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Karin H. K. Wondracek2
Abstract: This text begins from the description of suffering in post-modernity and
brings Michel Henrys concepts of barbarism to understand its origin and scope. The
actual reduction of life at body and action (Birman) and the depletion of symbolic
language are related to the loss of life and its access of donation. To rescue human
condition beyond the bios, we search on Michel Henry’s philosophy of Christianity
in order to have subsidies in its approach to the relationship between incarnation,
suffering and pathos. A phenomenology of incarnation, based on the John’s Gospel
concept of flesh suggests the passage of the body as object to the body as subject,
and thus enables modalization of pain and suffering in this in revelation of the gift
of life. Through examples we seek to illustrate the field of counseling during times
of barbarism; that counseling occurs in embodied attitude of com-passion.
Keywords: Barbarism. Incarnation. Phenomenology of Life. Michel Henry.
N
os últimos tempos, o ser humano se encantou com sua capacidade
de pensar, calcular, projetar artefatos, aumentar lucros. Com o olhar
tomado pela busca de ideias claras e distintas3, a ciência agigantou-
1
O artigo foi recebido em 17 de agosto de 2010 e aprovado por parecerista ad hoc mediante parecer
de 29 de agosto de 2010.
2
Psicóloga e psicanalista, professora de Aconselhamento e Psicologia na Faculdades EST. Mestra e
doutora em Teologia (EST – CAPES). Membro pleno da Sigmund Freud Associação Psicanalítica e
do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos. karinkw@gmail.com
3
DESCARTES apud HENRY, Michel. Genealogia da psicanálise: o começo perdido. Curitiba: UFPR,
2009. p. 86: “São verdadeiras todas as coisas que concebemos muito clara e distintamente”.
Karin H. K. Wondracek
4
HENRY, Michel. Eu sou a verdade: cristianismo como filosofia. Tradução de Florinda Martins.
Lisboa: Vega, 1998. p. 277.
5
HENRY, Michel. La barbárie. 2. ed. Madrid: Caparrós, 2006. Michel Henry (1922-2002) é filósofo
e fenomenólogo francês; sua obra busca construir bases filosóficas e metodológicas que possibilitem
a fenomenologia da vida. Além de Husserl, embasa-se em Meister Eckhart, Descartes e Maine de
Biran para fazer uma leitura crítica dos rumos do pensamento ocidental. Nas últimas obras, tece uma
abordagem filosófica do Evangelho de João, como proposta de compreensão da condição humana
como nascido na Vida absoluta. Para mais informações, ver o site <www.michelhenry.com> e as
referências bibliográficas no final.
6
HENRY, 2006.
7
HENRY, 2006.
8
Ao lado de Michel Henry, o conceito de exclusão da imaginação do pensamento Ocidental de Giorgio
Agamben é útil para abordar essa transformação. Cf. JUNGBLUTH, Ana Carolina. Jornada imagi-
Entendendo a contemporaneidade
11
Cabe destacar que a crítica não vai no sentido de menosprezar o benefício da medicação, mas de
questionar o entendimento apenas concreto do sofrimento e o consequente monopólio do seu trata-
mento.
12
Denis Mukvege foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz em 2009, que foi concedido a Barack Obama.
Disponível em: <http://www.correiodopovo.com.br/Noticias/?Noticia=160707>. Acesso em: 28 jul.
2010.
13
BIRMAN, Joel. Dor e sofrimento num mundo sem mediação. Estados Gerais da Psicanálise. 2003.
Disponível em: <http://www.estadosgerais.org/mundial_rj/download/5c_Birman_02230503_port.
pdf>. Acesso em: 26 jul. 2010.
14
BIRMAN, José. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
15
KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão. São Paulo: Boitempo, 2009.
16
HENRY, 2001.
17
HENRY, 2001.
18
HENRY, 2001, p. 274.
Quando o humano esquece a doação da sua vida nesse saber originário, incrementa
a barbárie. Esquecimento que, para Henry, tem múltiplas causas, mas que pode ser
superado, se a vida acolher a revelação, especialmente a da encarnação.
19
Como, por exemplo, em HOCH, Lothar. Sofrimento, resiliência e fé na Bíblia. In: HOCH, Lothar;
ROCCA L, Susana (Orgs.). Sofrimento, resiliência e fé. São Leopoldo: EST; Sinodal, 2007. p.72-80.
