaldo Julião
Laboratório de Análise
da Violência – UERJ

no Rio de Janeiro
103

Religiões e Prisões
Tortura, violação de direitos, corrupção e trá- que lhe são próprias e das percepções sociais
fico de favores são algumas das práticas que de que é objeto.
compõem a rotina do sistema penitenciário do
Rio de Janeiro. Justamente o conjunto de ins- No segundo capítulo tentaremos elaborar,
tituições cuja razão de ser é aplicar as sanções através das cifras oficiais, um breve resumo
previstas por lei sobre aqueles que a violaram do sistema penitenciário fluminense, enume-
tem sua dinâmica pautada por desrespeitos rando seus estabelecimentos e o número de
recorrentes dos preceitos legais. Como se internos, para que sirva de contexto às análises
não bastasse, o acesso público a informações posteriores.
desse universo é sistematicamente negado ou
obstruído pelas autoridades competentes, que O terceiro capítulo aborda a forma como a
parecem lidar com o assunto como se qual- mídia trata as questões relativas ao sistema
quer intromissão fosse comprometer o bom penitenciário do estado. Buscaremos eviden-
funcionamento da máquina punitiva. Tal ciar que a mídia oscila entre o desinteresse pelo
postura, ao que tudo indica, vai ao encontro tema e a sua espetacularização, quando acon-
de setores significativos da opinião pública, tecem grandes tragédias. Como resultado,
que parece preferir ignorar esse universo sujo e constrói-se uma imagem pública que reforça
degradado, mantido oculto pelos altos muros estigmas e enfatiza a perversidade dos presos,
que o cercam. os responsabilizado assim pelas tragédias que
os afligem.
O presente trabalho é resultado de uma
tentativa de descrever a situação em que são A partir dessa exploração inicial, o capítulo 4
mantidas as pessoas encarceradas no estado do focaliza a análise de três episódios que, pela
Rio de Janeiro, com ênfase nas violações aos brutalidade, provocaram verdadeira comoção,
direitos fundamentais que acontecem nesse levando a atenção do público para algumas
contexto, e a forma como a sociedade lida com das características mais perversas do sistema:
a questão. As fontes e os dados utilizados são o assassinato sob tortura do comerciante Chan
relativos aos anos de 2003 e 2004. Portanto, o Kim Chang, a rebelião na Casa de Custódia
relatório reflete a situação do sistema prisional Bangu III e a rebelião na Casa de Custódia
nesse período. de Benfica. O capítulo aborda um pequeno
estudo de caso de cada um desses três eventos
O sistema penitenciário fluminense abriga pela ótica da imprensa.
quase vinte mil seres humanos duplamente
condenados. Sentenciados pela justiça a cum- O capítulo 5 traça um perfil da situação do
prirem penas por delitos cometidos e conde- sistema, das suas deficiências e dos abusos
nados a cumprir suas sentenças em condições ocorridos dentro dele, a partir dos relatórios
degradantes que, longe de promoverem a re- produzidos pelo Conselho da Comunidade da
socialização que a lei estabelece, promovem Comarca do Rio de Janeiro.
a desumanização e, em última instância, o
crime. Nas páginas que seguem tentamos ofe- O Conselho da Comunidade da Comarca é um
recer um quadro exploratório das dinâmicas dos órgãos da Execução Penal contemplados
7
104 pela Lei de Execução Penal de 1984. Segundo com 2.018 vagas ; dezesseis penitenciárias
8
a lei, as suas atribuições incluem visitar os com 12.633 vagas ; dois Institutos Penais
9
presídios, entrevistar presos, elaborar relató- com 1.870 vagas ; uma unidade para atender
Comunicações do ISER

rios mensais e diligenciar recursos materiais egressos e receber presos em regime aberto,
para os presos. Embora a lei não seja muito Patronato Margarino Torres, com 206 vagas;
explícita sobre as funções do Conselho, ela e sete unidades hospitalares com capacidade
10
contém referências a funções assistenciais e a para 755 internos. A soma de todas essas
funções de supervisão e controle do sistema. instituições totaliza 22.576 vagas em cadeias
O Conselho da Comarca do Rio de Janeiro tem públicas.
se caracterizado, nos últimos anos, por uma 1 Fonte: Secretaria de
Estado de Assuntos Pe-
função ativa de fiscalização das condições de Para o gerenciamento do sistema penitenciá- nitenciários. Outubro de
cumprimento da pena, denunciando os abusos rio do estado, a governadora Rosinha Mateus 2004.
existentes, o que o colocou, em diversas oca- criou através do Decreto nº 32.621, de 1º de 2 Para as unidades
hospitalares não temos
siões, em rota de colisão com a Secretaria de janeiro de 2003, a Secretaria de Estado de a distribuição por sexo.
Assuntos Penitenciários do estado do Rio. Administração Penitenciária (SEAP). Para Já que estas atendem ho-
Por último, o capítulo final traz de forma o comando da pasta, foi nomeado o promo- mens e mulheres.
3 Fonte: Ministério
sumária as conclusões principais do conjunto tor e coronel reformado da Polícia Militar, da Justiça/ Secretaria Na-
do trabalho. Astério Pereira dos Santos. Vale lembrar que cional de Justiça/ Depar-
o sistema penitenciário era anteriormente tamento Penitenciário
Nacional/ junho de 2004.
Quadro geral do sistema pe- regido pelo Departamento do Sistema Peni- A população carcerária
nitenciário fluminense tenciário (DESIPE), que ficou extinto como nacional compreende
conseqüência dessas mudanças. 331.457 internos.
4 Um total de três pe-
O Brasil vem experimentando um forte au- nitenciárias (Dr. Serrano
mento no número de pessoas encarceradas. Na estrutura da SEAP foram criadas, com Neves, Jonas Lopes de Car-
Segundo dados do DEPEN, entre 1995 e o objetivo de dar assistência às direções dos valho e Magé ) também
estão abrigando internos
2003, o crescimento foi de 93%. Por sua vez, presídios, três Coordenações de Unidades provisórios.
o Rio de Janeiro é o segundo estado que mais Prisionais: uma corresponde ao complexo de 5 58 estão sem condi-
1
encarcera no Brasil. São 19.522 pessoas pre- Bangu; outra aos estabelecimentos de Niterói ções de habitabilidade.
6 A princípio os pre-
sas (6% da população nacional das cadeias), e do interior do estado; e a última compre- sídios conteriam apenas
2
das quais pelo menos 962 são mulheres . Nes- ende o complexo Frei Caneca e outras insti- presos provisórios, da
te ranking fica atrás somente do estado de São tuições isoladas dentro do município do Rio. mesma forma que as Ca-
sas de Custodia, enquanto
Paulo, que possui mais de 104 mil internos Consta da estrutura da Secretaria, ainda, uma que as penitenciárias esta-
(31% da população nacional das cadeias). Os Superintendência de Treinamento e Qualifi- riam ocupadas por presos
dois estados juntos possuem quase 37% da cação, voltada exclusivamente para qualificar já condenados. Na prática
3 essa distinção entre presí-
população prisional nacional . o corpo funcional, uma Ouvidoria e uma dios e penitenciárias não é
Corregedoria. São também órgãos da SEAP observada.
A nossa análise do sistema penitenciário a Fundação Santa Cabrini (FSC), responsável 7 30 estão sem condi-
ções de habitabilidade.
fluminense estará baseada, a partir daqui, pela ocupação e qualificação profissional dos 8 2.505 estão sem con-
em dados oficiais da Secretaria de Estado de internos, o Conselho Penitenciário (CONPE) dições de habitabilidade.
Assuntos Penitenciários (SEAP) relativos a e o Fundo Especial Penitenciário (FUESP). 9 281 estão ou sem
condições de habitabili-
outubro de 2004. dade.
Uma das primeiras medidas tomadas nessa 10 Não possuímos o
O sistema penitenciário do Rio de Janeiro, reforma foi a transferência para a compe- número de vagas decla-
radas para as unidades
regulamentado pelo Decreto Nº 8.897 de tência da SEAP das Casas de Custódia do hospitalares, de modo que
31 de março de 1986, reúne nove casas de Estado e da Penitenciária Laércio da Costa essa cifra resulta da soma
4 5
custódia , com 4.964 vagas declaradas ; uma Pelegrino (Bangu I), anteriormente sob a do número de internos
nos hospitais com o nú-
colônia agrícola no município de Magé, com responsabilidade da Secretaria de Segurança mero informado de vagas
6
capacidade para 130 internos; dois presídios Pública. Desta forma, buscou-se concentrar disponíveis.
Número de internos
nas unidades prisionais
por complexo penitenciário

Número
de internos outras
unidades Frei Caneca
17,6% 15,4%
105
Unid. de Campos 2,1%
Unid. de Niterói 5%

Religiões e Prisões
Frei Caneca 3.009
Bangu 11.690
Unidades de Niterói 983
Unidades de Campos 400 Bangu
Outras unidades 3.440 59,9%
TOTAL 19.522

