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Publicação quadrimestral n.

º 120 Maio/Agosto 2020


Edição da APEI Associação de Profissionais de Educação de Infância
Preço 10¤ (iva incluído) ISSN 2182-8369

Direitos
da Criança
30 ANOS
Publicação quadrimestral Equipa editorial: Ana Maria Azevedo, Ana Isabel Santos,
n.º 120 Cristina Mesquita, Joana Freitas-Luís, Liliana Marques, Luís Ribeiro,
Tiragem: 4200 exemplares Maria do Carmo Góis, Maria do Céu Velez, Maria de Fátima Godinho,
Publicação Quadrimestral n.º 120 Maio l Agosto 2020
Edição, Propriedade e Redação: Associação Maria Helena Horta, Susana Alberto
Colaboradores:Rosário Leote
Edição da APEI Associação de Profissionais de Educação de Infância

de Profissionais de Educação de Infância


Preço 8.50¤ (iva incluído) ISSN 2182-8369

Bairro da Liberdade, Lote 9, Loja 14, Piso 0. Revisão: António Simões do Paço Design gráfico: Raquel Beato
1070-023 LISBOA Impressão: Rainho & Neves, Lda - Rua do Souto, 8 - 4520-612 São
Tel. 21 382 76 19/20 Fax. 21 382 76 21 João de Ver Preço por número:8,5¤
E-mail: apei@apei.pt Website:www.apei.pt Assinaturas: 1 ano: 25¤ (iva incluído), estrangeiro (1 ano) 35¤
NIPC: 501 226 737 N.º de registo: ERC: 112028 Depósito legal: 12929/86
Diretor: Luís Ribeiro (Presidente da APEI) ISSN: 2182-8369
Os artigos assinados não exprimem necessariamente o ponto de vista da Direção.



1 Editorial . Luís Ribeiro 46 Práticas . Eva Leal
Projeto Construir a Cidade – Exercício da Cidadania

2 Artigo . António Nóvoa


Convenção sobre os Direitos da Criança. 52 Práticas . Nuno Gonçalves
Um novo artigo 28/29 Participação, um direito essencial

4 Artigo . Dulce Rocha 58 Práticas . Helena Martinho


Os Direitos da Criança, a 30 anos da Convenção Aqui mora uma pessoa

6 Artigo . Américo Peças 60 Práticas. Ofélia Libório


As crianças, nossos semelhantes - uma breve nota Quero voltar ao jardim de infância com a memória dos dinossauros
reflexiva sobre os Direitos da Criança

66 Artigo . Isabel Lopes da Silva, Liliana Marques, Lourdes Mata, Manuela Rosa
8 Artigo . Catarina Tomás e Manuela Ferreira Os direitos da criança – uma leitura através das Orientações
Educação de infância em Portugal: um retrato singular, Curriculares para a Educação Pré-Escolar
30 anos após a Convenção sobre os Direitos da Criança

77 Artigo . Cristina Mesquita


18 Artigo . Rosa Madeira Investigação com crianças: a exigência de uma ética fundada
Direitos das “outras” crianças? Quando a (in)diferença nos direitos
agrava a desigualdade e arrisca a exclusão na infância

83 Artigo . Vânia Beliz


28 Artigo . Ana Teresa Brito Educar para a sexualidade e direitos das crianças
Infância: da pobreza e exclusão social ao bem-estar e
inclusão. (Re)pensar o nosso papel na transformação
85 Artigo . Inês Barroso
Funções e objetivos do educador de infância na hospitalização
32 Artigo . Sara Barros Araújo da criança
Direitos em creche: uma leitura a partir de Malaguzzi

37 Artigo . Carlos Neto 88 Divulgação . Fernanda Freitas


Vitória, vitória, todos temos direito a uma história
Brincar, o direito (des)conhecido

42 Artigo . Nadine Correia, Cecília Aguiar e Consórcio PARTICIPA 90 Nas bancas: Infância
PARTICIPA – Instrumentos de desenvolvimento


profissional para a promoção do direito de
participação das crianças em contexto de jardim
92 Nas bancas: Educação
de infância

Estatuto Editorial Os Cadernos de Educação de Infância, fundados em 1987, são uma revista quadrimestral, independente e livre, especializada no campo da educação de infância, que pretende contribuir,
através da divulgação de artigos concetuais e de práticas educativas de qualidade, para a discussão da pedagogia e da educação e para o aprofundamento da compreensão da infância. As suas opções
editoriais são orientadas por critérios de qualidade, rigor e criatividade editorial, estabelecidas sem qualquer dependência de ordem ideológica, corporativa, política, social ou económica, valorizando a
pluralidade de olhares que sejam promotores de reflexão e discussão sobre a educação de infância, contribuindo, desse modo, para o desenvolvimento pedagógico e científico dos seus profissionais e para
a definição de políticas educativas a nível nacional e europeu. No campo da informação e da opinião, orienta-se pelas disposições contidas na Declaração dos Direitos da Criança, na Declaração Universal
dos Direitos do Homem, na Constituição da República Portuguesa, no Estatuto do Jornalista, na Lei de Imprensa, no Código Deontológico dos Jornalistas e nos princípios da ética profissional produzida
e assumida no seio da comunidade da informação, de âmbito nacional ou internacional.

A APEI é apoiada pelo Ministério de Educação no âmbito do protocolo de afetação de recursos humanos
# 120
: EDITORIAL
Luís Ribeiro . Presidente da APEI

Em 2020, assinalam-se os 30 anos da ratifi- elementares direitos da criança, como a pro- Neste sentido, a acompanhar esta edição
cação por Portugal da Convenção sobre os tagonizada pelos Estados Unidos da América dos Cadernos de Educação de Infância, co-
Direitos da Criança, principal razão porque a de Donald Trump, separando as crianças de mo suplemento de 40 páginas, publica-se
APEI decidiu publicar este número temático imigrantes ilegais das respetivas famílias ou a Convenção sobre os Direitos da Criança,
duplo, que reúne um conjunto alargado de o crescimento de sentimentos xenófobos, com os protocolos facultativos adicionais,
contributos de pedagogos, investigadores, um pouco por toda a Europa, mostram que relativos à Venda de Crianças, Prostituição
professores do ensino superior, bem como muito do percurso e das conquistas efetua- Infantil e Pornografia Infantil, à Participação
de educadores de infância que, através das das são frágeis e facilmente revertidas (ou de Crianças em Conflitos Armados e à Insti-
suas investigações e de práticas pedagógi- esquecidas), pelo que os direitos da criança tuição de um Procedimento de Comunicação
cas reflexivas, são uma importante fonte de continuam a ser uma causa e um desígnio que, estamos certos, serão úteis para todos
inspiração para todos os profissionais que se que a todos deve mobilizar. os profissionais.
debruçam sobre as questões da educação e A recente pandemia e as alterações provo- Aproveitando a temática, o calendário es-
dos direitos da criança. cadas no relacionamento entre os seres hu- colar que habitualmente integra a edição de
Se é verdade que um longo caminho foi já manos, com todas as implicações, diretas e setembro dos CEI celebra igualmente os 30
percorrido na defesa da criança como sujeito indiretas, no desenvolvimento das crianças, anos da ratificação da Convenção, um mag-
de direitos, um processo com início na se- quer em contexto educativo institucional, nífico trabalho da ilustradora Yara Kono que,
gunda década do século XX mas que ganhou como se observou com a reabertura das certamente, todos apreciarão.
um particular ênfase nos últimos 30 anos, são creches no passado dia 18 de maio, quer em Desejando a todas/os um magnífico ano es-
muitos os acontecimentos recentes que evi- contexto familiar e social podem, igualmente, colar e umas ótimas leituras, subscrevo-me
denciam que muito ainda há por fazer. constituir uma ameaça aos direitos da crian- com amizade.
A guerra civil na Síria, as migrações de fa- ça, o que reforça a importância do papel do
mílias do Médio Oriente e África para a Eu- educador de infância e das instituições que
ropa em busca de melhores condições de prestam serviços à infância na definição de
vida, alojadas em campos de refugiados cuja políticas educativas e de práticas pedagógicas
existência se prolonga muito para além do de qualidade que salvaguardem o superior
admissível e as políticas de emigração res- interesse da criança, que a APEI procurará,
tritivas de alguns países mais desenvolvidos, como sempre procurou fazer, apoiar e estar
muitas delas ignorando por completo os mais na vanguarda da sua defesa.

1 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO
Convenção sobre os Direitos da Criança. Um novo artigo 28/29
António Nóvoa . Embaixador na UNESCO

Antes de me sentar para escrever, aponto Mas quando me sentei para organizar estas também têm acesso aos dados gerados por
num caderninho alguns lembretes para, de- anotações, recebi via WhatsApp um vídeo estas tecnologias.
pois, ver o que faço com eles. Quando recebi de uma escola chinesa na qual estão a ser É possível que esteja hipersensível em rela-
o convite dos Cadernos de Educação de In- realizadas experiências diversas com base em ção a estes temas devido à crise da covid-19.
fância fui anotando, sem ordem: tecnologias de inteligência artificial. Não consegui ver este vídeo sem um senti-
- antecedentes da Convenção (Declaração O vídeo é do final do ano passado, mas há mento de horror em relação ao futuro. Em
de Genebra de 1924, o texto de 1959); outros do mesmo género mais recentes. vez de redigir um texto a partir dos meus
- grandes princípios da Convenção, sobretu- Apresenta várias inovações tecnológicas que lembretes, decidi dedicar-me à redação de
do o “interesse superior da criança” e os estão a ser introduzidas nas escolas, nomea- um novo artigo a incluir numa versão revista
artigos 12 a 15 sobre o direito de opinião e damente: i) um dispositivo à volta da cabeça da Convenção, talvez entre os artigos 28 e
as liberdades de expressão, de pensamen- que mede as ondas cerebrais e acende uma 29, respeitantes à educação.
to e de associação das crianças; luz que assinala o nível de atenção de cada
- não esquecer Janusz Korczak, nem João criança; ii) câmaras de vigilância com reco- Novo artigo 28/29
dos Santos e O segredo do homem é a nhecimento facial e controlo das posturas 1. Os Estados-partes garantem o direito das
própria infância; corporais; iii) uniformes com chips que per- crianças ao acesso às redes digitais, com
- imagens: ver Sebastião Salgado e outros; mitem localizar instantaneamente as crian- a supervisão de um adulto quando tal se
atenção às situações-limite (violência so- ças; etc. justifique, tendo em conta a sua importân-
bre meninas e raparigas, refugiados, crian- Tudo isto é introduzido num ambiente lúdi- cia para a informação, o conhecimento e a
ças-soldados…); co, com robôs simpáticos a interagirem com educação.
- recordar que 250 milhões de crianças não as crianças, e é feito com o consentimento e 2. Os Estados-partes reconhecem o direito
vão à escola. apoio dos pais, preocupados sobretudo com das crianças a recusarem os dispositivos
Há ainda duas outras anotações, um nome a segurança e o progresso académico dos digitais que ponham em causa a sua priva-
e uma data, que não sou capaz de decifrar. seus filhos. Tal como os professores, os pais cidade e liberdade.

2 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


Este artigo necessita de uma redação mais
cuidadosa e apurada, mas julgo que a sua in-
tenção é clara. Recordo que, nos termos do
artigo 1.º da Convenção, “criança é todo o
ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos
termos da lei que lhe for aplicável, atingir a
maioridade mais cedo”.
No 1.º parágrafo quero afirmar um novo di-
reito, não previsto na Convenção de 1989,
sobre o direito de acesso ao digital. Trata-se,
hoje, de um direito idêntico ao acesso ao li-
vro para a minha geração. A fratura digital é
uma das causas principais das desigualdades
e tem de ser combatida. A pandemia tornou
ainda mais nítida esta situação.
Obviamente, dependendo da idade e da
maturidade das crianças, o uso das redes
digitais terá de ser feito com o apoio de um
adulto, pois os Estados ainda não consegui-
ram encontrar as soluções para bloquear si-
tes e conteúdos inadequados que, frequen-
temente, facilitam formas inaceitáveis de
exploração da infância.
No 2.º parágrafo quero proteger as crianças
contra o mundo que se anuncia por via da
inteligência artificial. Sei bem que a questão
não diz respeito apenas à infância. Os valo- Étude pour une déclaration des obligations mos também o dever dos nossos deveres.
res da segurança e da proteção, bem como envers l’être humain, de Simone Weil. Nele, Talvez o mundo possa tornar-se um pouco
uma vida mais cómoda e fácil, vão estar em a autora explica-nos que, para definirmos as melhor.”
confronto com a privacidade e a liberdade. obrigações precisamos de identificar as ne- A Convenção sobre os Direitos da Criança,
Nenhum de nós tem respostas prontas para cessidades dos seres humanos, pois “cada ratificada por Portugal em 1990, estabeleceu
os dilemas que se anunciam. Mas todos te- necessidade deve ser objeto de uma obriga- deveres para os Estados e para os cidadãos.
mos o dever de os antecipar e de sobre eles ção”. Temos a obrigação de assegurar o cumpri-
refletir. No fundo, é o que José Saramago nos dirá, mento efetivo de todos os direitos a todas
Poderia ter seguido os lembretes do meu 45 anos mais tarde, quando, ao receber o as crianças. Nesse dia, o mundo tornar-se-á
caderninho, mas senti que talvez fosse mais Prémio Nobel da Literatura, no dia 10 de De- melhor.
útil partilhar convosco esta proposta para zembro de 1998, recorda a Declaração Uni-
um novo artigo. Os direitos previstos no tex- versal dos Direitos Humanos para dizer:
to de 1989 estão ainda muito longe de se- “Pensamos que nenhuns direitos humanos
rem cumpridos. Devemos continuar o nosso poderão subsistir sem a simetria dos deveres
trabalho para que se tornem uma realidade. que lhes correspondem e que não é de es-
Mas, ao mesmo tempo, temos de olhar para perar que os governos façam nos próximos
os tempos que começam e que levantam 50 anos o que não fizeram nestes que co-
questões éticas decisivas para o presente memoramos. Tomemos então, nós, cidadãos
das crianças e para o futuro da humanidade. comuns, a palavra. Com a mesma veemência
Termino com um texto publicado há 77 anos, com que reivindicamos direitos, reivindique-

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: ARTIGO
Os Direitos da Criança, a 30 anos da Convenção
Dulce Rocha . Presidente da Direção do Instituto de Apoio à Criança

Sinto-me muito honrada por estar a represen- ses há crianças maltratadas e que o Conselho ço privilegiado de afetos, que agora sabemos
tar o Instituto de Apoio à Criança nesta re- da Europa estima que uma em cada cinco ter romantizado. Ainda recentemente a ONU
vista dedicada à Convenção sobre os Direitos crianças do nosso velho continente seja ví- alertou para uma realidade devastadora em
da Criança, por um conjunto de razões, todas tima de abusos sexuais, o que há uns anos que a violência doméstica é responsável por
elas importantes. A primeira deve-se à decisão não imaginávamos, porque nos recusávamos números elevados de lesões graves e até de
da APEI. Acho-a muito oportuna e justa, por- a acreditar que essas tragédias fossem tão mortes, em que as crianças sofrem às mãos
que todas as edições sobre estas matérias são frequentes dentro de famílias onde aparente- de quem devia protegê-las.
necessárias e neste ano de pandemia, com mente havia harmonia. Habituámo-nos a ver De forma que cada vez há uma maior exigên-
tantas incertezas, ainda mais precisamos de a família como o porto seguro, como o espa- cia para os profissionais que trabalham com
algo que tenha força de lei para nos unirmos
em torno de princípios comuns. A segunda
tem a ver com o facto de o Instituto da Crian-
ça ter sido criado durante esse grande mo-
vimento que surgiu com o Ano Internacional
da Criança, em 1979, em que uma perspectiva
nova ganhou consenso entre os Estados e
a criança passou a ser olhada de forma au-
tónoma, como titular de direitos. A ideia de
uma convenção inovadora conseguiu desde
o momento da sua preparação reunir muitos
peritos a nível internacional, e dez anos de-
pois foi visível que uma larga maioria de países
queriam fazer parte dos aderentes aos seus
princípios. A terceira refere-se à extraordinária
missão dos e das educadoras de infância no
desenvolvimento integral da criança, que é um
objectivo constitucionalmente garantido pelo
art.º 69.º da nossa lei fundamental e que, ca-
bendo ao Estado e à sociedade em geral, é
afinal traduzido no quotidiano destes profis-
sionais que assumem a função muito especial
de concretizar esta norma constitucional de
tão grande dimensão e significado.
Sabemos que ainda há crianças no mundo
que não têm direito a um ambiente seguro,
porque vivem em zonas de conflito armado,
ou em campos de refugiados sem condições,
outras que não têm direito a brincar ou a
aprender, porque têm de trabalhar desde
cedo, ou simplesmente porque não há escola
no local onde vivem; sabemos que há crianças
que morrem de fome e outras que morrem
por doenças evitáveis, ou por falta de uma
vacina cuja cura existe nos países mais ricos,
e outras que nem sequer têm água potável.
Mas também sabemos que em todos os paí-

