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Direitos
da Criança
30 ANOS
Publicação quadrimestral Equipa editorial: Ana Maria Azevedo, Ana Isabel Santos,
n.º 120 Cristina Mesquita, Joana Freitas-Luís, Liliana Marques, Luís Ribeiro,
Tiragem: 4200 exemplares Maria do Carmo Góis, Maria do Céu Velez, Maria de Fátima Godinho,
Publicação Quadrimestral n.º 120 Maio l Agosto 2020
Edição, Propriedade e Redação: Associação Maria Helena Horta, Susana Alberto
Colaboradores:Rosário Leote
Edição da APEI Associação de Profissionais de Educação de Infância
Bairro da Liberdade, Lote 9, Loja 14, Piso 0. Revisão: António Simões do Paço Design gráfico: Raquel Beato
1070-023 LISBOA Impressão: Rainho & Neves, Lda - Rua do Souto, 8 - 4520-612 São
Tel. 21 382 76 19/20 Fax. 21 382 76 21 João de Ver Preço por número:8,5¤
E-mail: apei@apei.pt Website:www.apei.pt Assinaturas: 1 ano: 25¤ (iva incluído), estrangeiro (1 ano) 35¤
NIPC: 501 226 737 N.º de registo: ERC: 112028 Depósito legal: 12929/86
Diretor: Luís Ribeiro (Presidente da APEI) ISSN: 2182-8369
Os artigos assinados não exprimem necessariamente o ponto de vista da Direção.
1 Editorial . Luís Ribeiro 46 Práticas . Eva Leal
Projeto Construir a Cidade – Exercício da Cidadania
66 Artigo . Isabel Lopes da Silva, Liliana Marques, Lourdes Mata, Manuela Rosa
8 Artigo . Catarina Tomás e Manuela Ferreira Os direitos da criança – uma leitura através das Orientações
Educação de infância em Portugal: um retrato singular, Curriculares para a Educação Pré-Escolar
30 anos após a Convenção sobre os Direitos da Criança
42 Artigo . Nadine Correia, Cecília Aguiar e Consórcio PARTICIPA 90 Nas bancas: Infância
PARTICIPA – Instrumentos de desenvolvimento
profissional para a promoção do direito de
participação das crianças em contexto de jardim
92 Nas bancas: Educação
de infância
Estatuto Editorial Os Cadernos de Educação de Infância, fundados em 1987, são uma revista quadrimestral, independente e livre, especializada no campo da educação de infância, que pretende contribuir,
através da divulgação de artigos concetuais e de práticas educativas de qualidade, para a discussão da pedagogia e da educação e para o aprofundamento da compreensão da infância. As suas opções
editoriais são orientadas por critérios de qualidade, rigor e criatividade editorial, estabelecidas sem qualquer dependência de ordem ideológica, corporativa, política, social ou económica, valorizando a
pluralidade de olhares que sejam promotores de reflexão e discussão sobre a educação de infância, contribuindo, desse modo, para o desenvolvimento pedagógico e científico dos seus profissionais e para
a definição de políticas educativas a nível nacional e europeu. No campo da informação e da opinião, orienta-se pelas disposições contidas na Declaração dos Direitos da Criança, na Declaração Universal
dos Direitos do Homem, na Constituição da República Portuguesa, no Estatuto do Jornalista, na Lei de Imprensa, no Código Deontológico dos Jornalistas e nos princípios da ética profissional produzida
e assumida no seio da comunidade da informação, de âmbito nacional ou internacional.
A APEI é apoiada pelo Ministério de Educação no âmbito do protocolo de afetação de recursos humanos
# 120
: EDITORIAL
Luís Ribeiro . Presidente da APEI
Em 2020, assinalam-se os 30 anos da ratifi- elementares direitos da criança, como a pro- Neste sentido, a acompanhar esta edição
cação por Portugal da Convenção sobre os tagonizada pelos Estados Unidos da América dos Cadernos de Educação de Infância, co-
Direitos da Criança, principal razão porque a de Donald Trump, separando as crianças de mo suplemento de 40 páginas, publica-se
APEI decidiu publicar este número temático imigrantes ilegais das respetivas famílias ou a Convenção sobre os Direitos da Criança,
duplo, que reúne um conjunto alargado de o crescimento de sentimentos xenófobos, com os protocolos facultativos adicionais,
contributos de pedagogos, investigadores, um pouco por toda a Europa, mostram que relativos à Venda de Crianças, Prostituição
professores do ensino superior, bem como muito do percurso e das conquistas efetua- Infantil e Pornografia Infantil, à Participação
de educadores de infância que, através das das são frágeis e facilmente revertidas (ou de Crianças em Conflitos Armados e à Insti-
suas investigações e de práticas pedagógi- esquecidas), pelo que os direitos da criança tuição de um Procedimento de Comunicação
cas reflexivas, são uma importante fonte de continuam a ser uma causa e um desígnio que, estamos certos, serão úteis para todos
inspiração para todos os profissionais que se que a todos deve mobilizar. os profissionais.
debruçam sobre as questões da educação e A recente pandemia e as alterações provo- Aproveitando a temática, o calendário es-
dos direitos da criança. cadas no relacionamento entre os seres hu- colar que habitualmente integra a edição de
Se é verdade que um longo caminho foi já manos, com todas as implicações, diretas e setembro dos CEI celebra igualmente os 30
percorrido na defesa da criança como sujeito indiretas, no desenvolvimento das crianças, anos da ratificação da Convenção, um mag-
de direitos, um processo com início na se- quer em contexto educativo institucional, nífico trabalho da ilustradora Yara Kono que,
gunda década do século XX mas que ganhou como se observou com a reabertura das certamente, todos apreciarão.
um particular ênfase nos últimos 30 anos, são creches no passado dia 18 de maio, quer em Desejando a todas/os um magnífico ano es-
muitos os acontecimentos recentes que evi- contexto familiar e social podem, igualmente, colar e umas ótimas leituras, subscrevo-me
denciam que muito ainda há por fazer. constituir uma ameaça aos direitos da crian- com amizade.
A guerra civil na Síria, as migrações de fa- ça, o que reforça a importância do papel do
mílias do Médio Oriente e África para a Eu- educador de infância e das instituições que
ropa em busca de melhores condições de prestam serviços à infância na definição de
vida, alojadas em campos de refugiados cuja políticas educativas e de práticas pedagógicas
existência se prolonga muito para além do de qualidade que salvaguardem o superior
admissível e as políticas de emigração res- interesse da criança, que a APEI procurará,
tritivas de alguns países mais desenvolvidos, como sempre procurou fazer, apoiar e estar
muitas delas ignorando por completo os mais na vanguarda da sua defesa.
Antes de me sentar para escrever, aponto Mas quando me sentei para organizar estas também têm acesso aos dados gerados por
num caderninho alguns lembretes para, de- anotações, recebi via WhatsApp um vídeo estas tecnologias.
pois, ver o que faço com eles. Quando recebi de uma escola chinesa na qual estão a ser É possível que esteja hipersensível em rela-
o convite dos Cadernos de Educação de In- realizadas experiências diversas com base em ção a estes temas devido à crise da covid-19.
fância fui anotando, sem ordem: tecnologias de inteligência artificial. Não consegui ver este vídeo sem um senti-
- antecedentes da Convenção (Declaração O vídeo é do final do ano passado, mas há mento de horror em relação ao futuro. Em
de Genebra de 1924, o texto de 1959); outros do mesmo género mais recentes. vez de redigir um texto a partir dos meus
- grandes princípios da Convenção, sobretu- Apresenta várias inovações tecnológicas que lembretes, decidi dedicar-me à redação de
do o “interesse superior da criança” e os estão a ser introduzidas nas escolas, nomea- um novo artigo a incluir numa versão revista
artigos 12 a 15 sobre o direito de opinião e damente: i) um dispositivo à volta da cabeça da Convenção, talvez entre os artigos 28 e
as liberdades de expressão, de pensamen- que mede as ondas cerebrais e acende uma 29, respeitantes à educação.
to e de associação das crianças; luz que assinala o nível de atenção de cada
- não esquecer Janusz Korczak, nem João criança; ii) câmaras de vigilância com reco- Novo artigo 28/29
dos Santos e O segredo do homem é a nhecimento facial e controlo das posturas 1. Os Estados-partes garantem o direito das
própria infância; corporais; iii) uniformes com chips que per- crianças ao acesso às redes digitais, com
- imagens: ver Sebastião Salgado e outros; mitem localizar instantaneamente as crian- a supervisão de um adulto quando tal se
atenção às situações-limite (violência so- ças; etc. justifique, tendo em conta a sua importân-
bre meninas e raparigas, refugiados, crian- Tudo isto é introduzido num ambiente lúdi- cia para a informação, o conhecimento e a
ças-soldados…); co, com robôs simpáticos a interagirem com educação.
- recordar que 250 milhões de crianças não as crianças, e é feito com o consentimento e 2. Os Estados-partes reconhecem o direito
vão à escola. apoio dos pais, preocupados sobretudo com das crianças a recusarem os dispositivos
Há ainda duas outras anotações, um nome a segurança e o progresso académico dos digitais que ponham em causa a sua priva-
e uma data, que não sou capaz de decifrar. seus filhos. Tal como os professores, os pais cidade e liberdade.
Sinto-me muito honrada por estar a represen- ses há crianças maltratadas e que o Conselho ço privilegiado de afetos, que agora sabemos
tar o Instituto de Apoio à Criança nesta re- da Europa estima que uma em cada cinco ter romantizado. Ainda recentemente a ONU
vista dedicada à Convenção sobre os Direitos crianças do nosso velho continente seja ví- alertou para uma realidade devastadora em
da Criança, por um conjunto de razões, todas tima de abusos sexuais, o que há uns anos que a violência doméstica é responsável por
elas importantes. A primeira deve-se à decisão não imaginávamos, porque nos recusávamos números elevados de lesões graves e até de
da APEI. Acho-a muito oportuna e justa, por- a acreditar que essas tragédias fossem tão mortes, em que as crianças sofrem às mãos
que todas as edições sobre estas matérias são frequentes dentro de famílias onde aparente- de quem devia protegê-las.
necessárias e neste ano de pandemia, com mente havia harmonia. Habituámo-nos a ver De forma que cada vez há uma maior exigên-
tantas incertezas, ainda mais precisamos de a família como o porto seguro, como o espa- cia para os profissionais que trabalham com
algo que tenha força de lei para nos unirmos
em torno de princípios comuns. A segunda
tem a ver com o facto de o Instituto da Crian-
ça ter sido criado durante esse grande mo-
vimento que surgiu com o Ano Internacional
da Criança, em 1979, em que uma perspectiva
nova ganhou consenso entre os Estados e
a criança passou a ser olhada de forma au-
tónoma, como titular de direitos. A ideia de
uma convenção inovadora conseguiu desde
o momento da sua preparação reunir muitos
peritos a nível internacional, e dez anos de-
pois foi visível que uma larga maioria de países
queriam fazer parte dos aderentes aos seus
princípios. A terceira refere-se à extraordinária
missão dos e das educadoras de infância no
desenvolvimento integral da criança, que é um
objectivo constitucionalmente garantido pelo
art.º 69.º da nossa lei fundamental e que, ca-
bendo ao Estado e à sociedade em geral, é
afinal traduzido no quotidiano destes profis-
sionais que assumem a função muito especial
de concretizar esta norma constitucional de
tão grande dimensão e significado.
Sabemos que ainda há crianças no mundo
que não têm direito a um ambiente seguro,
porque vivem em zonas de conflito armado,
ou em campos de refugiados sem condições,
outras que não têm direito a brincar ou a
aprender, porque têm de trabalhar desde
cedo, ou simplesmente porque não há escola
no local onde vivem; sabemos que há crianças
que morrem de fome e outras que morrem
por doenças evitáveis, ou por falta de uma
vacina cuja cura existe nos países mais ricos,
e outras que nem sequer têm água potável.
Mas também sabemos que em todos os paí-
Uma questão de direitos humanos ração, como ornamento, laterais e exteriores ca aprender a cidadania, isto é, aprender as
A criança e os seus direitos ocupam hoje uma ao fluxo central da práxis educativa e das de- regras sociais — precisam de ser ajudadas a
centralidade inquestionável na agenda social cisões sobre as suas vidas. descentrar-se de si e a descobrir e a respeitar
e política. Todavia, essa visibilidade ainda está Esta nova assunpção da criança reivindica, os outros que com elas partilham os quoti-
longe de assegurar uma vida de qualidade a mais do que a exterioridade de um saber dianos. Esse trânsito exigente e fundamental
todas as crianças: os discursos, se demons- técnico, uma experiência comunicacional sus- do ego ao alter, coloca-nos a necessidade de
tram uma nova consciência sobre a situação tentada na fecundidade da relação humana uma leitura sobre autoridade e autonomia, pi-
de milhões de crianças em situação de fragili- autêntica. Porque a criança só se funda como lares fundacionais de uma cidadania esclareci-
dade, não são suficientes sem medidas efica- humana no diálogo criador com os que se as- da e eticamente sustentada. É uma questão
zes a acompanhá-los e a sustentá-los. sumem, e ela assume, como seus semelhan- central na reflexão sobre os direitos humanos
A segunda metade do século XX e o início tes. É nesse encontro que se vai fazendo in- em geral e sobre os direitos das crianças em
deste século assistiram efetivamente à emer- teligente, num processo complexo e fecundo, particular.
gência da criança como sujeito, como integra- marcado mais pela turbulência e pela imprevi- Pode surgir paradoxal, mas o reconhecimento
lidade biológica, psicológica e social, afastan- sibilidade do que pelo sequencial e pelo linear. e o respeito pelos direitos das crianças, e o
do-se decisivamente das visões que, durante Só nessa “ética do encontro”, que se sustenta seu exercício, pressupõem a necessidade de
séculos, caracterizaram a infância como uma no respeito pela criança e no reconhecimento autoridade.
incompletude. O conhecimento atual revela- da sua ecologia própria, o verbo educar ganha A construção da autoridade é hoje um dos
-nos as crianças como seres competentes, em significado e se cumpre como devir. maiores desafios que se coloca aos pais e aos
potência absoluta e, pelas suas implicações, É uma “gramática” onde escuta, diálogo e educadores, pela exigência moral em que se
constitui um dos mais fundamentais e desa- parceria são conceitos-chave para aprender a sustenta, pela integridade que reivindica, pela
fiantes avanços da nossa contemporaneidade. aprender, em afetuosa relação, as exigências e amorosidade que pressupõe, pela aprendiza-
Mas é sobretudo uma nova cultura de direitos os desafios de ser filho(a), aprendiz, cidadã(o), gem permanente para que nos convoca.
humanos na infância que nos falta e a que mãe, pai, educador(a). Porque a autoridade nunca é do domínio do
aspiramos. Para isso temos de nos desafiar a escutar as poder (aqui falamos de autoritarismo). A au-
Na “bolha” das macropolíticas e do pensa- crianças e a levar as crianças a sério. Escutar toridade não resulta de uma imposição des-
mento dominante, é verdade que as crianças as crianças e levar as crianças a sério é o eixo cendente, mas antes de um reconhecimento
e os adolescentes já convocam políticas de transversal que pode provocar ressignifica- ascendente: a criança reconhece e aceita a
provisão e de proteção, mas os seus direitos ções no que comummente se entende por autoridade de um adulto pelas suas qualida-
de participação, os mais fundamentais pela relação educativa. des éticas, pela congruência e assertividade
sua radicalidade epistémica, política e ética, Escutar a criança e levar as crianças a sério é das suas palavras e ações, pela natureza do
continuam largamente a ser os menos res- a condição para repensar e inovar as institui- vínculo e da relação que se estabelece entre
peitados e os menos desenvolvidos. Neste ções escolares. Escutar as crianças e levar as eles.
amplexo de direitos habita o gérmen de uma crianças a sério é o cenário que pode deter- As crianças precisam de reconhecer autorida-
nova visão que, recusando o pedocentrismo minar a recriação dos papéis dos adultos que de em adultos que amam e que amam. Essa
redutor, acolhe a criança como sujeito, autor participam na sua educação. natureza de autoridade é securizante e é con-
e ator da sua vida. Uma nova cultura a fundar Esta escuta activa funda a criança como nos- dição de desenvolvimento harmonioso. Sem a
e a convocar uma nova paideia. so semelhante, como sujeito político, e reivin- presença dessa autoridade “construtora”, as
Vale a pena questionar se o estatuto da crian- dica das instituições dedicadas à infância as- meninas e os meninos desenvolvem frustra-
ça nas nossas sociedades assenta numa efe- sumirem-se como “fóruns na sociedade civil”, ções e apresentam comportamentos disfun-
tiva e intensa relação entre semelhantes, ou instituições abertas e plurais, efectivamente cionais e associais.
se, pelo contrário, as ideias ainda dominantes empenhadas na promoção da infância e das A autoridade reforça-se com a clara definição
sobre a infância não vagueiam entre o pro- famílias, com as crianças e com as famílias. de limites, sempre fecundada pelo diálogo,
tecionismo redutor e a negligência criminosa. pela concertação e pela negociação. A autori-
A agência, o discurso e a visão das crianças, Sobre a autonomia e a autoridade dade fragiliza-se com comportamentos auto-
a maior parte das vezes e nos mais variados As crianças precisam de ser respeitadas nos ritários e imediatistas, quase sempre fruto de
contextos, são ainda acolhidos com comise- seus direitos. enquanto pessoas. E isso impli- descargas emocionais incontroladas.
1. Introdução tado português, implicando a reformulação minho que, também partilhado por muitos
Uma das marcas dos Estudos Sociais da In- de todo o ordenamento jurídico de acordo países europeus, nos aproxima e coloca a
fância é a premissa de que a infância, en- com aquele articulado – e a atualidade. As- par dos padrões de desenvolvimento huma-
quanto categoria social de tipo geracional, sim, a partir da lente dos direitos das crian- no mais elevados. Aí se destacam os campos
constitui uma porta de entrada para com- ças e da sua tradicional divisão em direitos da saúde, da família e da educação e da pro-
preendermos a sociedade e as suas dinâmi- de proteção, provisão e participação, “os 3 teção à infância.
cas. O valor humano e social que a infância P” (ver caixa 2), socorremo-nos de dados de No primeiro caso – o direito constitucional
representa não é separável de um quadro natureza jurídica e legislativa, estatística e à saúde (art.º 64.º da Constituição da Re-
jurídico-legal que, com a Convenção sobre da investigação académica, nacionais e in- pública Portuguesa, art.º 24 CDC, 1989) –,
os Direitos da Criança (CDC, 1989), assinala ternacionais, para captar um retrato pano- a existência de um bom Serviço Nacional de
um antes e um depois numa longa história râmico da infância em Portugal nos últimos Saúde viabilizou a extraordinária diminuição
pautada pela negligência, ausência e silencia- 30 anos, dar conta das suas singularidades das taxas de mortalidade infantil para um
mento das crianças, simbolizando um padrão naquilo que foram as principais conquistas, valor abaixo da média europeia e mundial
civilizacional (ver caixa 1). direitos por cumprir e descoincidência entre (de 10,3% em 1990 para 3,1% em 2011 e 2,8%
A passagem da Declaração sobre os Direitos discursos e práticas. Particular atenção será em 2019); a execução do Plano Nacional de
da Criança (DDC, 1959), que afirma meras dedicada às crianças pequenas e à educação Vacinação e as consultas dos primeiros anos
obrigações de caráter moral, para uma CDC de infância (EI). de vida, fundamentais, eficazes e menos dis-
(1989), que tem de ser ratificada pelos Es- pendiosos para a prevenção de doenças in-
tados que a subscrevem, assinala uma al- 2. Infância e direitos em Portugal: feciosas e despiste precoce de necessidades
teração radical nos modos como estes e as um retrato singular especiais.
sociedades entendem as crianças e os seus Constituída por 54 artigos, a CDC tem como No campo da família assinala-se um conjun-
direitos: a CDC passa a configurar-se como fim último salvaguardar o superior interesse to de mudanças na sociedade portuguesa,
lei interna e torna os Estados que dela são da criança, considerada um ser complexo, entre as quais alterações significativas na
partes juridicamente responsáveis pelo cum- mas íntegro, uno e único. Neste sentido, sua estrutura, reduzindo-se a dimensão dos
primento das obrigações necessárias à reali- apesar de os direitos poderem ser catego- agregados domésticos e alargando-se o nai-
zação dos direitos da crianças e por todas as rizados, na realidade eles são indivisíveis e a pe das composições possíveis, nas dinâmi-
ações que tomem em relação a elas, tendo sua interdependência é crucial para a reali- cas de conjugalidade e parentalidade, com
de prestar contas ao Comité Internacional zação de cada um: os direitos de provisão implicações nas taxas de natalidade e nos
dos Direitos da Criança (CIDC). são condições básicas para assegurar os modos como se considera o lugar dos filhos
Ora, o consenso gerado em torno da CDC, direitos de proteção, sendo que sem ambos e o investimento educativo que neles se faz
não isento de conflitualidade interna, sendo os direitos de participação lograriam em se- (Cunha, 2007; Ferrão & Delicado, 2015; Al-
denotativo da diversidade social, cultural, re- rem alcançados e contribuírem, por via da meida & Ramos, 2020). Tais transformações
ligiosa e política dos países signatários, tem- participação social das crianças e partilha são ainda acompanhadas por legislação de
-se traduzido, em termos da sua concretiza- nas decisões que afetam os seus mundos de proteção à maternidade, paternidade e ho-
ção, em realidades múltiplas, não lineares, vida, para realizarem e levarem mais longe os moparentalidade e de alargamento da ado-
com diferentes cumprimentos e velocidades, direitos de provisão e de proteção. Dito isto, ção de crianças por casais do mesmo sexo.
típicas das políticas de alto consenso e baixa e apenas para uma melhor e mais fácil siste- A compreensão destes fenómenos articula-
intensidade (Tomás, 2011). matização, abordaremos conjuntamente os -se com mudanças ocorridas no campo da
Deste ponto de vista, no 30.º aniversário da direitos de proteção e provisão e, de seguida, educação: sublinha-se a melhoria substan-
CDC torna-se particularmente significativa os direitos de participação no contexto da EI. cial dos níveis de escolaridade da população
uma análise dos avanços, lacunas e impasses portuguesa, com destaque para as mulheres
no que diz respeito à garantia dos direitos 2.1. Infância e direitos de proteção e que, rapidamente e com sucesso, supera-
das crianças. Esse é, pois, o desafio que provisão ram as limitações a que estavam vetadas no
abraçamos neste texto, tomando por refe- Referir direitos de provisão e proteção das acesso ao ensino superior. No entanto, se
rência o período que medeia entre o ano de crianças em Portugal é sinónimo de avanço estes padrões nos aproximam daqueles por
1990 – quando a CDC foi ratificada pelo Es- marcante nas últimas três décadas, num ca- que se pautam os países mais desenvolvidos,
CAIXA 2
• Os direitos de proteção implicam a consideração de uma atenção distinta às crianças de um conjunto de direitos acrescidos que, por
motivos diversos, nomeadamente situações de discriminação, abuso físico e sexual, exploração, injustiça e conflito, se encontrem
privadas ou limitadas no exercício dos seus direitos.
