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Luan Mansur Bumlai Monteiro

NUSP: 10326489; noturno


Disciplina: FLA0387
Professora: Laura Moutinho

A Necropolítica e o racismo em contexto de COVID-19 no Brasil

Introdução
Temos visto no decorrer do ano de 2020, tempo marcado por políticas Estatais
de quarentena e limitação das atividades do dia a dia em decorrência da situação de
calamidade pública decretada em razão da pandemia de COVID-19, um exponencial
aumento dos números de homicídios e violência em relação aos últimos anos, com um
aumento de número de mortes em 43% em cidades como o Rio de Janeiro. Um cenário
no mínimo curioso, que nos evidencia as políticas de exceção praticadas pelo Estado
brasileiro contra populações social e economicamente vulneráveis – as mais afetadas
nessa escalonada da violência - e que se mostra mais evidente no período extraordinário
de pandemia em que vivemos. O problema da violência sempre vem acompanhado de
justificativas referentes ao tema da segurança pública, que é utilizada como apaziguador
de denúncias acerca dos excessos cometidos contra populações periféricas, pobres e
negras.

Nesse contexto político e social, podemos dizer que o Estado brasileiro trabalha
sua gestão da segurança pública, e violência urbana, com características muito similares
ao conceito de Necropolítica desenvolvido pelo autor camaronês Achille Mbembe. Isso
pois, como desenvolvido pelo autor, o Estado utiliza de seu poder soberano e monopólio
da violência para gerir o controle sobre a vida, utilizando esse poder como ferramenta
de exclusão daqueles que não são compatíveis - pobres e negros - com o sistema de
manutenção da vida, pregado pelos Estados neoliberais. Essa exclusão é promovida por
meio da administração da morte, onde a raça encontra uma atribuição fundamental,
exercendo um papel naturalizante acerca da morte e de como a sociedade e as políticas
de Estado a compreendem.

Uma outra forma de legitimar essas ferramentas de exclusão aplicadas pelo


Estado, se dá por vias do constante ataque que políticas sociais criadas ao longo dos
anos, com o objetivo de gerar melhores oportunidades de inclusão social e igualdade
socioeconômica a minorias marginalizadas, vem sofrendo a partir de 2019. Ao
deslegitimar e minar tais políticas, o Estado age como fomentador da legalidade da
Necropolítica que massacra corpos negros e periféricos, intensificando cada vez mais as
dificuldades que passam essas populações, pelas violências e desigualdades que sofrem
no dia a dia. Tal processo de ataque as políticas sociais é um fortalecedor da
Necropolítica racista do Estado, uma vez que, ao serem contestadas, o Estado intensifica
os processos de agressão a estas populações, passando a trata-las como um dado natural.

Essa Necropolítica extremamente racializada promovida pelo Estado Brasileiro


é, muitas vezes, erroneamente mitigada pelo mito da “democracia racial” que impera no
imaginário do país. Diversos setores políticos e sociais têm muita dificuldade em
admitir que o Brasil é um país extremamente racista, e que políticas públicas de controle
e violência são constantemente formuladas tendo como alvo populações negras, pobres
e periféricas. Dessa forma a Necropolítica aplicada pelo Estado é, em muitos casos,
“protegida” pelo manto da “democracia racial”, onde muitos acreditam que a
miscigenação acorrida no país nos levou a um estado de democracia plena entre as
diferentes raças pertencentes a nação, o que, novamente, não se passa de um mito
gerador de legitimidade a Necropolítica institucionalizada.

Também é importante salientar a questão de gênero aliada ao racismo e a


Necropolítica brasileira. As mulheres têm tido um papel de extrema importância durante
todo o processo de pandemia que se tem vivido em 2020, muitas atuando na linha de
frente contra o COVID-19, seja na área da saúde ou em âmbito doméstico. Nesse último
caso há a atuação, em especial, da mulher negra e periférica, que tem de atuar, muitas
vezes, dentro e fora do lar, e vê, no contexto de pandemia, o aumento das dificuldades
diárias que tem de enfrentar no seu dia a dia. Dificuldades essas que se tornam mais
evidentes pelas violências e pelo silenciamento destes grupos de mulheres, promovidas
pela Necropolítica.

Fundamentação

Ao trabalhar com o conceito de Necropolítica de Mbembe, é mister o


entendimento acerca da soberania que o Estado exerce sobre os corpos, e como a
capacidade de matar ou deixar viver integram a capacidade de controle sobre a vida, um
de seus principais atributos. A expressão máxima da soberania nos estados modernos é,
no entanto, a de uma soberania que busca a liberdade e a igualdade entre todos seus
cidadãos, considerados sujeitos completos e participantes do sistema social e econômico
vigente. O poder sobre a morte, de tal maneira, só atinge grupos que são expropriados
de seus status políticos e sociais, sendo circunscritos aos seus corpos biológicos. Fato
que ocorre com as populações negras e pobres do Brasil.