4 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


crianças, sobretudo para aqueles que se de- mas nos Estados de Direito, em princípio há senhora a quem, perante as múltiplas adver-
dicam às crianças mais pequeninas, por vezes uma maior vigilância e os direitos serão mais sidades que teve na vida, perguntou como
até com dificuldade em verbalizar, e por isso respeitados, havendo entidades encarregadas conseguia ela manter aquele sorriso, ao que
mais indefesas. de os fazer cumprir e os tribunais tenderão a ela lhe respondeu: “Porque tive uma infância
As educadoras e os educadores de infância punir quem viola os direitos das crianças. feliz.” Achei esta história muito bonita e inspi-
são por vezes os primeiros a detectar situa- Por isso é importante conhecer esses direitos radora e creio que será isso certamente que a
ções de risco e a diagnosticar o perigo que e desejável que as próprias crianças os conhe- APEI promove: ajudar as crianças a terem uma
ainda mais ninguém vislumbrou. Merecem, çam desde cedo. E a APEI tem sido pioneira infância feliz.
por isso, a nossa enorme homenagem. nesta ação.
Creio que é das profissões mais belas, mas Há direitos fundamentais que integram aque- Neste contexto de pandemia, os educadores
também com maiores responsabilidades que le núcleo essencial que é reconhecido por de infância foram mais uma vez chamados a
temos. Porque se é certo que podemos pen- quase todos os Estados, como o direito à inovar, procurando minorar a incerteza, mo-
sar no incentivo ao direito de brincar, como vida e à sobrevivência, o direito à integridade tivando as crianças, incutindo-lhes confiança,
forma de ajudar a criança à criatividade e ao física ou até o direito à saúde e à proteção, sem contudo negar a adversidade desta nova
sonho, também temos de configurar a aten- mas quer o direito à participação, quer o direi- realidade tão dura, sobretudo para os mais
ção e a vigilância perante comportamentos to à liberdade de expressão e à recuperação vulneráveis.
mais reservados ou de afastamento dos pa- psicológica, por exemplo, são relativamente A Associação de Profissionais de Educação de
res, por exemplo. recentes na ordem jurídica internacional. En- Infância tem sabido estar sempre na vanguar-
Lembro-me sempre das experiências de su- tre estes dois momentos, tivemos o progres- da da defesa dos direitos da criança e é por
cesso com a música ou com outras formas de sivo reconhecimento dos chamados direitos isso que tem merecido o reconhecimento de
arte que tiveram um efeito reparador em casos sociais, económicos e culturais, como o di- todos os profissionais ligados à infância, por-
de crianças vítimas de guerra e que têm sido reito a uma habitação condigna, o direito à que o desenvolvimento saudável da criança
transportados para ambientes de recuperação educação e à cultura, o direito à imagem, o em ambiente acolhedor e tranquilo é, como
psicológica em casos de abuso sexual. E sei direito ao bem-estar (onde se incluiu o direito dizia Mandela, o projeto maior e mais belo da
que muitos destes programas tiveram origem à integridade psicológica) e o direito ao lazer humanidade.
no pensamento e na ação dos profissionais de e ao brincar. Todos contamos convosco para juntos con-
infância e nas suas associações. Todos estes direitos se completam e são in- tribuirmos para um mundo mais justo e mais
A Convenção nasceu por proposta da Polónia, terdependentes, de tal forma que quase sem- digno para todas as crianças.
que tinha ficado devastada com a Segunda pre o desrespeito de um deles pode colocar
Guerra Mundial, em que milhares de crianças em perigo a concretização de todos os outros.
ficaram órfãs ou foram vítimas das mais de- Desde a valorização da saúde mental e da
sumanas atrocidades. O direito convencional educação física, desde a utilização da arte
tem uma força maior do que aquele que de- como estratégia de aprendizagem, os profis-
riva das declarações, porquanto estas, ainda sionais da educação de infância têm sabido
que universais, constituem apenas recomen- superar todas as dificuldades, transformando-
dações e não preveem meios para as tornar -as em desafios com vista ao desenvolvimen-
efetivas. As convenções de direitos humanos to equilibrado da criança.
nasceram dessa constatação e foram criando João dos Santos, fundador com Manuela
mecanismos cada vez mais exigentes para que Eanes do Instituto da Criança, dizia que os
os princípios aí consagrados fossem concreti- primeiros anos de vida eram decisivos na vida
zados. Obviamente que a aplicação da Con- do ser humano. Muitos foram os estudiosos e
venção tem a ver com os regimes políticos. Se peritos que repetiram essa verdade, que aliás
no país existir uma ditadura ou estiver em con- todos nós já conhecemos do saber empírico
flito armado, os direitos são violados, sem que que a nossa experiência nos transmite.
haja reação das autoridades do Estado, ainda Numa entrevista recente, o neuropediatra
que tenha havido ratificação dos tratados, Nuno Lobo Antunes contou que houve uma

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: ARTIGO
As crianças, nossos semelhantes
(Uma breve nota reflexiva sobre os Direitos da Criança)
Américo Peças . Assessor para Educação e Assuntos Sociais na Chapitô

Uma questão de direitos humanos ração, como ornamento, laterais e exteriores ca aprender a cidadania, isto é, aprender as
A criança e os seus direitos ocupam hoje uma ao fluxo central da práxis educativa e das de- regras sociais — precisam de ser ajudadas a
centralidade inquestionável na agenda social cisões sobre as suas vidas. descentrar-se de si e a descobrir e a respeitar
e política. Todavia, essa visibilidade ainda está Esta nova assunpção da criança reivindica, os outros que com elas partilham os quoti-
longe de assegurar uma vida de qualidade a mais do que a exterioridade de um saber dianos. Esse trânsito exigente e fundamental
todas as crianças: os discursos, se demons- técnico, uma experiência comunicacional sus- do ego ao alter, coloca-nos a necessidade de
tram uma nova consciência sobre a situação tentada na fecundidade da relação humana uma leitura sobre autoridade e autonomia, pi-
de milhões de crianças em situação de fragili- autêntica. Porque a criança só se funda como lares fundacionais de uma cidadania esclareci-
dade, não são suficientes sem medidas efica- humana no diálogo criador com os que se as- da e eticamente sustentada. É uma questão
zes a acompanhá-los e a sustentá-los. sumem, e ela assume, como seus semelhan- central na reflexão sobre os direitos humanos
A segunda metade do século XX e o início tes. É nesse encontro que se vai fazendo in- em geral e sobre os direitos das crianças em
deste século assistiram efetivamente à emer- teligente, num processo complexo e fecundo, particular.
gência da criança como sujeito, como integra- marcado mais pela turbulência e pela imprevi- Pode surgir paradoxal, mas o reconhecimento
lidade biológica, psicológica e social, afastan- sibilidade do que pelo sequencial e pelo linear. e o respeito pelos direitos das crianças, e o
do-se decisivamente das visões que, durante Só nessa “ética do encontro”, que se sustenta seu exercício, pressupõem a necessidade de
séculos, caracterizaram a infância como uma no respeito pela criança e no reconhecimento autoridade.
incompletude. O conhecimento atual revela- da sua ecologia própria, o verbo educar ganha A construção da autoridade é hoje um dos
-nos as crianças como seres competentes, em significado e se cumpre como devir. maiores desafios que se coloca aos pais e aos
potência absoluta e, pelas suas implicações, É uma “gramática” onde escuta, diálogo e educadores, pela exigência moral em que se
constitui um dos mais fundamentais e desa- parceria são conceitos-chave para aprender a sustenta, pela integridade que reivindica, pela
fiantes avanços da nossa contemporaneidade. aprender, em afetuosa relação, as exigências e amorosidade que pressupõe, pela aprendiza-
Mas é sobretudo uma nova cultura de direitos os desafios de ser filho(a), aprendiz, cidadã(o), gem permanente para que nos convoca.
humanos na infância que nos falta e a que mãe, pai, educador(a). Porque a autoridade nunca é do domínio do
aspiramos. Para isso temos de nos desafiar a escutar as poder (aqui falamos de autoritarismo). A au-
Na “bolha” das macropolíticas e do pensa- crianças e a levar as crianças a sério. Escutar toridade não resulta de uma imposição des-
mento dominante, é verdade que as crianças as crianças e levar as crianças a sério é o eixo cendente, mas antes de um reconhecimento
e os adolescentes já convocam políticas de transversal que pode provocar ressignifica- ascendente: a criança reconhece e aceita a
provisão e de proteção, mas os seus direitos ções no que comummente se entende por autoridade de um adulto pelas suas qualida-
de participação, os mais fundamentais pela relação educativa. des éticas, pela congruência e assertividade
sua radicalidade epistémica, política e ética, Escutar a criança e levar as crianças a sério é das suas palavras e ações, pela natureza do
continuam largamente a ser os menos res- a condição para repensar e inovar as institui- vínculo e da relação que se estabelece entre
peitados e os menos desenvolvidos. Neste ções escolares. Escutar as crianças e levar as eles.
amplexo de direitos habita o gérmen de uma crianças a sério é o cenário que pode deter- As crianças precisam de reconhecer autorida-
nova visão que, recusando o pedocentrismo minar a recriação dos papéis dos adultos que de em adultos que amam e que amam. Essa
redutor, acolhe a criança como sujeito, autor participam na sua educação. natureza de autoridade é securizante e é con-
e ator da sua vida. Uma nova cultura a fundar Esta escuta activa funda a criança como nos- dição de desenvolvimento harmonioso. Sem a
e a convocar uma nova paideia. so semelhante, como sujeito político, e reivin- presença dessa autoridade “construtora”, as
Vale a pena questionar se o estatuto da crian- dica das instituições dedicadas à infância as- meninas e os meninos desenvolvem frustra-
ça nas nossas sociedades assenta numa efe- sumirem-se como “fóruns na sociedade civil”, ções e apresentam comportamentos disfun-
tiva e intensa relação entre semelhantes, ou instituições abertas e plurais, efectivamente cionais e associais.
se, pelo contrário, as ideias ainda dominantes empenhadas na promoção da infância e das A autoridade reforça-se com a clara definição
sobre a infância não vagueiam entre o pro- famílias, com as crianças e com as famílias. de limites, sempre fecundada pelo diálogo,
tecionismo redutor e a negligência criminosa. pela concertação e pela negociação. A autori-
A agência, o discurso e a visão das crianças, Sobre a autonomia e a autoridade dade fragiliza-se com comportamentos auto-
a maior parte das vezes e nos mais variados As crianças precisam de ser respeitadas nos ritários e imediatistas, quase sempre fruto de
contextos, são ainda acolhidos com comise- seus direitos. enquanto pessoas. E isso impli- descargas emocionais incontroladas.

6 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


O exercício dos direitos pressupõe também zagem de “viver com” que vai permitir que a mano significante. É no jardim de infância que
a construção progressiva da competência de criança seja autónoma. A autonomia precisa os percursos de heteronomia e alteridade vão
ser autónomo. de “mundo” para se construir em nós. Somos fazendo caminho para as meninas e os meni-
A autonomia é a competência para nos gover- seres autónomos quando as nossas ações in- nos caminharem em progressiva autonomia.
narmos a nós próprios, isto é, atingir um ní- dividuais e/ou sociais incluírem as consequên- Nestes 30 anos desde que Portugal ratificou
vel de desenvolvimento que nos permita agir cias, isto é, quando tenho consciência de mim a Convenção sobre os Direitos da Criança fi-
responsavelmente. Infelizmente, nas nossas no mundo. zemos um longo e exaltante caminho. Mas o
sociedades, muito marcadas pelo “fechamen- O desenvolvimento da autonomia na infân- abismo entre o que sabemos e o que fazemos
to” e pelo egoísmo, o conceito de autonomia cia precisa assim de muito grupo, de muitos revela como precisamos ainda tanto de com-
cola-se à ideia e ao exercício de uma vontade pares, de muita concertação, diálogo, com- bater idiossincrasias, monolitismos, dema-
individual, valorizada até como traço positivo promisso. A ideia de que a autonomia “é fa- gogias. É que no respeito pelos direitos das
de personalidade. Este primado do “eu” sobre zer coisas sozinho” é errada e perigosa. Ser crianças espelham-se, de forma transparente,
o “nós” é sempre trágico por poder conduzir autónomo é, antes de mais, saber e fazer os avanços da nossa contemporaneidade.
a uma “anomia” (ausência de lei) em que cada coisas com os outros, revelando competên-
um faz o que lhe apetece, movidos pelas mais cias sociomorais de respeito pelos pares, de
básicas emoções que nos constituem. cooperação e de acolhimento de outras visões
A autonomia é o contrário de egocentrismo. e sentires. Por isso importa sublinhar o lugar
A autonomia implica que eu tenha construído central do jardim de infância na construção da
e integrado a consciência do outro. Por isso autonomia. Hoje as famílias são muito peque-
a autonomia só se desenvolve em fecundos nas e com pouco social para se cumprirem,
ambientes de heteronomia: é esta aprendi- sozinhas, como experiência de encontro hu-

7 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO
Educação de infância em Portugal:
um retrato singular, 30 anos após a Convenção sobre os Direitos da Criança
Catarina Tomás . Instituto Politécnico de Lisboa - Escola Superior de Educação e CICS.NOVA. FCSH NOVA
Manuela Ferreira . Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação e CIIE