Fonte: Coordenação do Serviço Social – SEAP

tudo o que diz respeito aos presos em um O comércio varejista de drogas está estrutu-
único ente administrativo. rado em facções que são inimigas entre si e
disputam o controle dos espaços. Essa divi-
Analisando os dados colhidos junto à SEAP, são em facções é um critério fundamental de
11
existem 22.576 vagas nas cadeias públicas distribuição de internos no sistema prisional.
e unidades hospitalares penitenciárias do Quando a pessoa detida chega à POLINTER,
estado. Destas, 2.874 são identificadas como os funcionários perguntam a qual facção ela
‘inóspitas’, ou seja, sem condições de habita- pertence, de forma que possa ser enviada a uma
bilidade. Portanto, o número real de vagas no unidade da sua facção. As unidades prisionais,
sistema seria de 19.702 vagas. O número to- outras
tal de internos nessas instituições é de 19.522, unidades Frei Caneca
Número de internos
15,4%
distribuídos conforme o gráfico acima. 17,6% nas unidades prisionais
Unid. de Campos 2,1% por região do Estado (RJ)
Mais da metade dos internos encontra-se
Unid. de Niterói 5%
em Bangu e quase 16% na Frei Caneca. Isso Número
significa que três quartos da população car- de internos

cerária do estado se concentram em apenas


dois complexos penitenciários. Tomando a Bangu
distribuição espacial dessa população, po- 59,9%
demos observar na tabela ao lado, que quase
Capital 17.535
noventa por cento da população carcerária
Interior 1.004
cumpre pena na capital.
presos por complexo
outros
Niterói
TOTAL
983
19.522
agentes 152 agentesdo Rio
A53realidade
agentes do sistema penitenciário
religiosos da Igreja
religiosos
de Janeiro 12% uma peculiaridade
ligados apresenta
Universal em
a entidades
relação 23%
a todos os demais estados da federa-
espíritas Frei Caneca
ção: enquanto
8% em todos eles predominam
Interior 5,2%
apenados condenados por roubo, no estado Bangu
do Rio de Janeiro a maior concentração de Niterói 5%
Unid. Niteroi
penas é por tráfico de entorpecentes. Essa
tendência é explicada pela intensa ação no Unid. Campos
estado18% de grupos organizados em 20% torno do
120 agentes 32 agentes Outras Unid.
comércio
das diferentes varejista de drogas, que são, por
missionários
da Igreja
Igrejas da
vezes, 19%
considerados uma espécie
Assembléia de poder
Batista
126 agentes Capital
11 São 755 vagas das de Deus
paralelo, pois das
mantêm
pastorais sob seu controle
unidades hospitalares e e entidades 89,8%
21.821 vagas nas outras as populações que vivem nas favelas e nas
católicas
unidades. periferias. Fonte: Coordenação do Serviço Social – SEAP
106 via de regra, contêm pessoas pertencentes à estabelecimento, têm se revelado trágicas,
mesma facção, para evitar o risco de violência como veremos mais adiante.
entre elas. Assim, elementos como grau de
Comunicações do ISER

periculosidade, gravidade do delito cometido Um outro elemento relevante é a distribuição


ou situação judicial são colocados em segundo dos internos segundo a modalidade de pena
plano em favor de um critério emprestado do em cumprimento. (veja tabela ao lado)
mundo do crime. Por outro lado, isso dificulta
a concessão de benefícios como o regime semi- Como podemos observar mais de 60% dos
aberto, pois o preso, para poder cumprir a pena internos se encontram em unidades de regime
no novo regime, precisa não só que exista vaga fechado. Se acrescentarmos a esses aqueles
no sistema, mas que exista vaga num presídio que estão em unidades de detenção provisória
da sua facção. As facções contribuem muito ou casas de custódia, aguardando sentença
para que o sistema em geral seja percebido judicial, temos cerca de 86% dos internos em
como um barril de pólvora, sempre prestes situação de privação total de liberdade.
a explodir em motins e rebeliões. Tentativas
de ignorar tais filiações realizadas de forma Embora o recurso à privação total de liberdade
abrupta por parte do poder público, concen- tenda a ser dominante em qualquer sistema
trando presos de diversas facções num único prisional, os números fluminenses são extre-
mamente altos. Aparentemente, eles endos-
Número de internos sam as pressões de setores da sociedade que
nas unidades prisionais defendem o maior uso de penas alternativas
por tipo de regime para casos de criminosos julgados por ações
de menor gravidade ou violência. Essa é uma
Número discussão complexa, mas é importante lembrar
de internos
que existem numerosos casos de internos que
se encontram em unidades fechadas ainda que
já pudessem gozar de progressão para outros
regimes. Da mesma forma, há muitos presos
Fechado 11.779 condenados que se encontram fora de unida-
Semi-aberto 2.520 des previstas para o cumprimento de pena,
Aberto 290 o que atesta a precariedade do funcionamento
Provisório ou Custódia 4.933
do sistema como um todo.
Especial nulo
Um ponto central no debate sobre o sistema
TOTAL 19.522
carcerário é o da superlotação. Na percepção
popular, as cadeias estariam permanentemen-
te superlotadas. Apresentamos as cifras oficiais
Fechado nas tabelas seguintes, calculadas por unidade.
60,3% Provisório ou Assim, enquanto algumas unidades possuem
Custódia
mais vagas do que presos, ou seja, contam com
25,3%
vagas sobrando, em outras unidades acontece
o contrário e o número de presos excede as
1,5% vagas disponíveis. (veja tabela ao lado)
Aberto

12,9% A primeira vista, o sistema penitenciário flumi-


Semi-aberto nense teria um total de 1.962 vagas disponíveis
para preenchimento (primeira coluna da tabe-
la 4). Ocorre, porém, que apesar desse número
Número de vagas livres e
vagas faltantes nos presídios
por regime

Vagas Vagas Diferença


Livres Faltantes de vagas

linhas gerais, os dados apresentados, algumas 107


hipóteses podem ser esboçadas: existe um
grande problema em relação à distribuição

Religiões e Prisões
Fechado 150 801 -651
Semi-aberto 73 150 -77
e planejamento das vagas no sistema peni-
Aberto
tenciário do estado. Para solucioná-lo seria
16 76 -60
necessário ir além da construção de novos
Provisório ou Custódia 1.710 755 955
presídios. Em segundo lugar, temos um
Especial 13 nulo 13
quadro resultante da estratégia do governo
TOTAL 1.962 1.782 180
do estado, que privilegiou a criação de Casas
de Custódia em detrimento da ampliação das
vagas nas unidades penais para atendimento
Número de vagas livres e
de internos nos regimes fechado, semi-aberto e
vagas faltantes nos presídios
aberto, gerando, com isso, um grande número
por complexo
de vagas para internos em regime provisório. A
situação é especialmente grave para os presos
Vagas Vagas Diferença
Livres Faltantes de vagas em regime semi-aberto, muitos dos quais não
conseguem vaga num dos poucos presídios
dedicados para esse fim e são obrigados a per-
manecer em instituições de regime fechado. A
relação vagas disponíveis / superlotação sugere
Frei Caneca 62 71 -9
a necessidade de um melhor planejamento dos
Bangu 92 1.201 -1.109
recursos disponíveis.
Unidades de Niterói 31 73 -42
Unidades de Campos 175 55 120
Finalmente, cabe destacar, como demonstra
Outras unidades 1.602 392 1.210 a tabela seguinte, que o excesso de presos se
TOTAL 1.962 1.782 180 concentra exatamente no complexo de Ban-
gu, construído como a grande solução para
o sistema penitenciário e principal foco de
expressivo de vagas a serem preenchidas em problemas desse universo. É evidente que o
algumas unidades, observa-se em outras uni- excesso de internos não explica por si só o fato
dades uma superlotação, que somada totaliza de estarem em Bangu os principais focos de
1.782 internos. Fazendo uma simples operação rebeliões no sistema penitenciário fluminense.
aritmética, podemos constatar, então, que o Lá se encontram alguns dos presos tidos por
12 Segundo dados do saldo total de vagas disponíveis no sistema,
Ministério da Justiça mais perigosos sob a guarda do Estado, e isso
(2004), o Sistema Peni- de acordo com as informações disponíveis, é deve ser levado em conta. Está fora de dúvida,
12
tenciário do Rio de Janeiro de apenas 180 vagas . porém, que a manutenção de internos além
é um dos poucos no país
que ainda possuem vagas da capacidade de absorvê-los compromete a
disponíveis. Na sua gran- Em suma, de acordo com esses dados não é segurança e as condições de funcionamento
de maioria encontram-se possível concluir que existe superlotação no das unidades. (veja tabela ao lado)
superlotados. conjunto do sistema penitenciário, apenas
13 A superlotação, no 13
entanto, tende a ser in- em algumas unidades . Acompanhando pelo Como podemos perceber a partir de uma
tensa na POLINTER e tipo de instituição penitenciária, podemos breve aproximação, o universo carcerário
nas delegacias que ainda observar que as vagas disponíveis concen-
possuem carceragens, que fluminense padece de um conjunto de pro-
não fazem parte da SEAP. tram-se nas unidades em que os presos estão blemas. Questões referentes a modalidades
É importante destacar, ainda aguardando a sentença judicial, havendo de gerenciamento do sistema se juntam aos
porém, que há pessoas também uma disponibilidade residual nas
já condenadas que con- procedimentos impostos pelas dinâmicas da
tinuam presas, de forma unidades especiais (para policiais e portadores ilegalidade – como as restrições impostas pela
irregular, em delegacias. de diploma universitário). Analisando, em existência de facções à distribuição racional e
108 legal dos internos nas diversas unidades – com- jornal com perfil mais popular. Os três são
prometendo seu funcionamento. Soma-se a instrumentos importantes de formação da
isso a baixa capacidade operacional dos órgãos opinião pública.
Comunicações do ISER