• Os direitos de provisão implicam a consideração dos programas que garantam os direitos sociais da criança, nomeadamente o acesso
de todas as crianças a direitos como a saúde, educação, segurança social, cuidados físicos, vida familiar, recreio e cultura.
• Os direitos de participação implicam a consideração de uma imagem de infância ativa, distinta da imagem de infância objeto das políti-
cas assistencialistas, à qual estão assegurados direitos civis e políticos, ou seja, aqueles que abarcam o direito da criança a ser consul-
tada e ouvida, o direito ao acesso à informação, à liberdade de expressão e opinião e o direito a tomar decisões em seu beneficio, que
deverão traduzir-se em ações públicas para a infância, que consideram e são organizadas do ponto de vista das crianças.
das médias dos países da OCDE e da UE23 cuja excessiva lotação indicia perda de quali- educativo, tem vindo a ser debatida e defen-
(36,7% face a 36,3% na OCDE e a 35,6% na dade. É também um direito posto em causa dida em várias escalas e âmbitos internacio-
UE23) (idem). Inferimos que esse valor possa pelo acesso desigual das crianças às creches, nais, europeus e nacionais. Veja-se o Comen-
ser ainda mais elevado devido à inexistência principalmente centrado nas cidades de Lis- tário Geral n.º 7 do Comité Internacional dos
de dados oficiais e sistematizados acerca das boa, Setúbal e Porto (Carta Social, 2018). Ou Direitos das Crianças (CIDC, 2005) quando
amas, muitas delas informais e/ou ilegais. seja, o acesso às creches é condicionado em afirma que: “a criança não é apenas objeto
Neste retrato, a situação dos bebés por- termos sociais e geográficos, o que, muitas de práticas benevolentes, é um titular de di-
tugueses até 1 ano de idade é singular: em vezes, conduz à existência de creches ilegais reitos; o objetivo da educação é empoderá-
2019, Portugal tinha a quarta maior taxa de em zonas altamente deprimidas do ponto -las nas suas capacidades através de estra-
frequência, mais do que duplicando a média de vista socioeconómico, e com baixa qua- tégias centradas nas crianças, e amigáveis,
da OCDE. Um tal indicador significa que os lidade. Um direito posto em causa porque com oportunidades para exercerem os seus
bebés portugueses começam a frequentar a falta de condições em que muitas creches direitos, e estes incluem, entre outros, tem-
precocemente a creche, nela permanecen- funcionam é frequentemente geradora de po, espaço para o brincar social, exploração
do diariamente muitas horas. Para além das stress infantil crónico. Tais singularidades no e aprendizagem”.
elevadas horas de permanência, acresce o caso do atendimento aos 0-3 anos, decor- A defesa da creche como um direito das
problema da sobrelotação dos espaços: au- rem, de acordo com Vasconcelos (2018), do crianças à educação e não uma resposta
mentou o número de crianças por sala, pas- facto de não ter havido políticas sistemáticas social às suas famílias reflete-se ainda nas
sando de 8, 10 e 15 para 10, 14 e 18, nas salas por parte do Ministério da Educação. Assim, Conclusões do Conselho da União Europeia
do berçário, dos 1 e 2 anos, respetivamente a educação destas crianças em Portugal é, 2011/C 175/03, nas Recomendações da OCDE
(Portaria n.º 2262/2011, de 31 de agosto). por definição institucional, um problema de (2014) e, ao nível nacional, na Recomendação
Entendendo a creche como um contexto so- apoio às famílias e de solidariedade social 3/2011, de 21 de abril (CNE, 2011). Atente-se
cioeducativo, se este aumento da frequência e não uma questão clara do “direito à edu- igualmente às reivindicações do movimento
de bebés pode ser visto como uma oportu- cação” consagrado na Convenção sobre os profissional assumido pela Associação de
nidade de acesso à educação, este direito é, Direitos da Criança. Profissionais da Educação de Infância (APEI)1,
porém, posto em causa quando se atenta às A reivindicação da necessidade de promover
1 Ver petição pública “Inclusão dos 0-3 anos no siste-
condições ambientais da sua ocupação, i.e., o direito à educação das crianças até aos ma educativo – Alteração da Lei de Bases do Siste-
ao rácio criança-área da sala (2 m2/criança), 3 anos, pela inclusão da creche no sistema ma Educativo”, https://peticaopublica.com/pview.
aspx?pi=PT83474.
Figura 2. Crianças matriculadas na educação pré-escolar: total e por idade (1961-2019) média da EPE e o número de educadores de
infância a trabalhar em JI: se em 1961 eram
apenas 226, em 1991 já eram 9357, e em 2019
mais que duplicaram (16 277).
A frequência do JI é principalmente garanti-
da pelo setor público (53%), embora seja aqui
que o setor privado adquira maior expressão
em todo o sistema educativo (CNE, 2018, p.
80). No entanto, Portugal tem vindo a redu-
zir as despesas com a educação (1991, 4,2%
do PIB; 2018, 3,6% do PIB. Pordata, 2020),
sendo que do gasto total com a EPE em
2017, inalterado em relação ao ano anterior,
houve “uma queda de 4,6% na rede pública
e um aumento de 0,8% nas redes privadas e
cooperativas” (CNE, 2019, p. 290). Pode en-
tão dizer-se que, apesar dos avanços regista-
dos no direito à educação das crianças mais
Fonte: Pordata novas, Portugal é um dos países da União
Europeia e da OCDE em que as famílias gas-
ção precoces (Ferreira & Tomás, 2017, 2018; relevância na exploração e conhecimento de tam mais (só 64% dos gastos provém do erá-
Moss & Urban, 2020). Desde então, no cam- si, do outro e do mundo material e simbólico, rio público. OCDE, 2019), em que nem todos
po da EI, detetam-se duas orientações de na construção de competências pessoais e os JI públicos desejados dispõem de vagas,
sentido contrário e com reconhecimentos sociais e nas práticas de participação coleti- mesmo com o aumento da oferta nos últi-
sociais diferentes: uma delas reivindica uma va. Esta visão crítica da EI ecoa os princípios mos anos, e em que é escassa a sua oferta
conceção da criança como sujeito ativo da assumidos pela UNESCO “Direitos desde o nas áreas rurais ou fora dos grandes centros
aprendizagem a quem urge transmitir, por princípio. Educação e cuidados na primeira urbanos, contribuindo para a permanência
via do recurso a atividades didáticas e uso infância” (2012: 5), quando afirmam inequi- de assimetrias regionais.
instrutivo do brincar com fins úteis, um con- vocamente: “Os programas curriculares e Um outro traço reporta-se às caraterísticas
junto de conhecimentos de tipo enciclopé- abordagens utilizadas devem ir ao encontro do grupo profissional: feminização consis-
dico e formais, privilegiadamente cognitivos, das necessidades individuais da criança na tente da profissão (99%. Pordata, 2019); en-
e atitudes e comportamentos que valorizam educação, desenvolvimento, nutrição e saú- velhecimento acentuado (de 7,5% em 1998
a conformidade e a contenção, vistos como de. Devem ser flexíveis, colocar as crianças para 513,7% em 2018) e diferença de estatuto
essenciais para a sua boa preparação e ga- no centro e dar valor a todo o tipo de ati- interno, dado existirem diferenças de reco-
rantia de sucesso escolar; uma outra reivin- vidades, incluindo a importância crucial do nhecimento e de salários entre as e os edu-
dica uma conceção da criança como sujei- direito a brincar: o ensino pré-escolar rígido cadores que trabalham em creche e as e os
to ativo da aprendizagem, mas igualmente e formal que não permite brincar pode ser que trabalham em jardins de infância.
participativa e com direitos, vez e voz nos desagradável para as crianças e prejudicar o As crianças com 3 anos ou mais, tal como
contextos em que habita, como a creche e o seu desenvolvimento.” acontece com os bebés, passam um eleva-
JI, mediante uma abordagem relacional, ho- Neste retrato, aumenta a taxa de frequência do número de horas semanais no JI (38,5 h),
lística e inclusiva da EI (Nowak-Lojewska et (cf. Figura 12), o número de crianças matri- um dos valores mais altos entre os países
al., 2019), informal mas com conteúdos sig- culadas por idades (cf. Figura 2), a duração da UE28, cuja média correspondente é de
nificativos e capazes de alimentar o desejo 29,5 horas (CNE, 2018). Durante esta lon-
por aprendizagens formais, em que a rede de 2 Atente-se aos modos como é usada a linguagem no
Pordata acerca da EI: “alunos”, “ensino pré-escolar”, ga permanência, a investigação tem vindo
intensas relações inter e intrageracionais e “escolarização” – não se trata apenas de um modo de a mostrar que as crianças brincam por sua
a valorização do brincar assumem particular descrever uma dada realidade, mas também de con- livre iniciativa cada vez menos (Ferreira & To-
tribuir para a criar e normalizar.
ridade portuguesa chamam a atenção para a do Leste europeu e aumentaram as comu- legais de intenção esbarra frequentemente
necessidade de uma formação alargada das nidades procedentes de inúmeros países na sua inconsequente implementação e con-
e dos profissionais às questões sociológicas, asiáticos, sobretudo indianos, chineses, cretização prática. Esta contradição afeta e
capaz de repensar as desigualdades socioe- paquistaneses, construindo uma sociedade limita, como sucintamente se procurou iden-
conómicas e culturais dentro da creche e do cada vez mais diversa e heterogénea num tificar, a garantia dos direitos das crianças.
JI, e de as enfrentar na ação pedagógica. mundo mais multicultural, trazendo novos
Trata-se de passar de uma perspetiva da EI desafios ao campo da EI – entre outros, a 2.2. Infância e direitos de participação
como integração social para a de inclusão diversidade linguística, de religiões, de há- A CDC (1989) e outros documentos interna-
educativa, o que significa, ainda, ampliar a bitos alimentares, de dinâmicas familiares cionais relevantes vinculam o Estado portu-
ideia de inclusão e de educação inclusiva e de género. Neste sentido, tornam-se ur- guês à igual promoção dos direitos de parti-
para além das necessidades especiais em gentes os contributos do conhecimento cipação. No entanto, num país em que, como
contextos educativos. antropológico, essencial para uma postura vimos, a discrepância entre políticas e prá-
Dados acerca da inclusão de crianças e jo- não etnocêntrica, capaz de reconhecer e ticas é particularmente elevada, os direitos
vens com deficiência no sistema educativo valorizar as diferenças culturais sem cair no de participação das crianças, especialmente
assinalam, globalmente, o aumento da sua “pluralismo cultural benigno” (Stoer, 2008), quando se trata das muito pequenas, como
frequência em escolas de ensino regular na nas “semanas culturais” exóticas ou na neu- é o caso das que frequentam a creche e o
escolaridade obrigatória (+92% entre 2010/11 tralização e homogeneização da diversidade JI, enfrentam dificuldades redobradas em se-
e 2017/18). Porém, eles contrastam com um das crianças. Incluir a diversidade cultural das quer serem reconhecidos pelos profissionais
decréscimo do número de crianças com de- crianças, numa perspetiva de transformação de educação. Esta realidade continua a dar
ficiência a frequentarem o JI (-19%) (ODDH, e mudança social, requer valorizá-las como provas de uma tenaz quase ausência de uma
2019, p. 19). As fragilidades destas crianças um potencial humano inestimável e recursos cultura de participação das crianças (Tomás,
agravam-se ainda mais quando não são devi- socioeducativos vivos, essenciais para “ma- 2011), particularmente notada no quotidiano
damente acompanhadas devido a modestos ximizar a participação social” e “minimizar das instituições educativas, mesmo se alguns
recursos materiais e humanos (especialistas), a exclusão” (Nutbrown & Clough, 2009, in movimentos pedagógicos e/ou programas e
mesmo tendo aumentado o número das uni- Nowak-Lojewska et al., 2019) na educação. projetos com esse cariz inscreveram e inscre-
dades de apoio e dos Centros de Recursos A singularidade das políticas portuguesas vem na sua ação a participação das crianças,
para Inclusão, e de existir o Sistema Nacional que, direta ou indiretamente, se relacionam incluindo as mais novas. Veja-se o Movi-
de Intervenção Precoce na Infância (SNIPI). com as crianças nos anos pós-CDC (1989) mento da Escola Moderna (MEM), o Projeto
Outras dimensões significativas da inclusão mostra o valor das políticas sociais enquanto Eco ou outros da iniciativa do Instituto das
obrigam a consciencializar para a crescente bem público ao serviço do bem comum. E Comunidades Educativas (ICE). Ou ainda,
diversidade cultural da infância em Portugal, no entanto, quase todas elas, do trabalho à num outro contexto, movimentos como os
sobretudo nos meios urbanos e por via da família, da saúde à educação e à proteção da Cidade Amiga das Crianças (UNICEF), das
complexidade do fenómeno das migrações. social, são consideradas de baixa intensidade Cidades Educadoras e dos Orçamentos Par-
Nos 30 anos em análise, aos migrantes origi- (Portugal, 2000; Aboim, Vasconcelos & Wall, ticipativos com Crianças e Jovens.
nários dos PALOP, seguiram-se os oriundos 2013): a bondade promissora das declarações A este respeito, no caso da JI, as OCEPE (Sil-
CAIXA 3
“Os Estados, partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe
respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade.”
(Artigo 12.º 1. CDC, 1989).
“[A criança] tem direito a ser escutada e as suas opiniões devem ser tidas em conta (…). [A/o educador/a] escuta e considera as opiniões da crian-
ça, garantindo a sua participação nas decisões relativas ao seu processo educativo.”
(OCEPE, 2016, p. 12).
sensível aos pontos de vista das crianças e çadas, sobretudo no que diz respeito aos expostas em momentos de crise. Atrasos de
consciente do adultocentrismo (cf. Nowak- direitos de proteção e provisão das crianças natureza estrutural e um Estado-providência
-Lojewska et al., 2019). e, globalmente, também muitas políticas e in- fraco têm-se traduzido no arrastar de incum-
dicadores do desenvolvimento humano (UNI- primentos e impasses na implementação e
Considerações finais CEF) se têm apresentado positivos no que concretização de políticas sociais que tendem
A análise da situação social das crianças e da à situação da pequena infância diz respeito, a penalizar a infância e, dentro dela, a pena-
sua educação, nos 30 anos que medeiam a próximos dos padrões que caraterizam os paí- lizar as mais desfavorecidas. E na existência
ratificação da CDC (1989) e os dias de hoje, ses desenvolvidos da Europa. de mundos sociais e educativos ainda longe
mostram a singularidade do caso de Portu- Não obstante, a realidade das suas condições de serem provedores e protetores para muitas
gal face ao contexto das transformações da de existência evidencia a persistência de uma crianças, para já não mencionar as inúmeras
sociedade portuguesa e face a outros países. forte heterogeneidade e de inúmeras desi- questões que obstam à sua participação so-
Com efeito, muitas conquistas foram alcan- gualdades e diferenças internas, brutalmente cial. As questões das desigualdades sociais na
infância e da sua diversidade interna, a par das
da participação das crianças no quotidiano
da creche e JI, são, portanto, realidades que
não podem ser escamoteadas, tendo de ser
levadas em consideração no âmbito de uma
EI como promotora da igualdade de oportu-
nidades, da democracia, da cidadania e dos
direitos.
Uma tal compreensão da situação da infân-
cia e sua educação implica atentar aos cons-
trangimentos e possibilidades das estruturas
sociais, educativas, económicas, políticas,
jurídicas e simbólicas do país, embora a sua
influência quanto aos modos como a socie-
dade e a educação se organizam e funcionam
possa advir de outras escalas extranacionais.
Do mesmo modo, estamos cientes de que as
políticas sociais não são socialmente neutras
e de que a resolução dos problemas identi-
ficados ultrapassa a mera ação do grupo
profissional dos educadores e/ou iniciativas
individuais.
Não obstante, do conjunto de dimensões
abordadas neste breve retrato, da natalidade
à condição das mulheres, aos recursos huma-
nos e financeiros, às migrações, fica patente
a complexidade demográfica, cultural, social,
económica, jurídica, etc. que nos dias de hoje
é constitutiva dos fenómenos educativos e,
portanto, com efeitos na ação das e dos edu-
cadores.
Equacionar esta complexidade no quadro dos
direitos da criança (CDC, 1987) exige pensar
uma EI capaz de ir além do “cuidar e educar”,
Temo que uma das afirmações que venha a os materiais que são produzidos para, com se sintam convidadas e a sua participação
perder força enquanto argumento que legiti- ou pelas crianças sobre um assunto que se legitimada como direito próprio e não como
ma o compromisso ativo na defesa dos direi- lhes apresenta como um “tema” e não como benevolência ou dever de obediência aos
tos da criança seja a de que existe um con- conquista inacabada e complexa na contem- adultos.
senso internacional em torno da Convenção poraneidade são imagens de crianças em si- A ausência ou apropriação pontual ou des-
sobre os Direitos da Criança (CDC). Quando tuação de emergência humanitária. contextualizada do argumento de que exis-
assistimos à banalização do sofrimento de O assunto dos direitos da criança circula te um consenso merecido ou construído
um número crescente de crianças a quem também entre adultos, nos ambientes fre- em torno da Convenção sobre os Direitos
não se reconhece a condição de infância, o quentados pelas crianças, o que as põe em da Criança e sobre o compromisso coletivo
consenso invocado parece esvaziado de sen- contacto com o discurso jurídico-normativo a nível global e local que a sua ratificação
tido, deixando de poder ser apropriado pe- com que os direitos estão codificados. A acarreta traz desafios de conhecimento e de
las crianças mais vulneráveis como fator de apropriação deste discurso pericial e legal é envolvimento das instituições e atores que
resiliência e autodeterminação face à inércia frequente quando se trata de situações em intervêm no campo da educação e da for-
social e à desumanidade das circunstâncias que as crianças são visadas como vítimas, por mação dos profissionais de educação. Neste
em que se encontram. vezes das próprias famílias, sendo a reflexão campo, as referências aos documentos in-
A invocação do consenso internacional sobre sobre os direitos da criança transferida para ternacionais que são ferramentas de direitos
a obrigação de salvaguardar a dignidade das um outro campo simbólico, onde a realidade humanos são dadas fundamentalmente no
crianças como sujeitos de direitos humanos da criança é reconstituída e codificada pro- enquadramento e fundamentação de pro-
próprios é parte do ritual com que se cele- cessualmente como caso e objeto passível gramas, currículos e atividades. Os direitos
bram datas como a da aprovação da CDC de juízos formalizados sobre a aplicação de da criança são um tema familiar, embora sur-
pelas Nações Unidas ou o Dia Mundial da medidas que sancionam fundamentalmente jam, na maioria das vezes, como foi referido,
Criança. Sinalizar estas datas é, sem dúvida, a responsabilidade parental. como conteúdo associado a datas a celebrar
importante para a tomada de consciência Esbate-se, assim, a perceção de que os di- no calendário escolar ou em ações pontuais
coletiva de que o reconhecimento deste es- reitos da criança são uma responsabilidade de solidariedade com crianças vítimas de in-
tatuto foi uma grande conquista histórica. pública e coletiva e uma experiência quo- cidentes críticos ou objeto de campanhas de
No entanto, dada a falta da devida reflexão tidiana das crianças que não recebem um larga escala, como por exemplo a ação global
sobre a responsabilidade coletiva na garan- tratamento social justo e uma redistribuição para a educação. A não intencionalidade de
tia e criação de condições para que todas as equitativa de recursos pelo reconhecimento privilegiar o enfoque nos direitos da crian-
crianças possam exercer efetivamente estes da sua igual dignidade. A construção social ça é compensada com a informação sobre
direitos no dia a dia, arriscamo-nos a deixar dos direitos da criança, no campo da edu- algumas ferramentas de direitos humanos
na obscuridade as circunstâncias particular- cação, como questão de (des)respeito pelo em determinadas disciplinas que atendem
mente adversas que impedem que muitas que está legislado e precisa de ser regulado a públicos específicos, tais como crianças
delas possam fazer parte desta história ina- ou sancionado, dispensa, não raras vezes, a com necessidades especiais ou de minorias
cabada. reflexão sobre fatores de ordem sócio-es- linguísticas e étnico-culturais.