Quem consultar o catálogo da biblioteca da EST terá uma noção da profundidade dessa temática na
produção de Lothar C. Hoch, seja em livros, artigos, bem como em orientações de dissertações e teses.
20
MARION, Jean-Luc. O fenômeno erótico. Tradução por Florinda Martins. No prelo em Portugal.
O NEFT – Núcleo de Estudos em Filosofia e Teologia do PPG-EST, coordenado pelo Prof. Dr. Enio
R. Mueller e pela autora, inseriu essa temática e esses autores no seu programa de estudo, e discutiu
a obra de ambos com a professora Florinda, em março de 2010. Sobre Michel Henry e a fenomeno-
logia da Vida, cf. <www.michelhenry.com>. Em português, o grupo de investigação “O que pode
um corpo”, coordenado pela Profa. Dra. Florinda Martins desenvolve pesquisas nas áreas citadas,
do qual também participamos.
21
KÜHN, Rolf. Gabe als Leib in Christentum und Phänomenologie. Würzburg: Echter, 2004.
22
HENRY, 2001, p. 143.
23
HENRY, Michel. Encarnação: uma filosofia da carne. Tradução de Florinda Martins. Lisboa: Circulo
de Leitores, 2001.
24
HENRY, 2001, p. 12.
25
HENRY, 2001, p. 134. A próxima também.
26
Monismo ontológico: Conjunto de supostos que sustenta, no pensamento tradicional, a necessidade
de apresentar o fenômeno mantendo a “distância fenomenológica”, que afirma que o fenômeno se
nos apresenta distinto de nós e separado de nós. A partir disso, o Ser será pensado sempre na Exte-
rioridade transcendental, em um Ek-stasis, em uma ruptura e separação originária, traço em comum
da filosofia clássica e da filosofia moderna da consciência, desde sua origem grega.
27
O que segue foi desenvolvido no capítulo 4 da tese de doutorado da autora, Ser nascido na Vida:
a fenomenologia da Vida de Michel Henry e sua contribuição para a clínica. Tese (Doutorado) –
Programa de Pós-Graduação da Faculdades EST, São Leopoldo, 2010, sob a orientação do Prof. Dr.
Enio R. Mueller e coorientação da Profa. Dra. Florinda Martins e do Dr. Carlos J. Hernández. Fomos
honradas com a participação do Prof. Dr. Lothar C. Hoch na Banca Examinadora.
28
HENRY, 2001, p. 74.
29
HENRY, 2001, p. 75.
não é o aparecer do mundo que pode, precisamente, dele prestar contas. Tal é o para-
doxo: ao primeiro passo, a elucidação fenomenológica do corpo mundano arranca
a sua existência ao mundo, pondo gravemente em causa a primeira via de acesso
escolhida para lhe circunscrever a natureza e prosseguir a análise.32
Essa última questão nos leva ao segundo ponto, de que é preciso atravessar
o corpo objetivo para tocar o corpo subjetivo. A capacidade de sentir do corpo não
pode ser explicada a partir das categorias de visibilidade. Sua sensibilidade retira-o
da condição de objeto (corpo sentido) e leva-o para a condição de corpo-sujeito
(corpo que sente).
30
HENRY, 2001, p. 78.
31
HENRY, 2001, p. 102.
32
HENRY, 2001, p. 103. O grifo é meu.
33
HENRY, 2001, p. 95.
34
HENRY, 1998.
35
HENRY, 2001, p. 94.
36
HENRY, 2001, p. 47: “A passividade da dor e do sofrimento não é, pois, a propriedade de uma
impressão particular, uma modalidade da existência advindo-lhe em duas circunstâncias contrárias,
quando ela se experiencia, não raro, como um fardo – é uma propriedade de essência, a pressuposição
fenomenológica incontornável de qualquer impressão”.
37
HENRY, 2001, p. 65.
38
HENRY, 2001, p. 43. As do próximo parágrafo também.
Opera-se, então, na problemática dos Padres, a viragem decisiva pela qual as deter-
minações objectivas do corpo material, mostrando-se-nos no mundo, cedem o lugar
às determinações impressionais e afectivas que se revelam no pathos da vida. Ora
são estas determinações impressionais e afectivas que constituem a matéria feno-
menológica de que a carne é feita, a carne desta carne, a sua verdadeira substância,
a sua realidade41.
39
HENRY, 2001, p. 165.