1. Introdução tado português, implicando a reformulação minho que, também partilhado por muitos
Uma das marcas dos Estudos Sociais da In- de todo o ordenamento jurídico de acordo países europeus, nos aproxima e coloca a
fância é a premissa de que a infância, en- com aquele articulado – e a atualidade. As- par dos padrões de desenvolvimento huma-
quanto categoria social de tipo geracional, sim, a partir da lente dos direitos das crian- no mais elevados. Aí se destacam os campos
constitui uma porta de entrada para com- ças e da sua tradicional divisão em direitos da saúde, da família e da educação e da pro-
preendermos a sociedade e as suas dinâmi- de proteção, provisão e participação, “os 3 teção à infância.
cas. O valor humano e social que a infância P” (ver caixa 2), socorremo-nos de dados de No primeiro caso – o direito constitucional
representa não é separável de um quadro natureza jurídica e legislativa, estatística e à saúde (art.º 64.º da Constituição da Re-
jurídico-legal que, com a Convenção sobre da investigação académica, nacionais e in- pública Portuguesa, art.º 24 CDC, 1989) –,
os Direitos da Criança (CDC, 1989), assinala ternacionais, para captar um retrato pano- a existência de um bom Serviço Nacional de
um antes e um depois numa longa história râmico da infância em Portugal nos últimos Saúde viabilizou a extraordinária diminuição
pautada pela negligência, ausência e silencia- 30 anos, dar conta das suas singularidades das taxas de mortalidade infantil para um
mento das crianças, simbolizando um padrão naquilo que foram as principais conquistas, valor abaixo da média europeia e mundial
civilizacional (ver caixa 1). direitos por cumprir e descoincidência entre (de 10,3% em 1990 para 3,1% em 2011 e 2,8%
A passagem da Declaração sobre os Direitos discursos e práticas. Particular atenção será em 2019); a execução do Plano Nacional de
da Criança (DDC, 1959), que afirma meras dedicada às crianças pequenas e à educação Vacinação e as consultas dos primeiros anos
obrigações de caráter moral, para uma CDC de infância (EI). de vida, fundamentais, eficazes e menos dis-
(1989), que tem de ser ratificada pelos Es- pendiosos para a prevenção de doenças in-
tados que a subscrevem, assinala uma al- 2. Infância e direitos em Portugal: feciosas e despiste precoce de necessidades
teração radical nos modos como estes e as um retrato singular especiais.
sociedades entendem as crianças e os seus Constituída por 54 artigos, a CDC tem como No campo da família assinala-se um conjun-
direitos: a CDC passa a configurar-se como fim último salvaguardar o superior interesse to de mudanças na sociedade portuguesa,
lei interna e torna os Estados que dela são da criança, considerada um ser complexo, entre as quais alterações significativas na
partes juridicamente responsáveis pelo cum- mas íntegro, uno e único. Neste sentido, sua estrutura, reduzindo-se a dimensão dos
primento das obrigações necessárias à reali- apesar de os direitos poderem ser catego- agregados domésticos e alargando-se o nai-
zação dos direitos da crianças e por todas as rizados, na realidade eles são indivisíveis e a pe das composições possíveis, nas dinâmi-
ações que tomem em relação a elas, tendo sua interdependência é crucial para a reali- cas de conjugalidade e parentalidade, com
de prestar contas ao Comité Internacional zação de cada um: os direitos de provisão implicações nas taxas de natalidade e nos
dos Direitos da Criança (CIDC). são condições básicas para assegurar os modos como se considera o lugar dos filhos
Ora, o consenso gerado em torno da CDC, direitos de proteção, sendo que sem ambos e o investimento educativo que neles se faz
não isento de conflitualidade interna, sendo os direitos de participação lograriam em se- (Cunha, 2007; Ferrão & Delicado, 2015; Al-
denotativo da diversidade social, cultural, re- rem alcançados e contribuírem, por via da meida & Ramos, 2020). Tais transformações
ligiosa e política dos países signatários, tem- participação social das crianças e partilha são ainda acompanhadas por legislação de
-se traduzido, em termos da sua concretiza- nas decisões que afetam os seus mundos de proteção à maternidade, paternidade e ho-
ção, em realidades múltiplas, não lineares, vida, para realizarem e levarem mais longe os moparentalidade e de alargamento da ado-
com diferentes cumprimentos e velocidades, direitos de provisão e de proteção. Dito isto, ção de crianças por casais do mesmo sexo.
típicas das políticas de alto consenso e baixa e apenas para uma melhor e mais fácil siste- A compreensão destes fenómenos articula-
intensidade (Tomás, 2011). matização, abordaremos conjuntamente os -se com mudanças ocorridas no campo da
Deste ponto de vista, no 30.º aniversário da direitos de proteção e provisão e, de seguida, educação: sublinha-se a melhoria substan-
CDC torna-se particularmente significativa os direitos de participação no contexto da EI. cial dos níveis de escolaridade da população
uma análise dos avanços, lacunas e impasses portuguesa, com destaque para as mulheres
no que diz respeito à garantia dos direitos 2.1. Infância e direitos de proteção e que, rapidamente e com sucesso, supera-
das crianças. Esse é, pois, o desafio que provisão ram as limitações a que estavam vetadas no
abraçamos neste texto, tomando por refe- Referir direitos de provisão e proteção das acesso ao ensino superior. No entanto, se
rência o período que medeia entre o ano de crianças em Portugal é sinónimo de avanço estes padrões nos aproximam daqueles por
1990 – quando a CDC foi ratificada pelo Es- marcante nas últimas três décadas, num ca- que se pautam os países mais desenvolvidos,

8 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


determinadas singularidades nacionais afas-
tam-nos. Esse é o caso do aumento da ida-
de média da mãe quando do nascimento do
primeiro filho, que passa dos 24,7 anos em
1990 para os 30,5 anos em 2019, e regista,
em 2018, um valor superior à média europeia
UE27 e no mundo que se mantém consisten-
te há mais de uma década (MS, 2018). À ma-
ternidade tardia associa-se uma acentuada
diminuição da natalidade, mas mais elevada
em Portugal do que nos países com maio-
res índices de rendimento, mostrando que
a infância foi o grupo geracional que mais
membros perdeu no período em análise: de
11,7% em 1990 passou para 8,4% em 2019
(Pordata, 2020). A perda de 61 662 crian-
ças dos 0-4 anos e de 121 074 crianças dos
5-9 anos entre 1990 e 2011/2019 contrasta
veementemente com o aumento do índice
de envelhecimento, que passa de 70,0% em
1991 para 161,3% em 2019.
Integram-se ainda neste retrato a persis-
tência de elevadas taxas de feminização do
emprego e de desigualdades laborais e so-
ciais, agravadas pelos fenómenos do analfa-
betismo, desemprego, horários de trabalho
longos e baixos salários, violência doméstica
e de género e assédio no trabalho.
Ora, uma das repercussões deste retrato
singular do feminino em Portugal relaciona-
-se diretamente com o campo da EI, regis-
tando-se elevadas taxas de permanência das
crianças tanto na creche como no jardim de
infância (CNE, 2019). Entretanto, já sabemos
que, histórica e politicamente, a EI está or-
ganizada num sistema dual em que o aten-
dimento às crianças até aos 3 anos (amas e
creches) é tutelado pelo Ministério do Traba-
lho, Solidariedade e Segurança Social e o das
crianças dos 3 aos 6 anos (JI) pelo Ministério
da Educação.
No caso da creche, o crescimento de res-
postas sociais (amas e creches) entre 2008
e 2015 faz-se acompanhar do aumento do
número de crianças menores de 3 anos que
a frequentam, colocando Portugal à frente

9 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO

CAIXA 2

Os “3P” dos Direitos da Criança. Uma categorização

• Os direitos de proteção implicam a consideração de uma atenção distinta às crianças de um conjunto de direitos acrescidos que, por
motivos diversos, nomeadamente situações de discriminação, abuso físico e sexual, exploração, injustiça e conflito, se encontrem
privadas ou limitadas no exercício dos seus direitos.
• Os direitos de provisão implicam a consideração dos programas que garantam os direitos sociais da criança, nomeadamente o acesso
de todas as crianças a direitos como a saúde, educação, segurança social, cuidados físicos, vida familiar, recreio e cultura.
• Os direitos de participação implicam a consideração de uma imagem de infância ativa, distinta da imagem de infância objeto das políti-
cas assistencialistas, à qual estão assegurados direitos civis e políticos, ou seja, aqueles que abarcam o direito da criança a ser consul-
tada e ouvida, o direito ao acesso à informação, à liberdade de expressão e opinião e o direito a tomar decisões em seu beneficio, que
deverão traduzir-se em ações públicas para a infância, que consideram e são organizadas do ponto de vista das crianças.

Fonte: Hammarberg, 1990

das médias dos países da OCDE e da UE23 cuja excessiva lotação indicia perda de quali- educativo, tem vindo a ser debatida e defen-
(36,7% face a 36,3% na OCDE e a 35,6% na dade. É também um direito posto em causa dida em várias escalas e âmbitos internacio-
UE23) (idem). Inferimos que esse valor possa pelo acesso desigual das crianças às creches, nais, europeus e nacionais. Veja-se o Comen-
ser ainda mais elevado devido à inexistência principalmente centrado nas cidades de Lis- tário Geral n.º 7 do Comité Internacional dos
de dados oficiais e sistematizados acerca das boa, Setúbal e Porto (Carta Social, 2018). Ou Direitos das Crianças (CIDC, 2005) quando
amas, muitas delas informais e/ou ilegais. seja, o acesso às creches é condicionado em afirma que: “a criança não é apenas objeto
Neste retrato, a situação dos bebés por- termos sociais e geográficos, o que, muitas de práticas benevolentes, é um titular de di-
tugueses até 1 ano de idade é singular: em vezes, conduz à existência de creches ilegais reitos; o objetivo da educação é empoderá-
2019, Portugal tinha a quarta maior taxa de em zonas altamente deprimidas do ponto -las nas suas capacidades através de estra-
frequência, mais do que duplicando a média de vista socioeconómico, e com baixa qua- tégias centradas nas crianças, e amigáveis,
da OCDE. Um tal indicador significa que os lidade. Um direito posto em causa porque com oportunidades para exercerem os seus
bebés portugueses começam a frequentar a falta de condições em que muitas creches direitos, e estes incluem, entre outros, tem-
precocemente a creche, nela permanecen- funcionam é frequentemente geradora de po, espaço para o brincar social, exploração
do diariamente muitas horas. Para além das stress infantil crónico. Tais singularidades no e aprendizagem”.
elevadas horas de permanência, acresce o caso do atendimento aos 0-3 anos, decor- A defesa da creche como um direito das
problema da sobrelotação dos espaços: au- rem, de acordo com Vasconcelos (2018), do crianças à educação e não uma resposta
mentou o número de crianças por sala, pas- facto de não ter havido políticas sistemáticas social às suas famílias reflete-se ainda nas
sando de 8, 10 e 15 para 10, 14 e 18, nas salas por parte do Ministério da Educação. Assim, Conclusões do Conselho da União Europeia
do berçário, dos 1 e 2 anos, respetivamente a educação destas crianças em Portugal é, 2011/C 175/03, nas Recomendações da OCDE
(Portaria n.º 2262/2011, de 31 de agosto). por definição institucional, um problema de (2014) e, ao nível nacional, na Recomendação
Entendendo a creche como um contexto so- apoio às famílias e de solidariedade social 3/2011, de 21 de abril (CNE, 2011). Atente-se
cioeducativo, se este aumento da frequência e não uma questão clara do “direito à edu- igualmente às reivindicações do movimento
de bebés pode ser visto como uma oportu- cação” consagrado na Convenção sobre os profissional assumido pela Associação de
nidade de acesso à educação, este direito é, Direitos da Criança. Profissionais da Educação de Infância (APEI)1,
porém, posto em causa quando se atenta às A reivindicação da necessidade de promover
1 Ver petição pública “Inclusão dos 0-3 anos no siste-
condições ambientais da sua ocupação, i.e., o direito à educação das crianças até aos ma educativo – Alteração da Lei de Bases do Siste-
ao rácio criança-área da sala (2 m2/criança), 3 anos, pela inclusão da creche no sistema ma Educativo”, https://peticaopublica.com/pview.
aspx?pi=PT83474.

10 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


corroboradas pela investigação (Fleer, 2002; se torna o processo de institucionalização Educação Pré-Escolar (Lei n.º 5/97, de 10
Moss & Petrie, 2002; Rocha, 2011; Folque socioeducativa da EI quando, no contexto de fevereiro), a que se seguiram as Orienta-
et al, 2015). De acordo com alguns autores, da entrada de Portugal na Comunidade Eco- ções Curriculares para Educação Pré-Escolar
os países com um sistema dual debatem-se nómica Europeia, em 1986, e da apologia do (OCEPE, 1997) e, mais tarde, as alterações na
com diferentes graus de profissionalismo, discurso da modernização e do desenvolvi- formação inicial de profissionais (Decreto-lei
com níveis mais baixos de qualificação, con- mento do país, se deu a aprovação da Lei de n.º 43/2007, de 22 de fevereiro; Decreto-lei
dições de trabalho menos favoráveis e me- Bases do Sistema Educativo (Lei n.º 46/86, n.º 79/2014, de 14 de maio e a Declaração
nos tempo para a reflexão crítica em equipa de 14 de outubro, atualmente na sua 4.ª de Retificação n.º 32/2014, 27 de junho) e a
e feedback para os/as educadores/as que versão, Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto) e, atualização das OCEPE (2016). Esta é tam-
trabalham na creche. Isso resulta numa me- com ela, a expansão da formação inicial em bém a década em que, sob fortes influên-
nor qualidade no atendimento (cf. Peleman, EI; a gradual extensão da rede nacional de cias internacionais, se assiste à crescente
Jensen & Peeters, 2018), mesmo que os/as educação pré-escolar (EPE) e a chegada dos presença de outras lógicas educativas no JI
educadores/as tenham um elevado grau de primeiros ecos do discurso da qualidade na e à reconfiguração das práticas pedagógicas
formação, como é o caso português. educação, que veio a afirmar-se na década e papel das e dos profissionais em nome
Já no caso das crianças dos 3-6 anos, é pre- seguinte. de uma noção de qualidade da EI sinónima
cisamente nestes 30 anos que mais visível Os anos 90 trazem à luz a Lei-Quadro da de processos de “alunização” e escolariza-

Figura 1. Taxa real de escolarização (%) pré-escolar (1961-2019)

11 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


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Figura 2. Crianças matriculadas na educação pré-escolar: total e por idade (1961-2019) média da EPE e o número de educadores de
infância a trabalhar em JI: se em 1961 eram
apenas 226, em 1991 já eram 9357, e em 2019
mais que duplicaram (16 277).
A frequência do JI é principalmente garanti-
da pelo setor público (53%), embora seja aqui
que o setor privado adquira maior expressão
em todo o sistema educativo (CNE, 2018, p.
80). No entanto, Portugal tem vindo a redu-
zir as despesas com a educação (1991, 4,2%
do PIB; 2018, 3,6% do PIB. Pordata, 2020),
sendo que do gasto total com a EPE em
2017, inalterado em relação ao ano anterior,
houve “uma queda de 4,6% na rede pública
e um aumento de 0,8% nas redes privadas e
cooperativas” (CNE, 2019, p. 290). Pode en-
tão dizer-se que, apesar dos avanços regista-
dos no direito à educação das crianças mais
Fonte: Pordata novas, Portugal é um dos países da União
Europeia e da OCDE em que as famílias gas-
ção precoces (Ferreira & Tomás, 2017, 2018; relevância na exploração e conhecimento de tam mais (só 64% dos gastos provém do erá-
Moss & Urban, 2020). Desde então, no cam- si, do outro e do mundo material e simbólico, rio público. OCDE, 2019), em que nem todos
po da EI, detetam-se duas orientações de na construção de competências pessoais e os JI públicos desejados dispõem de vagas,
sentido contrário e com reconhecimentos sociais e nas práticas de participação coleti- mesmo com o aumento da oferta nos últi-
sociais diferentes: uma delas reivindica uma va. Esta visão crítica da EI ecoa os princípios mos anos, e em que é escassa a sua oferta
conceção da criança como sujeito ativo da assumidos pela UNESCO “Direitos desde o nas áreas rurais ou fora dos grandes centros
aprendizagem a quem urge transmitir, por princípio. Educação e cuidados na primeira urbanos, contribuindo para a permanência
via do recurso a atividades didáticas e uso infância” (2012: 5), quando afirmam inequi- de assimetrias regionais.
instrutivo do brincar com fins úteis, um con- vocamente: “Os programas curriculares e Um outro traço reporta-se às caraterísticas
junto de conhecimentos de tipo enciclopé- abordagens utilizadas devem ir ao encontro do grupo profissional: feminização consis-
dico e formais, privilegiadamente cognitivos, das necessidades individuais da criança na tente da profissão (99%. Pordata, 2019); en-
e atitudes e comportamentos que valorizam educação, desenvolvimento, nutrição e saú- velhecimento acentuado (de 7,5% em 1998
a conformidade e a contenção, vistos como de. Devem ser flexíveis, colocar as crianças para 513,7% em 2018) e diferença de estatuto
essenciais para a sua boa preparação e ga- no centro e dar valor a todo o tipo de ati- interno, dado existirem diferenças de reco-
rantia de sucesso escolar; uma outra reivin- vidades, incluindo a importância crucial do nhecimento e de salários entre as e os edu-
dica uma conceção da criança como sujei- direito a brincar: o ensino pré-escolar rígido cadores que trabalham em creche e as e os
to ativo da aprendizagem, mas igualmente e formal que não permite brincar pode ser que trabalham em jardins de infância.
participativa e com direitos, vez e voz nos desagradável para as crianças e prejudicar o As crianças com 3 anos ou mais, tal como
contextos em que habita, como a creche e o seu desenvolvimento.” acontece com os bebés, passam um eleva-
JI, mediante uma abordagem relacional, ho- Neste retrato, aumenta a taxa de frequência do número de horas semanais no JI (38,5 h),
lística e inclusiva da EI (Nowak-Lojewska et (cf. Figura 12), o número de crianças matri- um dos valores mais altos entre os países
al., 2019), informal mas com conteúdos sig- culadas por idades (cf. Figura 2), a duração da UE28, cuja média correspondente é de
nificativos e capazes de alimentar o desejo 29,5 horas (CNE, 2018). Durante esta lon-
por aprendizagens formais, em que a rede de 2 Atente-se aos modos como é usada a linguagem no
Pordata acerca da EI: “alunos”, “ensino pré-escolar”, ga permanência, a investigação tem vindo
intensas relações inter e intrageracionais e “escolarização” – não se trata apenas de um modo de a mostrar que as crianças brincam por sua
a valorização do brincar assumem particular descrever uma dada realidade, mas também de con- livre iniciativa cada vez menos (Ferreira & To-
tribuir para a criar e normalizar.