Estas datas são, muitas vezes, o momento trutural, tais como a pobreza e a exclusão É no campo científico-social, no campo dos
em que os profissionais do campo da educa- social, que negam e violam direitos da crian- estudos sociais da criança e designadamente
ção se mobilizam no sentido de dar a conhe- ça, individualmente e enquanto membros de da sociologia da infância, que a Convenção
cer às próprias crianças a sua condição de su- famílias ou comunidades sujeitas a estigma- sobre os Direitos da Criança constitui um
jeitos de direito internacional que não estão tização social. tema central de debate crítico, do qual se
entregues a uma “jurisdição” privada e, por Só recentemente os direitos e a cidadania procuram retirar efeitos para a compreen-
vezes, arbitrária, onde a sua dignidade não plena das crianças têm sido invocados para são da condição da infância e da vida das
é tida em conta nas decisões que as afetam. legitimar a sua participação no espaço pú- crianças na contemporaneidade. Assume-se,
O que é dado a conhecer, mas não a refletir blico e envolvimento ativo na vida da cida- neste contexto, o impacto que a ratificação
e debater, é uma carta onde são listados um de. Falta saber que condições é preciso criar deste documento, ao nível global, teve na
conjunto de princípios e provisões afirmados para que todas as crianças residentes no emergência e na possibilidade de consolida-
como universais. Muitas vezes, o que ilustra centro ou na periferia do território sejam e ção de um outro paradigma da infância que
grau de exposição destas crianças às priva- internacional ratificada pela quase totalidade estatuto social e económico que depende do
ções e a múltiplos riscos que ameaçam a sua dos Estados. acesso à habitação, ao emprego e a redes de
integridade. apoio social formal e informal no novo meio
Porém, as circunstâncias em que cada uma O desconhecimento das circunstâncias de de inserção.
destas crianças vive a sua infância, com a ser criança e tornar-se imigrante A expectativa é que desenvolvam rapida-
sua família ou separada, não se define ape- Numa situação também delicada, mas dis- mente atitudes e comportamentos adapta-
nas pelo tempo e tipo de resposta ao pedido tinta daquela que acabámos de referir, es- dos à nova situação, sem ter em conta o seu
do estatuto de refugiado, que lhe permite tão as crianças que participam em processos próprio papel de sujeito que motivou a pro-
reclamar os mesmos direitos que os das ou- migratórios planeados pelos pais, em busca cura de melhoria de condições de vida pelos
tras crianças estrangeiras que vivem no país de sobrevivência e de oportunidades de vida. pais e de ator social no novo contexto fami-
de acolhimento. A história que constroem Crianças que veem drasticamente alteradas liar, escolar e social. Tendemos a ver as crian-
na interação com os outros, segundo uma as condições objetivas e subjetivas de exer- ças como objetos de cuidado e, assim, como
rotina que se estrutura em torno do acesso cício dos seus direitos enquanto crianças. beneficiárias ou vítimas das circunstâncias
à alimentação e a outras ajudas essenciais à Trata-se de crianças que vivem diariamente criadas pelos adultos e, por isso, pouco valo-
sua sobrevivência e à dos adultos que lhes o efeito de circunstâncias pessoais e fami- rizamos as preocupações e a responsabilida-
servem de referência, é constrangida pela liares que exigem um esforço de adaptação de que estas crianças assumem também em
coabitação, por tempo indeterminado, em coletivo e continuado às novas condições e relação aos pais e à família.
locais que vão dos centros de trânsito aos expectativas do país de destino a partir da Refletir sobre os direitos das crianças imi-
assentamentos informais, sem condições de experiência já vivida e incorporada no país de grantes exige que se reconheça a sua in-
privacidade, com difícil acesso a serviços bá- origem. fluência e vulnerabilidade como participantes
sicos, de saúde e educação ou até informa- Raramente as condições e os problemas que de um fenómeno de grande escala, que re-
ção sobre a sua situação e sobre questões afetam a vida quotidiana das crianças que flete o agravamento da desigualdade econó-
ou procedimentos legais. imigram são tomadas em conta nas intera- mica e politicamente estruturada a nível glo-
Deste modo, fora do âmbito da responsabili- ções e na comunicação que se estabelece bal. Exige que se reflita sobre os processos
dade de proteção pelos Estados, as crianças com elas, mesmo nas instituições que as en- psicossociais que reproduzem e geram novas
encontram-se em circunstâncias de grande quadram: a família e a escola. Pouco se refle- exclusões, mas também que se reconheça
precariedade, pela impossibilidade de recla- te sobre os motivos que estiveram na base a existência e experiência das crianças e as
mar sequer a provisão das suas necessida- do projeto ou da inevitabilidade da imigração estratégias de adaptação que elas desenvol-
des humanas básicas comuns aos adultos. A dos pais. Pouco interesse merecem, da parte vem e propõem na circunstância de quem
possibilidade de reclamar por elas os míni- da sociedade de acolhimento, as experiên- parte, de quem fica à espera e de quem che-
mos éticos estabelecidos como direitos in- cias de viagem, de chegada e instalação, dos ga, após uma separação temporária dos pais,
dividuais, fazendo ou não valer os princípios primeiros contactos com outros modos de enquanto crescem e vivem a sua infância.
do superior interesse da criança, da sobrevi- vida vividos pelas crianças ou as suas preo-
vência e desenvolvimento, da não discrimi- cupações com a possibilidade de fazer novos A invisibilidade da dupla pertença como
nação e da participação fica nas mãos das amigos ou de manter o relacionamento com circunstância de ser criança, portuguesa
instituições e dos adultos. os que deixaram no país de origem. Pouca ou e cigana
Ora, sendo o tempo da infância o agora dos nenhuma atenção dispensamos à experiên- Um dos grupos que nos merece maior aten-
sujeitos que a vivem e aí desenvolvem o cia de perda, de recuperação e reconstrução ção em termos de garantia de direitos hu-
sentido de si mesmos, na interação com os de espaços e laços de afeto e intimidade. manos fundamentais é o das crianças ciga-
outros que lhes dão a compreender o mun- Quando procuramos atender às suas ex- nas, crianças que pertencem à minoria mais
do, impressiona-nos o facto de os mitos e periências e expectativas de participação, numerosa que habita o espaço europeu e
os medos das sociedades onde as crianças integração e adaptação na escola, frequen- nacional e que vive, maioritariamente, em
pedem refúgio terem de ser observados e temente escapa-nos a devida consideração circunstâncias de grande vulnerabilidade, de-
desconstruídos como barreiras efetivas ao pelas mudanças simultâneas que estas crian- vido à pobreza e à discriminação no acesso a
acolhimento imediato destas crianças e das ças e as suas famílias enfrentam. Desvalori- oportunidades que lhes permitiriam superar
suas famílias, opondo resistência a uma lei zamos as preocupações com a mudança de esta adversidade.
e à comunidade. As crianças imigrantes e re- de ser crianças que a sociedade ocidental con- rias ou forçadas das famílias e/ou dos proces-
fugiadas podem viver problemas com o uso sagra como regra e critério de avaliação. sos de diversificação sociocultural presentes
da língua materna e com as culturas de pares. As crianças que viveram ou vivem circunstân- na população infantil, o que constatamos é
O importante a reter é que é nas situações cias de privação ou de isolamento social gera- que toda a atenção é focada nas diferenças
mais comuns do dia a dia, na vida quotidiana, das pela pobreza e marginalização social, mui- de capacidade, de rendimento ou de compor-
vivida em e entre contextos fortemente es- tas vezes causadas pela estratificação social tamento social. Muito facilmente as crianças
truturados pelos interesses e papéis atribuí- e pela segregação territorial, precisam de ser dos grupos que aqui tivemos presentes re-
dos aos adultos, que cada criança encontra, discriminadas positivamente nas interações e caem numa destas categorias para as quais
ou não, a possibilidade de exercer a totalidade acesso a oportunidades. Uma abordagem da de prescrevem, quase automática e acritica-
dos seus direitos, vendo assim confirmada, ou desvantagem baseada no enfoque nos direi- mente, a educação multicultural, a educação
não, a sua dignidade como ser humano que tos obrigaria a que os educadores questio- especial ou a educação social, no seu objetivo
nasce livre e igual como todos os outros. O nassem criticamente o seu próprio modo de comum de compensar o efeito de alegadas
presente, o aqui e agora das interações e dos relação com as crianças e, indiretamente, com “incapacidades” ou mesmo “défices” sociocul-
contextos intra e intergeracionais é efetiva- as suas famílias e/ou comunidades. turais e de adaptação e integração social.
mente o lugar e o momento onde se jogam Quando observamos as conceções e práticas Ao contrário do que pressupõe e propõe o
todas as possibilidades de as crianças pode- com que a educação tem procurado respon- desenvolvimento de uma sociedade e uma
rem ou não reproduzir ou reinventar o modo der à intensificação das deslocações voluntá- educação inclusivas, o foco é a diferença e o
Pode alguém ser livre (mos) a viver juntos. Nesta proposta, defen- As imagens poderosas desta série de do-
se outro alguém não é dia-se uma “análise partilhada dos riscos e cumentários ajudam-nos a compreender o
a algema dum outro dos desafios de futuro”, conduzindo “à reali- caminho de conquistas realizado, emocio-
serve-me no pé zação de projectos comuns (…) a uma gestão nando-nos pela força e resiliência que, ao
nas duas mãos, inteligente e apaziguadora dos inevitáveis longo do nosso tempo de vida, enquanto
sonhos vãos, pesadelos conflitos” (Delors, 1996, p. 19). portugueses, enquanto país, revelámos.
diz-me: Uma década mais tarde, em 2007, uma sé- Simultaneamente, apontam para algumas
Pode alguém ser quem não é? rie de documentários, da autoria de António características identitárias que se mantêm
Sérgio Godinho, álbum Pré-Histórias, 1972 Barreto, denominados Portugal, um retrato no tempo presente: imagens quase para-
social, procurava justamente dar a conhecer das, em “tempos líquidos, em que nada é
Eixo diacrónico – como num filme a forma como tínhamos vivido e vivíamos duradouro, seguro, previsível” (CNE, 2017),
Falar da pobreza e da exclusão na infância então juntos. Traçava um retrato de Por- como se o mundo, veloz, corresse em filme,
é sentir a nossa fragilidade e vulnerabilidade tugal sustentado no nosso eixo diacrónico, e a pobreza e a exclusão, ainda que, neces-
humana no âmago de quem somos. A estrofe ao longo do tempo, para a compreensão do sariamente, com expressões diferentes aos
de abertura, de uma canção antiga, permane- tempo presente. Um retrato da sociedade longo do tempo, teimasse em mover-se em
ce, na sua atualidade, como um alerta, uma e dos Portugueses, como resultado de um câmara lenta.
alavanca de inquietação. processo de transformações muito rápidas. É neste caminho desafiante, a diferentes
Falar da pobreza e exclusão social na infância, O documentário evidenciava, de forma clara velocidades, que tomamos como um mar-
no nosso país e no mundo, é sentir a ferida e sustentada, temas fundamentais caracteri- co fundamental a assinatura da Convenção
que abrem na nossa dignidade, no respeito zadores da nossa identidade: da nossa gente dos Direitos da Criança (1989), realizada no
mais profundo pela vida, nas suas mil possi- que se tornou diferente; quem somos, quan- nosso país em 21 de Setembro de 1990 – há
bilidades. tos somos e onde vivemos; como ganhamos exatamente 30 anos. A Convenção sobre os
A progressiva consciência da força da edu- o pão, o que fazemos; o fim da sociedade Direitos da Criança, que as Nações Unidas
cação para as enfrentar foi iluminada por Ja- rural, a mudança de vida; o lugar dos outros adotaram por unanimidade, assenta num
ques Delors, no Relatório sobre a Educação e o nosso lugar, numa sociedade mais plural; conjunto de direitos fundamentais de todas
no século XXI para a UNESCO, desafiando- igualdade e conflito, atravessando as rela- as crianças – civis e políticos, económicos,
-nos a erguer um novo pilar educacional para ções sociais; e a progressiva aproximação a sociais e culturais. Sendo o tratado de di-
o milénio que então se abeirava: aprender uma sociedade europeia. reitos humanos internacionais mais ampla-
mente ratificado de sempre, não é apenas
uma declaração de princípios gerais: “quan-
do ratificada, representa um vínculo jurídi-
co para os Estados que a ela aderem, os
quais devem adequar as normas de direito
interno às da Convenção, para a promoção
e proteção eficaz dos direitos e liberdades
nela consagrados” (UNICEF, 2004).
Apesar das inegáveis conquistas realizadas
no nosso país nos últimos 30 anos, de que
são claro exemplo a melhoria nas condições
de vida, no acesso à saúde e à educação,
é importante permanecer alerta, mobilizan-
do intencionalmente, colaborativamente, a
nossa energia, sentido de compromisso e
responsabilidade na defesa inteira dos di-
reitos da criança.
não a Agenda 2030 e os seus 17 Objetivos de promotor de elevada qualidade – pode fazer nais no terreno, e contribuindo ativamente
Desenvolvimento Sustentável” (UNICEF, 2020, toda a diferença. Sabemos hoje, clara e fun- para políticas públicas baseadas em evidência
p. 5). No seu âmbito, destacam particularmen- damentadamente, que só “contextos de edu- científica” (CoLab, 2020). A Fundação Brazel-
te os objectivos que dizem respeito à 1 (po- cação de infância de boa qualidade podem ton Gomes-Pedro para as Ciências do Bebé
breza), 4 (educação), 5 (género), 10 (redução ter efeitos positivos no desenvolvimento das e da Família faz parte dos membros institu-
da desigualdade), 11 (cidades e comunidades crianças” com especial impacto “(…) protetor cionais dos seus órgãos sociais, juntamente
sustentáveis) e 16 (sociedades justas). no caso de crianças em contextos socialmen- com o Comité Português da UNICEF, a Euro-
Os princípios para a ação concreta que subli- te mais desfavorecidos” (Pessanha, 2019). O
nham centram-se na inclusão social e equida- conhecimento que hoje temos sobre a rele-
de, proteção, direito a brincar e participação. vância dos primeiros 1000 dias de vida (Cusick
As medidas para os materializar irradiam a & Georgieff, 2016), como fundação da pessoa
partir de um ambiente seguro e protetor ao na sua plenitude, assente nas mais recentes
nível do espaço físico, ao nível emocional, ao descobertas em neurociência, biologia mole-
nível da equipa e da participação das crianças. cular e epigenética, oferece-nos uma “oportu-
Todas são traduzidos numa listagem de temas nidade extraordinária para catalisar novas teo-
que nos ajudam a refletir sobre a qualidade rias da mudança e estratégias inovadoras para
deste ambiente multidimensional, nomeada- reduzir as consequências de adversidades no
mente, em educação de infância, que está ao início da vida” (Center on the Developing Child
nosso alcance materializar no âmbito de uma at Harvard University, 2016).
ação integrada, concertada e atempada. Abraçando (e abraçado) por este contexto,
surge em Portugal o Laboratório Colaborativo
Cruzando eixos – ProChild CoLAB ProChild CoLAB (2019), que tem como missão
contra a pobreza e a exclusão social desenvolver uma estratégia nacional no com-
Para a concretização destas medidas é neces- bate à pobreza e à exclusão social na infân-
sário cruzar eixos – diacrónicos, sincrónicos, cia “enquadrada numa abordagem científica
objetivos, subjetivos –, perspetivando-os transdisciplinar, articulando os setores público
como estratégicos para a nossa efetiva mo- e privado, vinculando académicos e profissio-
bilização contra a pobreza e a exclusão social,
apostando juntos na sua erradicação; neste
percurso é necessário manter viva a pergunta
que Jaques Delors (nos) colocava em 1996:
“viver juntos com que finalidades, para fazer
o quê?” (Delors et al., 1996, p. 52).
Em educação de infância esta é uma questão
maior. Cabe-nos, no cerne do nosso compro-
misso com cada criança, cada família e com as
suas condições de vida, afirmar e materializar
a relação como a essência do humano (Brito,
2019); cabe-nos afirmar que sem uma cascata
de cuidados (Gomes-Pedro, 2017), multidi-
mensional, sistémica, a imagem da pobreza
e exclusão continuará a apresentar-se “em
câmara lenta”. E é aqui que uma intervenção
em rede, colaborativa – exercendo a sua ação
com crianças muito pequenas, suas famílias,
em equipa, na comunidade, num contexto
Em 1993, Loris Malaguzzi publicou Uma Car- dania baseada nos direitos, distinta de uma com particular robustez representacional
ta dos Três Direitos (Una Carta per Tre Diritti, cidadania baseada nas necessidades das nos contextos de creche: a de um ceticismo
no original), um verdadeiro manifesto em crianças, muito em voga à data da redação endémico relativamente à sua competência
defesa dos direitos dos três protagonistas deste documento. Fortemente arreigado a e possibilidades. Assistimos com uma re-
centrais da educação de infância: crianças, este posicionamento encontra-se um dos gularidade preocupante à proliferação de
educadores/as e famílias. Enquanto con- pontos focais da filosofia de Reggio Emilia: práticas influenciadas por representações
tributo para um número temático dedica- a imagem da criança. Relativamente à ima- focadas no défice e na ausência (de com-
do aos direitos das crianças1, tomo como gem associada a bebés e crianças até aos petências motoras, linguísticas, cognitivas
referente este texto do grande pedagogo três anos reconhecemos uma tendência ou metacognitivas), na romantização ou
italiano, um autêntico primus inter pares
como Moss (2016) o definiu, para empreen-
der uma análise, necessariamente breve face
à notória envergadura do tema, de como os
direitos de crianças e adultos em creche são
considerados num projeto pedagógico de
cunho progressista e radicalmente democrá-
tico, a abordagem de Reggio Emilia. Assim, e
apesar de uma concentração mais visível nos
direitos de bebés e crianças mais pequenas,
consideramos ser de vital importância reco-
nhecer a interdependência sinérgica entre
os direitos daqueles três protagonistas. Na
perspetiva de Malaguzzi, que partilhamos, os
direitos das crianças não podem ser respei-
tados sem se verem reconhecidos os direitos
de outros coprotagonistas, designadamente
os profissionais e as famílias. Percorreremos
um itinerário que focará separadamente os
direitos de cada um dos atores, sem negli-
gência das sinergias necessárias e desejáveis
entre eles, marca distintiva da visão equita-
tiva e justa que a perspetiva malaguzziana
nos propõe.
Comentários finais
Quando convidado a discorrer sobre Reggio
Emilia numa entrevista largamente conheci-
da (Malaguzzi, 1998), o pedagogo sublinhou
que o isolamento, a indiferença, a violência e
a alienação constituíam fenómenos da vida
social contemporânea que a abordagem de
Reggio Emilia se dedicou (e dedica) a contra-
riar. Cada um destes fenómenos representa
potenciais ameaças e desafios a direitos fun-
damentais dos coprotagonistas dos proces-
sos vivenciais e educativos nas creches, que,
acreditamos, só poderão ser contrariados
no âmbito de uma pedagogia das relações,
entendendo a relação enquanto conjunção
dinâmica de forças e elementos que inte-
ragem no sentido de um propósito comum
(ibidem). Nesta medida, falarmos sobre co-
munidade parece-nos indispensável quando
falamos sobre a salvaguarda de direitos. Re-
cuperamos, a este propósito, uma recente
intervenção de José Tolentino de Mendonça
(2020) que nos relembra que a raiz etimo-
lógica da palavra comunidade (communitas)
associa dois termos (cum e munus), assina-
lando que os membros de uma comunidade
estão ligados por um munus, ou seja, por
A valorização e consciência dos direitos nuar esses novos problemas passou a ser ur- maturidade morfológica, orgânica, sensorial,
das crianças é, na realidade, uma aquisição gente no sentido de humanizar os contextos percetiva, cognitiva e motora necessita de
muito recente, direitos que só nos finais de brincar livremente. Neste sentido, devem muito tempo para atingir níveis adequados
do século XIX atingem uma mudança sig- ser inumerados alguns desses problemas re- de adaptação e regulação interna para que
nificativa quanto à proteção da infância. A lacionados com o direito a brincar e a parti- as crianças sejam eficientes no seu controlo
compreensão sobre a complexidade do de- cipação em crianças e jovens e colocados em postural, capacidade de locomoção e preen-
senvolvimento humano e as diversas áreas contexto de reflexão e decisão pedagógica e são, linguística, lógica e expressiva. Não in-
científicas que sustentam a explicação deste terapêutica. A criança tem direito: teressa apressar aquisições que estão mar-
fenómeno deram uma contribuição decisiva cadas pelo tempo filogenético e ontogénico.
durante o século XX. Devem ser anotados 1. De ter tempo disponível para que tenha Antes de manifestarem as suas tendências
dois momentos históricos neste processo: tempo de poder ser criança. (talentos) não interessa estar a impor lógicas
1. A Declaração Universal dos Direitos da Vivemos numa sociedade em que os adul- adultas para as formatar de acordo com um
Criança (20 de novembro de 1959); tos vivem a correr no seu quotidiano, sem plano previamente estabelecido e semelhan-
2. A adoção pela Assembleia Geral das existir consciência de que as crianças têm te para todos. Ser criança vive-se em situa-
Nações Unidas da Convenção dos Di- uma perceção temporal diferente de viver ções incertas, inesperadas, para progredir
reitos das Crianças (20 de novembro de e de acordo com as suas caraterísticas in- com a segurança (proximidade) desejada e
1989). dividuais. As crianças não se desenvolvem à enfrentar por tentativa e erro a aprendiza-
Todos os Estados aderentes foram produ- pressa e em conformidade com as urgências, gem autodeterminada no seu progresso e
zindo instrumentos jurídicos na promoção necessidades e vontades dos adultos. Tempo confronto com o mundo exterior (distância).
dos direitos das crianças, tornando-se este para ser criança implica experimentar e testar Este vaivém entre dar proximidade (seguran-
fenómeno um processo notável de evolução o seu corpo como identidade primeira e de ça, afeto e alimento) e distância (autonomia,
e desenvolvimento de políticas públicas as- seguida o mundo complexo que a envolve. A descoberta e risco) será a referência funda-
segurando a obrigação de promover o de-
senvolvimento físico-motor, social, moral,
emocional, cognitivo e social de crianças e
jovens. Nesta sequência, interessa salientar
o artigo 31º sobre a promoção dos direitos
ao brincar, que define “o direito ao lazer, ao
jogo e aos tempos livres” e o artigo 12º so-
bre o direito à participação, “que garante à
criança a capacidade de discernimento sobre
o direito de exprimir livremente a sua opinião
sobre questões que lhe digam respeito, sen-
do devidamente tomadas em consideração
as opiniões da criança, de acordo com a sua
idade e maturidade”.