40
HENRY, 2001, p. 45.
41
HENRY, 2001, p. 140.
ele jamais é uma carne, a segunda devolvida à vida, de tal forma que, em si mesma,
jamais é um corpo”42. No sofrimento, a carne não expressa apenas uma modalidade
afetiva qualquer, mas ela reenvia ao processo no qual a vida advém originalmente
no seu sofrer primitivo, à sua Verdade absoluta. Reenvia à Arquicarne e à paixão,
o Arquipathos da sua Arquirrevelação. Carne e pathos, Arquicarne e Arquipathos
“são consubstanciais ao processo no qual a Vida absoluta advém em si, são a matéria
fenomenológica originária na qual a Arqui-Revelação se cumpre”.
Henry comenta que a afirmação dos Pais da Igreja a respeito da realidade
da carne se dá sem arrazoados filosóficos e sem justificações conceituais, mas pelo
detalhamento da carne sofredora “recebendo a realidade do seu sofrimento, da sua
fenomenalização patética da vida. É da realidade de uma carne definida pelo seu
sofrimento que a Encarnação de Cristo e, de forma exemplar, a sua paixão recebem
agora a sua realidade e a sua verdade”43.
A Paixão de Cristo atesta a realidade da sua carne; o sofrimento vivido como
pathos pertence à “edificação interior de toda a realidade, à realidade absoluta da qual
procede e na qual se inscreve por uma qualquer razão de essência”44. Sofrimento e
pathos como realidades da carne remetem à questão fundamental da imanência da
Vida na carne. A liberdade, a autonomia, o movimento, o ser, a potência, a ipseidade,
a singularidade, a carne, não é a exterioridade que as dá, é a imanência a si da Vida.
Com o conceito cristão de imanência, como imanência da Vida em cada vivente45,
a Vida absoluta é doadora da vida e de seus elementos, como já percebera Irineu:
A carne é capaz de receber e conter o poder de Deus, visto que, no começo ela re-
cebeu a arte de Deus e deste modo uma parte de si mesma tornou-se o olho que vê,
uma outra o ouvido que escuta, uma outra a mão que palpa e que trabalha [...]. Ora
o que participa da arte e da sabedoria de Deus participa também do seu poder. A
carne não está pois excluída da arte, da sabedoria, do poder de Deus, mas o poder
de Deus, obtido na vida, desenvolve-se na fraqueza da carne46.
42
HENRY, 2001, p. 140. A próxima citação também. Grifo do autor.
43
HENRY, 2001, p. 141. Grifo do autor.
44
HENRY, 2001, p. 141.
45
HENRY, 2001, p. 174.
46
IRINEU apud HENRY, 2001, p. 145.
47
HENRY, 2001, p. 190. O grifo é do autor. A próxima citação também.
Acontece aqui a singular inversão, afirmada já por Paulo, de que há uma relação
paradoxal na qual a condição de possibilidade reside na descoberta da impossi-
bilidade: “Quando me sinto fraco, é então que sou forte”. E ainda: “A aflição é o
nosso orgulho” (respectivamente 2 Coríntios 12.10 e Romanos 5.3). Paradoxos
da carne, paradigmas de um aconselhamento encarnado, capaz de transformar
sofrimento em vida.
48
HENRY, 2006, p. 59. A próxima também.
49
HENRY, 2006, p. 60.
50
HENRY, Michel. Souffrance et Vie [Sofrimento e Vida], escrita por ocasião da V Conferência In-
ternacional “Philosophie et Psychiatrie”, realizada na Faculdade de Medicina de Paris, junho 2001
e retomada em 14 de Setembro na conferência durante “Porto 2001”. Florinda Martins a resume e
comenta na Apresentação à Genealogia da Psicanálise. Curitiba: UFPR, 2009. p. 24-27.
51
HENRY, Michel. Palavras de Cristo. Tradução de Florinda Martins. Lisboa: Colibri, 2003.
52
HOCH, Lothar C. Sofrimento, resiliência e fé na Bíblia. In: HOCH; ROCCA L., 2007, p. 80.
Referências bibliográficas
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download/5c_Birman_02230503_port.pdf>. Acesso em: 26 jul. 2010.
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Caparrós, 2006,
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KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão. São Paulo: Boitempo, 2009.
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logia da Vida de Michel Henry. In: VII SALÃO DE PESQUISA DA FACULDADES
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