12 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


más, 2018; Tomás & Ferreira, 2019), situação havido por parte do Estado, em termos jurí- estatais: em 2017, a taxa de risco de pobre-
que se reproduz em casa e na rua (Mendes, dicos e de políticas sociais. Assim, se desde za após as transferências sociais era de 19%
Neves, Lourenço & Diogo, 2019). A situação 1976 a proteção da infância é um preceito para o grupo com menos de 18 anos (Porda-
é de tal modo preocupante que, em 2013, a constitucional (art.º 69 da CRP), o seu co- ta, 2020). Ora, a pobreza infantil que alastra,
propósito do artigo 31.º da CDC, relativo ao rolário é a Lei de Proteção de Crianças e se agrava e complexifica nas crises sociais
direito da criança ao repouso, tempos livres, Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99, de 1 de se- expõe a crueza das desigualdades persisten-
brincar, atividades recreativas, vida cultural e tembro, na sua 5.ª versão, mais recente, Lei tes na garantia dos bens mais básicos para a
artística, foi elaborado o Comentário Geral n.º 26/2018, de 5 de julho). Quando então sobrevivência humana como a alimentação e
n.º 17 (CIDC, 2013) a especificar a conceção analisamos a situação das crianças pequenas a habitação, sinais de pobreza extrema, as-
de brincar: “o jogar/brincar e a recreação a partir dos dados da Comissão Nacional de sim como no acesso a condições tornadas
são essenciais para o bem-estar das crian- Promoção dos Direitos e Proteção das Crian- básicas para poder continuar a participar
ças e são uma forma de aprendizagem e ças e Jovens (CNPDPCJ, 2020), observamos nos processos educativos em curso, agora
participação na vida quotidiana; o brincar que em 2019 foram acompanhadas pelas à distância, que não dispensam dispositivos
é qualquer comportamento, atividade ou CPCJ 68 962 crianças, das quais 22,9% fre- e conhecimentos tecnológicos, para já não
processo iniciado, controlado a estruturado quentavam a creche (IPSS) e 24,5% a EPE da mencionar denúncias de maus tratos conti-
pelas próprias crianças; tem valor intrínseco, rede pública. Neste mesmo ano, “foram co- nuados, muitos deles letais. A violação dos
puramente em termos do prazer e satisfação municadas às CPCJ 43 796 situações de peri- direitos de proteção e provisão em tempos
que dali retiram; ocorre sempre e quando go, das quais 12% diziam respeito a crianças de crise revestiu-se ainda de outras face-
há oportunidades; decorre da motivação in- entre os 0-2 anos” (p. 40). Dentro destas tas como aconteceu com a suspensão dos
trínseca e livre vontade; envolve o exercício situações com crianças pequenas (0-5 anos) apoios educativos a crianças com necessi-
da autonomia; tem o potencial de assumir destacam-se a prevalência da negligência e dades especiais, do acompanhamento pelas
infinitas formas, tanto em grupo como indi- da violência doméstica (2019, p. 42). CPCJ e de situações de perturbação da saúde
vidualmente.” Perante um tal retrato da infância frisa-se a mental das crianças e suas famílias.
No mesmo sentido, a Organização Mundial relevância das e dos profissionais de EI na Fenómenos paradoxais numa sociedade re-
de Saúde (WHO, 2019) lançou recentemente sinalização do risco e do perigo, que os mos- gulada por um quadro jurídico-constitucional
um conjunto de diretrizes sobre a atividade tra como agentes de primeira linha na de- muito avançado em matérias de proteção
física e o comportamento sedentário, entre fesa e salvaguarda dos direitos de proteção mostram, deste modo, como a falha na ga-
outros aspetos. O problema do brincar livre, e provisão das crianças pequenas, as mais rantia dos direitos de provisão fragiliza os da
associado à diminuição da atividade física vulneráveis e indefesas. Nesse sentido seria sua proteção e o princípio do “superior inte-
fora de contextos desportivos organizados e importante que estas temáticas fossem con- resse da criança” (art.º 3.º, CDC, 1989), real-
da mobilidade autónoma no espaço público, sideradas na sua formação inicial e contínua, çando a importância da interdependência e
é ilustrativo de uma condição das crianças nomeadamente os processos de deteção e da interrelacionalidade entre direitos. É ainda
cujo valor é inestimável (Zelizer, 1994) nas de sinalização para as entidades competen- nestes momentos que ficam visíveis os es-
sociedades contemporâneas, de elevado tes e as questões éticas associadas. forços adicionais das mulheres na economia
risco e incerteza, e do grau superlativo que A infância em risco e perigo tende a ganhar do cuidado (conjunto vasto de trabalho não
atingiu a preocupação social com a sua outra visibilidade em momentos de crise pago que serve as crianças e os velhos da
proteção. Paradoxalmente, não é sem per- e fragmentação social como se observou família), na maioria das vezes subterrâneo, e
plexidade que o confronto com indicadores no período vivido entre 2011 e 2014, o da na economia da educação quando se viram
acerca da esfera privada como lugar de vio- intervenção da troika, e, mais recentemen- no quase papel de educadoras e professoras,
lação sistemática dos seus direitos mais ele- te, durante o período de confinamento. bem como a importância das redes de solida-
mentares desmorona a ideia de família como Acresce-lhe o fenómeno da pobreza infantil riedade baseadas no parentesco, vizinhança
um ninho protegido, um lugar de afetos e de (Diogo, 2018), que mostra que o grupo etário e comunidade, que chegam a assumir-se
cuidado para algumas crianças, de múltiplas até aos 18 anos é o mais afetado de entre enquanto sociedade de providência (Santos,
violências para outras. as outras categorias geracionais, ou seja, 1995) na garantia de algum bem-estar às
Daí que este seja um dos campos, o da pro- há mais crianças pobres do que adultos ou crianças.
teção social, em que mais investimento tem idosos, mesmo já contando com os apoios Todos estes retratos da infância e da singula-

13 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO

ridade portuguesa chamam a atenção para a do Leste europeu e aumentaram as comu- legais de intenção esbarra frequentemente
necessidade de uma formação alargada das nidades procedentes de inúmeros países na sua inconsequente implementação e con-
e dos profissionais às questões sociológicas, asiáticos, sobretudo indianos, chineses, cretização prática. Esta contradição afeta e
capaz de repensar as desigualdades socioe- paquistaneses, construindo uma sociedade limita, como sucintamente se procurou iden-
conómicas e culturais dentro da creche e do cada vez mais diversa e heterogénea num tificar, a garantia dos direitos das crianças.
JI, e de as enfrentar na ação pedagógica. mundo mais multicultural, trazendo novos
Trata-se de passar de uma perspetiva da EI desafios ao campo da EI – entre outros, a 2.2. Infância e direitos de participação
como integração social para a de inclusão diversidade linguística, de religiões, de há- A CDC (1989) e outros documentos interna-
educativa, o que significa, ainda, ampliar a bitos alimentares, de dinâmicas familiares cionais relevantes vinculam o Estado portu-
ideia de inclusão e de educação inclusiva e de género. Neste sentido, tornam-se ur- guês à igual promoção dos direitos de parti-
para além das necessidades especiais em gentes os contributos do conhecimento cipação. No entanto, num país em que, como
contextos educativos. antropológico, essencial para uma postura vimos, a discrepância entre políticas e prá-
Dados acerca da inclusão de crianças e jo- não etnocêntrica, capaz de reconhecer e ticas é particularmente elevada, os direitos
vens com deficiência no sistema educativo valorizar as diferenças culturais sem cair no de participação das crianças, especialmente
assinalam, globalmente, o aumento da sua “pluralismo cultural benigno” (Stoer, 2008), quando se trata das muito pequenas, como
frequência em escolas de ensino regular na nas “semanas culturais” exóticas ou na neu- é o caso das que frequentam a creche e o
escolaridade obrigatória (+92% entre 2010/11 tralização e homogeneização da diversidade JI, enfrentam dificuldades redobradas em se-
e 2017/18). Porém, eles contrastam com um das crianças. Incluir a diversidade cultural das quer serem reconhecidos pelos profissionais
decréscimo do número de crianças com de- crianças, numa perspetiva de transformação de educação. Esta realidade continua a dar
ficiência a frequentarem o JI (-19%) (ODDH, e mudança social, requer valorizá-las como provas de uma tenaz quase ausência de uma
2019, p. 19). As fragilidades destas crianças um potencial humano inestimável e recursos cultura de participação das crianças (Tomás,
agravam-se ainda mais quando não são devi- socioeducativos vivos, essenciais para “ma- 2011), particularmente notada no quotidiano
damente acompanhadas devido a modestos ximizar a participação social” e “minimizar das instituições educativas, mesmo se alguns
recursos materiais e humanos (especialistas), a exclusão” (Nutbrown & Clough, 2009, in movimentos pedagógicos e/ou programas e
mesmo tendo aumentado o número das uni- Nowak-Lojewska et al., 2019) na educação. projetos com esse cariz inscreveram e inscre-
dades de apoio e dos Centros de Recursos A singularidade das políticas portuguesas vem na sua ação a participação das crianças,
para Inclusão, e de existir o Sistema Nacional que, direta ou indiretamente, se relacionam incluindo as mais novas. Veja-se o Movi-
de Intervenção Precoce na Infância (SNIPI). com as crianças nos anos pós-CDC (1989) mento da Escola Moderna (MEM), o Projeto
Outras dimensões significativas da inclusão mostra o valor das políticas sociais enquanto Eco ou outros da iniciativa do Instituto das
obrigam a consciencializar para a crescente bem público ao serviço do bem comum. E Comunidades Educativas (ICE). Ou ainda,
diversidade cultural da infância em Portugal, no entanto, quase todas elas, do trabalho à num outro contexto, movimentos como os
sobretudo nos meios urbanos e por via da família, da saúde à educação e à proteção da Cidade Amiga das Crianças (UNICEF), das
complexidade do fenómeno das migrações. social, são consideradas de baixa intensidade Cidades Educadoras e dos Orçamentos Par-
Nos 30 anos em análise, aos migrantes origi- (Portugal, 2000; Aboim, Vasconcelos & Wall, ticipativos com Crianças e Jovens.
nários dos PALOP, seguiram-se os oriundos 2013): a bondade promissora das declarações A este respeito, no caso da JI, as OCEPE (Sil-

CAIXA 3
“Os Estados, partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe
respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade.”
(Artigo 12.º 1. CDC, 1989).

“[A criança] tem direito a ser escutada e as suas opiniões devem ser tidas em conta (…). [A/o educador/a] escuta e considera as opiniões da crian-
ça, garantindo a sua participação nas decisões relativas ao seu processo educativo.”
(OCEPE, 2016, p. 12).

14 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


va et al., 2016) são um documento paradig- Não será, pois, demais chamar a atenção para compartilhado, na negociação e no compro-
mático em que se reconhece os direitos de a pertinência de levar a sério a participação misso, e em que interações diretas, prazero-
participação nos Princípios e Fundamentos das crianças na EI, repensando a responsabi- sas e com sentido de humor são mediadores
Educativos (ver caixa 3), enfatizando o direito lidade adulta na criação de condições efetivas expressivos para as escolhas das crianças
de audição (art.º 12 da CDC). para a sua inclusão nas negociações e toma- (idem). Trata-se, portanto, de uma visão da
A solicitação de que as crianças expressem das de decisão sobre assuntos que as afe- participação das crianças pequenas que se
as suas opiniões, desejos, interesses, pro- tam diretamente, e salvaguardando as suas distancia e é crítica daquilo que, podendo
postas, e a sua escuta, fundamentais para especificidades. Por outras palavras, uma vez ser uma preocupação com a participação em
a realização dos direitos de participação, que os processos de participação são sempre termos de discurso, se torna, na prática, ora
não deve ser confundida com incentivos ao relacionais e em contexto, importa assegurar numa pedagogização da participação, ora
seu interesse por uma dada atividade e, ain- condições básicas (tempo, espaços, reconhe- numa espécie de ensino da educação para a
da menos, para as fazer crer que tomaram cimento e disponibilidade dos adultos para as cidadania, com sessões em hora marcada e
um papel ativo e influente nos processos escutarem e negociarem com elas e compro- cumprimento de rituais importados do mun-
de decisão quando estas, frequentemente, misso de levar a cabo propostas e projetos do adulto que se convertem numa obrigação
acabam por ser decididas pelos adultos ou da iniciativa delas) alinhadas com direitos sem sentido para as crianças. Mudar para
por uma aparentemente maioria, ou por vi- pedagógicos (realização, inclusão e participa- formas participativas e inclusivas de desen-
rem legitimar aquilo que já era sua intenção ção [Bernstein, 2000, in Emilson & Folkenson, volver a ação pedagógica com as crianças no
prévia. Este tipo de práticas, as mais co- 2006]) e processos democráticos. JI requer ousadia para desafiar a relação tra-
muns no JI, são designadas por Hart (1992), A participação social das crianças significa dicional entre adultos e crianças e criatividade
na Escada de Participação, como níveis de assumir a sua codeterminação nas tomadas e imaginação pedagógica para mobilizar me-
não participação (manipulação, decoração e de decisão (Bae, 2009), através de práticas todologias socioconstrutivistas participativas
“tokenismo”). assentes no diálogo intergeracional, no poder (holísticas) imbuídas de uma ética da escuta

15 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO

sensível aos pontos de vista das crianças e çadas, sobretudo no que diz respeito aos expostas em momentos de crise. Atrasos de
consciente do adultocentrismo (cf. Nowak- direitos de proteção e provisão das crianças natureza estrutural e um Estado-providência
-Lojewska et al., 2019). e, globalmente, também muitas políticas e in- fraco têm-se traduzido no arrastar de incum-
dicadores do desenvolvimento humano (UNI- primentos e impasses na implementação e
Considerações finais CEF) se têm apresentado positivos no que concretização de políticas sociais que tendem
A análise da situação social das crianças e da à situação da pequena infância diz respeito, a penalizar a infância e, dentro dela, a pena-
sua educação, nos 30 anos que medeiam a próximos dos padrões que caraterizam os paí- lizar as mais desfavorecidas. E na existência
ratificação da CDC (1989) e os dias de hoje, ses desenvolvidos da Europa. de mundos sociais e educativos ainda longe
mostram a singularidade do caso de Portu- Não obstante, a realidade das suas condições de serem provedores e protetores para muitas
gal face ao contexto das transformações da de existência evidencia a persistência de uma crianças, para já não mencionar as inúmeras
sociedade portuguesa e face a outros países. forte heterogeneidade e de inúmeras desi- questões que obstam à sua participação so-
Com efeito, muitas conquistas foram alcan- gualdades e diferenças internas, brutalmente cial. As questões das desigualdades sociais na
infância e da sua diversidade interna, a par das
da participação das crianças no quotidiano
da creche e JI, são, portanto, realidades que
não podem ser escamoteadas, tendo de ser
levadas em consideração no âmbito de uma
EI como promotora da igualdade de oportu-
nidades, da democracia, da cidadania e dos
direitos.
Uma tal compreensão da situação da infân-
cia e sua educação implica atentar aos cons-
trangimentos e possibilidades das estruturas
sociais, educativas, económicas, políticas,
jurídicas e simbólicas do país, embora a sua
influência quanto aos modos como a socie-
dade e a educação se organizam e funcionam
possa advir de outras escalas extranacionais.
Do mesmo modo, estamos cientes de que as
políticas sociais não são socialmente neutras
e de que a resolução dos problemas identi-
ficados ultrapassa a mera ação do grupo
profissional dos educadores e/ou iniciativas
individuais.
Não obstante, do conjunto de dimensões
abordadas neste breve retrato, da natalidade
à condição das mulheres, aos recursos huma-
nos e financeiros, às migrações, fica patente
a complexidade demográfica, cultural, social,
económica, jurídica, etc. que nos dias de hoje
é constitutiva dos fenómenos educativos e,
portanto, com efeitos na ação das e dos edu-
cadores.
Equacionar esta complexidade no quadro dos
direitos da criança (CDC, 1987) exige pensar
uma EI capaz de ir além do “cuidar e educar”,