As culturas da infância têm vindo a ser
marcadas por grandes transformações nas
últimas décadas quanto ao direito a brincar
livremente. Diversas preocupações devem
mobilizar os especialistas nestas áreas em
relação a novos problemas que vão surgin-
do na vida quotidiana das crianças e jovens
e que atingem a vida familiar, escolar e co-
munitária. A visão entre o desenvolvimento
humano e uma cultura jurídica capaz de ate-
mental no processo de aprendizagem infan- tam experiências desafiantes, inabituais, ponível para que os projetos das crianças se
til. Ensinar é distanciar. Esta relação entre diversificadas e interativas, e de preferência possa desenvolver com atitude tutorial posi-
segurança e independência é conquistada em espaços naturais e com materiais ou ob- tiva dos adultos e não com constrangimen-
pela experiência do brincar livre com o seu jetos soltos (loose parts). Interessa que os tos proibitivos.
próprio corpo, os objetos e os outros. Ser espaços de jogo sejam também confortáveis
criança é apropriar-se do seu próprio tempo (verdes) e recheados de “affordances” (recur- 3. De ter possibilidade de se mexer e ser
sem restrições impertinentes de atividades sos, aquilo que o ambiente envolvente per- ativa enquanto brinca.
demasiado estruturadas, conduzidas e pla- mite ao animal fazer) motores, emocionais, Uma das caraterísticas mais peculiares das
neadas. cognitivos e sociais. Este direito a um espa- crianças saudáveis é a necessidade de terem
ço de ação de qualidade não é compatível um nível de atividade física muito elevado.
2. De ter espaço adequado para aprender com um design formatado e obsessivamente O movimento humano é o grande arquiteto
a descobrir, experimentar e assimilar adulto (cimento e sintético). Os espaços para do cérebro dos sentimentos e das emoções.
conhecimento. brincar devem possibilitar aprendizagens va- Crianças que apresentam um perfil de jogo
O nosso corpo tem limites na sua sobrevi- riadas e recheadas de referências simbólicas de atividade física regular, sistemático e in-
vência e necessita desde muito cedo de se e de fantasia. Em educação de infância as tencional têm normalmente uma boa com-
referenciar no espaço (imaginário, sensorial, referências de sala de aula e recreio deve- petência motora, emocional e social. Apren-
percetivo, representativo, emocional e cor- riam desaparecer do vocabulário educativo e der a mexer e escutar o corpo dá saúde física
poral). Em primeiro lugar o espaço de den- ser substituídas por espaços interiores e ex- e mental. O comportamento lúdico na infân-
tro (sensações internas), seguido do espaço teriores onde as crianças podem circular em cia só tem significado evolutivo se estiver
periférico (propriocetivo) e depois o espaço liberdade para fazerem as suas experiências associado a um gasto saudável de energia
exterior natural e construído (físico e social). e descobertas (aprendizagem). O direito ao física. Brincar e ser ativo é uma das grandes
Este conhecimento de saber lidar com o seu espaço para brincar implica dar tempo dis- prioridades para as crianças do nosso tempo.
corpo em movimento no espaço implica re-
conhecer contrastes: de direção, perto-lon-
ge, alto-baixo, grande-pequeno, dentro-fo-
ra, devagar-depressa, eu próprio e os outros,
etc. A criança aprende a ler, escrever e con-
tar quando tem oportunidade de brincar em
espaços de forma livre, para se apropriar de
experiências no espaço topológico (proprie-
dades físicas e psicológicas) onde estabele-
ce as primeiras relações de espacialização e
comunicação com o seu corpo e constrói a
geometria do pensamento. O conhecimento
e domínio do espaço de ação é a primeira
e verdadeira escola de aprendizagem de
conhecimentos complexos que não são en-
sinados pelos adultos. Mais tarde (evolução
da maturidade cognitiva, motora, emocional
e social) os adultos terão oportunidade de
explorar e aperfeiçoar o que ela já conhece.
Nas primeiras idades a aprendizagem não se
impõe, sendo dispensáveis currículos dema-
siado formatados. O que é necessário garan-
tir são oportunidades de brincar livremente,
criando contextos de qualidade que permi-
Esta destruição do contacto humano com o possam ser enquadradas nos projetos edu- conjunta de se dar a conhecer e conhecer os
espaço natural provoca uma crise tremenda cativos de cada escola. Sair fora da escola e outros. O sucesso do processo educativo em
de perda de fatores benéficos na formação permitir que as crianças tenham experiências qualquer contexto na infância está altamen-
de competências físicas, motoras, sensoriais, na floresta tem benefícios acrescidos para a te relacionado com a capacidade de se dar
percetivas, emocionais, cognitivas e sociais. sua educação global. Também as famílias ne- oportunidade de partilhar objetivos, planear
O contacto regular com a natureza permite cessitam de mais tempo disponível nos seus e desenvolver atividades. Ouvir e convidar as
desenvolver sensações e experiências que horários de trabalho para experimentar com crianças a participar em projetos não é uma
o espaço construído não permite. Caminhar os filhos e de forma regular, após a escola tarefa fácil de concretizar. Elas falam lingua-
pelo espaço natural permite saborear o silên- ou aos fins de semana, o contacto com a na- gens muitas vezes complexas e difíceis de
cio em oposição ao ruído, encontrar novos tureza através do brincar livre e a melhoria interpretar pelos adultos, devido à grande
cheiros e aromas, contemplações visuais ex- dos níveis de atividade motora fundamental. riqueza da sua imaginação, simbologia e fan-
citantes, contacto com a terra, a vegetação e Para que esta mudança possa acontecer, te- tasia, exigindo uma metodologia apropriada
as árvores, descobrir as maravilhas da fauna remos de desenvolver cidades com políticas na utilização de várias técnicas de auscul-
e respirar com mais naturalidade. As crianças públicas mais amigas das crianças, cidades tação (desenho, comunicação verbal, jogo
do nosso tempo vivem um “défice de natu- mais acessíveis a todos, através da criação dramático e artístico, etc.). Esta mudança
reza”, considerando o decréscimo das rotinas de zonas verdes e da preservação de áreas pedagógica desejada nas abordagens partici-
de vida nestes contextos, devido ao estilo de florestadas perto das habitações e das es- pativas com crianças é também cultural, pelo
vida sedentário em que vivem e à falta de colas. O direito de brincar no espaço natural que implica conhecer a sua ecologia de vida
tempo das famílias e das escolas para par- deveria constituir uma prioridade no desen- (diversidade, diferenças sociais, condições de
tilharem esse contexto em conjunto. Hoje volvimento da infância no século XXI. vida, idade, género, etc.).
está a perder-se a possibilidade de as crian-
ças poderem desenvolver uma “inteligência 6. De ter oportunidade de participar 7. De ter acesso ao brincar e ser ativo
natural” que se supõe ser fundamental para em iniciativas que lhe digam respeito. na rua e na cidade.
o seu equilíbrio emocional, harmonia corpo- Criar condições para ouvir as crianças e para Em tempos de adversidade e incerteza no
ral e relacionamento com o ambiente. Re- que elas possam participar em iniciativas e futuro é um direito fundamental devolver
cordo regularmente observações de crianças projetos na escola, na família e na comunida- a rua e a cidade às crianças para poderem
que vivem nas margens dos rios na floresta de é uma condição pedagógica e de cidada- brincar e ser ativos de forma livre. Muitas
amazónica, e as competências dos seus cor- nia fundamental para a formação futura de cidades pelo mundo fora estão a mudar a
pos exímios a brincar e serem ativos (agili- pessoas colaborativas, com pensamento crí- sua filosofia estratégica para um planea-
dade para subir aos coqueiros, equilibrar-se tico e capacidade criativa. O futuro é impre- mento urbano participativo para novas ne-
nas pirogas, correr com eficiência em todas visível e complexo, pelo que temos de prepa- cessidades que se colocam na saúde física e
as superfícies, etc.). Esta capacidade de rar estas novas gerações com dinâmicas par- mental nas primeiras idades. A crise sanitária
adaptação e disponibilidade motora e social ticipativas nas decisões que acontecem no que estamos a viver iluminou ainda mais a
através da exploração do meio natural está a seu quotidiano. Brincar e ser ativo na infân- necessidade de as cidades definirem novas
perder-se na infância, assumindo perigosos cia implica que estes pequenos atores sejam politicas públicas para as novas gerações. O
limites de artificialização dos contactos do considerados sujeitos de direitos e tenham confinamento em casa não pode ser defini-
corpo com realidades de espaço construído liberdade para ter opinião, expressar-se de tivo, sob pena de aumentar os problemas de
e virtual. Um dos objetivos fundamentais na forma espontânea e colaborar com as suas saúde física, emocional e mental dos mais
mudança dos espaços exteriores das esco- ideias na formulação de projetos relaciona- jovens, adultos e idosos. Esta situação estra-
las nas primeiras idades devia centrar-se na dos com as suas rotinas de vida. Esta mu- nha e perturbadora para todos deve ser bem
criação de ambientes verdes confortáveis, na danças nas formas de trabalho educacional cuidada na infância para que esta não seja
substituição de espaços estandardizados (ci- mais cooperativo implicam que os adultos amputada de direitos fundamentais de de-
mento e plástico) por espaços mais naturais não tenham programas pré-estruturados, senvolvimento saudável e da confiança num
e humanizados (terra, água, areia, troncos, completamente formatados, hierárquicos e futuro mais solidário. Sair para fora de casa
árvores, paus, pedras...), permitindo que as fechados. O comportamento de brincar defi- é, na atualidade, uma necessidade funda-
experiências de aprendizagem das crianças ne-se como uma ação de vínculo, ou relação mental para as crianças encontrarem amigos
O direito de participação das crianças A participação no contexto de burocracias ou com as condições huma-
As crianças têm o direito de participar em de jardim de infância nas e materiais (Correia, Carvalho, Durães, &
todos os assuntos que lhes digam respei- O jardim de infância é um contexto no qual Aguiar, 2020). Por este motivo, é importan-
to, expressando livremente a sua opinião as crianças devem poder exercer o seu direi- te promover iniciativas de desenvolvimento
e vendo-a respeitada e considerada (Orga- to de participação (Sheridan & Samuelsson, profissional que apoiem os/as profissionais
nização das Nações Unidas, 1989). Ao lon- 2001). A participação tem sido descrita, in- na promoção da participação em contexto
go dos anos, várias têm sido as áreas do clusivamente, como um critério fundamental de jardim de infância (e.g., Correia, Camilo,
conhecimento, da investigação à prática, para a qualidade destes contextos, existindo Aguiar, & Amaro, 2019).
que se têm debruçado sobre este direito, estudos que sugerem que as crianças que
contribuindo para o seu progressivo reco- frequentam contextos de elevada qualidade O Projeto PARTICIPA
nhecimento (Percy-Smith & Thomas, 2010). relatam mais oportunidades para participar e O Projeto PARTICIPA está a ser desenvolvi-
Vários modelos têm sido propostos para exercer influência (Sheridan, 2007). do com o intuito de apoiar uma educação
compreender a participação das crianças Para além de ser um importante critério de de infância de elevada qualidade, através da
(e.g., Hart, 1992), entre os quais o mode- qualidade dos contextos de educação de in- promoção da implementação do direito de
lo de Lundy (2007). Segundo este modelo, fância, são vários os benefícios propostos na participação das crianças. Com base numa
para promover a participação, devem ser literatura, decorrentes do exercício da par- abordagem de desenvolvimento profissional
consideradas as seguintes dimensões: es- ticipação, para as crianças, para os adultos assente no modelo de Lundy (2007), o pro-
paço (as crianças devem ter acesso a um e para as instituições. Para as crianças, são jeto pretende intervir com educadores/as,
espaço seguro e inclusivo, onde possam descritos benefícios ao nível da sua autoesti- auxiliares e coordenadores/as de jardim de
formar e expressar as suas opiniões e pers- ma, das competências sociais, de comunica- infância. São objetivos específicos do Proje-
petivas); voz (as crianças devem ser encora- ção e de resolução de problemas, ou relacio- to PARTICIPA:
jadas a expressar a sua opinião, mediante nados com a prática de uma cidadania ativa (1) aumentar o conhecimento sobre o direito
fornecimento de informação apropriada); (Kirby & Bryson, 2002; Mesquita-Pires, 2012; de participação das crianças;
audiência (as crianças devem ser ouvidas e Pascal & Bertram, 2009). A investigação su- (2) promover atitudes positivas em relação à
consideradas por adultos com responsabili- gere ainda que, quando as crianças têm as concepção, implementação e monitoriza-
dade para o fazer); e influência (as perspe- suas perspectivas ouvidas e consideradas, ção de práticas facilitadoras da participa-
tivas das crianças devem ser consideradas, se percepcionam como um elemento valioso ção das crianças;
influenciando decisões sempre que apro- do grupo e reconhecem mais legitimidade às (3) desenvolver a capacidade de identificar,
priado). decisões dos adultos (Emler & Reicher, 2005; conceber, implementar e monitorizar prá-
A promoção deste direito constitui um in- Lind & Tyler, 1988). Para adultos ou para ins- ticas de promoção do direito de participa-
vestimento no bem-estar das crianças (Co- tituições, são descritos benefícios relaciona- ção das crianças;
missão Europeia, 2013) e é essencial para o dos com uma maior sensibilidade, por parte (4) desenvolver a capacidade dos/as profis-
desenvolvimento de uma cultura de direitos dos profissionais, ou a adopção de melhores sionais para trabalharem em conjunto,
humanos e de democracia. A sua promoção decisões, alinhadas com os interesses e ne- a vários níveis do jardim de infância, na
é, por este motivo, encorajada desde idades cessidades das crianças (Hart, 1992; Nah & identificação, utilização e mobilização de
precoces (Conselho da Europa, 2017). Lee, 2016). recursos individuais e organizacionais ne-
cessários à promoção da participação das
Apoiar os/as profissionais crianças.
1 Consórcio PARTICIPA: ISCTE-IUL: Cecília Aguiar, Nadi- de educação de infância
ne Correia, Isabel Correia, Eunice Magalhães, Filomena Apesar da relevância do direito de participa- Instrumentos de desenvolvimento
Almeida, Vanessa Figueiredo; inED/ESE-Politécnico do
Porto: Sílvia Barros, Sara Barros Araújo, Manuela Pes- ção, a sua implementação permanece ainda profissional
sanha, Cristiana Guimarães, Vera Coelho. Universidade um desafio para muitos profissionais. Um Para atingir os objetivos a que se propõe, o
Aberta Helénica: Konstantinos Petrogiannis, Efthymia estudo recente sugeriu, por exemplo, que Projeto PARTICIPA está a desenvolver três
Penderi, Elias Stavropoulos, Christoforos Karachristos.
Universidade de Varsóvia: Olga Wyslowska, Kamila educadoras de infância portuguesas percep- recursos de desenvolvimento profissional,
Wichrowska, Paulina Marchlik, Urszula Markowska- cionam diversos obstáculos à promoção da independentes, mas complementares:
-Manista; Odisee: Helena Taelman, Anneleen Boderé; participação, relacionados com a existência (1) um MOOC (curso online de acesso aberto
APEI: Luís Ribeiro, Cristina Mesquita.
PORTUGAL
Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar (1997): Promoção do desenvolvimento pessoal e social da criança, com base em experiências
de vida democrática, numa perspectiva de educação para a cidadania [1].
Perfis geral e específico do educador de infância (2001): Construção participada de regras de convivência democrática, incluindo
gestão de situações problemáticas/conflitos interpessoais; envolvimento ativo das crianças nos processos de aprendizagem e na gestão
do currículo, na construção e prática de regras de convivência; vivência de práticas de colaboração e respeito no âmbito da formação
para a cidadania democrática [2, 3].
Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar (2016): A criança como sujeito e agente do processo educativo, cuja
participação deve ser incentivada; direito da criança a ser ouvida nas decisões que lhe dizem respeito, conferindo-lhe um papel ativo
no planeamento e na avaliação do currículo [4].
Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (2016): Lógica de participação e de corresponsabilização, incentivada desde a
educação pré-escolar; valorização da participação das crianças nas atividades realizadas na escola e na comunidade; promoção de uma
cidadania integrada transversalmente no currículo [5].
Perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória (2017): Participação de modo pleno e efetivo em todos os contextos educativos,
com aquisição de valores e competências que permitam à criança intervir, tomar decisões livres e fundamentadas e dispor de uma
capacidade de participação cívica, ativa, consciente e responsável [6].
BÉLGICA (FLANDRES)
Objetivos de Desenvolvimento para Crianças em Idade Pré-Escolar (2015): As crianças devem ser capazes de se proteger, de
entender as regras e os acordos necessários para viverem em sociedade; devem poder fazer acordos entre si com a ajuda de um adulto
e verificar se outros estão em conformidade com as regras estabelecidas em sociedade [7].
Quadro de Referência para a Qualidade da Educação (usado pela Inspeção Escolar) (2016): As escolas devem funcionar de forma
participativa e responsiva, visando o bem-estar e o envolvimento de crianças e profissionais [8].
Relatório do Comissário de Direitos das Crianças da Flandres e da Valónia (2018): Os direitos das crianças devem estar
explicitamente ancorados na educação, exigindo um plano de ação abrangente para a educação sobre os direitos [9].
Competências Básicas Gerais para Educadores (2018): O educador deve promover a emancipação das crianças, estimulando-as e
capacitando-as para serem independentes, terem iniciativa, responsabilidade e participação; os/as educadores/as devem apoiar as
crianças no desenvolvimento individual, a nível sócio-emocional, na participação social e na formação de atitudes e valores [10].
Programa do bacharelato em Educação Pré-Escolar (2019): Promoção de um clima positivo e coeso para viver, aprender e brincar,
focado no desenvolvimento da personalidade, da emancipação e da participação social de todas as crianças, com vista ao seu bem-
estar [11].
Artigo 16.º da Constituição Grega (Educação) (1975): A educação visa a instrução moral, intelectual, profissional e física, o desenvolvimento
da consciência nacional e religiosa e a formação de cidadãos livres e responsáveis [12].
Lei n.º 1566 (1985): a criança, deve (a) tornar-se cidadão livre, responsável, democrático, e (b) desenvolver pensamento criativo e
crítico, bem como esforço e colaboração coletivos, de modo que, tendo iniciativa e com uma participação responsável, possa contribuir
decisivamente para o progresso da sociedade e o desenvolvimento do país [13].
Estrutura Curricular Unificada para o Jardim de Infância (2003): O jardim de infância tem como objetivo o desenvolvimento integral da
criança e a socialização, o desenvolvimento da independência e da autopercepção, dando prioridade a uma aprendizagem ativa, experiencial
e colaborativa; as atividades devem ser significativas e interessantes para as crianças que, através da exploração e da brincadeira, devem
ser incentivadas a descobrir e a expandir as suas percepções sobre o meio ambiente (nas dimensões física, social e cultural); as crianças
devem perceber que podem alterar o seu ambiente através da sua própria intervenção, sendo convidadas a intervir, a expressar as
suas ideias e a participar em atividades que as ajudem a desenvolver competências sociais, auto-estima, cooperação, singularidade, e a
identificar semelhanças e diferenças com o outro [14].
