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ACONSELHAMENTO EM TEMPOS DE BARBÁRIE:

SOFRIMENTO, VIDA E ENCARNAÇÃO1

Karin H. K. Wondracek2

Resumo: Este texto parte da descrição do sofrimento na pós-modernidade e traz o conceito


de barbárie de Michel Henry para compreender sua origem e alcance. A redução da vida
aos registros do corpo e da ação (Birman), o empobrecimento da linguagem simbólica
são relacionados com a perda do acesso à vida e sua doação. Para o resgate da condição
humana para além do bios, busca-se na filosofia do cristianismo de Michel Henry subsídios
na sua abordagem da relação entre encarnação, sofrimento e pathos. A fenomenologia da
encarnação, baseada no conceito joânico de carne, propõe a passagem do corpo-objeto
para o corpo-subjetivo, e assim possibilita a modalização da dor em sofrimento e este
em revelação da dádiva da vida. Através de exemplos, busca-se ilustrar o campo do
aconselhamento em tempos de barbárie; esse se dá na postura encarnada de com-paixão.
Palavras-chave: Barbárie. Encarnação. Fenomenologia da Vida. Michel Henry.

Counseling during times of barbarism:


suffering, life and incarnation

Abstract: This text begins from the description of suffering in post-modernity and
brings Michel Henrys concepts of barbarism to understand its origin and scope. The
actual reduction of life at body and action (Birman) and the depletion of symbolic
language are related to the loss of life and its access of donation. To rescue human
condition beyond the bios, we search on Michel Henry’s philosophy of Christianity
in order to have subsidies in its approach to the relationship between incarnation,
suffering and pathos. A phenomenology of incarnation, based on the John’s Gospel
concept of flesh suggests the passage of the body as object to the body as subject,
and thus enables modalization of pain and suffering in this in revelation of the gift
of life. Through examples we seek to illustrate the field of counseling during times
of barbarism; that counseling occurs in embodied attitude of com-passion.
Keywords: Barbarism. Incarnation. Phenomenology of Life. Michel Henry.

N
os últimos tempos, o ser humano se encantou com sua capacidade
de pensar, calcular, projetar artefatos, aumentar lucros. Com o olhar
tomado pela busca de ideias claras e distintas3, a ciência agigantou-

1
O artigo foi recebido em 17 de agosto de 2010 e aprovado por parecerista ad hoc mediante parecer
de 29 de agosto de 2010.
2
Psicóloga e psicanalista, professora de Aconselhamento e Psicologia na Faculdades EST. Mestra e
doutora em Teologia (EST – CAPES). Membro pleno da Sigmund Freud Associação Psicanalítica e
do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos. karinkw@gmail.com
3
DESCARTES apud HENRY, Michel. Genealogia da psicanálise: o começo perdido. Curitiba: UFPR,
2009. p. 86: “São verdadeiras todas as coisas que concebemos muito clara e distintamente”.
Karin H. K. Wondracek

se no conhecimento do mundo e no desenvolvimento de tecnologias. Mas pouco


a pouco atrofiou o contato com a vida subjetiva e sua fonte, pois essa é dada na
invisibilidade. O conhecimento, na sua sede por sistematização, afastou-se da vida,
com as consequências trágicas que conhecemos. A técnica substituiu o valor da
humanidade. Com o nome de progresso, as comunidades humanas acostumaram-se
a descartar pessoas, culturas e valores:

Os homens afastados da Verdade da Vida mergulham nos enganos, nos prodígios


em que a vida é negada, ridicularizada, troçada, simulada, ausente. Os homens são
substituídos por abstrações, entidades econômicas, lucros e dinheiro. Os homens
são tratados matematicamente, informaticamente, estatisticamente, contados como
animais, sendo tidos em menor apreço do que estes4.

Estamos acostumados a pensar em barbárie, recordando épocas de destruição


total da cultura, mas, para Michel Henry5, vivemos uma barbárie mais sutil, mas
nem por isso menos danosa: ela talvez não destrua acintosamente os bens cultu-
rais, mas volta-se contra a própria vida, minando seus fundamentos silenciosa e
progressivamente.
Para o filósofo, pela primeira vez na humanidade temos uma barbárie que
convive e se alimenta do progresso: há simultaneidade de destruição e aumento de
conhecimento técnico, ou pior: Henry chega a dizer que justamente pelo deslum-
bramento pelo saber científico e técnico é que a conexão com a vida está sendo
perdida, e a barbárie se incrementa. No intento de adquirir um conhecimento obje-
tivo e visível do ser humano, coloca-se de lado a própria essência do humano, que
é subjetiva e invisível. Assim a intenção científica faz desaparecer o seu objeto!6
Como consequência, temos:
– o desaparecimento do saber em suas formas éticas;
– o desaparecimento da arte como expressão da essência humana;
– o desaparecimento da espiritualidade como valor7;
– o desaparecimento da transmissão do saber de uma geração para outra8.