16 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


tal como tradicionalmente essa dupla função CIDC (2005, 20 set.). Comentário Geral n.º 7/Rev.1, sobre Estrelas & Ouriços: Como brincam hoje as crianças por-
a realização dos direitos da criança na primeira infância. tuguesas!. Cascais: Estrelas e Ouriços.
tem sido plasmada na trilogia psicologia, pe- Comité Internacional dos Direitos da Criança. https:// Ministério da Saúde (2018). Saúde infantil e juvenil. POR-
dagogia e currículo. Deste ângulo, cuidar e www.refworld.org/docid/460bc5a62.html TUGAL 2018. Lisboa: MS/DGS.
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reito da criança ao repouso, tempos livres, brincar, ativi- Children’s Spaces: Public Policy, Children and Childhood.
viço das categorias dos direitos de provisão e dades recreativas, vida cultural e artística https://www. London: Routledge.
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naturalizado. Requerem uma sensibilidade e Conselho Nacional de Educação (2011). A Educação das nomic Co-operation and Development’s International
Crianças dos 0 aos 12 Anos (Relatório do Estudo, Actas Early Learning and Child Well-being Study: The scores
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sões do Conselho sobre educação pré-escolar e cuidados M. (2019). “To learn with” in the view of the holistic, rela-
inclusão de outras dimensões de intervenção para a infância: Proporcionar a todas as crianças as me- tional and inclusive education. The Pedagogical Quarter-
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17 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO
Direitos das “outras” crianças?
Quando a (in)diferença agrava a desigualdade e arrisca a exclusão na infância
Rosa Madeira . Universidade de Aveiro

Temo que uma das afirmações que venha a os materiais que são produzidos para, com se sintam convidadas e a sua participação
perder força enquanto argumento que legiti- ou pelas crianças sobre um assunto que se legitimada como direito próprio e não como
ma o compromisso ativo na defesa dos direi- lhes apresenta como um “tema” e não como benevolência ou dever de obediência aos
tos da criança seja a de que existe um con- conquista inacabada e complexa na contem- adultos.
senso internacional em torno da Convenção poraneidade são imagens de crianças em si- A ausência ou apropriação pontual ou des-
sobre os Direitos da Criança (CDC). Quando tuação de emergência humanitária. contextualizada do argumento de que exis-
assistimos à banalização do sofrimento de O assunto dos direitos da criança circula te um consenso merecido ou construído
um número crescente de crianças a quem também entre adultos, nos ambientes fre- em torno da Convenção sobre os Direitos
não se reconhece a condição de infância, o quentados pelas crianças, o que as põe em da Criança e sobre o compromisso coletivo
consenso invocado parece esvaziado de sen- contacto com o discurso jurídico-normativo a nível global e local que a sua ratificação
tido, deixando de poder ser apropriado pe- com que os direitos estão codificados. A acarreta traz desafios de conhecimento e de
las crianças mais vulneráveis como fator de apropriação deste discurso pericial e legal é envolvimento das instituições e atores que
resiliência e autodeterminação face à inércia frequente quando se trata de situações em intervêm no campo da educação e da for-
social e à desumanidade das circunstâncias que as crianças são visadas como vítimas, por mação dos profissionais de educação. Neste
em que se encontram. vezes das próprias famílias, sendo a reflexão campo, as referências aos documentos in-
A invocação do consenso internacional sobre sobre os direitos da criança transferida para ternacionais que são ferramentas de direitos
a obrigação de salvaguardar a dignidade das um outro campo simbólico, onde a realidade humanos são dadas fundamentalmente no
crianças como sujeitos de direitos humanos da criança é reconstituída e codificada pro- enquadramento e fundamentação de pro-
próprios é parte do ritual com que se cele- cessualmente como caso e objeto passível gramas, currículos e atividades. Os direitos
bram datas como a da aprovação da CDC de juízos formalizados sobre a aplicação de da criança são um tema familiar, embora sur-
pelas Nações Unidas ou o Dia Mundial da medidas que sancionam fundamentalmente jam, na maioria das vezes, como foi referido,
Criança. Sinalizar estas datas é, sem dúvida, a responsabilidade parental. como conteúdo associado a datas a celebrar
importante para a tomada de consciência Esbate-se, assim, a perceção de que os di- no calendário escolar ou em ações pontuais
coletiva de que o reconhecimento deste es- reitos da criança são uma responsabilidade de solidariedade com crianças vítimas de in-
tatuto foi uma grande conquista histórica. pública e coletiva e uma experiência quo- cidentes críticos ou objeto de campanhas de
No entanto, dada a falta da devida reflexão tidiana das crianças que não recebem um larga escala, como por exemplo a ação global
sobre a responsabilidade coletiva na garan- tratamento social justo e uma redistribuição para a educação. A não intencionalidade de
tia e criação de condições para que todas as equitativa de recursos pelo reconhecimento privilegiar o enfoque nos direitos da crian-
crianças possam exercer efetivamente estes da sua igual dignidade. A construção social ça é compensada com a informação sobre
direitos no dia a dia, arriscamo-nos a deixar dos direitos da criança, no campo da edu- algumas ferramentas de direitos humanos
na obscuridade as circunstâncias particular- cação, como questão de (des)respeito pelo em determinadas disciplinas que atendem
mente adversas que impedem que muitas que está legislado e precisa de ser regulado a públicos específicos, tais como crianças
delas possam fazer parte desta história ina- ou sancionado, dispensa, não raras vezes, a com necessidades especiais ou de minorias
cabada. reflexão sobre fatores de ordem sócio-es- linguísticas e étnico-culturais.
Estas datas são, muitas vezes, o momento trutural, tais como a pobreza e a exclusão É no campo científico-social, no campo dos
em que os profissionais do campo da educa- social, que negam e violam direitos da crian- estudos sociais da criança e designadamente
ção se mobilizam no sentido de dar a conhe- ça, individualmente e enquanto membros de da sociologia da infância, que a Convenção
cer às próprias crianças a sua condição de su- famílias ou comunidades sujeitas a estigma- sobre os Direitos da Criança constitui um
jeitos de direito internacional que não estão tização social. tema central de debate crítico, do qual se
entregues a uma “jurisdição” privada e, por Só recentemente os direitos e a cidadania procuram retirar efeitos para a compreen-
vezes, arbitrária, onde a sua dignidade não plena das crianças têm sido invocados para são da condição da infância e da vida das
é tida em conta nas decisões que as afetam. legitimar a sua participação no espaço pú- crianças na contemporaneidade. Assume-se,
O que é dado a conhecer, mas não a refletir blico e envolvimento ativo na vida da cida- neste contexto, o impacto que a ratificação
e debater, é uma carta onde são listados um de. Falta saber que condições é preciso criar deste documento, ao nível global, teve na
conjunto de princípios e provisões afirmados para que todas as crianças residentes no emergência e na possibilidade de consolida-
como universais. Muitas vezes, o que ilustra centro ou na periferia do território sejam e ção de um outro paradigma da infância que

18 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


reconhece as crianças como membros de um zido pela apresentação de um gráfico com a ao longo do caminho, quais são as suas
grupo geracional heterogéneo, enquanto su- seguinte legenda: “A migração – forçada e vulnerabilidades, o que precisam, e como as
jeitos de direitos humanos, enquanto atores voluntária – está a aproximar o mundo cada políticas de migração e asilo as afetam (…).
sociais e enquanto grupo social minoritário. vez mais. Entre os 244 milhões de migran- Os dados são ainda mais escassos sobre as
É a partir desta visão da infância que somos tes internacionais cujas viagens se refletem crianças que se deslocam sem documentos
autorizados a problematizar, por um lado, neste diagrama, há 31 milhões de crianças. além-fronteiras, as deslocadas, apátridas ou
a invisibilidade social e política das crianças Cada uma destas crianças – assim como as migrando internamente, as crianças deixa-
e, por outro, as condições de integração desenraizadas dentro das suas próprias fron- das para trás pelos pais migrantes e as que
subordinada que constrangem as possibili- teiras – merece ser protegida e usufruir da desapareceram ou perderam a vida durante
dades de reconhecimento e de exercício de totalidade de direitos (UNICEF, 2016. p. II). viagens perigosas” ( 2018, p. 3).
direitos em circunstâncias de fragilização Em julho de 2019 a UNICEF apresentava na O conjunto destes dados dá-nos a medida
dos laços sociais que as ligam à família e ao sua página um excerto de um relatório da de quanto é preciso fazer para retirar da in-
Estado, enquanto instâncias responsáveis Organização Internacional para as Migrações visibilidade as crianças que foram forçadas a
pela garantia dos seus direitos humanos (OIM) – Fatal Journeys: Missing Migrant sair das suas casas e a deslocar-se interna-
fundamentais. Esta é também a perspetiva Children – que se referia a 30 milhões de mente ou para fora do país, devido a guer-
a partir da qual podemos objetivar limites e crianças como “parte de fluxos migratórios ras, conflitos, violências vividas como perse-
contradições decorrentes da aplicação des- mistos, que viajam fora da segurança de guições, mas também a pobreza extrema, a
contextualizada de procedimentos inferidos condições regularizadas com vistos e docu- desvantagem no acesso a um futuro digno
de uma norma de infância que exclui grandes mentos de viagem”. Referia-se que a vulne- e desejável, ou por efeito das alterações cli-
grupos de crianças cujas condições materiais rabilidade decorrente da idade era agravada máticas.
e sociais de existência contrastam com os por outros fatores como a educação, etnia, Dá-nos também a medida do esforço neces-
mínimos éticos que concretizam os direitos rota de viagem e a circunstância de ser ou sário para contrariar a tendência de banali-
humanos da criança. não acompanhada. zação do sofrimento que esta situação com-
Como adverte Lurdes Gaitán (2011, p.29), a No mesmo ano a UNICEF estimava que o porta, de forma a pensarmos em termos de
forma como foram concebidos e elaborados número de migrantes internacionais era de direitos na situação das crianças refugiadas e
os direitos enunciados na CDC reflete uma 272 milhões e que destes, 33 milhões eram requerentes de asilo, sobre quem tão pouco
ordem social desejada e, assim, define a po- crianças, e que dos 41 milhões de pessoas sabemos ainda, apesar de estarem presentes
sição social das crianças na sociedade e a deslocadas internamente em 2018 devido entre nós.
repartição de papéis entre os encarregados a conflitos e violência, cerca de 17 milhões O que importa reter é que os pedidos de asi-
de proteger os seus direitos e facilitar o seu eram crianças. lo são sempre justificados por reais ameaças
exercício: o Estado e a família. O ingresso no universo dos indicadores so- de violação de direitos humanos e/ou pela
Neste artigo, propomo-nos refletir sobre a bre a situação das crianças migrantes e re- impossibilidade ou indisponibilidade de pro-
particularidade da situação em que se en- fugiadas é tanto mais assustador quando se teção no país de origem, e que os direitos
contram as crianças migrantes e refugiadas constata que a imprecisão dos dados dis- destas crianças ao cuidado e à educação são
e as crianças ciganas, na sua qualidade de poníveis sobre a situação das crianças é ela definidos segundo mínimos éticos que se
atores sociais e de sujeitos que são dupla- mesma um fator que agrava a invisibilidade pretendem universais.
mente invisibilizados na sua condição de das crianças mais vulneráveis. São assustadores os números das crianças
titulares do direito a proteção, provisão e Noutro documento da UNICEF, A Call to Ac- que morreram à chegada à Europa pela rota
participação social. tion: Protecting children on the move starts do Mediterrâneo central. Igualmente assus-
with better data, pode ler-se o seguinte: tador é o número de crianças que são sepa-
A banalização das circunstâncias “Apesar dos maiores esforços na última dé- radas das suas famílias à chegada ao novo
de infâncias vividas entre lugares cada, ainda não sabemos o suficiente sobre território. As crianças não acompanhadas e
de não-pertença as crianças em movimento: a sua idade e as crianças apátridas deveriam ser protegi-
Em 2016, a UNICEF publicou um relatório – o seu sexo; de onde vêm, para onde vão e das contra os efeitos do prolongamento do
Uprooted: the growing crisis for refugee and por que se movem, quer se movam com as tempo de reconhecimento do estatuto de
migrant children – cujo sumário era introdu- suas famílias ou sozinhos; como se safam refugiado, que define em grande parte o

19 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO

grau de exposição destas crianças às priva- internacional ratificada pela quase totalidade estatuto social e económico que depende do
ções e a múltiplos riscos que ameaçam a sua dos Estados. acesso à habitação, ao emprego e a redes de
integridade. apoio social formal e informal no novo meio
Porém, as circunstâncias em que cada uma O desconhecimento das circunstâncias de de inserção.
destas crianças vive a sua infância, com a ser criança e tornar-se imigrante A expectativa é que desenvolvam rapida-
sua família ou separada, não se define ape- Numa situação também delicada, mas dis- mente atitudes e comportamentos adapta-
nas pelo tempo e tipo de resposta ao pedido tinta daquela que acabámos de referir, es- dos à nova situação, sem ter em conta o seu
do estatuto de refugiado, que lhe permite tão as crianças que participam em processos próprio papel de sujeito que motivou a pro-
reclamar os mesmos direitos que os das ou- migratórios planeados pelos pais, em busca cura de melhoria de condições de vida pelos
tras crianças estrangeiras que vivem no país de sobrevivência e de oportunidades de vida. pais e de ator social no novo contexto fami-
de acolhimento. A história que constroem Crianças que veem drasticamente alteradas liar, escolar e social. Tendemos a ver as crian-
na interação com os outros, segundo uma as condições objetivas e subjetivas de exer- ças como objetos de cuidado e, assim, como
rotina que se estrutura em torno do acesso cício dos seus direitos enquanto crianças. beneficiárias ou vítimas das circunstâncias
à alimentação e a outras ajudas essenciais à Trata-se de crianças que vivem diariamente criadas pelos adultos e, por isso, pouco valo-
sua sobrevivência e à dos adultos que lhes o efeito de circunstâncias pessoais e fami- rizamos as preocupações e a responsabilida-
servem de referência, é constrangida pela liares que exigem um esforço de adaptação de que estas crianças assumem também em
coabitação, por tempo indeterminado, em coletivo e continuado às novas condições e relação aos pais e à família.
locais que vão dos centros de trânsito aos expectativas do país de destino a partir da Refletir sobre os direitos das crianças imi-
assentamentos informais, sem condições de experiência já vivida e incorporada no país de grantes exige que se reconheça a sua in-
privacidade, com difícil acesso a serviços bá- origem. fluência e vulnerabilidade como participantes
sicos, de saúde e educação ou até informa- Raramente as condições e os problemas que de um fenómeno de grande escala, que re-
ção sobre a sua situação e sobre questões afetam a vida quotidiana das crianças que flete o agravamento da desigualdade econó-
ou procedimentos legais. imigram são tomadas em conta nas intera- mica e politicamente estruturada a nível glo-
Deste modo, fora do âmbito da responsabili- ções e na comunicação que se estabelece bal. Exige que se reflita sobre os processos
dade de proteção pelos Estados, as crianças com elas, mesmo nas instituições que as en- psicossociais que reproduzem e geram novas
encontram-se em circunstâncias de grande quadram: a família e a escola. Pouco se refle- exclusões, mas também que se reconheça
precariedade, pela impossibilidade de recla- te sobre os motivos que estiveram na base a existência e experiência das crianças e as
mar sequer a provisão das suas necessida- do projeto ou da inevitabilidade da imigração estratégias de adaptação que elas desenvol-
des humanas básicas comuns aos adultos. A dos pais. Pouco interesse merecem, da parte vem e propõem na circunstância de quem
possibilidade de reclamar por elas os míni- da sociedade de acolhimento, as experiên- parte, de quem fica à espera e de quem che-
mos éticos estabelecidos como direitos in- cias de viagem, de chegada e instalação, dos ga, após uma separação temporária dos pais,
dividuais, fazendo ou não valer os princípios primeiros contactos com outros modos de enquanto crescem e vivem a sua infância.
do superior interesse da criança, da sobrevi- vida vividos pelas crianças ou as suas preo-
vência e desenvolvimento, da não discrimi- cupações com a possibilidade de fazer novos A invisibilidade da dupla pertença como
nação e da participação fica nas mãos das amigos ou de manter o relacionamento com circunstância de ser criança, portuguesa
instituições e dos adultos. os que deixaram no país de origem. Pouca ou e cigana
Ora, sendo o tempo da infância o agora dos nenhuma atenção dispensamos à experiên- Um dos grupos que nos merece maior aten-
sujeitos que a vivem e aí desenvolvem o cia de perda, de recuperação e reconstrução ção em termos de garantia de direitos hu-
sentido de si mesmos, na interação com os de espaços e laços de afeto e intimidade. manos fundamentais é o das crianças ciga-
outros que lhes dão a compreender o mun- Quando procuramos atender às suas ex- nas, crianças que pertencem à minoria mais
do, impressiona-nos o facto de os mitos e periências e expectativas de participação, numerosa que habita o espaço europeu e
os medos das sociedades onde as crianças integração e adaptação na escola, frequen- nacional e que vive, maioritariamente, em
pedem refúgio terem de ser observados e temente escapa-nos a devida consideração circunstâncias de grande vulnerabilidade, de-
desconstruídos como barreiras efetivas ao pelas mudanças simultâneas que estas crian- vido à pobreza e à discriminação no acesso a
acolhimento imediato destas crianças e das ças e as suas famílias enfrentam. Desvalori- oportunidades que lhes permitiriam superar
suas famílias, opondo resistência a uma lei zamos as preocupações com a mudança de esta adversidade.