do estado e o relativo desinteresse do público


quanto à sorte da população carcerária e temos O primeiro passo consistia na seleção das
como resultado um quadro atravessado por matérias desses jornais relativas ao sistema pe-
irregularidades e violações. Curiosamente, nitenciário. No caso de O Globo e do Jornal do
como tentaremos demonstrar a seguir, apenas Brasil, foi feita, em primeiro lugar, uma busca
quando essa sinfonia de caos e degradação é automatizada de matérias que contivessem as
passível de ser apreendida pela lógica do es- palavras “cadeia” “prisão”, “penitenciária” ou
petáculo é que temos algum interesse e uma alguns dos seus derivados. Em segundo lugar,
mobilização por parte da opinião pública e de as matérias foram lidas para selecionar aquelas
alguns setores do Estado. que realmente tratavam, mesmo que não fosse
de forma exclusiva, do sistema penitenciário.
Mídia e imagem pública do As matérias em que a palavra “penitenciário”
sistema penitenciário ou outras eram apenas menções de passagem,
mas cujo conteúdo realmente não tinha nada
As imagens veiculadas pela grande imprensa a ver com a questão, foram descartadas.
hoje têm um grande peso na construção de
percepções, valorações e interpretações so- No caso de O Dia não existia a possibilidade
cialmente compartilhadas. Não raro, temos de uma busca automática. Portanto, os pes-
a mídia pautando iniciativas governamentais, quisadores tiveram de ler todos os jornais dos
redefinindo agendas, estabelecendo paradig- anos referidos para identificar as matérias
mas para as políticas públicas. As questões relevantes, de acordo com os critérios defi-
relativas à segurança têm sido especialmente nidos acima.
suscetíveis a encontrar, nos mais variados
veículos de comunicação, um fórum em que O primeiro resultado é o número de matérias
a abordagem e os conteúdos das intervenções por mês dedicadas ao tema, como indicador
dão a tônica para um amplo debate acerca da da importância atribuída à questão, assim
natureza do problema e das iniciativas toma- como do seu apelo público. Um indicador
das pelo Estado. mais preciso estaria composto pelo espaço
2
(em cm ) destinado a tais referências e pela
O repertório de problemas referentes à se- ponderação desse espaço em função do lugar
gurança pública é suficientemente intenso em que a notícia aparece – por exemplo, qual-
e variado, o que garante um espaço perma- quer espaço dedicado ao tema na primeira
nente para que notícias sobre o tema tenham página possui mais valor do que uma matéria
espaço cativo nos veículos de comunicação. em páginas interiores. Infelizmente, seria
Assim, interessa-nos verificar a freqüência preciso um tempo muito maior para poder
com que o sistema penitenciário fluminense desenvolver esses indicadores.
aparece como objeto de interesse na produção
jornalística da impressa e a natureza dessa Num contexto como o Rio de Janeiro, em que
cobertura. Para tanto, foi realizada uma bus- a segurança pública preocupa gravemente a
ca temática em três dos principais jornais de população e ganha muito espaço nos meios
grande circulação no Rio de Janeiro – Jornal de comunicação, esperar-se-ia que a questão
do Brasil, O Globo e O Dia – para os anos conexa do sistema penitenciário recebesse
de 2003 e 2004. Os dois primeiros atingem uma atenção semelhante de forma regular.
o setor da população com maior nível de es- Não entanto, não foi essa a direção em que
colaridade e renda, enquanto o último é um os dados apontaram.
Número de matérias sobre questões relacionadas
ao sistema penitenciário publicadas por mês
nos jornais: O Dia, O Globo e Jornal do Brasil.

Janeiro 15 2003
Fevereiro 28
Março 28
extremamente baixa, sobretudo considerando 109
Abril 17 que estamos lidando com três jornais. Deve-
Maio 8 mos lembrar, também, que estão incluídas aí

Religiões e Prisões
Junho 11 matérias cujo cerne não é necessariamente
o sistema penitenciário, embora elas tratem
Julho 22
também do sistema.
Agosto 30

Setembro 72 Desse modo, num total de vinte e quatro me-


Outubro 21 ses cobertos pela pesquisa, apenas dois meses
Novembro 19
contam, excepcionalmente, com números
bastante expressivos. Isto porque nesses dois
Dezembro 33
momentos aconteceram episódios concretos
Janeiro 6 2004 que tiveram grande repercussão e que provoca-
Fevereiro 7 ram uma atenção especial, embora temporária,
Março 19 voltada sobre o sistema penitenciário. Os dois
Abril 8
episódios que causaram comoção nacional
foram trágicos. Agosto de 2003 foi o mês em
Maio 27
que o comerciante de origem chinesa Chan
Junho 102
Kim Chang foi torturado brutalmente no in-
Julho 18 terior do Presídio Ary Franco, vindo a falecer
Agosto 31 dias depois, em decorrência das seqüelas do
espancamento de que foi vítima. Junho de
Setembro 9
2004 foi o mês em que houve a segunda mais
Outubro 13
longa rebelião de presos já ocorrida no sistema
Novembro 3 penitenciário fluminense, que se arrastou por
Dezembro 5 64 horas. Ao final do conflito, segundo dados
oficiais, trinta e uma pessoas (um agente pe-
nitenciário e trinta internos) estavam mortas.
O gráfico acima apresenta o número de ma- Trataremos, na próxima seção, entre outros,
térias aparecidas por mês no conjunto dos desses dois casos que dramatizaram alguns dos
três jornais. traços mais perversos do sistema carcerário do
Rio de Janeiro.
As variações na série temporal de um mês para
outro são, em geral, pequenas, salvo em dois Passamos agora a descrever a conjuntura
momentos que serão descritos mais adiante. nesses outros seis meses — fevereiro, março,
A primeira conclusão que pode ser extraída agosto e dezembro de 2003, e maio e agosto
é o baixo número de matérias dedicadas ao de 2004 — em que o número de matérias foi
tema. Excetuando-se os casos extraordinários próximo ou levemente superior a 30 casos.
de setembro de 2003 e de junho de 2004, o Apesar desses meses apresentarem incidências
número de matérias é sempre inferior a 60 por de notícias bem inferiores aos dois momentos
mês, ou seja, duas matérias por dia. Apenas em de pico de nossa série, ainda encontramos
fevereiro, março, agosto e dezembro de 2003, e neles incidências bem superiores ao que pode-
maio e agosto de 2004 — além dos dois meses mos considerar o padrão do período estudado.
extraordinários anteriormente mencionados Buscamos, então, verificar os motivos para tal
— encontramos um número próximo ou su- tendência.
perior a trinta matérias. Isso quer dizer que na
maior parte dos meses, a média é de menos de Fevereiro de 2003: esse mês, o segundo de
uma menção por dia. Essa é uma tendência vigência do governo de Rosinha Mateus, foi
110 especialmente conturbado na área de seguran- pelas autoridades para controlar o crime e a
ça pública. O governo fluminense negociava ação dos chefes do tráfico dentro do sistema
com o governo federal a transferência de um penitenciário.
Comunicações do ISER

dos traficantes considerados mais perigosos,


Fernandinho Beira-Mar, cuja presença no Agosto de 2003: o período foi marcado por
sistema penitenciário do Rio de Janeiro era notícias decorrentes de três mortes ocorridas
entendida como uma ameaça à ordem pública. no fim de julho e uma no início de agosto. No
Ao mesmo tempo em que o governo estadual dia vinte e dois de julho o coordenador de se-
assumia sua incapacidade de manter a guarda gurança dos presídios de Bangu, Paulo Rober-
14
de um prisioneiro tão influente e perigoso, as to Rocha, foi assassinado à queima-roupa .
autoridades encontravam grandes dificulda- Quatro dias depois, o delegado de divisão de
des de encontrar algum outro estado que o capturas suburbanas, Roberto Ubiratan Dias,
aceitasse. Simultaneamente, ocorreram vários também foi executado. No dia 5 de agosto, foi
atentados à ordem pública, culminando com o morto o diretor do presídio Bangu III, Abel Sil-
15
que ficou conhecido como a segunda-feira sem vério . O assassinato de autoridades da área
lei. Vários espaços públicos foram depredados de segurança causou compreensível comoção,
e o comércio recebeu ordens dos criminosos que aumentou com a veiculação da informa-
para fechar as portas em muitos pontos da ção de que a ordem das execuções teria saído
16
cidade do Rio de Janeiro, o que espalhou pâ- de dentro dos presídios . Uma quarta morte,
nico pela cidade. no fim de julho, também cativou a atenção
da imprensa. Dessa feita, a vítima foi Marcio
Os dois episódios que mobilizaram a cidade do Amaro de Oliveira, o Marcinho VP, ex-chefe
Rio apareciam como conectados na medida do tráfico de drogas do Morro Dona Marta,
em que, segundo as próprias autoridades, as zona sul do Rio de Janeiro, preso em Bangu III.
iniciativas de desordem eram orquestradas e O fato de ter sido assassinado dentro de sua
comandadas por presos do interior do próprio cela, estando sob a custódia do Estado, não
sistema penitenciário. Mais especificamente, chamou tanto a atenção da mídia quanto a
os suspeitos eram traficantes de uma facção trajetória pregressa da vítima. As três mortes,
criminosa (Comando Vermelho), a qual per- ocorridas no final de julho, somadas à morte
tencia Beira-Mar. É esse o momento no qual do diretor de Bangu III, ocorrida no início do
o sistema prisional vira alvo de uma atenção mês seguinte, fizeram com que, ao longo do
especial. No final de fevereiro, o traficante mês de agosto, a imprensa desse cobertura a
foi transferido para o Presídio de Segurança declarações e anúncios de iniciativas voltadas
Máxima da cidade de Presidente Prudente, para debelar a ação do crime organizado no
São Paulo. interior do sistema penitenciário. No fim
desse mês ocorreu o episódio envolvendo
Março de 2003: durante esse mês, a opinião a morte de Chan Kim Chang, que levaria o
pública acompanhou os desdobramentos interesse da mídia pelo sistema prisional ao 14 Jornal do Brasil. 26
da transferência de Beira-Mar para a cidade seu ponto mais alto. de julho de 2003. p.03
– Diretores de Presídio sem
de Presidente Prudente, bem como as ten-
Segurança.
tativas do traficante de retornar ao Rio de Dezembro de 2003: é o mês da mais longa 15 Jornal do Brasil. 6 de
Janeiro. Aconteceu, também, naqueles dias, rebelião do sistema penitenciário fluminense. agosto de 2003. p.18 – As-
sassinado diretor de Bangu
o assassinato do Juiz de Execuções Penais de Como esse caso será relatado na seção seguin-
3.
Presidente Prudente, Antônio Jorge Machado te, não nos deteremos nele agora. 16 Ver também: Jornal
Dias, que chocou o país. Durante todo o mês do Brasil. 18 de agosto
de 2003. p.16 – Mais um
as ameaças do crime organizado deixaram a Maio de 2004: nesse mês havia já uma razoá-
agente morto. Sobre o as-
cidade em estado de alerta e a imprensa deu vel cobertura da imprensa sobre medidas vol- sassinato de outro agente
ampla cobertura às iniciativas anunciadas tadas para o aumento do controle dos presos penitenciário.
no interior do sistema quando, no dia vinte Além dessa atenção cíclica deflagrada por re- 111
e nove, estourou uma das mais sangrentas beliões, fugas ou medidas corretivas, o sistema
rebeliões no estado na Casa de Custódia de penitenciário concentra a atenção intensa dos