4
HENRY, Michel. Eu sou a verdade: cristianismo como filosofia. Tradução de Florinda Martins.
Lisboa: Vega, 1998. p. 277.
5
HENRY, Michel. La barbárie. 2. ed. Madrid: Caparrós, 2006. Michel Henry (1922-2002) é filósofo
e fenomenólogo francês; sua obra busca construir bases filosóficas e metodológicas que possibilitem
a fenomenologia da vida. Além de Husserl, embasa-se em Meister Eckhart, Descartes e Maine de
Biran para fazer uma leitura crítica dos rumos do pensamento ocidental. Nas últimas obras, tece uma
abordagem filosófica do Evangelho de João, como proposta de compreensão da condição humana
como nascido na Vida absoluta. Para mais informações, ver o site <www.michelhenry.com> e as
referências bibliográficas no final.
6
HENRY, 2006.
7
HENRY, 2006.
8
Ao lado de Michel Henry, o conceito de exclusão da imaginação do pensamento Ocidental de Giorgio
Agamben é útil para abordar essa transformação. Cf. JUNGBLUTH, Ana Carolina. Jornada imagi-

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Aconselhamento em tempos de barbárie

A tradição ética e étnica, a cultura e a arte, o espiritual e o saber dos ancestrais


já não são considerados fontes de vida. Os mais idosos, justamente por não acompa-
nharem o saber técnico, são relegados pela sociedade e considerados incapazes de
ensinar qualquer conteúdo válido aos mais novos.9 Com isso se produz um grande
hiato entre as gerações, que impede o enraizamento de adolescentes e jovens na sua
bagagem cultural. Desta forma, na sua orfandade étnica, ética e estética, tornam-se
presa fácil de ideologias consumistas ou totalitárias.10
Eis alguns exemplos para aprofundar o conceito de barbárie:

1. Em uma cidade de médio porte, a câmara dos vereadores decidiu abrir


o comércio aos domingos porque aumenta em x% o faturamento.
A barbárie privilegia as abstrações como horas de trabalho e margens de
lucro e não leva em conta a destruição do sagrado e do tempo dedicado à vida fa-
miliar. Desta forma, a pessoa e a comunidade esquecem-se das dimensões afetivas
e invisíveis da vida, essas que não redundam em dados econômicos demonstráveis.

2. Num museu de arte, os visitantes se posicionam perante um famoso quadro


do século XVII que retrata uma cena dos evangelhos; o guia faz sua exposição ape-
nas com dados técnicos, como a data da obra, tipo de tinta usada, valor do quadro.
A barbárie despreza todas as informações que não sejam quantificáveis e por
isso ignora o sentido último do humano e seu patrimônio espiritual; concentra-se
em detalhes técnicos e históricos que alienam da verdade mais profunda retratada
no quadro.

3. Numa igreja X, a comunidade resolveu diminuir a ajuda a projetos sociais


para comprar equipamento de multimídia para os cultos.
A barbárie retira a sensibilidade à vida e ao sofrimento e, em troca, propõe
técnicas sofisticadas que prometem a vitalidade banida. A diminuição da verba
social acarretará desamparo para muitas pessoas, mas isso já não é considerado
importante. O Evangelho é deturpado em nome de uma liturgia midiática, que induz
ao narcisismo e à massificação.

4. A senhora Y procura o pastor para aconselhamento a respeito da sua


depressão. Ele a escuta por alguns minutos e a encaminha ao psiquiatra, que lhe
receita medicamentos.

nativa: o problema da experiência transmissiva e cultural na perspectiva de Giorgio Agamben. 2010.


Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação da Faculdades EST, São Leopoldo, 2010.
9
COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graaz, 1983.
10
SAFRA, Gilberto. A fragmentação do ethos no mundo contemporâneo. In: NOÉ, Sidnei (Org.).
Espiritualidade e saúde. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2005. p. 7-14.

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A barbárie reduz o sofrimento humano ao plano do visível e do biológico e


já não escuta a dor na profundidade. O pastor se sente desautorizado a intervir nessa
problemática tornada tão concreta e por isso a encaminha para o “especialista”11.
Gostaríamos ainda de apresentar um quinto exemplo, no qual se mesclam a
barbárie sutil e a barbárie explícita:

5. No Congo africano, milícias invadem aldeias e mutilam os genitais das


mulheres na frente de todo o povoado com o objetivo de desmoralizar o tecido social
da comunidade e fazê-los abandonar a terra, rica em minerais. As organizações
internacionais apenas trazem auxílios paliativos, sem intervir para acabar com
essa prática.
Para o médico ginecologista Denis Mukwege, fundador do Hospital de Panzi
(Congo), no qual atende a essas vítimas: “Estão destruindo a humanidade ali e
ninguém faz nada”. Ou seja, nesses ataques combinam-se modos ativos explícitos
e modos passivos, mais sutis, de barbárie, a serviço da exploração de riquezas:
“Com a aniquilação dos moradores, exploram mais facilmente a região rica em
materiais utilizados em componentes eletrônicos, como a cassiterita. Há empresas
multinacionais que extraem os minérios na África”12. O novo é que a violência
contra a mulher é utilizada pela sede de lucros. As aldeias são um obstáculo para a
apropriação dos minérios, e essa forma de violência se torna o modo mais rápido
e bárbaro de obrigar a população a abandonar suas terras. A mutilação feminina
destrói a própria vida e a capacidade da vida se multiplicar.