20 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


Trata-se de meninos e meninas que crescem Fundamentais proíbe a discriminação basea- vida, afirmadas como concretização de direi-
frequentemente em territórios segregados, da em critérios de “raça”, cor, origem étnica tos humanos universais.
muitas vezes invisíveis para a sociedade ou social, para referir a baixa eficácia da re- Esta situação de especial vulnerabilidade
maioritária, da qual vivem à margem, e iso- comendação de que os governos incluíssem, é confirmada pelo Comité dos Direitos da
lados da vida social que é gerada em torno nos objetivos nacionais da estratégia Europa Criança das Nações Unidas que, no seu Rela-
das instituições e dos eventos sociais onde 2020 e nos programas nacionais de reforma, tório sobre o cumprimento de compromissos
as crianças da mesma idade são socializadas o compromisso de garantir às famílias ciga- de Portugal na implementação da Conven-
como cidadãs e membros da comunidade nas o acesso a habitação adequada, com ção sobre os Direitos da Criança recomenda
local. Além de estarem quotidianamente ex- água canalizada, eletricidade e espaço sufi- o reforço da atenção no que se refere ao
postas aos efeitos da precariedade das con- ciente e a garantia de não discriminação dos princípio da não discriminação.
dições de habitação, saúde e proteção pelas seus membros no acesso ao emprego ou à
redes sociais de vizinhança que constituem a função pública. Da leitura do mundo à tomada de posição
designada “sociedade providência”, as crian- O relatório em questão faz uma referência face à (des)igualdade e à (in)diferença
ças ciganas veem muito frequentemente o explícita à discriminação e segregação das Talvez hoje, mais do que em qualquer outro
seu processo de integração social bloqueado crianças ciganas das e nas escolas e reco- momento da história, se espere dos educa-
por atitudes de afastamento e de rejeição menda a adoção de medidas que promo- dores um maior empenho na leitura crítica
pelos pares de que elas e as suas famílias se vam a igualdade de participação de todas, de uma ordem local que reflete fenómenos
negam a ser vítimas silenciosas e invisíveis. em turmas integradas, de acordo com a sua que ocorrem à escala global, exigindo maior
A especificidade desta circunstância requer idade, combatendo o risco do seu encami- reflexão sobre as opções e decisões que
que se reflita mais cuidadosamente sobre nhamento indevido para a educação espe- atendem a um quotidiano sujeito a uma
as condições de proteção, provisão e exer- cial, por alegadas dificuldades intelectuais. maior imprevisibilidade. Se antes era possível
cício do direito humano à participação so- Recomenda também que se criem incentivos alhearmo-nos do impacto da desigualdade
cial pelas crianças cujas expectativas sociais e apoio social à aprendizagem das crianças estrutural e da intensificação da diferencia-
estão organizadas por uma dupla pertença que previnam o abandono escolar e que pro- ção sociocultural decorrentes das migrações
identitária, enquanto crianças portuguesas e videnciem a mediação e resolução de confli- voluntárias e forçadas de grandes segmen-
ciganas. tos e/ou fenómenos de hostilidade. A ideia tos da população mundial, hoje cabe-nos as-
Constata-se que a resiliência coletiva que essencial que atravessa o conjunto das reco- sumir que as nossas decisões são parte ativa
a comunidade oferece aos seus membros, mendações deste relatório é a necessidade da reprodução de ameaças constitutivas da
como forma de proteção contra a hostilidade de se combater toda e qualquer forma de designada “sociedade de risco”.
e a assimilação e como condição de partici- discriminação de e por adultos ou crianças. Por outro lado, a educação não pode man-
pação na vida coletiva, pode contribuir quer Estes dados e recomendações dão-nos indí- ter-se à parte do campo social onde se rea-
para a banalização pela sociedade maioritária cios fortes da luta diária que as meninas e cendem as lutas contra as velhas formas
de atitudes e práticas que ferem a dignidade meninos ciganos têm de travar no quotidiano de discriminação e de violação de direitos
pessoal da criança, quer para o agravamento para verem reconhecidos e poderem exercer humanos e onde a maior facilidade de co-
do risco de autoenclausuramento comuni- e reclamar os mesmos direitos – objetivos e municação e a disponibilidade de escuta das
tário, na sua luta, que é também a luta das subjetivos – que as crianças não ciganas. O novas gerações em relação às minorias que
suas famílias, contra a estigmatização social. apoio da comunidade nesta busca de reco- foram menorizadas e silenciadas ao longo da
A Agência dos Direitos Fundamentais, criada nhecimento de dignidade e da razão que lhes história tem dado mais visibilidade ao prota-
pela União Europeia, publicou em 2018 um assiste e é muitas vezes negada contrasta gonismo dos próprios sujeitos na conquista
relatório sobre minorias e discriminação em com a atitude de indiferença ou aparente do reconhecimento da sua igual dignidade.
que os analistas expressam o seu desânimo neutralidade com que as instituições e os A agenda mediática, política e social que se
sobre o impacto da legislação e das medi- adultos testemunham a resiliência de muitas desenvolve neste novo clima social precisa
das de política com que os governos tentam crianças portuguesas ciganas na sua luta so- de ser assumida e aprofundada também no
corrigir a desigualdade entre ciganos e não litária de superação do efeito das barreiras campo da educação e do cuidado das crian-
ciganos em alguns países europeus, entre os materiais, psicossociais e socioculturais que ças.
quais Portugal. A Carta Europeia de Direitos constrangem o acesso a oportunidades de Não conseguimos dispensar aqui uma re-

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: ARTIGO

ferência a Paulo Freire quando afirmou, em A diferença que se experimenta


1992, na Pedagogia da Esperança, com que na alteridade e diálogo com estas
visitou a Pedagogia do Oprimido, o seguin- “outras” crianças
te: Neste ponto do presente artigo, introdu-
“Uma das tarefas do educador ou da edu- zimos a referência a três crianças que nos
cadora progressista, através de uma análise acompanham na construção do argumento
política e séria, é desvelar as possibilidades, aqui proposto para reflexão e discussão.
não importam os obstáculos, para a esperan- O primeiro, um menino sírio com cerca de
ça sem a qual pouco podemos fazer porque sete anos, que abandonou a cadeira do lugar
dificilmente lutamos e quando lutamos, en- de filho num painel onde a sua família, pela
quanto desesperançados ou desesperados, a voz do pai, tentava dar a compreender o dra-
nossa é uma luta suicida, é um corpo a corpo ma vivido na circunstância de ser refugiado. Figura 1 - Autorretrato.
puramente vingativo” (Freire, 1997, p. 6). Levantou-se e atravessou a sala para dizer
Encontramos no espaço de fronteira cons- que adorava ir para a escola, aprender e ter
truído entre o campo jurídico e político, onde amigos, mas que gostaria muito de ser con-
se inscreve a Convenção sobre os Direitos da vidado para os aniversários daqueles amigos
Criança, e o campo científico, onde se de- e que eles aceitassem o seu convite para vi-
senvolvem e aprofundam os estudos sociais rem à sua festa, como faziam os amigos que
sobre a infância, motivos para contrapor ao deixou na terra que ficou distante.
desânimo sentido face ao pouco impacto A segunda, uma menina cigana com cerca de
das medidas legislativas e políticas referido dez anos, que veio à entrada da escola, no
no relatório sobre minorias e discriminação espaço de espera do Conselho Diretivo, para
da Agência dos Direitos Fundamentais. uma reunião esquecida, exceto por ela, que
Somos desafiados a compreender a infân- trazia duas amigas para na mesma participa-
cia segundo e para além do que se define rem. “Não tínhamos marcado uma reunião
como o modo próprio de ser criança em cada para hoje?”, foi a pergunta com que afirmou Figura 2 - Reflexão sobre si como alteridade.
contexto histórico e cultural específico, para e reclamou o compromisso assumido para a
reconhecer as crianças como sujeitos e como organização de uma exposição que daria a
atores sociais que partilham entre si, como conhecer a toda a escola os percursos bem-
categoria geracional, a circunstância de in- -sucedidos e papéis sociais relevantes de
tegração, subordinada numa ordem social mulheres e homens ciganos na sociedade
estruturada pelos adultos e interesses que portuguesa a que sente pertencer.
nem sempre coincidem e, por vezes, estão A terceira, também uma menina, com cerca
em conflito com o interesse da criança. de oito anos, que em meio de uma ausculta-
Esta abordagem torna visíveis as relações ção de famílias imigrantes num município le-
de poder e as trocas que ocorrem segundo vantou o rosto do desenho que lhe foi dado
a distribuição de papéis sociais e de recursos para fazer como distração enquanto espera-
entre membros de diferentes gerações, bem va pela participação dos pais, para tomar a
como as diferenças estabelecidas pelo con- palavra numa discussão sobre a integração
texto sociocultural no interior de cada gera- na escola. Quis dizer que os seus pares, que Figura 3 - Busca de si em outros sujeitos de referência.
ção, que dão uma maior ou menor margem a excluíam ostensivamente das brincadeiras
de liberdade de ação das crianças como su- e ridicularizavam no recreio, estavam, aos
jeitos que interagem com os adultos e com poucos, a mudar, à medida em que come- levante é o facto inesperado e a desestabili-
os seus pares, participando dessa forma na çavam a conhecê-la melhor, porque também zação causada numa ordem social construí-
criação de ambientes e relações sociais. ela estava a aprender a falar português. da para a participação exclusiva dos adultos,
O que torna a memória destas situações re- mesmo em assuntos que afetam as vidas das

22 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


crianças. Cada uma delas propôs uma reinter- seus grupos de referência, mas também por em cuja elaboração intervêm tanto elemen-
pretação da condição que lhes era atribuída experiências sociais, pelo modo como as ou- tos individuais, pessoais, quanto ambientais,
como vítima da adversidade e da discrimina- tras pessoas a definem como criança e pelo próprios do meio social, podendo ambos
ção social a que estavam expostas pela sua modo como a compreendem e manifestam funcionar quer como elementos protetores
pertença a uma minoria social. O facto de as respeito pela sua experiência. quer como fatores de risco para o indivíduo”.
três situações terem ocorrido em espaços As crianças que aqui referimos têm histó-
onde a sua posição social de subordinação rias pessoais complexas, que não dependem A participação dos adultos como parceiros
ao adulto não estava claramente estabeleci- estritamente dos ambientes psicossociais na conquista de direitos pelas crianças
da pode ter criado condições de participação criados pela cultura familiar ou pelas condi- Não estamos sós quando admitimos que
destas crianças, que agiram no sentido de ções socioeconómicas. Ao construir as suas uma das principais conquistas do século XX
resgatar a própria dignidade como sujeitos, identidades pessoal e social, a criança pode foi a ratificação da Convenção sobre os Di-
nas circunstâncias excecionais que as afetam compatibilizar expectativas de diversos am- reitos da Criança pela maioria dos Estados
objetiva e subjetivamente. bientes e, embora a autoidentificação com nacionais. A tomada de consciência de que
Coprotagonizar a luta contra a invisibilidade outras pessoas ou grupos de referência a subscrição da Declaração dos Direitos da
e o sofrimento destas crianças e contribuir possa desafiar a identidade segura formada Criança, como forma especial de direitos hu-
para a sua resiliência e autodeterminação, nas primeiras relações e que mais perduram, manos, não era suficiente para assegurar o
como sujeitos individuais e coletivos, que se pode não haver conflito com a identidade respeito e o compromisso com a mudança
autodefinem como sujeitos de direitos hu- familiar, cultural. da realidade foi fundamental para que trinta
manos, implica admitir que também precisa- As crianças transitam entre a cultura privada anos depois, em 1979, os Estados e as socie-
mos de remover barreiras internas que nos da família e a cultura pública dos contextos dades de todo o mundo fossem convocados
imobilizam face à magnitude dos problemas institucionais onde são inseridas, em redes a dedicar um ano de atenção à condição da
e à inércia social. informais que lhes podem dar apoio e aces- infância e à vida das crianças (Ano Interna-
As circunstâncias em que vivem as crianças so a oportunidades de aprender a língua e cional da Criança), face à precariedade da
refugiadas, imigrantes e ciganas colocam de- estabelecer novas amizades, que também situação em que sobreviviam muitas delas,
safios relacionais importantes pela interliga- participam no sentido de si mesmas e do seu sem a garantia efetiva de reconhecimento da
ção entre a identidade pessoal e a identidade lugar no mundo. sua dignidade comum aos seres humanos de
social, que lhes dão o sentido de si mesmas As relações entre pares são fundamentais outras idades.
e a resposta à pergunta sobre qual é o seu para o reingresso das crianças que vivem cir- Foi precisa mais uma década para que, em
lugar no mundo. As características culturais cunstâncias adversas nos mundos sociais e 1989, os mesmos Estados fossem nova-
da família e da comunidade são parte cons- culturais construídos entre as mesmas, nas mente convocados pelas Nações Unidas,
tituinte da identidade pessoal das crianças suas interações. As crianças podem recupe- enquanto instância jurídica e política inter-
e garantem-lhes o sentimento subjetivo de rar a sua identidade de crianças pela expe- nacional criada para garantir a paz após duas
pertença. Todas as crianças transitam entre riência de pertencer a um grupo geracional guerras mundiais, a ratificar a Convenção so-
ambientes que promovem a sua individuali- que se diferencia dos adultos. Esta outra bre os Direitos da Criança, agora com caráter
dade dentro da ligação com uma identidade pertença, que se nutre da amizade, pode vinculativo. Os Estados passaram, desde en-
coletiva, que alimenta o sentimento de per- dar-lhes a experiência de intimidade, apoio, tão, a ser avaliados, a cada quatro anos, pelo
tencer e ser influenciado por um grupo ou confiança e mutualidade que ajuda as crian- cumprimento do compromisso assumido de
uma cultura. ças a enfrentar circunstâncias difíceis. adequar a legislação e adotar medidas para a
No entanto, tal não impede que, desde Importa, no entanto, considerar que esta ex- implementação dos princípios e dos direitos
muito precocemente, as crianças adquiram periência pode ser negativa e deve merecer estabelecidos como mínimos éticos a garan-
competências, conhecimentos e compor- cuidados e um investimento orientado para tir a todas e a cada uma das suas crianças.
tamentos que vão para além dos que são o desenvolvimento de identidades resilientes Vinte anos passados, detemo-nos a refletir
culturalmente valorizados, com os quais que protejam as crianças contra a discrimi- sobre o que é necessário enunciar, denun-
procuram sentir-se únicas e distintas dos nação. ciar, renunciar e anunciar como possibilidade
outros. A identidade social da criança não é, Como refere Lourdes Gaitán (2011, p. 65 ), “a de fazer a lei saltar do papel e dos discur-
pois, feita só de escolhas alimentadas pelos resiliência não é um sucesso, é um processo sos oficiais e benevolentes para as mãos