Guia dos Educadores de Infância (2006): Devem ser organizadas atividades de aprendizagem desafiadoras, significativas, solidárias e
inclusivas para as crianças, que promovam a sua autonomia e participação ativa; os educadores devem ouvir atentamente as ideias das
crianças e incentivá-las a decidir sobre assuntos que as afetam [15].
POLÓNIA
Orientações Nacionais para Educação Pré-Escolar (3-6) (2017), estruturadas em 3 partes [16]:
Atividades – criar condições para que as crianças se desenvolvam, brinquem e descansem livremente e em segurança, explorando de
forma independente o ambiente, possibilitando o conhecimento de valores e normas adequados ao seu desenvolvimento; envolver as
crianças na construção e no planeamento de atividades, através de acções intencionais, apresentando os resultados do seu trabalho.
Perfil da criança no final da educação pré-escolar – respeito pelos direitos e obrigações próprios e dos outros; atenção e expressão de
necessidades individuais, expectativas sociais em relação a outra criança ou grupo, por meio de mensagens verbais e não verbais.
Condições e método de implementação – uso de materiais e instrumentos didáticos que motivem as crianças a agir de forma
independente, descobrindo fenómenos e processos, consolidando o conhecimento e as competências adquiridas, e inspirando-as a fazer
as suas próprias descobertas e aprendizagens.
Padrão de Educação para a Profissão Docente (2019), devendo os/as educadores/as ser capazes de promover/organizar [17]:
(a) um ambiente educativo seguro e amigável (na sala de atividades, fora da instituição e no ambiente local) que encoraje as crianças a
expressar a sua individualidade de forma criativa, através do fornecimento de materiais e oportunidades diversos, e atendendo às suas
necessidades, competências e talentos.
(b) um relacionamento de confiança mútua entre todos os intervenientes no processo educativo, incluindo a família da criança.
(c) o uso de estilos e técnicas de trabalho que combinem diferentes áreas do conhecimento, estimulando a aprendizagem participativa,
proativa, reflexiva, conjunta e cooperante.
Um projeto de intervenção social revela a posto por quatro colunas: Não Gostamos;
preocupação das crianças em mudar o meio Gostamos; Fizemos; e Queremos. (…) As
onde habitam, fazendo-o de forma “ativa, crianças podem desenhar ou pedir ao adulto
apelando para uma atitude de cidadania in- ou a uma criança mais velha para escrever e
terventiva” (Manuela Guedes). posteriormente ilustrar. No fim da semana,
durante a reunião de conselho de sexta-fei-
Introdução ra, os conteúdos do Diário são analisados e
O presente artigo descreve o processo de discutidos por todo o grupo” (Folque, 2012,
um trabalho de projeto que surgiu da curio- p. 56).
sidade das crianças pela cidade e da sua ne- Foi exatamente o que aconteceu na reunião
cessidade de recreação no meio onde vivem, de conselho de sexta-feira. Após ouvirmos
Évora. as sugestões das crianças interessadas, com-
Dele decorreram a construção de competên- binou-se que iriam criar uma cidade como a
cias em diversas áreas de conteúdo: educa- nossa em ponto pequeno. Pelas palavras do
ção ambiental; educação para a saúde; ma- Tomás, queriam criar uma maquete. Assim,
temática; arquitetura: geometria, perspetiva; iniciámos o planeamento do projeto, onde
artes visuais: desenho, pintura e escultura; registámos: “O que sabemos; como vamos
urbanismo; mobilidade; e educação para a saber; o que vamos fazer; quem faz”.
cidadania.
O foco foi encorajar as crianças enquanto Desenvolvimento
sujeitos ativos a exercer a sua cidadania, O pequeno grupo de trabalho de “arquite-
envolvendo-se no espaço social e com en- tos/as” começou a desenvolver a ideia, dia-
tidades locais na tentativa de corresponsa- riamente, no momento dedicado aos proje-
bilização e construção de um espaço urbano tos e atividades da nossa agenda semanal. Fases da construção da maquete
mais humanizado. O primeiro desafio foi desenhar um pequeno
mapa do trajeto casa-colégio onde teriam
Ponto de partida de dar dois ou três pontos de referência. Ao minha casa há um café onde os meus pais
Tudo começou quando a Maria me observa- final da manhã, apresentaram os resultados tomam café.” Polícia, escola, museu, igreja,
va a guardar as casinhas-mealheiro da Mis- no momento das comunicações ao grande restaurante, campo de futebol, piscina foram
são Pijama e disse: grupo. Ao ouvirem os colegas relatar os seus outras tantas referências que permitiram en-
“Estas casinhas do dia do pijama eram tão trajetos houve imensas crianças da turma a riquecer as ideias do grupo de trabalho. Com
giras para nós brincarmos!” Questionei-a manifestar a vontade de também o fazerem. base nestas informações, o pequeno grupo
sobre o que faria com elas, e o Miguel, ao “(…) a comunicação desempenha uma fun- decidiu que seria importante personalizar as
ouvir a conversa, prontamente respondeu: ção social, em que a informação é partilhada casinhas com algo característico de cada ser-
“Eu fazia uma cidade enorme com tantas!” A e divulgada em benefício da ‘comunidade’ viço público, uma vez que eram todas iguais.
Maria, como se já imaginasse o que o Miguel do grupo” (Folque, 2012, p. 61). De seguida, tiveram de decidir como organi-
acabava de dizer, completou entusiasmada: No dia seguinte, quem quis desenhar o tra- zariam a cidade. Dos seus diálogos emergi-
“Sim, como as nossas casas!” Percebi nesse jeto casa-colégio pode fazê-lo. Ao final da ram as seguintes ideias: a cidade tem casas,
momento o potencial das casinhas e pedi- manhã, durante as comunicações, tínhamos pessoas, passeios, estradas e carros. Na ci-
-lhes que registassem no Diário de Grupo o uma panóplia de serviços enumerados: “A dade há carros, mas é melhor andar a pé ou
que queriam fazer através de desenhos. minha casa é junto ao hospital e passo pelo de bicicleta para não poluir. Tenho um livro
O Diário de Grupo é um instrumento de jardim.” “A minha é perto do templo, passo que mostra que Évora tem uma muralha à
pilotagem do MEM onde se faz o “registo todos os dias pela Praça do Giraldo e digo volta das casas. A cidade tem passeios para
semanal de incidentes, desejos, conflitos bom dia à minha vizinha.” “Eu moro perto do as pessoas andarem… e semáforos para os
ou relatos de acontecimentos que qualquer Évora Plaza.” “Ao lado da minha casa há uma carros pararem. Às vezes, as pessoas deixam
membro do grupo pretenda assinalar. É com- loja de brinquedos que eu adoro.” “Perto da os carros nos passeios.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Guedes, M. (2011). Trabalho em Projetos no Pré-esco-
lar. Escola Moderna n.º 40, 5.ª série, p. 7.
Guedes, M. (2012). Projetos de Arte – Fazer para
Aprender. Escola Moderna n.º 43, 5.ª série, p. 8.
Folque, M. A. (2012). O aprender a aprender no pré-
-escolar: o modelo pedagógico do Movimento da
Escola Moderna. Lisboa: Fundação Calouste Gulben-
kian, FCT.
Tonucci, F. (2015). A Cidade dos Nenos. Kalandraka:
Pontevedra.
Silva, I. e Silvestre, S. (2016). A Participação das Crian-
ças na Construção da Cidadania no Concelho de Gou-
veia. Criança, Cidade, Cidadania – Atas do colóquio
internacional. Associação para o Desenvolvimento
das
Poder ser livre, correr e brincar em ruas só para peões e sem expositores de preferência
“Já sei, podíamos participar nos jardins da para promover essa nova conceção de infân- Assim se garante o direito e o dever das
nossa cidade” (Duarte, 5 anos). cia, deixando a criança de ser perspectivada crianças a serem escutadas e estimuladas a
“Vamos Reflorir Chaves” como um objecto de direito para converter-se participar no sentido de influenciarem a sua
num sujeito de direitos. própria aprendizagem.
A Declaração sobre os Direitos da Criança, Os direitos de participação dizem respeito Estamos perante uma imagem de criança
aprovada em 20 de Novembro de 1959, foi um ao nome e identidade, a ser consultada e ativa e com agência.
marco no reconhecimento das especificidades ouvida, ao acesso à informação, à liberdade A participação na educação e cuidados para
da infância. Em 2020 comemoram-se os 30 de expressão e opinião e a tomar decisões. a infância é um conceito multifacetado que
anos da aprovação pela Assembleia Geral das O direito a formar e exprimir opiniões, a ser inclui política educativa, gestão, pedagogia,
Nações Unidas da Convenção sobre os Direi- valorizada a sua participação nas decisões currículo e avaliação. Envolve diferentes
tos da Criança (CDC). que lhe dizem respeito, a participar e pronun- interessados, em que os principais são as
Este documento, adotado em 1989 e ratifica- ciar-se sobre o seu projeto de vida, a intervir, crianças; os pais e outros membros da famí-
do por Portugal em 21 de Setembro de 1990, enquanto parceira, no sistema de promoção e lia envolvidos nos cuidados, educação e bem
tornou-se um pilar jurídico e simbólico que proteção em que se insere. estar das crianças; os profissionais de edu-
aponta para a universalidade dos direitos dos Esta nova conceção de infância reconhece o cação; toda a comunidade, uma vasta rede
cidadãos mais novos. A Convenção sobre os potencial criativo, a inteligência e a sensibili- social (OCDE, 2012) constituída por todos os
Direitos da Criança veio alicerçar esta nova dade da criança. As crianças são coconstruto- interessados da comunidade local, incluindo
visão sobre a criança, reconhecendo-lhe a ras da sua aprendizagem e reconhecem que outros serviços e cidadãos.
capacidade de ser titular de direitos e reco- são participantes ativas e competentes no No que diz respeito à participação das crian-
nhecendo-a como um sujeito ativo, ao dar-lhe desenvolvimento das experiências. Assegu- ças, esta deve ter lugar durante os proces-
importância e atribuir-lhe direitos próprios. ram os seus direitos, não apenas de provisão sos de ensino e aprendizagem centrados
O direito à participação surge como a gran- e de proteção, mas também de participação na sua experiência, que encorajem os seus
de novidade da Convenção, que foi essencial e expressão. interesses e explorações através de “cem lin-
Brincar com a terra era para o Duarte uma As falas das crianças revelam entusiasmo em Inspiradas nesta e noutras opiniões, foram
ação muito familiar e as suas mãos mexem- participar e ajudar os bombeiros, os jardins de realizadas reuniões com as crianças e pais
-se com conhecimento. É assim que se cons- Chaves, as florestas. Exploram-se conheci- para a apresentação do projeto e para se
titui uma relação íntima entre ele e a terra mentos prévios, ideias, sensações. partilharem propostas e estratégias para o
que explora. O menino dispõe-se a viver a Assim seguimos com a nossa missão de tra- operacionalizar.
beleza da natureza. balhar por projectos de pesquisa, acreditando Para Rinaldi (2014), cada criança é portadora
O Duarte continuava a fazer buracos e apa- na capacidade da criança para a construção de sensibilidade ecológica, e isso ocorre des-
nhava paus que colocava dentro dos bura- de uma sociedade mais participativa, amorosa de que é muito pequena. Quando se aceita
cos como se fossem árvores. A relação de e respeitadora. o seu papel social e cultural, família, escola
afetividade desenvolvida com o seu amigo Juntos, decidimos regressar à rua para reco- e sociedade assumem um imediato copro-
Miguel constitui-se num elemento bastante lher bolotas de carvalho nas avenidas da ci- tagonismo, e são ativados múltiplos recur-
importante na sua relação com a terra, as dade, recolher as mais diversas sementes na sos afetivos, intelectuais, sensoriais. Todos
árvores, a natureza: “Sabes, Miguel, que as natureza, recolher terra no meio ambiente na- fazem perguntas, porque estão em relação
árvores choram e falam quando as regamos. tural. Durante este percurso fazemos registos com o mundo.
Elas nascem se fizeres um buraco na terra e gráficos nos jardins da cidade. Desta forma, promove-se eficazmente a par-
colocares lá uma semente. Assim: olha!” Depois desta colheita de sementes, as crian- ticipação das famílias. Um modelo de parti-
“Eu sei”, diz o Miguel. “Depois as raízes vão ças tentam elaborar possíveis teorias sobre cipação das famílias que corresponde a uma
nascer e juntam-se umas às outras. Depois elas. “Se não semearmos as sementes, elas verdadeira aliança educativa.
vai crescer e mais tarde chora pelas folhas.” morrem”, diz o Duarte. Automaticamente, Da reunião com os pais saiu a ideia da rea-
“Temos de arranjar sementes. Vamos ser outro ponto de vista organiza o pensamento: lização de uma grande sensibilização das
plantadores de árvores e flores.” “Não, se a molharmos ela vive cinco dias”, co- crianças e famílias da comunidade educativa
A natureza acolhe profundamente o desejo menta a Mariana. O confronto é também um para a preocupação com a conservação da
intrínseco da criança de desvendar mistérios convite. A comunicação é um fator essencial natureza e o respeito pelo ambiente; reali-
e, por meio dessas inclinações investigativas, ao longo de todo o processo. Entrelaçam-se zação de um desfile de jardins nómadas,
coloca-a em comunhão não apenas com a ideias e fortalece-se a necessidade de cons- com as plantas semeadas e cuidadas pelas
vida, mas com todos os outros seres. truírmos o horto pedagógico e estufas, ver- crianças, transportadas em carretas pelos
Não restam dúvidas de que as crianças são dadeiros laboratórios de investigação onde pais; realização de uma feira solidária na
pesquisadoras natas. Elas olham o mundo e crianças e adultos semearam, plantaram, re- principal praça da cidade com as plantações,
interrogam-se sobre as coisas, vão em busca garam, cuidaram, observaram, registaram. que serão vendidas ao público a favor dos
de respostas sobre diferentes questões da Construímos e dinamizamos as cozinhas de bombeiros.
vida. Pensar a vida a partir do que as crian- lama, um espaço de participação, exploração Neste linha de pensamento foi necessário
ças nos indicam revoluciona, mexe e remexe, e deslumbramento que proporcionou uma ri- fazer uma reunião com as crianças, educa-
desafia-nos com emoções, visões, que insis- queza e variedade de aprendizagens em todas dores e algumas famílias, com o presidente
tentemente nos convidam a deixarmo-nos as áreas de conteúdo: a cozinha de lama rece- da Câmara e com o presidente da Junta de
seduzir pela magia da fluidez, onde o sonho bia as folhas velhas, ervas e flores mortas que Freguesia, que acolheram e impulsionaram o
e a realidade se entrelaçam. Sentimo-nos en- eram retiradas do horto pedagógico. projecto. Desta reunião com os presidentes
cantados. As crianças cantaram, dançaram ao som de surgiu a ideia de associar a este projecto a
Já na sala trouxemos para o grupo o que dis- músicas, disseram poesias e adivinhas, ouvi- polícia, os bombeiros e as bandas do conce-
seram o Duarte e o Miguel. Alguns quiseram ram histórias de sementes e plantas e apren- lho de Chaves para animarem o desfile.
registar. deram coisas importantes sobre a natureza. A participação da comunidade envolve todos
“Nuno, vamos ajudar. É só arranjar sementes A curiosidade é contagiante e as ideias reve- os que vivem na proximidade da instituição,
para as árvores nascerem, foi o Duarte que lam pensamentos e relações com a vida de cidadãos com responsabilidades e interesse
disse”, diz o Miguel. todos os dias. Diz o Dinis: “Os pais podiam pela educação, mas também todos os ser-
“A minha mãe disse que os bombeiros estão ajudar-nos, os jardins da cidade são muitos e viços da comunidade (Litjens and Taguma,
muito cansados. É perigoso, um carro até ar- o meu pai sabe fazer tudo, olha que é uma 2010). A participação da comunidade remete
deu”, comenta a Matilde. boa ideia!” também para a cooperação entre a institui-
tros bens confeccionados pelas famílias, que plenitude. nhecendo-as como cidadãs na promoção da
foram vendidos ao público, tendo sido anga- A curiosidade das crianças foi estimulada de educação ambiental e tornando-as mais cons-
riado um valor significativo para ser entregue forma exponencial, bem como o seu desen- cientes, responsáveis e solidárias.
aos bombeiros e instituições solidárias locais. volvimento cognitivo e emocional. Partindo A construção participada de atividades e es-
Todo o processo de organização e recolha de da escuta ativa da voz das crianças, a equipa tratégias que tenham como base a interven-
dinheiro durante e após a feira solidária foi, pedagógica desenvolveu estratégias de par- ção no seu espaço e contexto, mormente as
ele próprio, um imenso processo de apren- ticipação e parcerias de inclusão educativa a ligadas às preocupações da cidade, do meio
dizagem para as crianças: da escolha do que partir das quais os objetivos expressos nas envolvente, hábitos e conhecimento cultu-
fazer às técnicas de produção, da definição OCEPE se constituíram como princípios e fun- ral são elementos-chave de apropriação de
dos preços de venda ao público à forma de di- damentos da abordagem pedagógica. competências e saberes relativos à sua vida
vulgar e, por último, da contabilidade à entre- Nessa perspetiva, a escolha das atividades, e à da comunidade. Os jardins de Chaves, as
ga do cheque, isso tornou este projeto ainda estratégias e metodologias de desenvolvi- florestas, os bombeiros foram aqui a grande
mais especial do que já fora até ao momento. mento deste projeto potenciaram a reflexão preocupação para as crianças.
Todo o projeto contou com o envolvimen- e a assunção de comportamentos e atitudes As abordagens refletidas e decididas em con-
to de parceiros locais do concelho: famílias de respeito pela cidade, pelo ambiente e que junto – equipa pedagógica, crianças, pais,
(apoio logístico, na pesquisa, na construção/ contribuem para uma formação integral do autarquia –, tendo por base os interesses
decoração das carretas, no desfile dos jardins cidadão. comuns, implicam o desenvolvimento de ati-
nómadas, na colaboração com bolos, venda e Os desafios que se colocaram incentivaram tudes positivas na relação com os outros, nos
compra de plantas da feira solidária). A Câma- a experimentação e dotaram as crianças de cuidados e na criação de hábitos de respei-
ra Municipal de Chaves e a Junta de Freguesia uma capacidade de investigação incrível, num to pelo ambiente, por melhorar os espaços e
apoiaram através da cedência de espaço para contexto lúdico, rico e estimulante que deve consequentemente a cultura.
a realização das atividades, do apoio logísti- caracterizar as aprendizagens em idade pré- Ao estabelecer relações e parcerias entre fa-
co e técnico às crianças em palco, desfile de -escolar. As áreas curriculares foram trabalha- mília e comunidade, associando-as a objetos,
jardins nómadas, feira solidária e exposição das de forma transversal, tendo como área situações e preocupações, torna-se dinâmico
de carretas, empréstimo de bancas, etc. A de intervenção pedagógica por excelência a e funcional o conhecimento e o respeito pelo
PSP apoiou com a sua presença durante o Formação Pessoal e Social das crianças, reco- ambiente, pela cultura, pelos famosos jardins
desfile de jardins nómadas e os Bombeiros
asseguraram a segurança durante o desfile,
mas também nas constantes visitas à nossa
instituição. Foram ainda muitos os apoios vin-
dos de instituições e empresas locais, como
a McDonald’s, Flavimpério, Munível e Mestre
Alimentar, Renascença, os Gaiteiros de Lebu-
ção, Banda Filarmónica Os Pardais, Grupo de
Bombos, as Estufas de Chaves... Mas não fi-
cou por aqui, porque o Parque Biodiversidade,
a Quercus, a Escola Secundária Fernão de Ma-
galhães e as Termas de Chaves complemen-
taram a ação através do apoio logístico e da
disponibilização de informação temática, da
cedência de algumas árvores e da realização
de visitas de estudo onde foi possível apren-
der imenso.