Entendendo a contemporaneidade

Para o psicanalista Joel Birman, mudou a forma de expressão do mal-estar


nas últimas décadas: ele já não se expressa no conflito psíquico entre impulsos e
interdições morais, mas se evidencia nos registros do corpo e da ação. Essa ênfase
leva a queixas que se centram no corpo e seus problemas e, assim, à biologização
da vida, com seus múltiplos processos preventivos e curativos, que alteram o estilo
de vida e exacerbam o cuidado com o corpo.
Estamos, portanto, diante de um conjunto de signos que constituem o mal-
estar num outro formato, centrados agora no corpo e na ação. Em contrapartida, a
linguagem se empobrece a olhos vistos, mesmo quando é usada de maneira gra-
maticalmente correta. Com efeito, o registro metafórico daquela se faz cada vez

11
Cabe destacar que a crítica não vai no sentido de menosprezar o benefício da medicação, mas de
questionar o entendimento apenas concreto do sofrimento e o consequente monopólio do seu trata-
mento.
12
Denis Mukvege foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz em 2009, que foi concedido a Barack Obama.
Disponível em: <http://www.correiodopovo.com.br/Noticias/?Noticia=160707>. Acesso em: 28 jul.
2010.

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Aconselhamento em tempos de barbárie

mais pobre, na medida em que a dimensão informacional do discurso esvazia sua


dimensão simbólica.13

A linguagem reduzida ao informativo já não dá conta de expressar os meandros do


sofrimento. Por isso Birman expressa que há um deslocamento do psíquico para a dor
física. Já não se quer falar, ou já não se sabe falar, e se quer substâncias quase mágicas
que tirem a dor, ao preço de anestesiar a vida, se for necessário.14 Além de sedar a
vida pela excessiva medicalização ou drogadição, também se obtém este efeito pela
sobrecarga de afazeres, supérfluos tornados necessários, sem rumo nem realização.15

No aspecto mais sutil da barbárie, há uma cooptação pelo encanto com a


técnica, esta também pobre de palavras e significados. As pessoas são seduzidas
pelo apelo dos objetos, ao invés de lidarem criativamente com sua vida. A vida passa
pela concretude da aquisição de algo – infelizmente também na esfera do religioso.
Fetichismo elevado à normalidade, sinal de perda da conexão profunda com a vida?
A barbárie explícita, na esfera mais ampla da sociedade, mostra que a expres-
são do conflito se dá no registro da ação, pela forma agressiva e violenta de lidar
com as tensões. As diferenças ideológicas, religiosas ou políticas já não são tratadas
pelo diálogo, mas expressam-se como ataques diretos ao corpo dos inimigos – por
chacinas, bombas, retaliações e mutilações. Como Henry aponta, nessa barbárie,
os avanços científicos fornecem munições a todas essas correntes que despedaçam
ética, corpos e comunidades inteiras.
Com Birman, já apontamos à redução da capacidade de comunicação da
linguagem, e também Henry afirma que a sabedoria da vida foi ocultada pelo in-
cremento do saber técnico: por exemplo, uma pesquisa sobre sexo relata toda forma
de estatísticas sobre as práticas sexuais; um estudo sobre suicídio traz porcentagens
de tentativas por método a, b, c, segundo condição econômica, gênero, educação.
O autor pergunta o que acrescentará à nossa sexualidade saber as porcentagens de
determinadas práticas? O que aliviará o desespero daquele que pensa em suicidar-se
saber a quantidade de tentativas em determinado método de suicídio?16
Para Henry, a sociedade ocidental como um todo esqueceu que há um saber
mais originário que o da ciência, que é o da vida – é esta que doa o pensamento que
faz ciência.17 “Antes do pensamento, antes pois da fenomenologia, assim como antes
da teologia (antes da filosofia ou de qualquer outra disciplina teórica), uma Revelação
está actuante, a qual que nada lhes deve mas que todas elas supõem, igualmente.”18

13
BIRMAN, Joel. Dor e sofrimento num mundo sem mediação. Estados Gerais da Psicanálise. 2003.
Disponível em: <http://www.estadosgerais.org/mundial_rj/download/5c_Birman_02230503_port.
pdf>. Acesso em: 26 jul. 2010.
14
BIRMAN, José. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
15
KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão. São Paulo: Boitempo, 2009.
16
HENRY, 2001.
17
HENRY, 2001.
18
HENRY, 2001, p. 274.