Essa redução do status político das populações negras fica clara com a
formulação de Foucault (1976) acerca do que o autor denomina como Biopoder: o
Biopoder é a ideia de que o Estado detém a prerrogativa de promover a vida e, para tal,
desenvolve uma ampla variedade de tecnologias políticas. O Biopoder não possui a
prerrogativa de agir sobre o corpo individual, mas sim, sobre conjuntos de populações,
de forma a geri-las e normatizá-las. Essa sistemática distinção feita entre grupos, a
subdivisão da população, é o que Foucault chama de “racismo”. A raça está sempre
relacionada as políticas da morte, e sua existência é o que torna possível a regulação da
Necropolítica e de sua aplicabilidade assassina pelas políticas do Estado. A raça é
utilizada para se pensar a desumanidade.

Mas como um Estado que tem como função promover a vida pode matar? Isso
pode ser explicado pelo racismo estrutural existente dentro Estado. Se o Estado se
fundamenta a partir da proteção do Homem, ele só pode agir de forma violenta contra
grupos que representem algum risco para a sociedade, o Estado só mata aqueles que
ameaçam a vida, e esse risco sempre provem de grupos racializados. O racismo é um
mecanismo biopolitico pelo qual o Estado justifica a morte daquele que o ameaça.
Mbembe traz a Necropolítica como formuladora de mecanismos da morte, produtora de
regimes de exceção que apelam para a percepção do outro racializado como um
inimigo, com sua existência sendo construída a partir da percepção de um atentado a
vida que só pode ser resolvido através de sua eliminação biofísica. A Necropolítica tem,
nesse sentido, uma definição política bélica por excelência, que tem como ponto final a
eliminação da alteridade para com o outro.

A Necropolítica traz também uma concepção de territorialização, produzindo


fronteiras e enclaves que classificam as pessoas em diferentes categorias, gerando no
imaginário popular uma fundamentação de direitos diferentes para diferentes categorias
de pessoas. O negro no Brasil vive em locais de má reputação, de violência, fome e
miséria, o Estado se utiliza dessa situação e as reproduz, a fim de tornar a vida negra
“descartável”. No “território do negro” pode-se matar a qualquer momento e de
qualquer maneira, e a situação do estado de calamidade pública gerado pela pandemia
de COVID-19 não sujeitaram o negro as novas normas legais e institucionais que
surgiram a fim de mitigar a violência nesses tempos exceção, por outro lado, apenas
salientaram que a morte do corpo negro não está sujeita a tais regras, ela é intrínseca da
Necropolítica de Estado.

Como dito anteriormente, esse estado de coisas, esse racismo institucional


existente no Brasil, se apoia muito no conceito de “democracia racial” que foi
desenvolvido por intelectuais brasileiros e apadrinhado pelo imaginário nacional. Como
tratado no artigo de opinião de Antônio Sergio Guimarães, dentre as diferentes
construções de significado que possui o termo “democracia racial”, o Brasil o acatou
como sendo as relações fraternais e intimas em que vivem as diferentes raças e culturas,
amplamente miscigenadas, dentro do território brasileiro, que por sua vez, abriu espaço
para um imaginário de direitos civis e sociais igualitários para todos. Como diz o autor:
“empregar a noção de democracia racial é empregar a democracia como pura atitude
cultural e moral em relação as raças subordinadas, amalgamadas em uma nação única”
(GUIMARÃES, 2020).

Essas ideias, separadas da noção de cidadania plena com direitos sociais amplos
e igualitários para todas as diferentes raças, são muito perigosas na medida em que
contribuem para sedimentação da Necropolítica da forma como foi tratada
anteriormente. Por ser muito disseminado e aceito socialmente, governantes utilizam da
mística que envolve a democracia racial a fim de dar continuidade e expansividade a sua
Necropolítica Estatal, que é responsável pelos amplos processos de exclusão,
reprodução da desigualdade e violência genocida que afetam as populações negras e
periféricas do Brasil. Políticas que se escondem por de traz da imagem de uma nação
igualitária e miscível.

No atual contexto de constante escalonamento da violência e aumento das


desigualdades socioeconômicas vividas pelas populações negras, fica cada vez mais
evidente o mito da democracia racial - que passou nos últimos anos a ser contestado por
lideranças negras – como sendo utilizado de forma a mascarar o extensivo racismo
institucional aplicado pelo Estado ao longo de toda história nacional, ao invés de um
racismo doutrinário, o que mascara o racismo para aos olhos da sociedade.
Todos esses processos e dificuldades gerados pela Necropolítica e por todas as
máscaras que a encobrem, estão vindo à tona com a situação de calamidade pública
gerada pela COVID-19. A morte enfrenta desigualdades latentes de raça, classe e
gênero, desigualdades que estão mais perceptíveis durante a pandemia, não somente
pelo fato de minorias se esporem mais ao risco da doença e terem menos recursos para
trata-la, como também pela violência que esses corpos negros e femininos sofrem, em
demasia, nas mãos do Estado durante esse período de exceção. Tais condições fazem
com que essas minorias sejam as principais vítimas da pandemia.