Religiões e Prisões
Benfica, que também será relatada na próxima meios de comunicação e da sociedade apenas
seção. O impacto da tragédia explica o alto em casos muito dramáticos. A qualidade do
número de matérias publicadas em junho drama pode ser atingida por duas vias. A pri-
de 2004. meira é um alto número de vítimas decorrentes
de ações dos presos ou de agentes públicos. A
Agosto de 2004: nesse mês, um grupo de segunda é um perfil de vitima que não corres-
presos do presídio Ary Franco rendeu os dois ponde ao modelo típico do apenado, seja por se
agentes responsáveis pela segurança em seu tratar de um criminoso ilustre (Marcinho VP)
pavilhão e assassinou oito colegas, preceden- ou de uma pessoa de classe média-alta (como o
do cada morte de um “julgamento”. Após as comerciante Chan Kim Chang). Nesses casos,
mortes dos “condenados” e da liberação dos os problemas crônicos do sistema vêm à luz:
“absolvidos”, entregaram os estoques com a indigência dos internos, a precariedade das
que perpetraram o crime e libertaram os dois condições de higiene e segurança, a brutali-
agentes feitos reféns. A tranqüilidade e a dade dos tratamentos. Poder-se-ia dizer que
facilidade com que agiram provocaram nova a sociedade reage como se esses fatos fossem
comoção que explica, ao menos em parte, a extraordinários, quando, na realidade, o único
razoável cobertura pela imprensa dos proble- extraordinário é a sua exposição pública. Um
mas prisionais. exemplo claro desse processo foi a cobertura
dada à rebelião de Benfica, que foi seguida por
Essa coleção de eventos nos permite concluir uma série de denúncias sobre arbitrariedades
que o sistema penitenciário mereceu da mídia no sistema penitenciário. O mesmo pode ser
destaque apenas em momentos dramáticos dito sobre o episódio que resultou na morte
e negativos como rebeliões e fugas. Essa é a de Chan Kim Chang.
tônica predominante. Um dos paradoxos do
quadro atual é que muitas rebeliões aconte- Por outro lado, a cobertura jornalística pare-
cem quando, após uma tentativa frustrada ce deixar transparecer, em muitas ocasiões,
de fuga, os presos decidem fazer um ato de uma impressão de que o ‘inferno’ do sistema
força para poder negociar as condições da sua penitenciário parece advir da combinação de
entrega e evitar represálias irregulares (como um conjunto de presos irremediavelmente
espancamentos e outros abusos), que não raro corrompidos — para o qual a única resposta
acontecem após as fugas. Assim, a atuação possível parece ser maior rigor e dureza — e
ilegal dos agentes do estado contra os presos eventuais falhas de profissionais igualmente
nesses casos promove outras ações ilegais e contaminados pela perversão. A precariedade
violentas por parte desses últimos, das quais da estrutura e das condições de trabalho dos
os próprios agentes do estado acabam sendo agentes, e a perversidade das lógicas ilegais
vítimas (reféns etc). que se sobrepõem aos códigos formais com
a aquiescência do poder do Estado, ganham
Fora os casos de rebeliões e fugas, o sistema destaque apenas em situações dramáticas.
penitenciário adquire visibilidade quando
autoridades ligadas ao setor de segurança se Nesse sentido, poder-se-ia dizer que o recurso
pronunciam, anunciando, invariavelmente, dos presos à violência e ao desafio aberto não
medidas que tornarão o controle interno mais deixa de ter certa racionalidade, já que apenas
rigoroso. Não raro, estas manifestações tam- nesses momentos algumas das características
bém costumam ser provocadas por episódios do sistema penitenciário que lhes são particu-
de motins e fugas. larmente desfavoráveis vêm à tona. Quando
112 as crises resultam em mortes, a degradação e menos incomum do que a cobertura dada pela
as irregularidades — a corrupção, a tortura, imprensa e o sentimento provocado junto à
a violação de direitos — escapam dos limites opinião pública parecem sugerir. Com efeito,
Comunicações do ISER

demarcados pelos muros do sistema. Assim, relatórios anteriores do Conselho da Comuni-


17
somente motivada pela erupção de situações dade já tinham relatado denúncias de tortura
limite, a mídia torna público aspectos indefen- no Ary Franco.
sáveis do tratamento que o Estado brasileiro
dispensa àqueles que se encontram sob sua O episódio relatado dramatiza uma série de
tutela. marcas que caracterizam o funcionamento
do sistema carcerário fluminense. Segundo
Os três episódios descritos na seção seguinte o apurado na investigação, a brutalidade dos
servem como estudos de caso para entender agentes foi uma reação à recusa do detido a
melhor esse quadro. ser fotografado. Ainda segundo os autos, que
tiveram algumas passagens publicadas pela
Crises no sistema penitenci- mídia, Chan Kim Chang encontrava-se bas-
ário fluminense: três episó- tante agitado ao dar entrada no presídio, tinha
dios exemplares dificuldades para se comunicar em português e
se insurgiu contra as determinações dos agen-
O assassinato de Chan Kim tes penitenciários. Como resposta, os agentes
Chang extrapolaram o uso da força, espancando co-
vardemente o detido, e prosseguiram as agres-
Vinte e cinco de agosto de 2003. O chinês na- sões mesmo após este se encontrar prostrado.
turalizado brasileiro Chan Kim Chang é detido Dentre as violências praticadas, foi relatado
pela Polícia Federal no aeroporto internacional o uso de um pau, destinado exatamente para
do Rio de Janeiro e levado para o presídio Ary esse tipo de procedimento e apelidado “direitos
18
Franco por tentar embarcar para os Estados humanos” . A inscrição mencionada atesta
Unidos com a quantia de trinta e cinco mil dó- a forma como uma parcela dos funcionários
lares não declarados. Dois dias depois, Chan do sistema prisional, aparentemente com o
Kim Chang é internado no Hospital Salgado beneplácito ou a cumplicidade passiva de seus
Filho em estado de coma decorrente de feri- superiores, lida com sua obrigação, enquanto
mentos sofridos no interior daquela unidade. agentes do Estado, de preservar a integridade
No dia quatro de setembro, ele morre devido daqueles que estão sob sua tutela.
às lesões causadas, segundo o apurado, por
agentes penitenciários com o auxílio de três Dentre as várias denúncias encaminhadas por
detentos responsáveis por trabalhos de apoio órgãos de defesa dos direitos humanos nacio-
no presídio. nais e internacionais, o abuso de autoridade e a
violência estão entre as mais freqüentes, sendo
Graças à brutalidade do ocorrido, o episódio objeto de denúncias em muitas das unidades
mereceu cobertura diária da mídia. A opinião do sistema penitenciário fluminense. Aparen- 17 Como já foi mencio-
nado no início do traba-
pública pôde acompanhar, passo a passo, a temente, esse tipo de procedimento, a despeito
lho, o Conselho da Co-
agonia do chinês naturalizado brasileiro e as das denúncias, chega a ser naturalizado pelos munidade é um órgão da
investigações que levaram à denúncia de dez próprios internos. No caso aqui tomado como execução penal, previsto
na lei, que, entre outras
suspeitos, sendo sete agentes penitenciários e paradigmático tal naturalização é atestada pela
coisas, visita os presídios
três internos. Pôde, também, ter contato com participação de três internos na sessão de tor- e fiscaliza o sistema peni-
alguns detalhes da sessão de tortura e viola- tura a qual o comerciante foi submetido. tenciário.
18 O Globo. 9 de outu-
ções sofrida por Chan Kim Chang. Embora
bro de 2003. pg. 14 – Agres-
repulsivo o que ocorreu naquela ocasião nas O caso da tortura seguida de morte de Chan sões com um porrete chamado
dependências do presídio Ary Franco é muito Kim Chang desencadeou uma crise na cúpula “Direitos Humanos”.
do governo do estado que se estendeu até os esquemas que, segundo se suspeita, envolvem 113
meses posteriores. Um de seus desdobramen- agentes penitenciários, advogados, familiares
tos foi a demissão do Secretário de Direitos de presos e policiais. Também há esquemas