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Quando o humano esquece a doação da sua vida nesse saber originário, incrementa
a barbárie. Esquecimento que, para Henry, tem múltiplas causas, mas que pode ser
superado, se a vida acolher a revelação, especialmente a da encarnação.

O paradigma da encarnação como resposta à barbárie


O sofrimento e sua relação com nossa corporeidade e nossa fé foi um tema
relevante o professor Lothar C. Hoch, que soube como poucos garimpar preciosos
achados para o aconselhamento pastoral e seus desafios – no traumático, no ciclo
da vida, no cotidiano.19
Em tempos de privilégio de corpo e ação, o pensamento contemporâneo
surpreende-se com o resgate do cristianismo como filosofia. Michel Henry e Jean-
Luc Marion20, entre outros, na França, e Rolf Kuhn, na Alemanha21, investigam a
condição humana sob pressupostos tomados do cristianismo. Filósofos, psicólogos,
médicos, enfermeiros, economistas, ergonomistas, entre outros, têm-se debruçado
sobre suas reflexões e derivam conceitos importantes para a lida com o sofrimento.
O objetivo aqui é indagar se a filosofia do cristianismo de Michel Henry traz
contribuições para a compreensão e intervenção no mal-estar contemporâneo. O
impacto das suas ideias nos diferentes âmbitos que lidam com o sofrimento faz-nos
acreditar que sim. Para Henry, sofrimento está interligado com a vinda da vida que
se revela como afetividade encarnada. Do prólogo do Evangelho de João ele deriva
a condição humana na correlação originária entre carne, vinda na carne e autorreve-
lação da Vida absoluta no seu Verbo.22 No seu livro Encarnação: para uma filosofia
da carne23, faz uma leitura da condição humana a partir da encarnação. O conceito
de carne não é o paulino, mas o joanino: Vinda na carne do Verbo quer dizer que
Jesus Cristo, o Primeiro Filho, veio ao mundo num corpo investido afetivamente,
num corpo pertencente “ao mundo”, e assim revestiu uma condição humana. Em
consequência, a própria condição humana deve ser compreendida a partir de outra

19
Como, por exemplo, em HOCH, Lothar. Sofrimento, resiliência e fé na Bíblia. In: HOCH, Lothar;
ROCCA L, Susana (Orgs.). Sofrimento, resiliência e fé. São Leopoldo: EST; Sinodal, 2007. p.72-80.
Quem consultar o catálogo da biblioteca da EST terá uma noção da profundidade dessa temática na
produção de Lothar C. Hoch, seja em livros, artigos, bem como em orientações de dissertações e teses.
20
MARION, Jean-Luc. O fenômeno erótico. Tradução por Florinda Martins. No prelo em Portugal.
O NEFT – Núcleo de Estudos em Filosofia e Teologia do PPG-EST, coordenado pelo Prof. Dr. Enio
R. Mueller e pela autora, inseriu essa temática e esses autores no seu programa de estudo, e discutiu
a obra de ambos com a professora Florinda, em março de 2010. Sobre Michel Henry e a fenomeno-
logia da Vida, cf. <www.michelhenry.com>. Em português, o grupo de investigação “O que pode
um corpo”, coordenado pela Profa. Dra. Florinda Martins desenvolve pesquisas nas áreas citadas,
do qual também participamos.
21
KÜHN, Rolf. Gabe als Leib in Christentum und Phänomenologie. Würzburg: Echter, 2004.
22
HENRY, 2001, p. 143.
23
HENRY, Michel. Encarnação: uma filosofia da carne. Tradução de Florinda Martins. Lisboa: Circulo
de Leitores, 2001.

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inteligibilidade, “a partir de uma Arqui-Inteligibilidade que só a Deus pertence e


da qual os humanos são Filhos”24.
A fenomenologia da carne remete a duas dimensões: 1. à fenomenologia da
encarnação como pressuposição última da condição humana; 2. à releitura do corpo
como a face visível de uma carne invisível: torna possível o corpo “transcendental
intencional que nos abre ao mundo no sentir e assim a tudo o que é sentido. [...] A
relação da carne com o corpo é, pois, uma questão insuperável”25. Se Birman aponta
a queda da pós-modernidade para os registros do corpo e da ação, Henry considera
a barbárie atual sintoma dessa redução da vida a seu aparecer debaixo do monismo
ontológico.26 Propõe justamente a fenomenologia da encarnação como paradigma
para lidar com esse corpo-carne que clama por auxílio. Alguns pontos a destacar:

Do pensamento sobre o corpo à fenomenologia da carne27

Em primeiro lugar, é necessário estabelecer a relação entre pensamento sobre


o corpo e a fenomenologia desse corpo. A segunda parte do seu livro Encarnação,
chamada Fenomenologia da carne, inicia abordando o equívoco da prioridade do
pensamento como ato primeiro. É necessário religar a faculdade de pensar com sua
doação na vida, tecendo a fundamental pergunta: “Como adquirir no pensamento
um conhecimento desta vida que dá este ver a si mesmo sem, contudo, se mostrar
a si?”28.
Sua resposta a essa questão aponta para a reconexão das capacidades humanas
com sua doação originária para habilitar o pensamento como forma de conhecimento.
Podemos formular um pensamento a respeito da vida se conhecermos a vida da
mesma forma como ela se conhece a si mesma – na Arqui-Inteligibilidade do seu
pathos, pois é nessa Arqui-Inteligibilidade que viemos a nós mesmos, na condição
de viventes, “na posse desta vida que nos pôs na posse de nós mesmos”29.
A Vida é doadora até do pensamento; Henry considera catastrófico esque-
cer a ordem que concede à vida a prioridade, mormente em se tratando de corpo e

24
HENRY, 2001, p. 12.
25
HENRY, 2001, p. 134. A próxima também.
26
Monismo ontológico: Conjunto de supostos que sustenta, no pensamento tradicional, a necessidade
de apresentar o fenômeno mantendo a “distância fenomenológica”, que afirma que o fenômeno se
nos apresenta distinto de nós e separado de nós. A partir disso, o Ser será pensado sempre na Exte-
rioridade transcendental, em um Ek-stasis, em uma ruptura e separação originária, traço em comum
da filosofia clássica e da filosofia moderna da consciência, desde sua origem grega.
27
O que segue foi desenvolvido no capítulo 4 da tese de doutorado da autora, Ser nascido na Vida:
a fenomenologia da Vida de Michel Henry e sua contribuição para a clínica. Tese (Doutorado) –
Programa de Pós-Graduação da Faculdades EST, São Leopoldo, 2010, sob a orientação do Prof. Dr.
Enio R. Mueller e coorientação da Profa. Dra. Florinda Martins e do Dr. Carlos J. Hernández. Fomos
honradas com a participação do Prof. Dr. Lothar C. Hoch na Banca Examinadora.
28
HENRY, 2001, p. 74.
29
HENRY, 2001, p. 75.

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carne.30 Em outras palavras, não é suficiente remeter a origem do pensamento ao


corpo visível, pois, no saber tradicional, o aparecer do corpo confunde-se com o
saber a respeito dele.31 Por todo o livro, Henry aponta as consequências funestas
de esquecer a “indigência ontológica” inicial a respeito da incapacidade de pôr a
si mesmo na vida, pois

não é o aparecer do mundo que pode, precisamente, dele prestar contas. Tal é o para-
doxo: ao primeiro passo, a elucidação fenomenológica do corpo mundano arranca
a sua existência ao mundo, pondo gravemente em causa a primeira via de acesso
escolhida para lhe circunscrever a natureza e prosseguir a análise.32

Em outras palavras, são as próprias capacidades sensíveis do corpo que re-


querem que se avance para além dele, bem como é a própria estrutura do pensamento
que exige que se busque o princípio doador originário; é o rigor fenomenológico
que obriga a isso. Ressignificando a análise de Birman, poder-se-ia perguntar: a
concentração pós-moderna do sofrimento nos registros do corpo e da ação não
poderia ser sintoma deste “esquecimento” do poder doador que antecede corpo,
ação e pensamento?

Do corpo objetivo ao corpo subjetivo

Essa última questão nos leva ao segundo ponto, de que é preciso atravessar
o corpo objetivo para tocar o corpo subjetivo. A capacidade de sentir do corpo não
pode ser explicada a partir das categorias de visibilidade. Sua sensibilidade retira-o
da condição de objeto (corpo sentido) e leva-o para a condição de corpo-sujeito
(corpo que sente).

Um corpo-sujeito, oposto a um corpo-objecto do qual é a condição. Um “corpo


subjectivo” a priori diferente do corpo objectivo, no sentido em que aparece como
o seu fundamento. Um corpo subjectivo transcendental, doando e sentindo o corpo
sentido e doado por ele – qualquer corpo objectivo mundano.33

Henry transporta para a esfera do corpo a duplicidade corpo-objeto e corpo-


subjetivo, já postulada no seu livro Eu sou a verdade34 a respeito do Si e do ego. O
corpo subjetivo, o poder que tem de sentir a si é justaposto ao corpo-objeto, que é
sentido. Henry chama esse corpo subjetivo “princípio de experiência, condição de

30
HENRY, 2001, p. 78.
31
HENRY, 2001, p. 102.
32
HENRY, 2001, p. 103. O grifo é meu.
33
HENRY, 2001, p. 95.
34
HENRY, 1998.