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: ARTIGO

Nunca será demais invocar o consenso ju-


rídico e político internacional para legitimar
quaisquer esforços de concretização do
instituído pela Convenção sobre os Direitos
da Criança. O que devemos evitar é a bana-
lização ou a sofisticação de um discurso que
deve ser apropriado pelas crianças cujo sofri-
mento é invisibilizado, em nome da universa-
lidade da norma de infância que estabelece
os mínimos éticos a que os Estados estão
obrigados.
Rita Marchi e Manuel Sarmento (2017) ana-
lisam este efeito paradoxal da aplicação
descontextualizada dos direitos da criança
tal como estão formulados. Também Lour-
des Gaitán e Manfred Liebel (2011) nos dão
a compreender como as crianças que não se
reconhecem como sujeitos de direito próprio
lutam por direitos coletivos, à margem e, por
vezes, contra o estabelecido por uma lei que
desconhecem ou que não faz sentido na sua
das próprias crianças como sujeitos e atores mínio da sociologia da infância, os direitos da vida quotidiana.
sociais que são mantidos na invisibilidade e criança são direitos de ação e contra a discri- A aprovação da CDC pelas Nações Unidas
no silêncio em questões que lhes dizem res- minação da idade que agrava a invisibilidade, e o Dia Mundial da Criança são marcos im-
peito. quando não a segregação e o esquecimento, portantes que as crianças devem sinalizar,
A novidade é o sentido de urgência da per- de grandes segmentos da população infantil, através de uma participação genuína que
gunta sobre quais são os assuntos que não cujas circunstâncias de vida tornam a condi- lhes seja significativa como afirmação do
dizem respeito a uma geração que integra ção de infância irreconhecível. seu estatuto como sujeitos e atores sociais
uma sociedade confrontada com a imprevi- concretos numa sociedade que as identifica
sibilidade dos efeitos do seu próprio modo O argumento do consenso como e posiciona socialmente no lugar de filhos e
de organização dos laços sociais, do funcio- recurso no “empoderamento” no desempenho do ofício de alunos, onde
namento das suas instituições e de discerni- das “outras” crianças são beneficiários da ação dos adultos e ob-
mento sobre questões que negam os seus A possibilidade de conquista de visibilidade jeto de proteção e de provisão de necessi-
próprios fundamentos, ou seja, a afirmação e de outras condições indispensáveis para o dades, como seres dependentes, imaturos e
da dignidade de todos os seres humanos, exercício dos direitos de ação pelas crianças em vias de se tornarem adultos e cidadãos.
também perspetivada na sua relação com a não pode dispensar a força do argumento Sem a cumplicidade dos adultos, a criança
natureza. moral de que nenhum país pode abster-se. não tem condições para reconhecer a par-
Neste trabalho, tivemos presentes três gru- O compromisso dos Estados de prestarem ticipação como um direito e uma condição
pos de crianças cujas circunstâncias nos contas sobre os seus esforços na adequa- necessária à sua emancipação de relações
obrigam ao questionamento da nossa visão ção da legislação e criação de medidas que de opressão e das circunstâncias de priva-
e compromisso com a justiça geracional e garantam os direitos de cada criança, na ção e ilegalidade que experienciam, quan-
cognitiva, num mundo complexo e con- sua igual dignidade como pessoas, é uma do a sua dignidade e autonomia não são
traditório, que merece ser compreendido e ferramenta de proteção e de emancipação confirmadas na relação com outros grupos
transformado por todas as gerações, sem a colocar nas mãos das próprias crianças, em geracionais. Todas as crianças, desde as
discriminação. tempos de radicalização do individualismo e idades mais precoces, precisam de adultos
Como nos têm avisado investigadores no do- do ressentimento social. que se disponham a dialogar com elas com

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alteridade. Precisam de adultos conscien- provedor benevolente que prescreve normas construídos na interação com outras crian-
tes das assimetrias de poder, das diferen- e limites, mas não escuta as crianças nos ças, seus pares. É na vivência quotidiana e na
ças de linguagem e de outros instrumentos próprios termos, enquanto outro diferente transição entre estes diversos ambientes psi-
cognitivos e comunicacionais que delimitam de si, e têm implicações importantes para a cossociais que elas vivem ou não a experiên-
fronteiras e regulam a liberdade de ação e formação do sentimento de si e para a ação cia de pertença, inclusão e identidade como
de interação, nos espaços criados para o social das crianças que enfrentam problemas membros do grupo, da família, da escola e
cuidado e a educação das crianças; espaços de grande complexidade. da comunidade.
onde é dado ao adulto o papel de agente, Ao serem escutadas, reconhecidas e confir- As crianças refugiadas, imigrantes e portu-
de sujeito de ação, e às crianças o lugar de madas como sujeitos de histórias pessoais e guesas ciganas precisam e merecem, por isso
sujeitos passivos da ação especializada e/ou familiares reais, vividas em contextos mate- mesmo, uma atitude de discriminação positi-
benevolente dos adultos. riais e sociais concretos, as crianças deixam va que, sem as estigmatizar, proteja e reforce
A mudança para um enfoque nos direitos de percecionar-se estritamente como bene- a sua experiência como sujeitos de direitos
pode ser um dispositivo fundamental para ficiárias de bem-estar ou como vítimas passi- humanos que são próprios e especiais, à luz
desnaturalizar esta assimetria, sempre que vas da negação ou violação dos seus direitos da Convenção sobre os Direitos da Criança,
as práticas de socialização, vigilância e con- humanos. É no aqui e agora das interações como lei de alcance internacional. É neces-
trolo não sirvam à função e dever de provi- com outros significativos que cada criança sário ter em conta o significado que elas re-
são das necessidades de saúde, educação e constrói e atualiza a sua identidade pessoal tiram ou atribuem aos princípios e provisões
proteção das crianças nas suas circunstân- e as múltiplas identidades sociais atribuídas que, embora sendo adequados à condição
cias concretas. e investidas por elas no desempenho dos de infância e afirmados como direitos univer-
O adultocentrismo, o familiarismo e o in- papéis sociais nos mundos sociais dos adul- sais, podem ser a negação da realidade que
fantilismo resultam desta visão do adulto tos, construídos para ela, pelos adultos ou conhecem. As crianças que viveram ou vivem
em circunstâncias adversas ou desafiantes
como aquelas que revisitámos precisam de
reconhecer a sua pertença comum ao grupo
geracional, que é representado ora como um
sujeito abstrato e universal no qual não se
reconhecem, ora como existência humana
privada de dignidade e objeto de socorro hu-
manitário, na qual não deveriam reconhecer
a sua própria condição.
Seria importante também refletirmos sobre
quanto algumas crianças podem sentir-se in-
seguras ou ameaçadas com a possibilidade,
real ou imaginada, de a sua situação de des-
proteção e/ou privação de acesso a direitos
sociais ser redefinida em termos jurídicos, em
processos que sancionam a responsabilidade
parental. As crianças ciganas, por exemplo,
vivem um conflito importante na abordagem
feita aos problemas de mobilidade sazonal,
por razões económicas, por solidariedade
intracomunitária (em casos de doença, por
exemplo) que afetam a assiduidade. Elas po-
dem ter dificuldades reais de gestão de sen-
timentos de dupla lealdade, em relação aos
professores e à escola e em relação à família

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: ARTIGO

e à comunidade. As crianças imigrantes e re- de ser crianças que a sociedade ocidental con- rias ou forçadas das famílias e/ou dos proces-
fugiadas podem viver problemas com o uso sagra como regra e critério de avaliação. sos de diversificação sociocultural presentes
da língua materna e com as culturas de pares. As crianças que viveram ou vivem circunstân- na população infantil, o que constatamos é
O importante a reter é que é nas situações cias de privação ou de isolamento social gera- que toda a atenção é focada nas diferenças
mais comuns do dia a dia, na vida quotidiana, das pela pobreza e marginalização social, mui- de capacidade, de rendimento ou de compor-
vivida em e entre contextos fortemente es- tas vezes causadas pela estratificação social tamento social. Muito facilmente as crianças
truturados pelos interesses e papéis atribuí- e pela segregação territorial, precisam de ser dos grupos que aqui tivemos presentes re-
dos aos adultos, que cada criança encontra, discriminadas positivamente nas interações e caem numa destas categorias para as quais
ou não, a possibilidade de exercer a totalidade acesso a oportunidades. Uma abordagem da de prescrevem, quase automática e acritica-
dos seus direitos, vendo assim confirmada, ou desvantagem baseada no enfoque nos direi- mente, a educação multicultural, a educação
não, a sua dignidade como ser humano que tos obrigaria a que os educadores questio- especial ou a educação social, no seu objetivo
nasce livre e igual como todos os outros. O nassem criticamente o seu próprio modo de comum de compensar o efeito de alegadas
presente, o aqui e agora das interações e dos relação com as crianças e, indiretamente, com “incapacidades” ou mesmo “défices” sociocul-
contextos intra e intergeracionais é efetiva- as suas famílias e/ou comunidades. turais e de adaptação e integração social.
mente o lugar e o momento onde se jogam Quando observamos as conceções e práticas Ao contrário do que pressupõe e propõe o
todas as possibilidades de as crianças pode- com que a educação tem procurado respon- desenvolvimento de uma sociedade e uma
rem ou não reproduzir ou reinventar o modo der à intensificação das deslocações voluntá- educação inclusivas, o foco é a diferença e o

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indivíduo e não o contexto social como fonte fica como crianças. As crianças que vivem em REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
de recursos, onde estas crianças encontram circunstâncias como aquelas que revisitámos Freire, P. (1997) Pedagogia da Esperança. Um Encon-
tro com a Pedagogia do Oprimido. S. Paulo. Paz e
barreiras psicossociais à sua participação e precisam de se apropriar deles como ferra-
Terra.
aprendizagem muito concretas e evidentes. mentas de emancipação individual e coletiva Gaitán Muñoz, Lourdes, Liebel, Manfred (2011), Ciu-
As crianças oriundas de países e de minorias de relações que as invisibilizam, silenciam e dadania y Derechos de Participacion de los ninõs,
socialmente desvalorizadas estão especial- oprimem, pessoal e socialmente. Universidad Pontifícia de Madrid y Editorial Sintesis.
mente expostas ao efeito de estereótipos e A superação da condição de integração so- Gaitán, L. (dir.), Díaz, M., Sandoval, R., Unda, R.,
preconceitos naturalizados e consentidos ta- cial subordinada que partilha com as outras Granda, S., Llanos, D. ( 2007), Los niños como actores
en los procesos migratórios. Implicaciones para los
citamente. O foco na diferença, em qualquer crianças na ordem social estruturada pelos proyectos de cooperación. Universidad Complutense
traço que identifique e diferencie o indivíduo adultos é fundamental para aquelas que não de Madrid, Facultad de Ciencias Políticas y Sociología.
ou um grupo de indivíduos de uma minoria, veem direitos humanos fundamentais ga- Madeira, R. (2013) A participação das crianças na
pode suscitar formas de tratamento social rantidos pela ligação à família ou ao Estado. esfera pública: a desigualdade social como desafio.
diferenciado e diferenciador. As crianças cuja Mais do que quaisquer outras, as crianças Revista REDITEIA n.º 46. Bem-estar infantil. EAPN Pt.
Rede Europeia Anti Pobreza.
diferença é objetivada, dada a apreciação não reconhecíveis como crianças – filhas Marchi, R; Sarmento, M (2017). Infância, normativi-
coletiva, podem ver a sua identidade social e alunas – como as define o modo de ser dade e direitos das crianças: transições contemporâ-
como membros do grupo ser vulnerabilizada criança no Ocidente, precisam de ser legiti- neas. Educação & Sociedade, Campinas, v. 38, n.º 141,
por reações de estranhamento, atitudes de madas e apoiadas na afirmação da sua iden- pp. 951-964, out.-dez. 2017.
discriminação, marginalização, segregação tidade. Precisam de sentir-se, identificar-se Santos, Boaventura de Sousa (2006), A Gramática
do tempo: para uma nova cultura política. S. Paulo.
espacial que podem chegar à exclusão. e investir-se como sujeitos de direitos de Cortez.
Reconhecer as crianças como sujeitos de proteção, provisão e participação social. Para
direito próprio e como atores sociais com- tal, precisam de relações de alteridade com
petentes implica um esforço discreto mas adultos de referência que ampliem os con- DOCUMENTOS A CONSULTAR
consistente de mediação das interações, textos onde possam escolher e apropriar-se UNICEF 2016a Uprooted: The Growing Crisis for Re-
de apoio à construção de relações de reci- de recursos para construírem identidades fugee and Migrant and Forcibly Displaced Children.
UNICEF, New York.
procidade simétrica, de que possam surgir pessoais e sociais resilientes à discriminação UNICEF and IOM 2017 Harrowing Journeys: Children
a amizade e a capacitação das crianças para social. and Youth on the Move across the Mediterranean
reconhecerem e reclamarem direitos, por- A sua presença e participação nos espaços Sea, at Risk of Trafficking and Exploitation.” UNICEF,
que, como afirma Boaventura Sousa Santos, públicos onde se constrói e sanciona a res- New York.
“temos o direito a ser iguais, sempre que a ponsabilidade coletiva de equidade, no reco- UNICEF et al. 2018 A Call to Action: Protection Chil-
dren on the Move Starts with Better Data. UNICEF,
diferença nos inferioriza; temos o direito de nhecimento e redistribuição social, são uma New York.
ser diferentes, sempre que a igualdade nos oportunidade de aspirarem a uma existência FRA (2018) Fundamental Rights Report 2018. https://
descaracteriza” (2006, p. 462). digna, para si e para o grupo geracional a fra.europa.eu/sites/default/files/fra_uploads/fra-
Não basta às crianças dos grupos sociais dis- que pertencem, como parte da população -2018-fundamental-rights-report-2018_en.pdf
criminados pela pertença a minorias nacio- do território. A máxima de “tudo por nós,
nais ou étnico culturais que estão expostas nada sem nós” deveria poder ser reclamada
ao preconceito e a discriminação conhecer também pelas crianças que ouvimos, pela
os instrumentos legais que garantam o res- voz das duas meninas e do menino que nos
peito pela dignidade de uma criança abstrata interpelaram no lugar de sujeitos que intuí-
e universal ou pela iniquidade das crianças ram ou quiseram apresentar-se aos adultos
vítimas da negação, do desrespeito ou da naquele contexto inusitado.
violação dos direitos instituídos pela Conven-
ção sobre os Direitos da Criança. Os direitos
devem ser postos, de forma ética, informa-
da e delicada, nas suas próprias mãos como
indivíduos, como grupo particular e como
membros do grupo geracional que as identi-

27 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO
Infância: da pobreza e exclusão social ao bem-estar e inclusão.
(Re)pensar o nosso papel na transformação
Ana Teresa Brito . Fundação Brazelton Gomes-Pedro para as Ciências do Bebé e da Família

Pode alguém ser livre (mos) a viver juntos. Nesta proposta, defen- As imagens poderosas desta série de do-
se outro alguém não é dia-se uma “análise partilhada dos riscos e cumentários ajudam-nos a compreender o
a algema dum outro dos desafios de futuro”, conduzindo “à reali- caminho de conquistas realizado, emocio-
serve-me no pé zação de projectos comuns (…) a uma gestão nando-nos pela força e resiliência que, ao
nas duas mãos, inteligente e apaziguadora dos inevitáveis longo do nosso tempo de vida, enquanto
sonhos vãos, pesadelos conflitos” (Delors, 1996, p. 19). portugueses, enquanto país, revelámos.
diz-me: Uma década mais tarde, em 2007, uma sé- Simultaneamente, apontam para algumas
Pode alguém ser quem não é? rie de documentários, da autoria de António características identitárias que se mantêm
Sérgio Godinho, álbum Pré-Histórias, 1972 Barreto, denominados Portugal, um retrato no tempo presente: imagens quase para-
social, procurava justamente dar a conhecer das, em “tempos líquidos, em que nada é
Eixo diacrónico – como num filme a forma como tínhamos vivido e vivíamos duradouro, seguro, previsível” (CNE, 2017),
Falar da pobreza e da exclusão na infância então juntos. Traçava um retrato de Por- como se o mundo, veloz, corresse em filme,
é sentir a nossa fragilidade e vulnerabilidade tugal sustentado no nosso eixo diacrónico, e a pobreza e a exclusão, ainda que, neces-
humana no âmago de quem somos. A estrofe ao longo do tempo, para a compreensão do sariamente, com expressões diferentes aos
de abertura, de uma canção antiga, permane- tempo presente. Um retrato da sociedade longo do tempo, teimasse em mover-se em
ce, na sua atualidade, como um alerta, uma e dos Portugueses, como resultado de um câmara lenta.
alavanca de inquietação. processo de transformações muito rápidas. É neste caminho desafiante, a diferentes
Falar da pobreza e exclusão social na infância, O documentário evidenciava, de forma clara velocidades, que tomamos como um mar-
no nosso país e no mundo, é sentir a ferida e sustentada, temas fundamentais caracteri- co fundamental a assinatura da Convenção
que abrem na nossa dignidade, no respeito zadores da nossa identidade: da nossa gente dos Direitos da Criança (1989), realizada no
mais profundo pela vida, nas suas mil possi- que se tornou diferente; quem somos, quan- nosso país em 21 de Setembro de 1990 – há
bilidades. tos somos e onde vivemos; como ganhamos exatamente 30 anos. A Convenção sobre os
A progressiva consciência da força da edu- o pão, o que fazemos; o fim da sociedade Direitos da Criança, que as Nações Unidas
cação para as enfrentar foi iluminada por Ja- rural, a mudança de vida; o lugar dos outros adotaram por unanimidade, assenta num
ques Delors, no Relatório sobre a Educação e o nosso lugar, numa sociedade mais plural; conjunto de direitos fundamentais de todas
no século XXI para a UNESCO, desafiando- igualdade e conflito, atravessando as rela- as crianças – civis e políticos, económicos,
-nos a erguer um novo pilar educacional para ções sociais; e a progressiva aproximação a sociais e culturais. Sendo o tratado de di-
o milénio que então se abeirava: aprender uma sociedade europeia. reitos humanos internacionais mais ampla-
mente ratificado de sempre, não é apenas
uma declaração de princípios gerais: “quan-
do ratificada, representa um vínculo jurídi-
co para os Estados que a ela aderem, os
quais devem adequar as normas de direito
interno às da Convenção, para a promoção
e proteção eficaz dos direitos e liberdades
nela consagrados” (UNICEF, 2004).
Apesar das inegáveis conquistas realizadas
no nosso país nos últimos 30 anos, de que
são claro exemplo a melhoria nas condições
de vida, no acesso à saúde e à educação,
é importante permanecer alerta, mobilizan-
do intencionalmente, colaborativamente, a
nossa energia, sentido de compromisso e
responsabilidade na defesa inteira dos di-
reitos da criança.