Religiões e Prisões
Humanos, José Luiz Duboc Pinaud. Jurista para o comércio de drogas, de vantagens para
com longo histórico de militância em causas os presos com mais recursos e para a entrada
de defesa dos direitos humanos, Pinaud foi de aparelhos de telefone celular, ligados a
um dos responsáveis pela denúncia de tortura centrais telefônicas clandestinas. Nos últimos
sofrida pelo chinês. Ele tirou pessoalmente as anos, foi feito um esforço para a colocação de
fotos da vítima, quando ainda internada no bloqueadores de telefonia celular, a despeito
hospital, que serviriam para negar a versão do qual continuam acontecendo ligações de
oficial, segundo a qual Chan Kim Chang havia dentro dos presídios.
se autolesionado. Essas fotos foram funda-
mentais para o Ministério Público formular Esse tipo de ligação promíscua com o mundo
a denúncia responsabilizando os agentes além muros, alicerçada em esquemas de cor-
do Estado. Por outro lado, suas declarações rupção e tráfico de vantagens, faz com que
públicas reconhecendo a tortura foram fun- freqüentemente o interior do sistema peniten-
damentais para que a responsabilidade do ciário pareça pouco mais que um prolonga-
Estado fosse assumida. Tal postura o colocou mento das redes criminosas, funcionando com
em rota de colisão com o Secretário de Admi- as mesmas lógicas e estruturas hierárquicas
nistração Penitenciária, Astério Pereira, que destas. Sendo assim, aquele criminoso que
assumiu inicialmente a versão da autolesão, detém poder na hierarquia de alguma facção li-
na tentativa de minimizar a responsabilidade gada ao comércio de drogas tende a reproduzir
de seus subordinados e a existência de abusos esse poder no interior do sistema. Há relatos
no interior do sistema penitenciário. Fruto de internos que não somente controlam seus
desse enfrentamento, em novembro, cerca de negócios do interior do sistema penal como
dois meses após a morte de Chan Kim Chang, são capazes de coordenar, através dos telefones
a governadora Rosinha Matheus exonerou o celulares, ações externas.
Secretário de Direitos Humanos. No momen-
to em que o presente relatório é elaborado, Do mesmo modo que as hierarquias se re-
Astério Pereira permanece à frente do Sistema produzem, também as rixas e rivalidades do
de Administração Penitenciária. chamado “mundo do crime” são respeitadas
e concorrem para estruturar o universo penal
Bangu III: a mais longa fluminense. É o caso das cisões entre facções
rebelião no sistema do crime organizado em torno do comércio
penitenciário fluminense varejista das drogas. Como já foi relatado, o
pertencimento a uma ou outra facção é um
O complexo penitenciário de Bangu foi cria- critério básico de estruturação de todo o siste-
do com a expectativa de ser a “solução” para ma penal. Tal lógica está de tal modo arraigada
o problema do sistema prisional do Rio de que ela é observada até mesmo no sistema de
Janeiro. Um total de cinco unidades, algu- cumprimento de medidas sócio-educativas
mas delas anunciadas como inexpugnáveis e voltado para o atendimento de adolescentes
a prova de fugas, receberiam os presos mais em conflito com a lei.
perigosos e contariam com um moderno
sistema de controle. O complexo atual, no A rebelião ocorrida em Bangu III, no mês de
entanto, é algo completamente diferente. São dezembro de 2003, é apenas um episódio na
freqüentes os casos de rebelião. Em cada uma sucessão de crises e sobressaltos acontecidos
dessas rebeliões, os presos fazem uso de armas no interior do complexo. A origem, como é
de fogo introduzidas no presídio por meio de freqüente, foi uma tentativa de fuga frustrada.
114 Durante a mesma, morreu baleado um agente investiu contra a Casa de Detenção, atirando
penitenciário, pertencente ao Serviço de Ope- nos policiais militares que faziam a guarda ex-
rações Externas (SOE) da SEAP. Os integran- terna do edifício. Simultaneamente, internos
Comunicações do ISER

tes desse serviço aparecem nos relatórios do armados atiravam da carceragem, enquanto
Conselho da Comunidade como os principais traficantes da Favela Arará, comunidade com
acusados de maltratarem os presos. A rebelião pouco mais de cinco mil habitantes, localizada
subseqüente visava negociar as condições da atrás da Casa de Detenção, também abriam
entrega dos presos num ambiente carregado fogo contra os guardas.
pela morte do agente, para evitar represálias e
abusos. O motim durou setenta e cinco horas Os acontecimentos, ao longo das sessenta e
e revelou várias das mazelas e fragilidades do duas horas subseqüentes a essa tentativa de
complexo. No início da rebelião, cinqüenta e tomada de assalto, revelam um conjunto de
quatro pessoas, entre agentes, técnicos, mé- dados que retratam a forma como funciona
dicos, professores psicólogos e visitas, foram o sistema carcerário no Rio de Janeiro. Ori-
feitos reféns. Dessas, apenas sete foram liber- ginalmente, não se tratava propriamente de
tadas antes do fim das negociações. uma tentativa de tomada de assalto, mas uma
estratégia para criar confusão e permitir a fuga
Os agentes do SOE, revoltados com a morte de alguns presos. A informação oficial foi a de
do colega, passaram na volta do enterro na que quatorze presos conseguiram escapar, logo
porta da unidade e começaram a atirar para depois de desencadeada a rebelião, através de
o alto e inclusive contra a porta do presídio. buracos feitos com paus e pedaços de ferro. A
Num ambiente muito tenso, tiveram que ser obra que, fora apresentada como solução para
contidos pela Polícia Militar, que também teve desafogar delegacias e minimizar os proble-
de proteger a integridade do Secretário Astério mas de superlotação em algumas unidades,
da ira dos agentes. Esse episódio evidencia a revelava-se, segundo palavras de Paulo Fer-
falta de controle que o próprio estado tem reira, Presidente do Sindicato dos Servidores
sobre esse grupo (o SOE) e sobre a conduta da Secretaria de Justiça, uma construção de
19
dos seus membros. “tijolo e barbante” .

No fim do conflito, foram encontrados sete A despeito da fuga e do caos ter se instalado,


revólveres e uma granada que, segundo os as autoridades alegaram que tudo estava sob
próprios presos, já se encontravam no presídio controle. No entanto, enquanto uma comissão
antes da rebelião estourar. negociava com os presos, o agente penitenciá-
rio Marco Antônio Borgatte, um dos reféns, foi
O caso de Benfica assassinado com um tiro à queima-roupa, após
tentar fugir. As aulas na Escola Municipal
Em 7 de abril de 2004 foi inaugurada a Casa Cardeal Leme, cuja entrada dá para algumas
de Custódia de Benfica. Ocupando o prédio celas da casa de custódia, foram suspensas e a
onde funcionava o 22° Batalhão da Polícia Mi- população da área ficou em estado de paralisia.
litar, ao lado da Delegacia Ponto Zero, a Casa As negociações foram conduzidas pela Polícia
de Custódia foi anunciada como um recurso Militar, como de praxe, até que a Secretaria de
importante para desafogar carceragens de de- Segurança Pública decidiu enviar um pastor
legacias e abrigar detidos sem situação judicial conhecido dos presos para intermediar a ren-
definida. Pouco mais de um mês depois, no dia dição dos rebelados.
vinte e nove de maio, estourou aquela que viria
ser a segunda mais longa rebelião no sistema Depois do fim da rebelião, o saldo final, porém,
19 O Globo. 31 de maio
penitenciário fluminense. Na madrugada foi desastroso: além do agente penitenciário, de 2004, pg. 10. — Refém é
daquele dia, um grupo fortemente armado foi divulgado um balanço oficial de trinta morto pelas costas.
presos mortos, embora houvesse controvérsias de Custódia de Benfica, em que presos de uma 115
sobre a exatidão desse número. Aparentemen- facção mataram os de outra, veio a enfatizar
te, todas essas mortes foram provocadas pelos o enorme risco desse tipo de medida. Após a