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possibilidade”35 de corpo transcendental, composto por um conjunto de poderes


fundamentais. Requer uma análise não mais do corpo material, mas da sensibilidade,
cujo conceito, comenta Henry, “permanece tradicionalmente mergulhado na mais
completa obscuridade”.
A sensibilidade remete à experiência passiva da impressionabilidade. Essa
é uma propriedade da essência, “a pressuposição fenomenológica incontornável de
qualquer impressão”36. A incapacidade de se desfazer de si revela a passibilidade na
origem do Si. Essa revelação, da qual não se pode fugir, expressa o modo da vida
se revelar – ou seja, ela mostra a autoafecção da carne, a sua revelação:

A impossibilidade do sofrimento de a si mesmo escapar, de se referir a si afastando-


se de si, no manter-conjunto de um ver, de uma sín-tese, por mais passiva que seja
– é tão-só o inverso de uma positividade absoluta: essa vinda a si no sofrimento, na
sua paixão, nessa identidade consigo que é a sua substância mesma. A paixão do
sofrimento não é só o que a interdita, para sempre, evadir-se e fugir de si mesmo:
ela só significa essa interdição porque é primeiro essa vinda a si do sofrimento que
a carrega com o seu próprio conteúdo e a une indissoluvelmente a ele. A paixão
do sofrimento é o seu jorrar a si mesma, o ser apreendida por si, a sua aderência
a si, a força em que coincide consigo e na força invencível dessa coerência, dessa
identidade absoluta consigo na qual se experiencia e se revela a si mesma, a sua
revelação – a sua parusia37.

A impossibilidade de fuga remete ao poder doador da vida, “seu jorrar a si


mesma, a aderência a si, a identidade absoluta”, que envia à sua revelação. Se o
corpo está na ordem da manifestação, a carne está na ordem da revelação, da parúsia.

A carne e afetividade originária


Se a carne é o modo como a vida se faz, cabe agora relacionar carne com
afetividade originária. É a afetividade originária que se experimenta a si como pathos
na vida, que torna possível o experimentar-se sem distância no abraço de si. Ora,
a matéria que faz essa experiência de si não é inerte, mas é uma carne: “Esta auto-
impressionalidade viva é uma carne. Só porque ela pertence a uma carne, porque
traz em si esta auto-impressionalidade patética e viva, é que qualquer impressão
concebível pode ser o que é, uma ‘impressão’”38.

35
HENRY, 2001, p. 94.
36
HENRY, 2001, p. 47: “A passividade da dor e do sofrimento não é, pois, a propriedade de uma
impressão particular, uma modalidade da existência advindo-lhe em duas circunstâncias contrárias,
quando ela se experiencia, não raro, como um fardo – é uma propriedade de essência, a pressuposição
fenomenológica incontornável de qualquer impressão”.
37
HENRY, 2001, p. 65.
38
HENRY, 2001, p. 43. As do próximo parágrafo também.

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Nossa carne é “esta matéria impressionante padecente e fruinte na qual se


auto-impressiona a si mesma”. É ela que experiencia em si, “sem diferir de si, de
modo que esta experiência é uma prova de si e não de outra coisa, uma auto-revelação
em sentido radical”, imanente, excluindo qualquer heteroafecção. A revelação da
carne não se dá no mundo, no visível. Henry descobre no cristianismo a primeira
teorização consistente da origem invisível do corpo e de suas propriedades: O
Verbo se fez carne (João 1.14). A investigação fenomenológica desse axioma do
cristianismo ocupa o restante do seu livro Encarnação e redefine a condição hu-
mana a partir da sua origem no Verbo da Vida absoluta. “É pelo facto de o único
poder que existe, o hiperpoder de se trazer a si mesmo à vida e deste modo viver,
não pertencer senão a esta Vida única, que todo o ser vivo recebe dela o conjunto
de poderes que recebeu, ao mesmo tempo que a vida.”39
Essa conexão reordena, entre outros, a relação entre corpo, pensamento e
linguagem: A linguagem é conectada com corpo e carne na forma menos esperada
– na Bíblia, onde o Verbo se torna carne e habita entre os humanos. Para Henry,
aqui acontece a subordinação dos fenômenos da linguagem à fenomenalidade pura.
Essa subordinação não apaga a especificidade dos fenômenos da linguagem; antes,
coloca-os perante sua possibilidade mais originária: “Esta chama-se Logos”40. Essa
afirmação exige a passagem da fenomenologia da carne para a fenomenologia da
encarnação e o papel do sofrimento na sua prova de realidade.

Da paixão ao pathos: sofrimento como realidade da carne

A questão do sofrimento, base da poimênica e da clínica, ganha na doutri-


na da encarnação uma base fenomenológica surpreendente. Henry aponta que os
argumentos usados para provar a realidade da carne passam da descrição do corpo
sensível e da natividade para a questão da sensibilidade ao sofrimento, e assim
constituem-se dentro do rigor fenomenológico:

Opera-se, então, na problemática dos Padres, a viragem decisiva pela qual as deter-
minações objectivas do corpo material, mostrando-se-nos no mundo, cedem o lugar
às determinações impressionais e afectivas que se revelam no pathos da vida. Ora
são estas determinações impressionais e afectivas que constituem a matéria feno-
menológica de que a carne é feita, a carne desta carne, a sua verdadeira substância,
a sua realidade41.