A cidade abriu-se assim às crianças, às famí-
lias, à escola, permitindo-lhes o direito à par-
ticipação, podendo viver a experiência na sua
Quando fui desafiada a escrever um artigo evidente a vulnerabilidade das crianças. To- pode resumir-se a um dia do calendário. E
sobre a minha prática pedagógica tendo dos pudemos notar como as crianças foram este seria apenas um momento para tentar
como ideia central os direitos da criança esquecidas no momento de tomar decisões. contrariar uma prática, muito presente nas
pensava estar distante de convulsões ca- Como temos assistido nos órgãos de co- famílias e até nas escolas, de comemorar a
pazes de colocar a generalidade das nossas municação social, Pedernera, presidente do data com atividades recreativas e oferta de
crianças em situações de extrema pobreza Comité dos Direitos da Criança da ONU, é presentes às crianças. Partindo da ativida-
e violência. Acreditava que caminhávamos uma das vozes a afirmar que a pandemia de “A escola dos meus sonhos”, sugerida
para o aperfeiçoamento do exercício dos fez das crianças as principais vítimas cola- na brochura da UNICEF, os nove grupos
seus direitos já reconhecidos e efetivos terais. de crianças dos sete jardins de infância do
para muitas delas, ainda que com proble- A intervenção dos Estados, puramente se- agrupamento, com as suas educadoras,
mas e assimetrias por resolver. Estávamos curitária e sanitária, não teve em conta as iriam explorar ideias sobre os espaços. Os
a sair da crise gerada pelos problemas eco- crianças que ficaram privadas da escola, contributos das crianças seriam compilados
nómicos que começaram a sentir-se nos dos amigos, de familiares e até do ar livre, no formato de testemunhos gravados em
países do Sul da Europa no final da primeira abrindo-se caminho para grandes desigual- filme pelos porta-vozes dos grupos (crian-
década do século XXI e que veio agravar o dades no acesso à educação e à cultura, ao ças), para serem apresentados à direção
risco de pobreza e exclusão social de dois sofrimento psicológico e à doença mental. do agrupamento, à autarquia, às famílias e,
milhões e meio de crianças europeias, ex- As características das crianças, a sua de- tanto quanto possível, divulgados na comu-
cluindo “as crianças mais pobres das con- pendência colocam problemas aos adultos nidade.
dições normativas da infância contemporâ- num momento em que o jardim de infância, Entretanto, as crianças ficaram em casa,
nea, no que respeita aos direitos de provi- a instituição que as sociedades ocidentais com a comunicação restrita à esfera familiar
são – educação, alimentação e saúde – mas criaram com a função de as guardar e ensi- e dependentes das iniciativas, meios e pos-
também de proteção” (Sarmento e Trevisan, nar, está encerrado. Por outro lado, a crise sibilidades dos adultos. A sua agência – en-
2017, 21). económica acentua a emergência de res- tendida como a possibilidade de intervir nos
A minha atividade profissional nas duas postas para situações de carência e atrope- acontecimentos à sua volta, na qualidade
últimas décadas refletiu a ideia da parti- los graves a direitos básicos de provisão e de indivíduos a quem são facultadas infor-
cipação das crianças como eixo central da proteção. Em consequência, corremos o ris- mações e são dadas oportunidades para o
pedagogia em educação de infância. Fui co de esquecer os direitos de participação. fazer (Barnes, 2000) – ficou limitada. Desde
desenvolvendo um discurso pedagógico ali- Considerar a importância da participação logo porque “é constitutivo do conceito de
nhado com o de muitas outras pessoas e das crianças implica colocá-las no centro da agência que a pessoa possa escolher cursos
entidades que se estrutura a partir da defe- agenda, tanto política como educativa. diferentes de ação, logo, tenha liberdade”
sa dos direitos de participação das crianças. (Formosinho, 2007, p. 27). Quando muito,
No centro desse discurso está a ideia de Tentativas de manter a coerência, podemos falar de possibilidades de inter-
que a participação é indiciadora do exercí- pelas crianças venção, numa perspetiva puramente indivi-
cio de direitos pelas crianças e, simultanea- O projeto deste artigo começou por ser a dualista e limitada a decisões da sua vida
mente, uma medida de aperfeiçoamento divulgação de evidências da minha práti- pessoal, na esfera familiar.
desses mesmos direitos (Oudenhoven e ca pedagógica respeitante ao ano letivo Assistimos nos últimos tempos ao surgi-
Wazir, 2007). 2019/2020. mento de um discurso preocupado com o
A linguagem dos direitos continua a ser ne- Não sendo titular de grupo neste ano letivo, como ensinar à distância, pouco focado no
cessária na escola, como forma de educa- propunha-me documentar e partilhar uma como aprender à distância e, sobretudo,
ção para e pela democracia. prática pedagógica que evidenciasse a par- nada preocupado com o como continuar a
As assimetrias conhecidas entre crianças ticipação das crianças no jardim de infância. viver a infância longe das escolas e jardins
no exercício dos seus direitos bastariam, Imaginei fazê-lo através da comemoração de infância.
só por si, para justificar a necessidade de do Dia da Criança, seguindo algumas ideias Recordo uma iniciativa de um grupo de edu-
repetir este discurso. O acentuar dessas as- expostas pela UNICEF em 2017, a propósito cadores, despretensiosos e interessados
simetrias com a chegada da pandemia da da comemoração da data. Sabemos que o em refletir em conjunto, o Envolve-te, na
covid-19 ampliou as justificações e tornou trabalho sobre os direitos da criança não qual participei. O grupo recolheu dados de
hortas urbanas que construíam, da constru- considerando a frequência bastante regu- que conheciam o jogo, nitidamente felizes
ção de legos da véspera, da leitura de um lar das crianças nas sessões síncronas, mas porque o amigo tinha respondido desta vez.
livro, de um desenho, das idas a espaços de prefiro sinalizar dois casos de aparente in- O António sorriu e voltou a mergulhar na
natureza, do que quisessem. Às educadoras sucesso, pela reflexão que nos possibilitam sua consola.
cabia o papel de colocar em comum essas as suas histórias: duas crianças que conhe- Nas sessões seguintes, o António, senta-
experiências e incentivar novas explorações cia bem, o António e o Enzo,1 de quem fui do no sofá vermelho com a sua consola na
a partir daí. Pretendíamos garantir que con- educadora no ano letivo anterior e de quem mão, levantava momentaneamente a cabe-
tinuávamos a orientar-nos pelo princípio de nunca perdi o contacto, uma vez que con- ça e respondia às perguntas diretas que lhe
que um currículo em educação pré-escolar tinuei a apoiar o grupo até ao final do 2º eram feitas com sim e não. Continuava apa-
é emergente e não prescritivo e acontece período, uma vez por semana. rentemente zangado e não participava es-
num espaço e tempo particulares (contex- Para situar a forma como encarei esta forma pontaneamente em nenhuma conversa. Os
to). Em simultâneo, realizámos filmes em de estar com as crianças, importa explicar pais diziam que também não demonstrava
que surgíamos pessoalmente a propor ati- que foi pedido aos familiares que dessem interesse nas gravações que eram enviadas
vidades e a colocar hipóteses de explora- autonomia às crianças, que não as forças- para casa, tanto as que incluíam os contri-
ção, para que as crianças sentissem alguma sem a estar presentes e não restringissem butos dos colegas, como as que continham
continuidade na relação connosco. Ou seja, os seus movimentos em frente ao ecrã. as propostas das educadoras. Nas palavras
quisemos garantir intencionalidade, fazen- da mãe estava “insuportável e birrento”.
do das situações educativas essencialmente O caso do António (5 anos) Em junho, o António regressou ao jardim de
espaços e tempos de relação, onde as ideias O António apareceu em todas as videocon- infância, embora com frequência irregular,
emergem, se cruzam e consequentemente ferências a partir de casa, sentado num sofá com mais cinco crianças e uma educadora
se complexificam. vermelho, cabeça baixa, com uma consola nova. Eu e a nova colega decidimos manter
Não estando aberto o jardim de infância na mão. Nas primeiras sessões não olhou o acompanhamento do grupo à distância,
que pode responder à imagem da criança para a câmara, parecia zangado. Quando de forma coordenada. Numa dessas vi-
que possuo, fruto de uma história coletiva nos dirigíamos a ele mexia ligeiramente a deoconferências colocámos em comum as
que se cruza com a história da institucio- cabeça, mas não falava ou dava qualquer experiências em casa e no jardim de infân-
nalização das crianças (Dahlberg, Moss & outro sinal de estar interessado na comu- cia, como habitualmente, a partir de uma
Pence, 2003) e com os meus valores pes- nicação. Também não fazia nenhum mo- apresentação realizada com os contributos
soais, desejava garantir no espaço virtual vimento que indiciasse querer sair dali. Os enviados pelas famílias. Depois decidimos
a coerência. Coerência com a conceção de pais diziam que parecia não gostar, mas que contar as janelas do edifício em que cada
criança competente, para quem o jardim de quando questionado não recusava. um se encontrava naquele momento, dando
infância representa não a preparação para Um dia a mãe enviou-me uma foto do An- continuidade a uma ideia surgida na video-
a vida, numa lógica de ação vertical sociali- tónio junto ao rio, num local onde tínhamos conferência anterior. Uma grande animação
zadora de adultos relativamente a crianças, desenvolvido várias atividades, com um pe- que deu lugar a grandes aprendizagens
mas um espaço de construção dos seus dido do filho: “O António pede para dizer matemáticas. Por fim, as educadoras pro-
mundos sociais na interação com os pares que tem saudades de passear com a Ofélia puseram a realização de um desenho para
(Corsaro, 2003). e com os meninos.” mostrar uns aos outros. O António acabou
Tal como o jardim de infância, este espa- Na sessão síncrona seguinte disse ao Antó- o seu desenho, aproximou-se espontanea-
ço deveria permitir o encontro entre crian- nio que tinha gostado da fotografia junto mente da câmara do computador, mostrou
ças, ainda que a presença orientadora de ao rio, que também tinha saudades de ir lá o desenho e gritou: “Este sou eu com os
adultos, sabia-o à partida, inviabilizasse passear com todos e pedi-lhe que nos mos- meus amigos no jardim, estou muito feliz,
o desenvolvimento de “culturas de pares” trasse o jogo da consola. O António olhou a mas faltam aqui muitos!”
(idem). câmara do computador, disse entusiasma- Fiquei momentaneamente em silêncio. Os
A minha experiência no E@D com um grupo do o nome do jogo e mostrou o ecrã da adultos do outro lado da câmara também,
de crianças teve a duração de dois meses, consola. Algumas crianças reagiram dizendo incapazes de lidar com aquele desespero.
em substituição de uma educadora titular Logo que consegui, agradeci o desenho e
de grupo. Poderia falar de algum sucesso, 1 Todos os nomes de crianças neste artigo são fictí- disse que ficava contente pela felicidade
cios.
a escolha do grupo do ano anterior relativa ainda não era brilhante e o meu conheci- Quem tinha ido ao parque temático dos
à compra de material e adquirimos as mi- mento de dinossauros limitado, levava-o dinossauros no ano letivo anterior contou
niaturas. para o computador para encontrar os no- as suas experiências, todos diziam querer
Escusado será dizer que era junto do ces- mes escritos e poder reproduzi-los oral- ir. Mas havia um problema: ir ao parque te-
to com dinossauros que encontrávamos a mente de forma correta. mático era dispendioso e muitos pais não
todo o momento o Miguel. Foi aí que co- Algumas crianças juntaram-se às nossas podiam pagar. No ano anterior a viagem
mecei a sentar-me com ele. Ele ensinou-me pesquisas. Nos dias seguintes começaram a tinha sido feita com um subsídio da Câmara
o nome dos dinossauros que estavam no chegar dinossauros nas mãos das crianças. Municipal. Como fazer?
cesto. Falou-me também dos que tinha lá Afinal era um interesse de muitos. Num Foi então que a Beatriz disse: “Já sei, ga-
em casa, na casa do pai e na casa da mãe, desses dias, numa conversa da manhã em nhamos dinheiro!” Lembrei os direitos da
onde os arrumava, quem brincava com ele que mostrávamos os dinossauros uns aos criança e expliquei que as crianças não
com os dinossauros... outros, o Ricardo disse: “O ano passado vo- devem trabalhar e porquê, justificando a
Como não conseguia compreender os no- cês foram aos dinossauros e eu não, estava razão por que não ganham dinheiro. “Está
mes com clareza, a articulação do Miguel de férias. Gostava de lá ir.” bem, não podemos trabalhar, mas pode-
A Convenção dos Direitos da Criança (CDC)1 Todas as crianças têm também direito à cionalidade, género, língua materna, cultura,
de 1989, ratificada pelo Estado português em educação, que visa a “igualdade de oportu- religião, etnia, orientação sexual de membro
1990, representa o compromisso dos Estados nidades” (art.º 28 da CDC). Esta finalidade da família e, ainda, das suas diferenças a ní-
signatários de assegurar esses direitos através é especialmente relevante para a educação vel cognitivo, motor ou sensorial, ou quais-
de políticas e medidas que os respeitem e de infância, uma vez que a investigação tem quer outras.
promovam. No entanto, o cumprimento des- demonstrado que a educação de infância de Por outro lado, o direito à educação declara-
ses direitos não cabe apenas aos Estados e qualidade pode, mais do que outros níveis do no art.º 28 da CDC define que o “Estado
exige o envolvimento de todas as instituições educativos, contribuir para uma maior igual- tem a obrigação de tornar o ensino primário
e pessoas que lidam, no quotidiano, com as dade de oportunidades (OECD, 2017). obrigatório e gratuito, encorajar a organiza-
crianças, desde os pais até aos profissionais As finalidades da educação são desenvolvidas ção de diferentes sistemas de ensino secun-
de diferentes serviços, de que fazem parte as no artigo seguinte (art.º 29 da CDC), que es- dário acessíveis a todas as crianças e tornar o
instituições de educação de infância. Por isso, tabelece que a educação se destina a desen- ensino superior acessível a todos, em função
a CDC constituiu uma referência para a ela- volver todas as potencialidades da criança, o das capacidades de cada um”, tendo em vis-
boração das Orientações Curriculares para a que está interligado com o direito de a criança ta assegurar o exercício desse direito na base
Educação Pré-Escolar (OCEPE, 2016). atingir o seu “máximo desenvolvimento” (art.º da igualdade de oportunidades.
Os direitos da criança aplicam-se a todos os 6.2). Desta finalidade decorre a necessidade Estas preocupações estão também expres-
seres humanos desde o nascimento até aos 18 de na educação de infância promover a au- sas nos princípios orientadores do Decreto-
anos (art.º 1 da CDC). No entanto, a comissão toestima, a autoconfiança, a dignidade hu- -Lei n.º 54/2018, de 6 de julho, que esta-
que supervisiona a implementação dos direi- mana em paralelo com o desenvolvimento de belece as normas que garantem a inclusão
tos da criança julgou necessário publicar um outras competências e aprendizagens (UN, de todos no processo educativo. Neste
texto específico (UN, 2005) sobre a aplicação 2005, p. 13). Reconhece-se, ainda, que “sepa- documento, inclusão é o “direito de todas
destes direitos à infância, por considerar não rar cuidar e educar não corresponde ao su- as crianças e alunos ao acesso e participa-
ter sido dada suficiente atenção às crianças perior interesse da criança” (UN, 2005, p. 14) ção, de modo pleno e efetivo, aos mesmos
mais pequenas como detentoras de direi- A educação, nomeadamente a educação de contextos educativos” (alínea c, art.º 3º do
tos. Neste texto, que define a infância como infância, deve não só respeitar e promover DL). Trata-se do direito de cada aluno a uma
o período do nascimento até aos 8 anos, é os direitos das crianças, mas também permi- educação inclusiva que responda às suas po-
sublinhado que “respeitar os interesses, expe- tir-lhes tomar consciência dos direitos huma- tencialidades, expectativas e necessidades
riências e desafios específicos que se colocam nos, o que implica uma educação “participati- no âmbito de um projeto educativo comum
a todas as crianças desta idade é o ponto de va” que “na prática, lhes dê oportunidades de e plural que proporcione a todos a partici-
partida para pôr em prática os seus direitos exercer os seus direitos e responsabilidades pação e o sentido de pertença em efetivas
durante esta fase crucial das suas vidas” (UN, de modo adaptado aos seus interesses, preo- condições de equidade, contribuindo assim
2005, p. 3). cupações e capacidades em evolução” (UN, para maiores níveis de coesão social.
Os direitos da criança são universais (art.º 2 2005, p. 15).
da CDC) e caracterizam-se também pela sua A referência aos direitos da criança e ao seu
indivisibilidade e interdependência, sendo que sentido na educação de infância, concretiza-
todas as decisões e ações relativas às crianças da nas OCEPE, foi organizada de acordo com
e que afetam o seu bem-estar se subordinam quatro perspetivas especialmente marcantes
“ao seu superior interesse” (art.º 3 da CDC). no texto: direito à inclusão; direito à partici-
Estas decisões e ações, estando dependentes pação; direito de brincar e de participar livre-
quer dos Estados quer dos adultos responsá- mente na vida cultural e artística; (Co) Res-
veis pelas crianças, terão de ter tem conta as ponsabilidade das famílias na educação.
opiniões das crianças, que não serão “ignora-
das ou rejeitadas com base na idade ou na Inclusão de todas as crianças
imaturidade” (UN, 2005, p. 6). O art.º 2 da CDC, referido anteriormente, ex-
plicita que os direitos se aplicam a todas as
1 UNICEF, Comité Português (2019) Convenção sobre os crianças sem qualquer discriminação de na-
Direitos da Criança (Edição revista).
sua maneira de se relacionar com os outros 33). A oportunidade do conhecimento de que frequentam a educação pré-escolar em
e com o meio social e físico. diferentes culturas possibilita às crianças Portugal.
A diversidade é, assim, entendida como não só conhecer as características da sua Neste sentido, é realçada a importância da
forma de educação intercultural, em que o e de outras comunidades, como também o aprendizagem da língua portuguesa, que
quotidiano no jardim de infância se organi- desenvolvimento de atitudes de respeito e é essencial para o sucesso educativo, mas
za num contexto de vida democrática, em compreensão face à diversidade. sem esquecer que a “partilha da sua própria
que as crianças participam, numa perspe- Conforme referido nas OCEPE, “o respeito língua e cultura não só reforça a autoesti-
tiva de equidade, independentemente das pelas culturas e línguas das crianças, além ma e identidade da criança, como enrique-
diferenças de género, sociais, físicas, cog- de ser uma forma de educação intercultu- ce a sensibilidade intercultural do grupo”
nitivas, religiosas ou étnicas, num processo ral, leva a que as crianças se sintam valo- (p. 61). Esta necessidade está contemplada
educativo que contribui para uma maior rizadas e interajam com segurança com no art.º 30 da CDC, que salvaguarda que a
igualdade de oportunidades. Mais uma vez, os outros” (p. 60). Esta preocupação está criança pertencente a uma minoria tem o
é realçado o papel importante que a edu- também presente quando no domínio da direito à sua própria vida cultural, a praticar
cação pré-escolar tem na educação para os “Linguagem Oral e Abordagem à Escrita” a sua religião e utilizar a sua própria língua.
valores, que se “vivem e aprendem na ação se alerta para o facto de o português não As preocupações relacionadas com a inclu-
conjunta e nas relações com os outros” (p. ser a língua materna de todas as crianças são estão também presentes no último ca-
cesso participado”, afirma-se que “consi- é um tempo estruturado mas também fle- Também para o sucesso na transição do
derar a criança como agente do processo xível, onde os diferentes momentos fazem jardim de infância para o 1º ciclo do ensi-
educativo e reconhecer-lhe o direito de ser sentido para as crianças e se tem em conta no básico, se evidencia o papel das crianças
ouvida nas decisões que lhe dizem respeito o tempo necessário para fazerem experiên- como protagonistas, a necessidade de as
confere-lhe um papel ativo no planeamen- cias e explorarem, para brincarem, experi- envolver neste processo, proporcionando
to e avaliação do currículo…” (p. 16). Esta mentarem novas ideias, modificarem as diálogos e a explicitação das suas expetati-
participação possibilita à criança fazer pro- suas realizações e as aperfeiçoarem. Este vas, bem como as suas interrogações sobre
postas, prever como as vai pôr em prática tempo pertence às crianças e aos adultos, essa transição. É também importante que
e com quem. O envolvimento da criança por isso a sua organização deve ser decidi- sejam apoiadas na tomada de consciência
na avaliação torna-a protagonista no seu da por ambos. Esta intencionalidade para o das aprendizagens que realizaram no jardim
processo de aprendizagem, e para que esta tempo deve ser do conhecimento das crian- de infância e da sua importância para conti-
participação aconteça o educador deverá ças, podendo elas decidir quando, onde nuarem a aprender (OCEPE, p. 105).
apoiar a autoavaliação, ajudando a criança a e com quem vão desenvolver a sua ação, Os direitos à participação, à liberdade de
descrever o que fez, como fez e com quem podendo propor alterações sempre que expressão e à liberdade de pensamento
fez, prevendo a continuidade da sua ação sintam essa necessidade. É a partilha de serão respeitados através de oportunida-
de forma a melhorar ou encontrando outras poder entre educador e crianças que permi- des frequentes para o desenvolvimento de
formas de fazer. Este apoio do educador no te que estas se apropriem e participem na “processos autónomos” (Lansdown, 2005,
processo de autoavaliação permite que a organização e funcionamento do ambiente citado por Tomás, 2011) em que as crianças
criança aprenda a prever o que quer fazer, educativo. têm o poder de empreender a ação, esco-
tornando-a mais capaz no planeamento e Os três artigos da CDC (12, 13 e 14) que te- lhendo os temas a tratar e controlando o
enriquecendo a sua ação (OCEPE, 2016). mos tido como referência são também le- processo a desenvolver, onde o adulto tem
É a intencionalidade na organização do am- vados em consideração ao longo de todas o papel de mediador.
biente educativo que possibilita operacio- as áreas de conteúdo propostas nas OCEPE
nalizar na prática os direitos à participação, (2016), onde é reafirmado que o reconhe- Direito de brincar e participar livremente
à liberdade de expressão e à liberdade de cimento da criança como sujeito e agente na vida cultural e artística
pensamento, consciência e religião (art.º 12, do processo educativo lhe garante o direito O art.º 31 da CDC reconhece que a criança
13 e 14 da CDC). Em primeiro lugar, impor- de ser escutada nas decisões relativas à sua tem o direito de brincar e participar livre-
ta pensar as formas de interação no gru- aprendizagem e de participar no desenvolvi- mente na vida cultural e artística, reme-
po (adulto-criança, criança-criança e entre mento do currículo. Este processo capacita tendo para uma complementaridade entre
adultos) para potenciar a existência de um a criança para reconhecer os outros como estes dois aspetos.