Religiões e Prisões
próprios presos rebelados. Os amotinados que comoção social que seguiu e a lembrança de
controlavam a prisão, pertencentes a uma fac- que várias instituições tinham feito advertên-
ção criminosa, levaram a cabo um “julgamen- cias sobre o perigo dessa postura, o judiciário
to” a partir do qual decidiram executar alguns tomou uma atitude mais incisiva e a SEAP se
internos, em sua maioria pessoas consideradas viu obrigada a rever essa política.
membros das facções criminosas rivais.
O episódio de Benfica ajudou a trazer a tona
Esse ponto teve um impacto muito grande no não apenas as conseqüências de uma política
debate que seguiu. Ao assumir a Secretaria de forçada de convivência de presos de diferentes
Administração Penitenciária, Astério Pereira facções, mas, também, outros problemas crô-
já tinha anunciado a sua intenção de acabar nicos do sistema.
com o uso das facções como critério para a
distribuição de presos. Em princípio uma A Casa de Custódia de Benfica foi adaptada
idéia justificável, ela não poderia, no entanto, para abrigar 1.311 internos. No momento em
ser implementada simplesmente juntando pre- que a rebelião estourou havia, segundo infor-
sos de facções anteriormente separadas num mações veiculadas na imprensa, 889 internos.
mesmo presídio, pois isso poderia colocar em Estava previsto que esse número aumentasse,
grave risco a vida e a integridade dos internos na semana posterior à crise, a 1.220 internos.
sob custódia do estado. O estado poderia, por Trata-se, portanto, de uma unidade concebida
exemplo, tentar enfraquecer o grau de filiação nos moldes das grandes unidades de detenção,
dos presos na entrada do sistema, construindo em que um número expressivo de internos,
mais presídios para presos declarados “neu- com perfis e trajetórias muito distintas entre
tros” e dando a eles condições melhores do si, são encarcerados juntos, ou separados por
que a média das outras unidades, estimulando, paredes e portões cuja inviolabilidade é, para
assim, que mais presos se declarassem neutros. dizer o mínimo, não confiável. Tal sistema tem
A idéia inicial do Secretário de misturar os pre- sido objeto de críticas reiteradas por especia-
sos foi, contudo, sendo pouco a pouco posta listas e militantes de defesa dos direitos dos
de lado, uma vez que o sistema não se revelou apenados. Elas são de eficácia duvidosa, de di-
suficientemente equipado para dar garantias fícil administração e torna todos os envolvidos
aos presos. – guardas, agentes penitenciários e internos
– bastante vulneráveis. É importante frisar que
Porém, nos meses anteriores a SEAP decidiu esse é ainda o modelo predominante no Rio de
transformar alguns presídios, colocando pre- Janeiro e em outros estados no Brasil.
sos de facções diferentes na mesma unidade,
separados somente por alas. Diversos órgãos, Para poder construir, instalar, equipar e fazer
entre eles o Conselho da Comunidade, alerta- funcionar as casas de custódia num prazo
ram para o risco de massacre entre presos de breve — o que era necessário para desafogar
facções diversas obrigados, de repente, a convi- as carceragens das delegacias —, o governo
ver na mesma unidade. Inclusive, o poder judi- do estado lançou mão de alguns expedientes
ciário interessou-se pela questão, mas o poder considerados de urgência, como a dispensa
executivo afirmou garantir a segurança dos de licitação em alguns casos. Outra medida
internos naquelas novas condições. O presídio que podemos considerar emergencial foi a de
considerado com maior risco de explosão, em contratar uma cooperativa de policiais mili-
função da presença das duas facções, era Ban- tares aposentados para trabalhar nas casas de
gu III. De qualquer forma, a tragédia da Casa custodia em vez de convocar concurso público
116 para formar um maior número de agentes. gestos obscenos para as crianças nas horas
Assim, parte do corpo de agentes da casa de de saída e entrada da escola que se localiza
20
custódia de Benfica era formada por homens no fundo do prédio . Muitas vezes, ainda
Comunicações do ISER

de idade avançada, alguns deles sem condições segundo esses mesmos relatos, os professores
físicas para o desempenho de função tão difícil seriam obrigados a terminar as aulas antes
e sem qualquer treinamento para o exercício da hora, por causa do barulho e da confusão
do cargo. Em suma, parte do corpo de profis- promovida pelos internos.
sionais cuja existência justifica-se para garantir
a segurança dos internos e a deles próprios não Assim, o risco é o de que em lugar de tornar
apresentava qualificação e condições necessá- mais viável a reintegração dos presos, as
rias para uma ou outra tarefa. grandes unidades localizadas em áreas comer-
ciais e residenciais podem acabar reforçando
Um outro problema importante nas discus- estigmas e alimentando repulsas recíprocas.
sões após a crise foi a localização da casa. Essa Moradores e comerciantes, em geral, não
questão se situa dentro de um debate de gran- querem seus bairros abrigando unidades
de relevância para os sistemas penitenciários: penais. As pessoas têm medo da insegurança
a polaridade entre afastamento e integração. que isso poderia trazer e também do estig-
A Lei de Execuções Penais estabelece, no seu ma que pode afetar ao próprio bairro, o que
artigo 90, que a penitenciária de homens será pode resultar em desvalorizações do mercado
construída em local afastado do centro urbano a imobiliário local.
distância que não restrinja a visitação. Essa for-
mulação pretende, ao mesmo tempo, certo O caso da Casa de Custódia de Benfica ainda
afastamento dos presos em relação ao resto revela um problema adicional: nos fundos
dos cidadãos para evitar perturbações e riscos do prédio encontra-se uma favela dominada
para esses últimos e, simultaneamente, manter por um grupo organizado para o comércio
uma distância que não impeça o contato com de drogas. A construção de uma unidade
as visitas, que são muito importantes para a penal próxima a uma área de risco põe em
re-socialização do preso. dúvida a capacidade de planejamento do
poder público.
As unidades do sistema prisional fluminense
localizam-se, predominantemente, em áreas A brutalidade do que ocorreu na Casa de
urbanas e densamente habitadas. No en- Custódia de Benfica foi, à luz de repetidas
tanto, sendo unidades grandes, verdadeiros denúncias, apenas a dramatização extrema de
complexos construídos para abrigar centenas um quadro sombrio que é extensivo ao sistema
de internos, aos problemas mencionados ante- carcerário como um todo: locais sem mínimas
riormente relativos ao controle interno, admi- condições de higiene, falta de elementos ma-
nistração e segurança, acrescentam-se aqueles teriais mínimos, reduzido número de guardas
que dizem respeito à interação que as comuni- e precárias condições de segurança, comida
dades estabelecem com a instituição penal e à ocasionalmente imprópria para o consumo
segurança da população do entorno. humano, atendimento médico tardio ou in-
suficiente, episódios repetidos de torturas e
A proximidade de áreas densamente povoadas humilhações, etc.
aumenta as chances de sucesso das fugas e a
vulnerabilidade da população local, e dificulta Após o fim da rebelião, o governo não permi-
o controle do fluxo nas imediações da unidade tiu o acesso de diversas instituições oficiais de
penal. No caso da Casa de Custódia de Benfica, fiscalização, como a Promotoria Pública e o 20 O Globo, 30 de maio
de 2004, pg. 21 – Moradores
foram veiculadas pela imprensa informações Conselho da Comunidade. Esses órgãos e ou- desconfiavam que a segurança
como a de que os presos costumavam fazer tros acabaram entrando algum tempo depois. era frágil
Os obstáculos ao trabalho das instituições que a Comissão de Direitos Humanos e Cidada- 117
desenvolvem um controle externo do sistema nia da Assembléia Legislativa, o Conselho
prisional afetam gravemente a transparência do da Comunidade, o Ministério Público e a

Religiões e Prisões
poder público e geram a suspeita de que ele tem Defensoria Pública.
muito a esconder dos olhos dos cidadãos.
A situação desses órgãos no estado do Rio
Cada um dos casos anteriormente relatados de Janeiro difere de um caso a outro, mas
evidencia traços do funcionamento do sistema muitos deles reclamaram das limitações,
penitenciário do Rio de Janeiro. Deixando de ocasionais em alguns casos, permanentes em
lado singularidades regionais, o sistema peni- outros, colocadas pelo poder executivo ao
tenciário brasileiro todo se caracteriza por tais seu papel fiscalizador. Em momentos de crise
problemas. No Rio de Janeiro, porém, ficam ou de denúncias concretas, essa tendência
atestadas, a partir dos casos apresentados, restritiva se acentua.
algumas graves violações aos direitos legal-
mente garantidos àqueles que se encontram Apesar de ser parte do executivo, a Secretaria
sob a tutela do Estado: 1. a inépcia do Estado Estadual de Direitos Humanos teve diversos
em controlar atividades ilícitas no interior das embates com a SEAP. Tal como já foi relata-
unidades prisionais, o que põe virtualmente do, o Secretário João Luiz Duboc Pinaud aca-
os agentes e os internos — sobretudo aqueles bou sendo afastado após um enfrentamento
responsáveis por crimes menos graves e com com o Secretário de Assuntos Penitenciários
menor prestígio no mundo do crime —, sob relativo a casos de tortura no sistema.
risco de agressão; 2. a total incapacidade do
Estado em controlar seus próprios agentes, Por sua vez, o núcleo de atendimento do
tanto no uso da violência injustificada quanto sistema penitenciário da Defensoria Pública
na corrupção que propicia a entrada de armas do Rio de Janeiro se consolidou como um
e telefones celulares no interior do sistema; órgão fundamental na garantia dos direitos
3. a precariedade e a falta de segurança das humanos dentro das prisões, nos últimos
unidades, que fazem com que elas, muitas anos. O massacre de Benfica aconteceu de-
vezes, não contem com condições mínimas pois que a Defensoria Pública e o Conselho
de habitabilidade para os presos nem de tra- da Comunidade haviam se pronunciado
balho para os agentes. 4. o recurso à tortura publicamente contrários à política de juntar
como instrumento de intimidação e castigo, precipitadamente presos de facções diferen-
afirmação de autoridade e “manutenção da tes nas mesmas unidades. No desfecho da
ordem”. O flagelo da tortura é comum ao rebelião, os dois órgãos foram impedidos de
ponto de acabar naturalizado por muitos acompanhar a revista policial dos presos, res-
agentes e presos. trição que também mereceu críticas públicas
por parte dos representantes dos dois órgãos.
O controle externo sobre o Aproximadamente um mês após esses epi-
sistema penitenciário sódios, nos quais a Defensoria adotou uma
posição crítica das ações governamentais e de
O quadro de abusos e irregularidades, ante- defesa dos presos, o coordenador do núcleo
riormente descrito, é tão grave que a trans- de atendimento do sistema penitenciário,
parência do sistema adquire uma impor- Eduardo Gomes, foi substituído.
tância maior. Assim, os órgãos de controle
externo passam a ser atores fundamentais Por sua vez, o Conselho da Comunidade
para tentar monitorar a situação e resolver teve diversas restrições no seu acesso aos
os problemas. Entre eles, podemos citar a presídios (resistência para obter autorização,
Secretaria Estadual de Direitos Humanos, atrasos, pedidos para voltar outro dia , etc.)
118 que foram registrados nos seus relatórios. As condições das unidades
Numa visita, durante o ano de 2004, os penais segundo os relató-
membros do Conselho portavam, com auto- rios do conselho da comuni-
Comunicações do ISER