Essa substituição das “determinações objetivas” pelas “determinações


impressionais” opera a dissociação insuperável entre corpo e carne, já não mais
passíveis de serem confundidos: “o primeiro devolvido ao mundo, de tal forma que

39
HENRY, 2001, p. 165.
40
HENRY, 2001, p. 45.
41
HENRY, 2001, p. 140.

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Aconselhamento em tempos de barbárie

ele jamais é uma carne, a segunda devolvida à vida, de tal forma que, em si mesma,
jamais é um corpo”42. No sofrimento, a carne não expressa apenas uma modalidade
afetiva qualquer, mas ela reenvia ao processo no qual a vida advém originalmente
no seu sofrer primitivo, à sua Verdade absoluta. Reenvia à Arquicarne e à paixão,
o Arquipathos da sua Arquirrevelação. Carne e pathos, Arquicarne e Arquipathos
“são consubstanciais ao processo no qual a Vida absoluta advém em si, são a matéria
fenomenológica originária na qual a Arqui-Revelação se cumpre”.
Henry comenta que a afirmação dos Pais da Igreja a respeito da realidade
da carne se dá sem arrazoados filosóficos e sem justificações conceituais, mas pelo
detalhamento da carne sofredora “recebendo a realidade do seu sofrimento, da sua
fenomenalização patética da vida. É da realidade de uma carne definida pelo seu
sofrimento que a Encarnação de Cristo e, de forma exemplar, a sua paixão recebem
agora a sua realidade e a sua verdade”43.
A Paixão de Cristo atesta a realidade da sua carne; o sofrimento vivido como
pathos pertence à “edificação interior de toda a realidade, à realidade absoluta da qual
procede e na qual se inscreve por uma qualquer razão de essência”44. Sofrimento e
pathos como realidades da carne remetem à questão fundamental da imanência da
Vida na carne. A liberdade, a autonomia, o movimento, o ser, a potência, a ipseidade,
a singularidade, a carne, não é a exterioridade que as dá, é a imanência a si da Vida.
Com o conceito cristão de imanência, como imanência da Vida em cada vivente45,
a Vida absoluta é doadora da vida e de seus elementos, como já percebera Irineu:

A carne é capaz de receber e conter o poder de Deus, visto que, no começo ela re-
cebeu a arte de Deus e deste modo uma parte de si mesma tornou-se o olho que vê,
uma outra o ouvido que escuta, uma outra a mão que palpa e que trabalha [...]. Ora
o que participa da arte e da sabedoria de Deus participa também do seu poder. A
carne não está pois excluída da arte, da sabedoria, do poder de Deus, mas o poder
de Deus, obtido na vida, desenvolve-se na fraqueza da carne46.

No entanto, junto com a face gloriosa dessa participação, Henry também


traz a face da fraqueza, pois se a carne retira o seu poder da participação na Vida
absoluta, significa que ela nada é por si mesma, recebe apenas a sua realidade dessa
doação e por isso não pode afastar-se de si mesma. “A incapacidade de todo o poder
em relação ao poder absoluto que o pôs em si mesmo e contra o qual nada pode, a
impossibilidade que daí resulta para se desfazer de si, esta dupla incapacidade tem
de extraordinário isto: é ela que confere a todo o poder o que faz dele um poder”47.

42
HENRY, 2001, p. 140. A próxima citação também. Grifo do autor.
43
HENRY, 2001, p. 141. Grifo do autor.
44
HENRY, 2001, p. 141.
45
HENRY, 2001, p. 174.
46
IRINEU apud HENRY, 2001, p. 145.
47
HENRY, 2001, p. 190. O grifo é do autor. A próxima citação também.

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Acontece aqui a singular inversão, afirmada já por Paulo, de que há uma relação
paradoxal na qual a condição de possibilidade reside na descoberta da impossi-
bilidade: “Quando me sinto fraco, é então que sou forte”. E ainda: “A aflição é o
nosso orgulho” (respectivamente 2 Coríntios 12.10 e Romanos 5.3). Paradoxos
da carne, paradigmas de um aconselhamento encarnado, capaz de transformar
sofrimento em vida.