clima relacional onde se promove o bem-es- recursos, apresentar as suas interpretações O direito de brincar adquire particular sen-
tar emocional e físico, criando um ambiente e negociar ações colaborativas (Vasconce- tido nas sociedades ocidentais atuais, no-
tranquilizador, onde as crianças se sintam los, 2009). É no contexto relacional e de meadamente devido às limitações criadas
bem e saibam que são escutadas e valoriza- interação social no jardim de infância que por espaços urbanizados, em que a circu-
das. Também deverá ser pensado o espaço reconhecemos as crianças como capazes de lação rodoviária é intensa, o que tem como
onde as interações têm lugar. A organiza- construir a sua aprendizagem, partindo da consequência a exiguidade dos espaços
ção e funcionamento deste espaço deve ser sua curiosidade e dos seus interesses para interiores; a dificuldade de acesso a espa-
partilhado com as crianças para que estas explorar e compreender o mundo que as ro- ços exteriores e a ambientes naturais; uma
o entendam e, ao observar como estas o deia através das suas experiências e saberes excessiva proteção dos adultos, que impe-
utilizam e escutando as suas opiniões, pos- únicos. de as crianças de se movimentarem e cor-
sibilita-se a participação e a tomada de de- A participação das crianças continua a es- rerem riscos. As crianças passaram, assim,
cisão sobre as mudanças a efetuar. Assim, tar presente no capítulo da “Continuidade a ser “segregadas” para espaços planeados
as crianças apropriam-se deste espaço, o Educativa e Transições”, quando se sugere e controlados pelos adultos, que limitam a
que lhes permite fazer escolhas e utilizar os a colaboração das crianças no planeamento sua necessidade de explorar, imaginar e in-
materiais de diferentes maneiras. para receber os novos colegas, na passa- teragir com outras crianças (Coelho & Vale,
O tempo em que as interações acontecem gem da creche para o jardim de infância. 2017; Figueiredo, 2015).
do currículo é marcado por “um risco ao suas iniciativas”, o que lhe permite “conhe- áreas de conteúdo, abordadas de modo ar-
meio” que divide o “brincar improdutivo” cer melhor os seus interesses, encorajar ticulado, dá sentido à ligação estabelecida
do “trabalho sério” de aprendizagem. Esta e colocar desafios às suas explorações e no art.º 31 da CDC entre o direito de brincar
dicotomia entre brincar/aprender e brincar/ descobertas. Esta observação possibilita- e de participar livremente na vida cultural e
trabalhar é construída pelos adultos e faz -lhe ainda planear propostas que, partindo artística. Nas OCEPE, as áreas de conteúdo
pouco sentido para as crianças. dos interesses das crianças, os alarguem e são entendidas “como âmbitos de saber,
Considerar o brincar no jardim de infância aprofundem. Deste modo, a curiosidade e com uma estrutura própria e com perti-
como correspondendo às escolhas que as desejo de aprender da criança vão dando nência sociocultural” (p. 31), como manifes-
crianças realizam nas diferentes áreas em lugar a processos intencionais de explora- tações da cultura humana, perspetivas de
que a sala está organizada remete, em pri- ção e compreensão da realidade, em que compreender e de se relacionar com o mun-
meiro lugar, para as intenções dos educa- várias atividades se interligam com uma do, com relação entre si, de que a criança
dores na organização dessas áreas, sendo finalidade comum, através de projetos de progressivamente se apropria. Assim, o
que espaços organizados por estes e que se aprendizagem progressivamente mais com- jardim de infância é um local de vida e de
mantêm inalteráveis e com os mesmos ma- plexos” (p. 11). interação cultural, em que a curiosidade das
teriais durante todo o ano não promovem o Considerar que brincar implica uma organi- crianças é estimulada, de modo a se irem
direito das crianças a brincar. zação estimulante do ambiente educativo e apropriando, mas também reconstruindo e
A “Organização do ambiente educativo da em que a observação e o envolvimento do recriando a cultura, no seu direito à “liber-
sala”, que inclui a organização do grupo, do educador no brincar da criança podem dar dade de expressão, liberdade de procurar,
espaço e do tempo é considerada nas OCE- origem a propostas da criança ou do educa- receber e expandir informações e ideias”
PE como suporte do desenvolvimento cur- dor para o desenvolvimento de projetos de (art.º 13 da CDC).
ricular, estando incluída na organização do aprendizagem tem de ser contextualizado As diferentes áreas de conteúdo sublinham
espaço, não só da sala, mas também do es- no direito de participação da criança (art.º esta visão de acesso à cultura e à arte, ex-
paço exterior que poderá proporcionar ou- 12 da CDC). A organização do ambiente plicitando-se, nomeadamente, no domínio
tras oportunidades educativas, como exer- educativo não é assim apenas pensada em da Educação Artística, que “experiências e
cício físico e exploração do meio natural. Se função das crianças, isto é, para as crian- oportunidades de aprendizagem diversifi-
a valorização do brincar em meio natural ças, mas com elas, e os seus interesses e cadas ampliam a expressão espontânea das
deu origem nos países escandinavos aos iniciativas são também tidos em conta no crianças e garantem o direito de todas no
“jardins de infância da floresta” (também desenvolvimento do currículo. Este é pla- acesso à arte e à cultura artística” (OCEPE,
difundidos noutros países), os espaços ex- neado e avaliado com as crianças, numa p. 47). De igual modo, o Conhecimento do
teriores favorecem a iniciativa e autonomia permanente interação e negociação entre Mundo procura introduzir as crianças na
das crianças (Figueiredo, 2015) e, por isso, as propostas dos educadores e as iniciati- cultura científica intimamente relacionada
serão desejavelmente menos estruturados vas e propostas das crianças. com a sua metodologia.
e mais “naturais”. É neste sentido que, na Introdução das O desenvolvimento do currículo terá tam-
Não basta deixar que as crianças brinquem “Áreas de Conteúdo”, se afirma que “a pers- bém em vista os objetivos da educação in-
“livremente” no exterior ou na sala, esco- petiva holística, que caracteriza a aprendi- dicados no art.º 29 da CDC, em que a liga-
lhendo as áreas para onde pretendem ir e zagem da criança e que está subjacente ao ção entre o direito de brincar e de participar
com quem querem brincar, o que querem brincar, estará também presente na abor- na vida cultural e artística são consideradas
fazer e como. É também fundamental o dagem das diferentes áreas de conteúdo condições para a criança “otimizar o seu po-
papel do ou da educadora em “estimular o […] Não há, assim, uma oposição, mas uma tencial” (UN, 2013, p. 5). Importa não esque-
brincar através de espaços e materiais di- complementaridade e continuidade entre o cer que todas as crianças têm direito a uma
versificados, apoiando as escolhas, explora- brincar e as aprendizagens a realizar nas di- educação que desenvolva todas as suas po-
ções e descobertas das crianças” (OCEPE, ferentes áreas de conteúdo” (OCEPE, 2016, tencialidades, o que implica uma educação
p. 12). p. 31) inclusiva (art.º 2 da CDC). Se brincar, pelas
A ação do educador passa por observar as A complementaridade e continuidade entre interações sociais que proporciona, favo-
crianças enquanto brincam, ou “envolver-se a aprendizagem holística que caracteriza rece essa inclusão, todas as crianças são
no brincar das crianças, sem interferir nas o brincar e a aprendizagem nas diferentes também incluídas ao participarem e colabo-
o seu papel e responsabilidade por diferentes tendo no meio físico e social, e as relações e damento, “Exigência de resposta a todas as
vias, sendo uma delas a elaboração de legisla- interações que estabelece com outros adul- crianças”, onde é indicada a responsabilidade
ção e de orientações curriculares, neste caso tos e crianças. Estas ocorrem nos diferentes do estabelecimento educativo em adotar uma
as OCEPE. Aqui não só se estabelecem alguns contextos de vida da criança, entre os quais “perspetiva inclusiva, garantindo que “todos
princípios gerais para a atuação das estrutu- o de educação de infância, mas também no (crianças, pais/famílias e profissionais) se sin-
ras educativas com as famílias, como se suge- meio familiar, onde as práticas educativas, tam acolhidos e respeitados” e, mais ainda,
rem estratégias e ações mais concretas para a imbuídas de uma cultura própria, contribuem “pais/famílias sejam considerados como par-
operacionalização destes princípios. para o seu desenvolvimento e aprendizagem. ceiros” (OCEPE, 2016, p. 10).
Neste fundamento é explicitada a necessida- Ao longo do texto das OCEPE são várias as
Como é que nas OCEPE é explicitada de de se articularem e respeitarem as práticas sugestões para o envolvimento das famílias,
a (co) responsabilidade das famílias e papéis destes dois contextos, o institucional começando estas logo no capítulo da “In-
na educação (jardim de infância) e o familiar, apontando-se tencionalidade Educativa – Construir e gerir
No primeiro Fundamento das OCEPE (2016), para que “… o/a educador/a estabeleça rela- o currículo”, onde é dito que, “dada a impor-
que se refere ao “desenvolvimento e a apren- ções próximas com esse outro meio educati- tância do contexto familiar na educação das
dizagem como vertentes indissociáveis no vo, reconhecendo a sua importância para o crianças, o/a educador/a também planeia
processo de evolução da criança”, é realçado, desenvolvimento das crianças e o sucesso da e avalia a sua ação junto dos pais/famílias,
para além do papel da maturação biológica, a sua aprendizagem” (OCEPE, 2016, p. 9). Mais prevendo estratégias que incentivem a sua
importância das experiências que a criança vai explícita ainda é a referência no terceiro fun- participação, permitindo-lhe conhecer me-
proporcionar às crianças a instrução e orien- instituição educativa é indispensável na edu- OECD-LEED Forum on Partnerships and Local Go-
vernance. Recuperado de http://www.oecd.org/cfe/
tação adequadas, necessárias para a sua cação das crianças. leed/forum/partnerships.
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se conseguirá que as estruturas educativas, documentos com finalidades e objetivos cla- dicators on Early Childhood Education and Care.
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jardim de infância e escola, cumpram o seu ramente distintos, existe muita proximidade 9789264276116-en.
papel de apoio às famílias e crianças, assegu- entre eles. As OCEPE, enquanto documento Rinaldi, C (2001). The Pedagogy of Listening: the pers-
rando-lhes uma educação adequada ao seu curricular dirigido aos profissionais que vão pective of listening from Reggio Emilia. Innovations in
early education: the international Reggio exchange,
desenvolvimento e também uma qualidade lidar, educar, interagir e apoiar as crianças 8(4), 1-4. Recuperado de https://static1.squarespace.
de vida que sustente esse desenvolvimento nos seus processos de desenvolvimento e de com/static/526fe9aee4b0c53fa3c845e0/t/540f-
em todas as suas dimensões, tal como pre- aprendizagem, não podiam deixar de conside- ce31e4b00c94d884e002/1410321969279/Pedago-
dy+of+Listening+-+Rinaldi+-+Fall+2001.pdf.
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Neste artigo procurámos fazer uma articu- Tomás, C. (2011). Há muitos mundos no mundo –
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A reconceptualização da criança enquanto raramente afirmam uma ética investigacional e vulnerável, mas ao mesmo tempo a sua
ator social fez emergir, nas últimas décadas, com crianças. participação. A Convenção sobre os Direitos
várias reflexões em torno dos princípios e Mais recentemente, foram desenvolvidos da Criança (Assembleia Geral das Nações
processos da investigação que as envolve diferentes projetos com o intuito de criar Unidas, 2019) e os seus mais recentes pro-
(Bell, 2008; Christiensen & James, 2005; referências éticas para os investigadores que tocolos facultativos são instrumentos inter-
Morrow, 2012; Woodhead & Faulkner, 2005). estudam as problemáticas relacionadas com nacionais que afirmam esses direitos e apre-
Existe uma preocupação partilhada inter- as crianças. A título de exemplo, enunciamos sentam a questão dos “direitos da criança
nacionalmente que reflete a importância o projeto internacional Ethical Research In- como uma especificação da solução dada ao
de assegurar que a dignidade humana das volving Children (ERIC), que foi criado para problema dos direitos do homem”, deixando
crianças, os seus direitos e bem-estar sejam ajudar os investigadores e outros atores so- claro que “os direitos da criança são conside-
garantidos e respeitados em todas as inves- ciais que, profissional ou familiarmente, se rados como um ius singulare com relação a
tigações, independentemente do contexto. relacionam com crianças a compreenderem um ius commune” (Bobbio, 2004, p. 21).
Importa, por isso, que os princípios éticos da o que significa planear e conduzir investiga- Apesar de a Convenção sobre os Direitos da
investigação com crianças e a garantia dos ções éticas que envolvem crianças e jovens Criança (CDC) assumir um conjunto de obri-
seus direitos sejam assumidos não apenas em diferentes contextos geográficos, sociais, gações para os Estados (e seus atores) e não
como exigência da investigação, mas sobre- culturais e metodológicos. O ERIC assume para os indivíduos, não impondo obrigações
tudo como um imperativo moral. que a investigação que envolve crianças é diretas aos investigadores, ela tem-se cons-
Desta assunção emerge a necessidade de toda a investigação em que participam, di- tituído como uma estrutura útil e importan-
construir espaços de diálogo e de comunica- reta ou indiretamente, crianças por meio de te que pode informar a investigação ética
ção entre diversos atores sociais (investiga- um representante, independentemente da com crianças (Lundy & McEvoy, 2012). Além
dores, educadores de infância, professores, sua função e da metodologia ou técnicas das referências explícitas à CDC em artigos
educadores sociais, pais, etc.) com o pro- usadas para recolher, analisar e interpretar conceptuais (Christensen & James, 2005), é
pósito de gerar pensamento crítico, diálogo dados ou informações (Graham et al., 2013, comum encontrar estas mesmas referências
reflexivo e tomadas de decisão éticas que p. 2). Desta forma, procura-se garantir que em artigos que se centram nos métodos de
possam contribuir para uma reflexão pro- a dignidade humana das crianças, os seus investigação e que assumem aquilo que tem
funda sobre os fundamentos teóricos, me- direitos e bem-estar sejam respeitados em sido designado, como uma abordagem ba-
todológicos e os valores subjacentes à inves- todas as investigações, independentemente seada nos direitos da criança (Beazley et al.,
tigação que envolve as crianças. A ênfase é do contexto. 2009; Bessell, 2015; Graham et al., 2013).
colocada na necessidade de uma abordagem Nos pontos que se seguem argumenta-se A ideia de considerar as crianças como co-
reflexiva em torno da ética em investigação sobre a importância de os investigadores, produtoras de investigação torna explícito
que promova relacionamentos dinâmicos e bem como os profissionais de educação de o respeito pelas crianças enquanto investi-
de respeito entre os investigadores, crianças, infância, quer na sua função profissional, gadas e pelas suas próprias ideias e capa-
famílias, comunidades, organizações e ou- quer na sua função de investigação ou de cidade. Como afirma Alderson (2005), “as
tras partes interessadas. participantes em investigações, estarem de- convenções pelos direitos, com apoio quase
Assumimos que a investigação com crianças vidamente informados das questões éticas universal e estatuto quase legal, fornecem
é importante, uma vez que, entre muitos ou- que envolvem a investigação com crianças. uma justificação formal para que os padrões
tros objetivos, ela tem o potencial de infor- Todos estes atores sociais têm o dever de éticos sejam observados na investigação” (p.
mar as políticas e as práticas, contribuindo salvaguardar os direitos das crianças em to- 261).
para a garantia dos seus direitos. Contudo, das as suas dimensões. Diversos autores tornam explícito que a in-
pode ser questionável a forma como os di- vestigação com crianças é fundamental para
reitos da criança são garantidos na investiga- 1. Os direitos da criança e a ética na compreender as suas vidas (Alderson, 2005;
ção produzida. Os estudos de Mishna, Antle investigação Graham et al., 2013; Kellett, 2005; Woo-
e Regehr (2004) e de Bell (2008) revelam que, Os direitos da criança, espelhados em vários dhead & Faulkner, 2005). A participação das
apesar de existirem diferentes guiões éticos instrumentos jurídicos nacionais e interna- crianças na investigação significa que podem
para a investigação em educação, essas refe- cionais, refletem o caráter especial das crian- falar de direito próprio (Alderson, 2005),
rências carecem, muitas vezes, de definição e ças, tendo em conta a sua condição única o que garante que as suas experiências e
perspetivas informam de perto os estudos, investigação com crianças tivesse evoluído preende a liberdade de procurar, receber e
fornecendo conhecimentos precisos e cul- de um cenário amplamente desregulamen- expandir informações e ideias de toda a es-
turalmente específicos, o que, consequen- tado para um espaço caracterizado pelos pécie, sem consideração de fronteiras, sob
temente, aumenta o valor e a validade dos desafios complexos, multidimensionais e forma oral, escrita, impressa ou artística ou
resultados. Como se indicou anteriormente, dinâmicos que os investigadores têm vivido. por qualquer outro meio à escolha da crian-
as informações sistemáticas recolhidas junto Alderson (2005), que valoriza a participação ça;
das crianças podem contribuir para o for- das crianças na investigação, afirma que “en- Artigo 36.º – a criança tem o direito de ser
talecimento de leis, políticas e práticas que volver todas as crianças mais diretamente na protegida contra todas as formas de explo-
promovam a sua dignidade, os seus direitos investigação pode, deste modo, salvá-las do ração prejudiciais a qualquer aspeto do seu
e bem-estar humanos. O envolvimento das silêncio e exclusão e de serem representa- bem-estar.
crianças na investigação é vital para assegu- das, erradamente, como objetos passivos, Beazley et al. (2009) referem que a conjuga-
rar o seu direito de participar em questões enquanto o respeito pelo seu consentimento ção destes direitos se traduz nas seguintes
que as afetam, conforme é reconhecido na informado ajuda a protegê-las das investi- considerações: as crianças serem participan-
CDC. Além disso, o impacto potencial que os gações camufladas, invasivas, exploradas ou tes na investigação, mas ao mesmo tempo
resultados podem ter nas suas vidas e a im- abusivas” (p. 263). estarem protegidas dos danos que daí pos-
portância de defender os seus direitos, tanto Contudo, conforme sugerem Beazley et al. sam resultar; a responsabilidade dos inves-
de proteção como de participação, reforça (2009), o respeito pelos direitos humanos tigadores usarem métodos que facilitem a
a necessidade de ter diretrizes e princípios das crianças cria o “direito de ser devida- expressão das suas opiniões, pontos de vis-
éticos internacionalmente acordados que mente investigada”, o que significa que os ta e experiências (métodos de investigação
podem ser aplicados em vários contextos. princípios éticos dos investigadores devem, amigáveis para as crianças (research-friendly
A ética na investigação que envolve crianças em alguns casos, salvaguardar os direitos de methods).
está assim intimamente relacionada com a proteção das crianças sobre os seus direitos Apesar das tensões que esta dupla dimen-
garantia e consideração dos seus direitos. A de participação (Bessell, 2015). O direito de sionalidade pode representar (e tem repre-
Convenção sobre os Direitos da Criança, ao ser devidamente investigada não está con- sentado), entendemos que as considerações
atribuir visibilidade e legitimidade à agência sagrado na CDC, mas deriva da interpretação éticas que os investigadores enfrentam não
e participação das crianças (artigos 12.º e de uma combinação de disposições de qua- têm de ser colocadas em termos de oposi-
13.º), cria um conjunto de implicações consi- tro artigos: ção. Conforme afirmam Graham et al. (2013),
deráveis para os investigadores, relacionadas Artigo 3 (ponto 3) – os Estados partes ga- a proteção e a participação das crianças de-
com o dever ético de garantir que as crianças rantem que o funcionamento de instituições, vem ser perspetivadas de tal forma que a sua
tenham o direito de expressar as suas opi- serviços e estabelecimentos que têm crian- competência, dependência e vulnerabilidade
niões sobre o próprio processo de investiga- ças a seu cargo e asseguram a sua prote- não devem determinar, por si só, a sua inclu-
ção. Ao mesmo tempo que se reconhece a ção seja conforme às normas fixadas pelas são ou exclusão da investigação, mas antes
agência da criança e o seu direito a participar autoridades competentes, nomeadamente informar a maneira como ocorre a sua par-
em atividades como a investigação, também nos domínios da segurança e saúde, relati- ticipação.
devem ser acautelados os seus direitos de vamente ao número e qualificação do seu Esta assunção implica que a investigação
proteção e provisão, assegurando que, en- pessoal, bem como quanto à existência de com crianças se apoie numa dimensão refle-
quanto participante, a criança tem também o uma adequada fiscalização; xiva. A ênfase deve ser colocada nas relações
direito a ser protegida. A importância de am- Artigo 12.º (ponto 1) – a criança com capa- múltiplas que ocorrem ao longo do processo,
bas as dimensões na investigação tem gera- cidade de discernimento tem o direito de que é onde as questões éticas emergem, in-
do uma rica e diversa construção ideológica, exprimir livremente a sua opinião sobre as cluindo as que se relacionam com proteção
metodológica e de práticas investigacionais, questões que lhe digam diretamente respei- e participação. Consideramos, por isso, que
com abordagens éticas moldadas pelo pró- to, sendo devidamente tomadas em consi- além das questões da investigação, todos os
prio entendimento dos investigadores e das deração as suas opiniões, de acordo com a procedimentos que lhe são inerentes, como
organizações, em conjunto com considera- sua idade e maturidade; a produção de provas, a análise e discussão
ções teóricas, sociopolíticas e culturais mais Artigo 13.º (ponto 1) – a criança tem direito dos dados ou a sua disseminação devem ser
amplas (Graham et al., 2013). Isto fez que a à liberdade de expressão. Este direito com- considerados pelos investigadores. O dever
Artigos O que significa para a investigação O que significa na prática dos educadores
Artigo 3, ponto 3:
Os educadores de infância devem revelar
Os Estados partes garantem que o funciona- competência profissional, ser conhecedores
mento de instituições, serviços e estabeleci- A pesquisa deve estar de acordo com os mais dos direitos das crianças e dos princípios
mentos que têm crianças a seu cargo e asse- elevados padrões científicos possíveis. éticos relativos à investigação que envolve as
guram a sua proteção seja conforme às nor- crianças.
mas fixadas pelas autoridades competentes,
Os investigadores devem ser cuidadosamente Devem solicitar todas as informações sobre
nomeadamente nos domínios da segurança e
recrutados e supervisionados. os procedimentos, prestando atenção à forma
saúde, relativamente ao número e qualificação
como as crianças são envolvidas na investi-
do seu pessoal, bem como quanto à existência
gação.
de uma adequada monitorização.