rização do juiz, uma câmera fotográfica para dade


documentar possíveis torturas e as condições
materiais, mas os funcionários obrigaram a O Conselho da Comunidade do Sistema Pe-
entregar o filme. nitenciário, como já foi explicado, é um órgão
da execução penal que dentre as funções está a
Por fim, no mês de julho de 2004, o Secre- de visitar presídios, entrevistar presos e elabo-
tário Astério entrou com um ofício na Vara rar relatórios sobre as condições observadas.
de Execuções Penais, questionando a legiti- Essa seção está baseada num conjunto de 10
midade da composição do Conselho e a do relatórios de visitas produzidos pelo Conselho
seu presidente, Marcelo Freixo. A motivação durante os anos de 2003 e 2004. A escolha
de tal provocação legal foi, evidentemente, das unidades visitadas é definida por critérios
a irritação com as críticas públicas a sua variados. Há uma tentativa de visitar todos os
gestão, feitas à imprensa por diversos mem- presídios de forma rotativa e rotineira. Porém,
bros do Conselho, marcadamente pelo seu em muitas ocasiões a visita é motivada por
presidente. Em conseqüência, o juiz Carlos alguma denúncia recebida sobre violação de
Augusto Borges decidiu dissolver o Conselho direitos ou mau funcionamento. Em outras
e convocar um novo, presidido por ele mes- ocasiões, trata-se do acompanhamento de
mo, o que mergulhou a própria instituição e algum conflito acontecido no passado.
as organizações que a compõem numa séria
crises que buscam ser resolvidas no momen- Além dos obstáculos já relatados impostos
to de redação do presente relatório. pelo executivo, não é incomum encontrar
Em suma, as tentativas de restringir a capaci- certa hostilidade em relação ao Conselho entre
dade de diferentes instituições de monitorar alguns agentes penitenciários. Segundo estes,
o sistema penitenciário são extremamente o Conselho daria atenção apenas aos direitos
preocupantes, particularmente em função humanos dos presos, negligenciando, porém,
das graves irregularidades e violações obser- as péssimas condições de trabalho e os riscos
vadas até hoje. Todavia, o poder executivo passados pelos agentes. No entanto, a partir
parece agir com mais vigor contra aquelas de 2003 houve uma aproximação entre a di-
que se mostram mais ativas no cumprimento reção do sindicato dos agentes e o Conselho,
do seu papel de controle externo. até o ponto que a direção do primeiro passou
a assistir às reuniões do segundo.
O artigo 37 da Constituição determina que
“a administração Pública direta e indireta Os relatórios do Conselho atestam as deficien-
de qualquer dos poderes da União, dos tes condições das unidades, com problemas
Estados, do Distrito Federal e dos Municí- que afetam tanto internos quanto os profis-
pios, obedecerá aos princípios de legalidade, sionais que lá trabalham. A comida, por exem-
impessoalidade, moralidade, publicidade e plo, normalmente é a mesma para agentes e
eficiência”. O princípio da publicidade diz internos. Em alguns casos, a alimentação é
respeito ao conhecimento acerca dos atos da aceitável, mas em outros é claramente defi-
administração pública, de forma que todos ciente, como admitido, às vezes, pelas próprias
os interessados possam participar das deci- direções dos presídios.
sões políticas. Numa área crítica e tendente
à ocultação, como o sistema penitenciário, a O espaço físico é precário em praticamente to-
publicidade e a transparência adquirem uma das as unidades, comprometendo a habitação,
importância crítica. a higiene e a segurança dos prédios. O espaço
degradado é condição propícia para o surgi- No Presídio Ary Franco, visitado em julho 119
mento e a propagação de uma série de doenças de 2004, presos recém chegados do Presídio
infecto-contagiosas. A Casa de Custódia de Hélio Gomes, transferidos após uma tentativa

Religiões e Prisões
Benfica, um dos nossos casos paradigmáticos de fuga, relataram o uso de spray com gás de
da seção anterior, foi visitada dias antes da pimenta, introduzido, durante a noite, na sala
rebelião aqui relatada. Na ocasião, o relator da em que estavam acomodados. Isto lhes provo-
visita descrevia o efetivo de seguranças: quatro cou dores, náusea e intoxicação durante toda
agentes penitenciários e vinte e cinco PMs co- a primeira noite que ali passaram.
operativados (por turno). É evidente que um
total de vinte e nove profissionais, dentre os Os momentos das revistas e do confere são es-
quais a maior parte com idade incompatível pecialmente propícios para a prática de abusos.
para esse tipo de trabalho, são insuficientes Especialmente quando a revista é realizada por
para a guarda de 862 presos (número referente funcionários que não trabalham diretamente
ao dia da visita). Acrescente-se a isso, ainda no presídio, casos de humilhações e até golpes
segundo o relatório, o fato de nenhum dos não são raros. Nesses momentos, há também
PMs cooperativados terem recebido qualquer denúncias freqüentes no sentido de que per-
treinamento para a função. O resultado é um tences dos internos chegariam a ser quebrados,
conjunto de pessoas limitado e pouco qualifi- bens pilhados, fotografias, livros e papéis pes-
cado para a realização de trabalho tão exigente soais rasgados. Em situações de maior pressão,
física e psicologicamente. Na Penitenciária como quando há fiscalização nas celas para
Esmeraldino Bandeira, visitada em maio de apreensão de drogas e armas, os internos são às
2003, os turnos eram cumpridos por treze vezes obrigados a passar horas ao relento, nus,
agentes que, em tese, garantiam a segurança muitas vezes sentados em lugares molhados e
de 1.024 internos. O número de agentes por sujeitos a humilhações.
turno está, via de regra, abaixo do número de
agentes que a própria SEAP reconhece como Uma conclusão que pode ser facilmente extra-
necessários para cada presídio. ída da leitura dos relatórios é que os agentes
do Serviço de Operações Externas (SOE) são
Se as condições das unidades visitadas são especialmente violentos. Casos de agressões,
bastante precárias e, no limite, põem a inte- quando das revistas realizadas por estes agentes
gridade física e psicológica dos agentes pe- e durante o transporte de presos transferidos
nitenciários sob graves riscos, a situação dos ou quando devem comparecer ao Fórum,
internos é mais grave. A começar pela própria foram relatados em diversas unidades. São es-
forma de interação entre agentes e internos. pecialmente impressionantes os depoimentos
Em praticamente todas as unidades visitadas colhidos na Casa de Custódia Bangu V e na
os presos relataram pelo menos algum caso casa de Custódia Jorge Santana. Sob a alega-
de tortura. Em alguns deles, foram relatados ção de se proceder a uma ação voltada para a
episódios de espancamentos coletivos. Não segurança da unidade, alguns agentes promo-
raro, os visitantes puderam ver marcas de veram verdadeiras pilhagens e espetáculos de
espancamento recente nos corpos de alguns humilhação, agredindo os internos, destruindo
internos. Na Casa de Custódia Jorge Santana seus pertences e fazendo ameaças durante ho-
(Bangu), visitada em abril de 2003, setenta por ras. Essa foi a ‘recepção’ que os funcionários
cento dos internos apresentavam escoriações, da SEAP deram aos presos no dia em que o
todas elas, segundo afirmaram, causadas por presídio foi transferido da responsabilidade da
espancamentos perpetrados pelos agentes. Polícia Militar para a da própria Secretaria.
Os espancamentos coletivos são usados como
forma de controle, de afirmação da autoridade O temor de sofrer torturas nas mãos de
e de manutenção da ordem. agentes do SOE é tão grande que o Conselho
120 encontrou numerosos presos que, mesmo do- todo o percurso. Ainda durante essa visita,
entes ou seriamente machucados, se negavam os membros do Conselho presentes travaram
a ser transportados para o hospital por medo contato com um interno com uma bala alojada
Comunicações do ISER

de serem torturados no caminho. no corpo, em péssimas condições de saúde,


mas sem qualquer atendimento.
Segundo relato de vários presos das unida-
des visitadas, uma das estratégias utilizadas Casos de doenças respiratórias, infecto-con-
por alguns agentes e, em alguns casos, pelas tagiosas e sexualmente transmissíveis são co-
próprias direções de unidades, para controlar muns no sistema. Do mesmo modo, é comum
os internos é estimular conflitos e rixas entre que esses internos tenham dificuldade no aces-
eles. Tal procedimento serviria como forma so à medicação prescrita para tratamento. Na
de evitar que o “coletivo” se unisse para fazer penitenciária Esmeraldino Bandeira, os mem-
reivindicações e se organizasse como um ator bros do Conselho encontraram dois internos
capaz de pressionar a direção. Tal interpreta- soropositivos que enfrentavam dificuldades
ção é discutível, mas, de fato, são recorrentes para tomar seus medicamentos. No Instituto
os casos de agressão incluindo mortes de inter- Penal Ary Franco, um interno que retirou um
nos. Esse tipo de queixas apareceu com maior dos pulmões, devido a um tiro, dormia no chão
ênfase na Penitenciária Esmeraldino Bandeira, e não tomava medicamentos; um outro, no
na Casa de Detenção Bangu III e no Instituto mesmo local, apresentava secreções na região
Penal Milton Dias Moreira. ocular, que havia sido operada para a implan-
tação de uma prótese no lugar do olho.
As próprias carências estruturais provocam
violações aos direitos básicos dos presos. Em No entanto, em algumas unidades o acesso e a
algumas ocasiões, os presos são obrigados a qualidade da assistência médica são melhores
dormir no chão de cimento sem mesmo um e há profissionais de saúde que se esforçam
lençol ou papelão. Papel higiênico é um artigo para oferecer um serviço minimamente digno.
raro e a omissão do poder público deve ser Contudo, deve-se observar que alguns dos ca-
reparada por familiares ou por membros das sos levantados pelo Conselho da Comunidade
facções. Esse esquema de assistência de neces- eram visivelmente graves e punham em risco
sidades básicas acaba fortalecendo a adesão e o a vida dos enfermos.
poder das facções criminosas na prisão.
Uma outra carência observada no sistema diz
O ambiente e a precariedade da vida na respeito ao acesso a serviço jurídico. É possível
prisão criam as condições ideais para que dizer que à pena de privação da liberdade, o
muitos tenham vários problemas de saúde. infrator pobre acresce uma segunda punição:
O atendimento e o cuidado nesses casos nem a dificuldade de ter um acompanhamento
sempre é ideal. Há, inclusive, casos pertur- razoável de sua situação penal e de ter acesso
badores. Em 12 de julho de 2004, logo após a benefícios e progressões garantidos por lei.
um conflito decorrente de tentativa de fuga, Como já foi explicado, são muitos os internos
o Conselho da Comunidade foi ao Presídio que se encontram em unidades incompatíveis
Hélio Gomes. Ali, pôde tomar contato com com sua situação penal. Isto se deve a três
presos que estavam com queimaduras cujo fatores: a) a falta de vagas no sistema para
atendimento no hospital Penitenciário se alguns regimes; b) a lentidão das resoluções
restringira a banhos de soro. Alguns outros, judiciais; c) a falta de um acompanhamento
a despeito de se encontrarem feridos, sequer jurídico suficiente.
desceram para encaminhamento ao hospital
porque, segundo alegaram, aqueles que para Assim, muitos presos sentenciados perma-
lá se dirigiam eram espancados ao longo de necem em Casas de Custódia e muitos outros
com progressão para regime semi-aberto já Por outro lado, a tendência a reduzir o debate 121
adquirida continuam cumprindo a pena em sobre o sistema penitenciário à necessidade
regime fechado. Num artigo publicado em 17 de abertura de mais vagas é míope e parece