Dentre os principais afetados, e mortos, pela pandemia se encontram mulheres


negras, que veem as dificuldades de seu dia a dia crescerem com o aumento da pobreza,
da violência e da desigualdade em suas comunidades, o que as colocam em situação de
especial vulnerabilidade uma vez que, apesar das dificuldades, a mulher não abandona
seu local no círculo familiar. Essas dificuldades são constantemente esquecidas, e as
vozes de mulheres negras silenciadas, em muito pelo contexto de Necropolítica em que
são obrigadas a viver, e que as relegam ao extremo da marginalidade social. A mulher
nunca deixa de cuidar do seu cotidiano e do cotidiano de sua família, mesmo antes,
durante e após a pandemia.

A Necropolítica que é reprodutora, e produtora, de racismos e desigualdades, faz


com que a pandemia crie um teor de raça, classe e gênero extremamente impactante.
Isso é evidente na medida em que a população preta e parda, empobrecida, e
principalmente mulheres chefes de família, sejam suas principais vítimas, os principais
afetados pelos impactos econômicos e sociais que a pandemia gera. Não podendo parar
suas atividades se expõem aos riscos da doença ao mesmo tempo que tem de enfrentar
as violências diárias. A morte, em contexto de pandemia, deixa evidente suas profundas
marcas de desigualdade em um país como o Brasil. Como diz Denise Pimenta:
“Sabendo que toda pandemia é generificada, racializada e tem classe social, pode-se
dizer que a crise do novo coronavírus no Brasil tem cara de mulher preta e periférica e,
muitas vezes, deficiente. Ou seja, a pandemia afeta, mesmo que não mate, a base da
pirâmide social brasileira. ” (PIMENTA, 2020, pag.7).

Conclusão
Com tudo o que foi tratado até aqui, podemos constatar que as minorias sociais,
principalmente em países extremamente desiguais como o Brasil, são os grupos
populacionais que mais tem sofrido, e morrido, durante o período de pandemia. Isso
ocorre não somente por conta da pandemia em si, que tem sim afetado mais essas
populações, fragilizadas e com acesso a um sistema precário de saúde, tendo de se expor
diariamente aos riscos produzidos pela COVID-19 uma vez que, na enorme maioria dos
casos, não é possível seguir as recomendações profiláticas que evitariam a
contaminação e disseminação da doença. Mas também, e principalmente, pela
Necropolítica que age sobre essas populações, se servindo dessa situação extraordinária
para determinar aqueles que vivem e aqueles que morrem em nome da reprodução de
um sistema econômico e social do qual o Estado brasileiro está inserido. A pandemia é
somente um acelerador desse processo político de reprodução de violências e
desigualdades estruturais do sistema de controle social e segurança pública no Brasil.

Por esses motivos, as políticas sociais, que vem sendo constantemente atacadas
nos últimos tempos, são de vital importância para a democratização plena do país,
levando igualdade de oportunidades econômicas e sociais para essas minorias
racializadas, que se encontram em situação de vulnerabilidade social tão alarmante. As
políticas sociais de inclusão do negro, da mulher e de populações de baixa renda em
geral – compreendendo que essas categorias sempre andam juntas – desmascaram a
Necropolítica em que vivemos, demostrando as necessidades de se investir em
igualdade em uma sociedade tão segmentada e desigual quanto a brasileira. É
importante salientar que esse constante ataque as políticas de ações afirmativas que vem
ocorrendo no contexto político brasileiro atual, são evidenciadores das terríveis
orientações raciais e de classe que possui a COVID-19, pois, esses ataques mostram o
quanto as políticas de Estado são voltadas para o genocídio de negros e pobres, que
observam de forma acelerada a precarização do trabalho e o aumento da violência em
suas comunidades, acentuadas pela deslegitimação das políticas de inclusão que foram
duramente construídas ao longo dos últimos anos. Dessa forma, a pandemia não
representa uma descontinuidade, somente marca como evidente as desigualdades e
violências que acompanham o Brasil e suas políticas desde sempre.
Bibliografia:

FOUCAULT, Michael. Aula de 17 de março de 1976. In: Em defesa da sociedade. São


Paulo: Martins Fontes, 2005 
GUIMARÃES, Antônio Sergio. (2020).
https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/opiniao/2020/06/14/revisitando-a-democracia-
racial.htm
LIMA, Marcia. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/universidade-pode-
tirar-negros-da-mira-da-bala-diz-pesquisadora.shtml?
utm_source=mail&utm_medium=social&utm_campaign=compmail
PIMENTA, Denise. (2020), "Azulejos amarelos e o túmulo cor-de-rosa: Breve
pensamento sobre morte e classe social em tempos de pandemia". Horizontes ao Sul.
Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/04/09/AZULEJOS-
AMARELOS
PIMENTA, Denise. "Pandemia é coisa de mulher: Breve ensaio sobre o enfrentamento
de uma doença a partir das vozes e silenciamentos femininos dentro das casas, hospitais
e na produção acadêmica". No Prelo
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Artes e ensaios, n. 32, 2016. pp 123-
151 https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169

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