Artigo 12.º, ponto 1
Os educadores de infância devem criar as
A criança com capacidade de discernimento condições necessárias para que as crianças
tem o direito de exprimir livremente a sua opi- As perspetivas e opiniões das crianças devem expressem livremente a sua opinião no decur-
nião sobre as questões que lhe digam direta- ser parte integrante da investigação. so das investigações, garantindo que as suas
mente respeito, sendo devidamente tomadas perceções, saberes e vivências são tidas em
em consideração as suas opiniões, de acordo consideração.
com a sua idade e maturidade.
Artigo 13.º, ponto 1
A criança tem direito à liberdade de expres-
são. Este direito compreende a liberdade de É necessário encontrar e usar métodos que Os educadores de infância devem garantir que
procurar, receber e expandir informações e ajudem as crianças a expressar as suas pers- os métodos e processos de recolha de dados
ideias de toda a espécie, sem consideração de petivas e opiniões livremente, no decurso da são os mais adequados para que a criança se
fronteiras, sob forma oral, escrita, impressa ou investigação. expresse livremente.
artística ou por qualquer outro meio à escolha
da criança.
Os educadores devem assegurar que as crian-
ças querem participar voluntariamente e que
Artigo 36.º
não são coagidas para tal.
A criança tem o direito de ser protegida contra As crianças não devem ser prejudicadas ou ex-
Devem acompanhar a criança no decurso do
todas as formas de exploração prejudiciais a ploradas através da participação em pesquisas.
processo, garantindo que estão protegidos to-
qualquer aspeto do seu bem-estar.
dos os aspetos do seu bem-estar físico, emo-
cional e social.
guns dos problemas da investigação relacio- sobre o estatuto das crianças informa os outros investigadores que já tivessem pas-
na-se com a lente com a qual o investigador métodos e os processos utilizados na re- sado por processos semelhantes, no sentido
foca a sua investigação. Na realidade a re- colha e análise dos dados, enviesando, em de recolher informações úteis sobre a melhor
lação da investigação com o seu objeto de alguns casos, o estatuto de participante da forma de garantir que os direitos da criança
estudo está intimamente articulada com a criança. Importaria que os investigadores se observavam em todas as fases da inves-
forma como a infância é teorizada. Em mui- considerassem como 1.ª fase da investigação tigação. Outro importante contributo seria
tos casos, a perspetiva dos investigadores a reflexão com diferentes atores, entre eles a criação de um processo negocial onde as
uma dimensão educativa mais alargada, fo- formadora de educadores de infância, nos (2009). The right to be properly researched: Re-
search with children in a messy, real world. Chil-
calizada na ação interativa, contextualizada, inquieta a produção investigativa realizada dren’s Geographies, 7(4), 365–378. https://doi.
renovada em cada dia e sustentada em prin- no âmbito dos estágios curriculares. Aos org/10.1080/14733280903234428
cípios éticos e humanizantes. Compreende- futuros educadores de infância exigimos a Bell, N. (2008). Ethics in child research: Rights, rea-
son and responsibilities. Children’s Geographies, 6(1),
-se assim que a investigação que se desen- realização de uma investigação no decurso 7–20. https://doi.org/10.1080/14733280701791827
volve com crianças tem de ser entendida das suas intervenções (estágios em diferen- Berman, G., Hart, J., O’Mathúna, D., Mattellone,
numa dimensão praxiológica, em prol do tes contextos). São, na maioria dos casos, E., Potts, A., O’Kane, C., Shusterman, J., & Tanner,
T. (2016). What We Know about Ethical Research
bem dos profissionais, das crianças, das suas jovens que se encontram a construir refe- Involving Children in Humanitarian Settings: An
famílias e da comunidade. As ações dos in- rentes conceptuais e metodológicos que Overview of Principles, the Literature and Case
vestigadores e dos educadores de infância lhes permitam exercer a sua profissão e aos Studies (Innocenti Working Papers N. 2016/18; In-
nocenti Working Papers, Vol. 2016/18). https://doi.
devem dialogar num movimento que favo- quais é solicitado, ao mesmo tempo, que org/10.18356/ce5b9789-en
reça a interpretação da experiência que, por se iniciem na prática da investigação. Uma Bessell, S. (2015). Rights-Based Research with
sua vez, conduza a uma melhor compreen- prática que se apoia mais nas dinâmicas do Children: Principles and Practice. Em R. Evans,
L. Holt, & T. Skelton (Eds.), Methodological Ap-
são das narrativas das crianças e das suas que resulta ou não, do que na intenciona- proaches (pp. 1–18). Springer Singapore. https://doi.
visões sobre o mundo. lidade da ação para o desenvolvimento e org/10.1007/978-981-4585-89-7_17-1
A utilização de diferentes métodos e técnicas aprendizagem das crianças. São ao mesmo Bobbio, N. (2004). A era dos direitos. Elsevier Editora.
Christensen, P., & James, A. (2005). Investigação com
que explicitem a visão das crianças inscreve- tempo investigadores e investigados, apren- crianças: Perspectivas e práticas. Routledge.
-se numa linha ética, porque permite que dizes da profissão que, direta ou indireta- Christiensen, P., & James, A. (2005). Investigação com
todas as crianças documentem e registem as mente, envolvem as crianças na recolha de crianças. Escola Superior de Educação Paula Frassi-
neti.
suas ideias e sentimentos. Os educadores de dados, sem um verdadeiro conhecimento Ennew, J., & Plateau, D. P. (2004). How to research
infância, com as suas práticas respeitadoras, dos procedimentos éticos envolvidos. É the physical and emotional punishment of children.
devem estar atentos aos métodos usados neste particular que assumem relevância International Save the Children Alliance, Southeast,
East Asia and Pacific Region.
pelos investigadores, questioná-los e sugerir os supervisores das escolas de formação Graham, A., Powell, M. A., Anderson, D., Fitzgerald,
abordagens que possam valorizar a investi- de educadores de infância, no sentido de R., Taylor, N. J., UNICEF, & Office of Research. (2013).
gação. O seu contributo é absolutamente ajudar os futuros educadores de infância a Ethical research involving children.
Kellett, M. (2005). How to Develop Children as Re-
fundamental, quando entendem o benefício que encontrem o sentido ético da sua ação e searchers: A Step-by-Step Guide to Teaching the Re-
da investigação. da sua investigação, valorizando as crianças search Process. SAGE Publications Ltd. https://doi.
Além de garantir os direitos de participação enquanto participantes e garantindo que org/10.4135/9781446212288
Lundy, L., & McEvoy, L. (2012). Children’s rights
os educadores de infância devem também todos os seus direitos são salvaguardados. and research processes: Assisting children to (in)
acautelar os direitos de proteção da crian- Entendemos, assim, que a investigação ba- formed views. Childhood, 19(1), 129–144. https://doi.
ça e, nesse sentido, devem estar avisados seada nos direitos da criança envolve o reco- org/10.1177/0907568211409078
Mishna, F., Antle, B. J., & Regehr, C. (2004). Tapping
quanto ao impacto e contributo que os par- nhecimento e a consideração cuidadosa da the Perspectives of Children: Emerging Ethical Issues
ticipantes, crianças e adultos, poderão ter ênfase da sociedade nos direitos coletivos in Qualitative Research. Qualitative Social Work:
nesse particular. Também aqui as relações e individuais, nas negociações do processo Research and Practice, 3(4), 449–468. https://doi.
org/10.1177/1473325004048025
de poder não podem ser ignoradas. Inves- de investigação e na assunção de que todos Morrow, V. (2008). Ethical dilemmas in research with
tigadores, educadores, crianças e famílias podem contribuir para que estes sejam ga- children and young people about their social environ-
devem estabelecer compromissos, negociar rantidos. ments. Children’s Geographies, 6(1), 49–61. https://
doi.org/10.1080/14733280701791918
processos e garantir os princípios de respei- Morrow, V. (2012). The Ethics of Social Research with
to, beneficência, não-maleficência e justiça, Children and Families in Young Lives: Practical Experi-
que possam assegurar a dignidade de todos ences. Em J. Boyden & M. Bourdillon (Eds.), Child-
hood Poverty (pp. 24–42). Palgrave Macmillan UK.
os participantes, independentemente do seu REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS https://doi.org/10.1057/9780230362796_3
papel na investigação. Alderson, P. (2005). Crianças como investigadoras. Woodhead, M., & Faulkner, D. (2005). Sujeitos, ob-
Em Investigação com crianças: Perspectivas e práti- jectos ou participantes? Dilemas da investigação
Os estudos sobre e com as crianças neces- cas (pp. 261–280). Routledge. psicológica com crianças. Em Pia Christiensen & A.
sitam de uma construção conceptual, meto- Assembleia Geral das Nações Unidas, S. (2019). Con- James (Eds.), Investigação com crianças: Perspetivas
dológica e ética que levam décadas a fazer venção sobre os Direitos da Criança e Protocolos Fa- e práticas (pp. 1–28). Escola Superior de Educação
cultativos. Comité Português para a UNICEF.
sentido. É nesta perspetiva que, enquanto Beazley, H., Bessell, S., Ennew, J., & Waterson, R.
Paula Frassineti.
A educação de infância é a primeira etapa Espaços próprios, zonas de brincar para relacionadas com a hospitalização.
na educação, que fundamenta e desenvol- as crianças e salas de estar para os ado- Atualmente, na hospitalização infantil, com
ve competências na criança. Dependendo lescentes. as exigências de humanização dos cuidados
da idade da criança, o educador de infância Educador de infância/animador perma- hospitalares, é cada vez mais frequente a
deve pensar em estimular as diferentes áreas nente, envolvido também na informa- inserção do educador de infância na equipa
do saber cognitivo, linguístico, motor, senso- ção às crianças e acompanhantes no multidisciplinar. Deste modo, a hospitaliza-
rial, entre outros. âmbito do trabalho de equipa multidis- ção pediátrica deve obedecer a um conjunto
Deve proporcionar momentos lúdicos sem- ciplinar. de normas que regulem a atenção especial
pre com uma perspetiva educativa e peda- A intervenção que se faz com uma criança que deve ser dada à criança. Cada criança ao
gógica, tendo consciência das limitações e hospitalizada pretende criar uma interação ser hospitalizada sente necessidade de obter
objeções das crianças, propiciando vivências participativa nas atividades lúdico-pedagó- respostas para as suas questões. A hospita-
adequadas a cada uma delas. Assim, o papel gicas e no jogo simbólico. Aparentemente, lização significa uma mudança drástica para
do educador de infância é inquestionável no a ação a exercer é complexa. No entanto, ao a criança, bem como para família, sendo a
que respeita ao desenvolvimento e apren- relativizar as situações elas tornam-se me- ação do educador de infância importante
dizagem de uma criança. O profissional de nos agressivas, acalmando medos e colocan- para minimizar a dor afetiva relativa à mu-
educação de infância não está ligado so- do em prática as planificações. O acolhimen- dança, ajudando na adaptação, integração e
mente às creches e jardins de infância, mas to num serviço de pediatria pretende sempre socialização no Serviço de Pediatria.
a onde haja equipas multidisciplinares e de facilitar a integração das crianças num am- Assim, é importante conhecer as funções e
intervenção, nomeadamente em âmbito biente estranho, criando laços com os pro- objetivos do educador de infância no Serviço
hospitalar, integrando equipas de saúde nas fissionais, permitindo esclarecer de uma for- de Pediatria e compreender a sua importân-
unidades pediátricas. ma simples todas as dúvidas e apreensões cia nestes ambientes.
Em 1997, o Ministério de Educação publicou
as Orientações Curriculares para a Educação
Pré-Escolar, fazendo que o papel do educa-
dor fosse clarificado e valorizado, dando di-
retrizes para o trabalho de campo. No entan-
to, ainda não há muito material pedagógico
que nos elucide a nível hospitalar, conside-
rando a quase inexistente investigação nesta
área tão específica.
É importante referir que, apesar de tudo,
existe reconhecimento da importância da
presença do educador de infância no hos-
pital, tendo em conta que a brincadeira, as
atividades lúdico-pedagógicas são “psicote-
rapias” e mecanismos colaborantes no tra-
tamento, colmatando simultaneamente as
necessidades educativas das crianças hospi-
talizadas. Assim, a intervenção destes profis-
sionais é importante para facultar vivências
lúdicas e emocionais, de modo a melhorar a
qualidade da hospitalização infantil. Segundo
a Comissão Nacional de Saúde da criança e
adolescente (2009) devem existir condições
de internamento adequados a este grupo
específico, nomeadamente:
A hospitalização da criança que ajuda a tornar penosa a situação de manência no hospital, as crianças têm neces-
Quando um adulto é hospitalizado, esta- internamento. sidades educativas e direitos específicos da
mos perante uma situação quase sempre As crianças hospitalizadas encontram-se hospitalização que abrangem a escolarização
marcante para esse doente, também no que sempre em situação vulnerável porque e o brincar.
diz respeito às condições sociais e afetivas. o ambiente traumático fundamenta isso A educação é um direito de todos e um dever
Quando a hospitalização se refere a uma mesmo. A equipa profissional tenta des- de cada um de nós. Assim, as funções do
criança, a carga é ainda mais penosa, uma mistificar os sentimentos negativos em prol educador de infância no hospital, nomeada-
vez que se alteram todas as suas rotinas da convivência e exploração ambiental. Os mente no Serviço de Pediatria, passam por
diárias, que serão substituídas durante o profissionais de saúde e integrados nas implementar e proporcionar experiências
internamento. Segundo Redondeiro (2003), unidades pediátricas têm consciência de educativas e pedagógicas para as crianças
as rotinas das crianças hospitalizadas são que as crianças têm a capacidade de en- e adolescentes hospitalizados. A brincadei-
distintas da realidade quotidiana. No en- tender o que se passa com elas, integrando ra e as atividades lúdico-pedagógicas são
tanto, os tempos devem ser ocupados para a sua condição de doentes, relativizando a um meio para atender às necessidades das
minimizar os efeitos da hospitalização e hospitalização e não os cuidados. crianças.
estimular o desenvolvimento da criança. O O educador de infância deve proporcionar
internamento leva a quebras nas atividades As funções do educador de infância um ambiente acolhedor, propício ao mundo
da vida diária, como por exemplo ir à escola, no hospital lúdico, auxiliando a brincadeira e a imagina-
jogar, estudar e relacionar-se com os pares. Todo o tipo de hospitalização requer aten- ção, devendo ainda utilizar a intervenção do
A criança depara-se com atuações e regras ção, pois é uma fase de especial sensibilida- lúdico e da pedagogia como meio catalisador
distintas daquelas a que está habituada, o de. Independentemente do período de per- nas situações de internamento.
Além das funções já referidas anteriormente
e que são da competência do educador de
infância no hospital, são também de refe-
rir os apoios psicológicos dados, ainda que
de forma indireta, às crianças e à família.
Os seus objetivos são conseguir atender às
dificuldades das crianças hospitalizadas, mi-
nimizando medos e angústias, facilitando o
seu desenvolvimento pessoal e educacional.
As atividades em contexto hospitalar são
realizadas nas salas destinadas a esse efeito,
podendo também ser praticadas nas enfer-
marias, dependendo da patologia da criança
e da facilidade ou não que a mesma tem em
se deslocar. De referir ainda que uma das
funções do educador de infância no hospi-
tal passa por conhecer, observar, colaborar e
trabalhar diretamente com a família da crian-
ça hospitalizada. É através da família que o
educador conhece a criança, facilitando as-
sim a interação e planificação de atividades,
uma vez conhecidas as suas limitações, obje-
ções e gostos pessoais.
No hospital o profissional de educação de
infância tem ainda a função de auxiliar a
criança na sua integração dentro das unida-
Há coisas às quais não conseguimos atribuir mos no nosso voluntariado é o 6º: “Direito Depois de um período piloto que ocorreu
um preço devido ao valor que têm. Uma ao amor e à compreensão por parte dos pais entre outubro de 2016 e março de 2019,
boa noite de sono é uma delas. Imagine ser e da sociedade.” Porque contar uma história com intervenção no Serviço de Internamen-
criança e a noite ser passada num hospital. é um ato de amor. to Pediátrico do Piso 6 do Hospital de Santa
Não é uma ideia simpática, mas é a realidade E contar histórias de embalar a crianças que Maria, a Associação cresceu e aumentou a
de muitas crianças. Ao pensar nelas – e nos estão em hospitais tem sido o trabalho vo- equipa e o espectro de ação, atuando agora
seus cuidadores que também acabam por luntário de um conjunto de pessoas que dão em três pisos deste mesmo hospital. A área
estar “internados” – decidimos trazer para a vida à Associação Nuvem Vitória, que cofun- de intervenção também tem vindo a aumen-
Pediatria a magia dos contos de embalar à dei em 2016. tar: estamos, atualmente, no Hospital de São
hora de deitar. Quisemos criar um projeto inovador, que João no Porto, no Hospital de Vila Franca de
Quando, em 2011, presidi ao Ano Europeu do proporcionasse uma noite de sono recupe- Xira e no Centro de Medicina de Reabilita-
Voluntariado, consegui ter um retrato bas- radora para que as crianças se sintam o mais ção de Alcoitão. No ano passado, chegámos
tante fiel do que é a realidade do volunta- confortáveis possível num espaço que não a Braga e a Leiria – esta última, no âmbito
riado no nosso país. Percebi sobretudo que é o seu ambiente familiar. Por outro lado, do Portugal 2020 (Portugal Inovação So-
são muitas as pessoas que, em Portugal, temos procurado também estimular o envol- cial) – e ainda ao Hospital Garcia de Orta,
tomaram a decisão de dedicar parte do seu vimento dos pais, familiares e cuidadores na em Almada, e ao Hospital de Cascais. Para
tempo aos outros, sem esperar nada em tro- área da leitura e da narração oral em diferen- a estatística, estão as mais de 54 400 his-
ca, a não ser um sorriso. Comecei a designar tes contextos, procurando com isto elevar o tórias contadas em mais de 22 mil horas de
esta “recompensa” como o nosso “salário nível de literacia das populações. voluntariado, impactando aproximadamente
emocional”: aquele que não se deposita em Desde sempre, este projeto teve caracterís- 33 000 internamentos.
nenhum outro banco que não o dos afetos, ticas únicas, enquadrando, pela primeira vez Para se poder contar histórias em ambien-
da boa vontade e do amor. em Portugal, o conceito de voluntariado em te hospitalar temos de conhecer e cumprir
E é por isso que, de todos os direitos con- ambiente hospitalar pediátrico e, simulta- escrupulosamente uma série de regras e ter
sagrados na Declaração sobre os Direitos da neamente, em período noturno (das 20 às uma conduta que deve ser exemplar: um
Criança, sinto que aquele que mais trabalha- 22 horas). ponto fundamental e que toca nos direitos
Por que será que determinadas caracterís- Quim Panzé, o chimpanzé, está de péssimo
ticas de uma pessoa por vezes nos agra- humor — sem razão aparente. Os amigos
dam mas outras vezes nos incomodam? dele não conseguem compreender. Como
O Rui e a Rita são muito diferentes um do pode ele estar de mau humor num dia tão
outro. Aceitar as diferenças nem sempre é bonito? Todos o incentivam a levantar a
fácil... Mas quem disse que seria? cabeça, a sorrir, a fazer coisas que os fa-
Este livro destina-se não só a crianças mas No ano em que assinala 50 anos de vida zem felizes. Mas o Quim não aguenta ou-
também a adultos, e convida-nos a com- literária, Luísa Ducla Soares abre-nos a por- vir tantos conselhos e acaba por perder o
preender o que nos diferencia, mostrando ta da sua intimidade ao recordar neste livro controlo. Será que só precisa que o deixem
o efeito mágico dos opostos. momentos da sua vida e da sua carreira que em paz quando fica rabugento? O hilariante
irão fazer as delícias de todos os seus leito- bestseller do New York Times sobre como
res — crianças e não só! lidar com sentimentos inexplicáveis — e o
perigo de os reprimir.
Através de histórias, ilustrações e fotogra-
fias, ficamos a conhecer Luísa: a criança, a
jovem, a mãe, a avó e a escritora. Não são,
naturalmente, esquecidos os mais novos,
inspiradores e destinatários de grande par-
te da sua obra.