Religiões e Prisões
de fevereiro de 2004, o jornal O Globo torna ignorar que é perfeitamente possível que,
público o resultado de um mutirão realizado preservados os procedimentos atuais, a criação
pela Defensoria Pública do Estado do Rio de de novas vagas possa crescer indefinidamente,
Janeiro na Polinter, onde ficam presos aguar- sem que o fulcro do problema — a saber, o
dando julgamento: dos 597 presos, 222 já correto funcionamento do sistema, no que
tinham sido sentenciados. Ou seja, pouco me- ele deve ter de punitivo, exemplar e re-socia-
nos do que quarenta por cento do contingente lizador —, seja alcançado. Um dos elementos
encontrava-se ali irregularmente. Nas visitas que pode ajudar a desafogar o sistema é um
feitas pelo Conselho da Comunidade, alguns maior recurso a penas alternativas, o que, de
casos como esses foram registrados. qualquer forma, depende em parte de critérios
fixados por lei.
Em muitas ocasiões, comprovou-se que a
assistência jurídica e o acompanhamento da A lentidão de algumas decisões judiciais, em
situação penal dos internos eram precários. parte provocada pelo reduzido número de
Na Penitenciária Esmeraldino Bandeira, os juízes que trabalham na Vara de Execuções
internos reclamaram da sua irregularidade. Penais, não colabora para melhorar o quadro.
No Ary Franco ela simplesmente não existia, Com efeito, uma vez que o preso que já possui
quando da visita dos conselheiros. os requisitos solicita o regime semi-aberto, ele é
transferido para um presídio semi-aberto, mas
Da mesma forma que ocorria na área de saúde, permanece em regime fechado até a decisão do
a existência de deficiências não é incompatível juiz ser oficializada. Com isto, há internos que
com o trabalho dedicado de vários profissio- preferem não pedir o regime semi-aberto, pois
nais — nesse caso, defensores públicos — que na nova prisão podem perder, durante muito
tentam fazer o melhor possível num contexto tempo — até finalmente poder desfrutar do re-
desfavorável. Com freqüência, o número de gime —, o direito a visita íntima de que gozam
internos que solicitam apoio jurídico imediato no presídio atual de regime fechado.
é muito superior ao número de defensores que
atuam no presídio. O mau funcionamento do sistema que se re-
flete, dentre outros, no deficiente acesso aos di-
Em algumas unidades, agentes penitenciários, reitos dos presos tende a aumentar as tensões
num claro desvio de função, fazem o papel de nas prisões e, muitas vezes, a sobrecarregar
advogados, acompanhando processos e infor- desnecessariamente algumas unidades.
mando internos sobre sua situação jurídica.
Diretores de unidades e demais autoridades Um outro ponto central para a comunidade
ligadas ao sistema penitenciário responsabi- carcerária é o tratamento dado aos familia-
lizam a inexistência de vagas como principal res dos presos durante as visitas. A máxima
causa dessa situação. Embora possa ser um segundo a qual a família do presidiário cum-
argumento razoável em alguns casos, ele pre a pena junto com seu familiar carece de
não dá conta da complexidade do problema. base legal, mas está arraigada na experiência
Conforme analisado no capítulo 2, os dados dos familiares. Sob a justificativa de que é
da própria SEAP mostram que na maioria das necessária para a manutenção da segurança,
unidades há um número maior de vagas do as visitas são submetidas, às vezes, a revistas
que de internos. De forma que o problema vexatórias, a restrições arbitrárias quanto a
parece ser mais de organização e planejamento roupa que podem usar ou aos alimentos que
do que propriamente de número de vagas. podem trazer, e, ocasionalmente, humilhadas.
122 Essa é uma queixa comum em muitos presí- cárias condições de trabalho e o seu número
dios, e provoca grande tensão, pois os presos está sempre aquém do necessário. Os presos
a consideram uma ofensa pessoal pior do que sofrem contínuas violações aos seus direitos,
Comunicações do ISER

muitas outras. que poderíamos resumir da seguinte forma:

A breve síntese do que se encontra nos rela- a) falta de acesso aos seus direitos legais,
tórios do Conselho da Comunidade Carce- como progressão de pena, por falta de va-
rária oferece um quadro de graves violações gas, de planejamento ou de apoio jurídico.
a direitos básicos da pessoa. São poucos os Com efeito, muitos internos encontram-se
internos que têm acesso a postos de trabalho de forma irregular em unidades que não
remunerados, e poucas as penitenciárias que condizem com sua situação penal. Entre
oferecem formas de lazer, ou outras fontes, de os direitos aos quais muitos presos não
qualquer ordem, capazes de tornar homens e têm acesso está o trabalho, que permite
mulheres que lá se encontram seres humanos redimir pena e, sobretudo, estimular a re-
melhor preparados para a possibilidade de socialização. A ociosidade é, de fato, uma
uma vida digna, honrada e honesta fora dos das grandes mazelas do sistema atual.
muros da prisão. Ao contrário, o que temos
é um sistema que brutaliza. Brutaliza não A responsabilidade por essa falta de aces-
somente internos, mas, também, agentes e so aos direitos legais depende em parte
demais profissionais que lá atuam. de condicionantes estruturais do próprio
sistema e em parte de limitações no aten-
dimento jurídico. O número de internos em
Conclusão algumas unidades é muito grande para o
número de defensores públicos existentes.
Em sua configuração moderna, os sistemas A substituição dos defensores por agentes
punitivos cumprem diversos papéis, como a penitenciários no atendimento jurídico não
sanção individual, a dissuasão em relação a ou- pode ser contemplada como uma medida
tros possíveis transgressores e a re-socialização aceitável.
do réu. No caso do sistema fluminense, a capa-
cidade de re-socialização que o sistema fornece b) tortura e tratos desumanos e degradan-
é, por diversas razões, muito limitada. tes são denunciados de forma regular em
muitas unidades do sistema que pouco
A percepção do sistema carcerário que parece faz para evitar a barbárie que acontece
emergir da imprensa não é uma visão dife- dentro dos muros. O Serviço de Operações
renciada, como um conjunto de homens com Externas é considerado como o principal
graus variados de periculosidade por crimes de responsável por atos de violência física
gravidade também diversa. Em lugar disso, a injustificada contra os presos;
imagem é a de homens reduzidos a um radical
grau de degradação, num inferno de privações c) falta de acesso a bens materiais básicos,
das quais eles aparecem como responsáveis como papel higiênico e, em algumas oca-
principais. siões, uma cama;

No entanto, o estudo do sistema carcerário d) precariedade no atendimento médico,


mostra sérias falhas estruturais, começando que em certas ocasiões é demorado e insa-
por uma infra-estrutura que não fornece nem tisfatório, a despeito do esforço de muitos
segurança nem condições materiais condizen- profissionais da área. A prioridade dada à
tes com a perspectiva de re-socialização. Os segurança faz com que haja reclamações
agentes penitenciários estão submetidos a pre- de que alguns internos, particularmente
de noite, devem esperar muito por um 123
atendimento de emergência. Também há
queixas em algumas unidades de falta de

Religiões e Prisões
medicamentos ou de atenção inadequada.
O medo dos internos de serem torturados
no transporte até o hospital é mais um
fator complicador, pois faz com que alguns
se abstenham de procurar tratamento;

Além das violações sofridas pelos internos,


o tratamento dado às famílias está sujeito a
altas doses de arbitrariedade, que chega, em
alguns casos, a provocar humilhações contra
as mesmas.

Nesse quadro apontado até aqui, as chances


de re-socialização são, obviamente, pequenas,
e dependem mais das redes sociais e da dispo-
sição de cada preso do que das condições que
o sistema oferece.

Por último, é extremamente preocupante a


tentativa do poder executivo de dificultar o
trabalho dos órgãos fiscalizadores do sistema,
pois o controle externo é imprescindível para
tentar mudar o quadro atual.

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