Encarnação como paradigma de aconselhamento em tempos de


barbárie

Se Birman nos alerta que estamos em tempos de reducionismo, de pobreza


de significados, nos quais a linguagem se depaupera em tecnicismo e o sofrimento
em registros do corpo e da ação, com Henry vemos possibilidades fecundas de
resgatar a vida em profundidade pelo paradigma da encarnação.
Considerar cada experiência de si – seja sofrimento, seja alegria, seja dor ou
prazer – como provas da revelação da Vida absoluta se doando como vida em cada
um de nós implica sair das garras do cientificismo circundante. Pela encarnação, o
visível é prova do invisível da vida, e assim possibilita a saída da prisão objetivante,
que reduziu a vida a bios e techné. Pois na encarnação bios se torna presença de
Logos, história do Absoluto em nós, “se experimenta y se abraza a sí mismo en este
abrazo de si que es la esencia de la vida”48. Pois o registro já não é o da dor pura,
mas é o do sofrimento, que em seu sofrer como sofrer-se a si mesmo e suportar-se
a si mesmo se experiencia a si mesmo. Desta forma chega a si, apodera-se de si,
“un crecimiento de sí mismo y un gozar de sí”, uma união consigo mesmo e com
a Vida absoluta que se doa gerando o si.
Voltando aos nossos exemplos, delineamos, na conclusão, algumas pistas
para um aconselhamento encarnado como fator de resgate da vida perante a barbárie:
1. Em tempos de abolição dos dias dedicados ao descanso, o aconselhamento
centrado na encarnação apontará que vivenciar o descanso semanal será prova da
dádiva de si, doação da Vida que não exige trabalho retributivo nem consumo,
muito menos lucros. Experimentá-lo, a cada semana, como família e comunidade
reafirma a vida a partir da dádiva e não a partir do Eu-posso.
2. A arte contemplada pelo viés da encarnação não se preocupará apenas
com os dados técnicos e objetificantes do quadro da cena bíblica, pois procurará
pela Revelação da Vida na cena retratada: “El arte es el conjunto de las figuras de
su propia esencia y de las propiedades fundamentales de esa esencia que la vida se
ha propuesto a sí misma en todo tiempo y en todo lugar, por donde estuviera viva”49.
3. Numa igreja às voltas com a parafernália midiática, o aconselhamento
centrado na encarnação denunciará o esvaziamento da vida e a fuga rumo à téc-

48
HENRY, 2006, p. 59. A próxima também.
49
HENRY, 2006, p. 60.

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Aconselhamento em tempos de barbárie

nica. Apontará o entorpecimento de filhos que, esquecidos da doação da sua vida,


já não querem provar o sofrimento que advém do contato com irmãos e irmãs que
passam por necessidades. Denunciará que a opção pelo midiático em detrimento
do sofrimento da carne conduz à solidão; o culto torna-se refúgio narcísico e não
anúncio da realidade do amor divino encarnado.
4. O aconselhamento encarnado sabe que depressão é doença da carne
simultaneamente fruinte e padecente, que somos nós, e não reduzirá a questão ao
bios e suas substâncias químicas ou sua genética. Tendo por paradigma a paixão, o
sofrimento da carne nisso faz prova da sua realidade na Vida absoluta.50 A sabedo-
ria encarnada é múltipla: acompanhamento pastoral junto com acompanhamento
psicológico e médico, saberes que se reúnem para ajudar a atravessar esse deserto
vazio, mas também pleno de revelação.
5. Quando a barbárie é explícita como nas aldeias do Congo, cabe reunir
todas as forças possíveis para denunciar a matança da vida. A realidade da Paixão
de Cristo encorajou o médico congolês e também nos ajuda a jamais compactuar
com tal barbárie, mas na com-paixão [pathos-avec; mit-Pathos], no auxiliar e sofrer
conjuntamente, como corpo de Cristo, a dor daquelas mulheres e das suas famílias
e aldeias. O Cristo encarnado, com sua realidade da Paixão, mobiliza-nos para
que não fujamos perante essa realidade aterradora, mas em Seu nome possamos
denunciar, consolar e restaurar.
Cristãos comprometidos correm os riscos da escuridão, da perseguição,
do choque com seus limites, enquanto vivem sua vida nos paradoxos das bem-
aventuranças.51 Esta é uma das muitas lições encarnadas que aprendemos com
Lothar Carlos Hoch:

Olhando de um lado, para os grandes personagens bíblicos, verdadeiros ícones da fé,


nos quais nos inspiramos, e, de outro lado, para a nossa própria fragilidade diante do
tamanho da nossa tarefa de ajudar os outros – convém que, quando vamos a campo,
tenhamos consciência dos nossos próprios limites. Resiliência tem a ver com supe-
ração de limites, tem a ver com teimosia para viver. E é bom que assim seja. É bom
que, apesar dos nossos limites, não cessemos na busca constante de nos aperfeiçoar
para realizar a obra do amor e da solidariedade em meio à fraqueza humana.52

50
HENRY, Michel. Souffrance et Vie [Sofrimento e Vida], escrita por ocasião da V Conferência In-
ternacional “Philosophie et Psychiatrie”, realizada na Faculdade de Medicina de Paris, junho 2001
e retomada em 14 de Setembro na conferência durante “Porto 2001”. Florinda Martins a resume e
comenta na Apresentação à Genealogia da Psicanálise. Curitiba: UFPR, 2009. p. 24-27.
51
HENRY, Michel. Palavras de Cristo. Tradução de Florinda Martins. Lisboa: Colibri, 2003.
52
HOCH, Lothar C. Sofrimento, resiliência e fé na Bíblia. In: HOCH; ROCCA L., 2007, p. 80.

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Karin H. K. Wondracek

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Aconselhamento em tempos de barbárie

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contribuição para a clínica. 2010. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação
da Faculdades EST, São Leopoldo, 2010.

Estudos Teológicos São Leopoldo v. 50 n. 2 p. 273-287 jul./dez. 2010 287

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