28 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


Eixo sincrónico – como numa fotografia situa a privação material) constitui hoje um recursos educacionais, o estado de saúde;
Importa então, neste contexto, observar o aspeto central da teorização sobre infância e as subjetivas incluem indicadores relaciona-
nosso eixo sincrónico, a fotografia do mo- exclusão social” (p. 19). dos com a perceção de felicidade, qualidade
mento presente, olhando com atenção o re- No relatório da UNICEF sobre o bem-estar de vida e satisfação com o modo de vida. Há
trato atual da pobreza e exclusão social em em países desenvolvidos (2013), em que um consenso emergente de que o bem-estar
Portugal. Como se expressa esse vínculo, as- Portugal se inclui, apontam-se limitações deve incluir dimensões de bem-estar físico,
sumido no quotidiano de vida, no bem-estar, na avaliação comparativa do bem-estar na emocional e social; que deve focar-se nas
desenvolvimento e aprendizagem das nossas infância, salientando-se a ausência de indi- condições atuais de vida da criança, mas tam-
crianças? cadores importantes para a compreender: bém considerar a perspetivação da sua vida
Sob uma perspetiva macrossistémica, em a qualidade da parentalidade; a qualidade futura (Statham & Chase, 2010).
2018, um estudo da Organização para a da rede de educação de infância; a saúde
Cooperação e Desenvolvimento Económico mental das crianças – desenvolvimento e Um filme e uma fotografia
(OCDE) concluía que Portugal é dos países bem-estar das crianças; a exposição à vio- em tempo de pandemia
desenvolvidos onde é mais difícil sair da po- lência em contexto familiar; a prevalência Enquanto escrevemos este artigo, vivemos
breza. O relatório sobre este estudo, com o da negligência e do abuso infantil; a quali- um tempo de pós-confinamento, depois da
sugestivo título “Um elevador social estraga- dade e segurança dos espaços das crianças declaração do estado de emergência a 18 de
do – como promover a mobilidade social?”, (oportunidade para brincar em segurança); o Março de 2020, no âmbito da pandemia da
sublinhava que uma família portuguesa de bem-estar das crianças institucionalizadas; a covid 19, com o encerramento de creches, jar-
rendimentos baixos pode demorar cinco comercialização e erotização da infância; a dins de infância e escolas. Como podemos ler
gerações a chegar a um rendimento médio, exposição e os efeitos de todos os tipos de no mais recente Relatório da UNICEF Portu-
permanecendo num “piso pegajoso” que a media na vida das crianças. Como o relatório gal, Medidas para a ação local – promoção de
impede de progredir. também sublinha, a ausência quase total de ambientes seguros e protetores para as crian-
Por sua vez, o Instituto Nacional de Esta- dados de âmbito nacional sobre o desenvol- ças no pós-confinamento (Julho, 2020), esta
tística, no Inquérito às Condições de Vida e vimento de crianças muito pequenas pode situação “obrigou a que as crianças ficassem
Rendimento realizado em 2019 sobre rendi- refletir que a importância do desenvolvimen- em casa, quebrando as suas rotinas, contac-
mentos do ano anterior, indicava que 17,2% to na primeira infância apenas recentemente tos e relações sociais”, colocando “(…) em evi-
das pessoas estavam em risco de pobreza chegou ao conhecimento público e político. dência desigualdades pré-existentes, como a
em 2018, menos 0,1 ponto percentual que Em parte, também pode refletir a visão tra- desigualdade digital, pobreza ou género, entre
em 2017. Esta conquista era contrabalan- dicional de que a recolha de dados sobre a outras” (UNICEF, 2020, p. 3). O Relatório refle-
çada pela afirmação de que a presença das vida das crianças pequenas é impraticável, te sobre os elementos objetivos e subjetivos
crianças num agregado familiar “continua- potencialmente intrusiva, e de relevância do impacto deste tempo de isolamento em
va a estar associada a um risco de pobreza limitada para as políticas públicas (UNICEF, crianças, famílias e comunidades, propondo,
acrescido, sobretudo no caso dos agregados 2013, p. 37). numa perspetiva preventiva, a ação futura,
constituídos por um adulto com pelo menos É com esta lente sistémica que aproximamos tendo em conta o (tanto) que já sabemos so-
uma criança dependente (33,9%) e naqueles o nosso olhar das crianças mais novas – que bre as necessidades e forças que precisamos
constituídos por dois adultos com três ou “são altamente dependentes de um ambien- de observar e potenciar para ajudar a superar
mais crianças dependentes (30,2%)”. te acolhedor e amoroso e de recursos físicos a incerteza e fragilidade do desenvolvimento
Para a realização deste retrato atual, Manuel e económicos” (Sarmento & Veiga, 2011, p.22) das crianças, particularmente num contexto
Sarmento (2017) alerta-nos sobre a impor- – para que este bem-estar, transversal na de maior vulnerabilidade.
tância de (re)conhecer a multidimensionali- Convenção sobre os Direitos da Criança, se As propostas neste Relatório erguem-se, as-
dade do conceito de pobreza infantil, defen- traduza em realidade. sim, a partir da Convenção sobre os Direitos
dendo que: Afirmamos, assim, a multidimensionalidade da Criança, propondo medidas concretas para
“A colocação da pobreza infantil num quadro do conceito de bem-estar, incorporando di- os viabilizar num curto e médio prazo, “sem
mais geral que procura interpretá-la como ferentes perspetivas nesta análise, objetivas perder de vista o caminho para uma socieda-
multidimensional e especialmente articula- e subjetivas. As perspetivas objetivas incluem de mais centrada nas pessoas, na prosperida-
da com as condições de bem-estar (onde se aspetos como os rendimentos familiares, os de, no planeta e na paz, que não é outra se-

29 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO

não a Agenda 2030 e os seus 17 Objetivos de promotor de elevada qualidade – pode fazer nais no terreno, e contribuindo ativamente
Desenvolvimento Sustentável” (UNICEF, 2020, toda a diferença. Sabemos hoje, clara e fun- para políticas públicas baseadas em evidência
p. 5). No seu âmbito, destacam particularmen- damentadamente, que só “contextos de edu- científica” (CoLab, 2020). A Fundação Brazel-
te os objectivos que dizem respeito à 1 (po- cação de infância de boa qualidade podem ton Gomes-Pedro para as Ciências do Bebé
breza), 4 (educação), 5 (género), 10 (redução ter efeitos positivos no desenvolvimento das e da Família faz parte dos membros institu-
da desigualdade), 11 (cidades e comunidades crianças” com especial impacto “(…) protetor cionais dos seus órgãos sociais, juntamente
sustentáveis) e 16 (sociedades justas). no caso de crianças em contextos socialmen- com o Comité Português da UNICEF, a Euro-
Os princípios para a ação concreta que subli- te mais desfavorecidos” (Pessanha, 2019). O
nham centram-se na inclusão social e equida- conhecimento que hoje temos sobre a rele-
de, proteção, direito a brincar e participação. vância dos primeiros 1000 dias de vida (Cusick
As medidas para os materializar irradiam a & Georgieff, 2016), como fundação da pessoa
partir de um ambiente seguro e protetor ao na sua plenitude, assente nas mais recentes
nível do espaço físico, ao nível emocional, ao descobertas em neurociência, biologia mole-
nível da equipa e da participação das crianças. cular e epigenética, oferece-nos uma “oportu-
Todas são traduzidos numa listagem de temas nidade extraordinária para catalisar novas teo-
que nos ajudam a refletir sobre a qualidade rias da mudança e estratégias inovadoras para
deste ambiente multidimensional, nomeada- reduzir as consequências de adversidades no
mente, em educação de infância, que está ao início da vida” (Center on the Developing Child
nosso alcance materializar no âmbito de uma at Harvard University, 2016).
ação integrada, concertada e atempada. Abraçando (e abraçado) por este contexto,
surge em Portugal o Laboratório Colaborativo
Cruzando eixos – ProChild CoLAB ProChild CoLAB (2019), que tem como missão
contra a pobreza e a exclusão social desenvolver uma estratégia nacional no com-
Para a concretização destas medidas é neces- bate à pobreza e à exclusão social na infân-
sário cruzar eixos – diacrónicos, sincrónicos, cia “enquadrada numa abordagem científica
objetivos, subjetivos –, perspetivando-os transdisciplinar, articulando os setores público
como estratégicos para a nossa efetiva mo- e privado, vinculando académicos e profissio-
bilização contra a pobreza e a exclusão social,
apostando juntos na sua erradicação; neste
percurso é necessário manter viva a pergunta
que Jaques Delors (nos) colocava em 1996:
“viver juntos com que finalidades, para fazer
o quê?” (Delors et al., 1996, p. 52).
Em educação de infância esta é uma questão
maior. Cabe-nos, no cerne do nosso compro-
misso com cada criança, cada família e com as
suas condições de vida, afirmar e materializar
a relação como a essência do humano (Brito,
2019); cabe-nos afirmar que sem uma cascata
de cuidados (Gomes-Pedro, 2017), multidi-
mensional, sistémica, a imagem da pobreza
e exclusão continuará a apresentar-se “em
câmara lenta”. E é aqui que uma intervenção
em rede, colaborativa – exercendo a sua ação
com crianças muito pequenas, suas famílias,
em equipa, na comunidade, num contexto

30 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


pean Anti Poverty Network – Rede Europeia política social solidária com uma ação mul- Cusick, S. & Georgieff, M. K. (2016). The first 1,000
days of life: The brain’s window of opportunity.
Anti-Pobreza e o Instituto de Apoio à Criança tidisciplinar e integrada (…) combatendo os https://www.unicef-irc.org/article/958-the-first-
(IAC). Reunindo 18 associados – onde se in- problemas estruturais que estão na origem da -1000-days-of-life-the-brains-window-of-opportu-
cluem universidades, empresas, fundações pobreza” que não limitem esta ação “à mera nity.html
Delors, J. (1996). Educação: um tesouro a descobrir.
e autarquias – e mais de 60 investigadores distribuição de recursos”; defende ainda que Porto: Edições Asa.
e 15 centros de investigação, o ProChild Co- “este combate não pode ser apenas travado Fundação Brazelton Gomes-Pedro para as Ciências
LAB é a tradução da possibilidade do trabalho pelos órgãos do Estado. É um combate nosso, do Bebé e da Família (2018). Missão. Disponível em:
http://www.fundacaobgp.com/pt/missao
no combate à pobreza e à exclusão social na de todo o Portugal”. Gomes-Pedro, J. C. (2017). Pensar a criança, sentir o
infância, viabilizada na sua rede transdiscipli- Congratulo-me profundamente com esta ini- bebé. Lisboa: Zero a Oito Edições.
nar e plural de parceiros e associados. Como ciativa da APEI. Como pessoa, cidadã, docen- Instituto Nacional de Estatísticas (2020). Rendimento
e Condições de Vida. https://www.ine.pt/xportal/
afirma Rui Marques (2017), só uma governa- te, investigadora, assumo, em cada uma das xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTA-
ção integrada, colaborativa, pode criar com- minhas funções, o compromisso de defender QUESdest_boui=354099170&DESTAQUESmodo=2
petências fundamentais para enfrentar este os direitos das crianças, tomando também Marques, R. (2017). Problemas sociais complexos e
governação integrada. Lisboa: Fórum para a gover-
desafio: inspiracionais, inspirando e gerando como minha a assinatura da Convenção sobre nação integrada.
confiança; relacionais, estabelecendo e man- os Direitos da Criança realizada em Portugal Mendonça. T. (2019). “Os pobres”. Lisboa: Expresso
tendo relações; e operacionais, executando há 30 anos. Reiterando as palavras da EAPN https://expresso.pt/opiniao/2019-11-16-Os-pobres
OCDE (2028). Um Elevador Social Quebrado? Como
ações resultantes de um processo de colabo- Portugal: “Esta tem de ser uma causa nacional promover a mobilidade social. https://www.oecd.
ração entre organizações. em que todos apostem tudo”; é urgente, hoje org/portugal/social-mobility-2018-PRT-PT.pdf
e sempre, “fazermo-nos ao caminho” (Rede Pessanha, M. (2019). A qualidade é fundamental? Eis
a questão! Blogue Primeiros anos.PT. http://primei-
Bem-estar e inclusão – (re)pensar o nosso Europeia Anti Pobreza, 2020). Como nos diz rosanos.iscte-iul.pt/2019/12/04/a-qualidade-e-fun-
papel na transformação Jorge Palma (1991), e nós reafirmamos: damental-eis-a-questao/
As fundações de uma sociedade de suces- Enquanto houver estrada para andar ProChild CoLab - Against Child Poverty and Social Ex-
clusion (2020) https://prochildcolab.pt/
so começam na primeira infância. Todos os A gente vai continuar, Rede Europeia Anti Pobreza, EAPN Portugal (2020).
aspetos do desenvolvimento humano nos A gente vai continuar… Petição: “Carta aberta aos poderes políticos sobre a
primeiros anos de vida criam uma base fun- Enquanto houver ventos e mar Pobreza em Portugal” https://peticaopublica.com/
pview.aspx?pi=PT101005
damental para o futuro sucesso académico na A gente não vai parar Sarmento, M. J.& Veiga, F. (2010). Pobreza Infantil:
escola, cidadania responsável, produtividade Enquanto houver ventos e mar Realidades, desafios e propostas. V. N. Famalicão:
económica, saúde ao longo da vida, comuni- Jorge Palma, álbum Só, 1991 Edições Húmus, 2010.
Sarmento, M., Trevisan, G. (2017). A crise social de-
dades fortes, e até mesmo a capacidade de senhada pelas crianças: imaginação e conhecimento
ser pai ou mãe da próxima geração. social. Educar em Revista, 2, 17-34 https://www.scie-
Schonkoff, 2018 lo.br/pdf/er/nspe.2/0104-4060-er-02-00017.pdf
Schonkoff J. (2018). The Best Start in Life: Early
Em junho passado, a Rede Europeia Anti Po- Childhood Development for Sustainable Develop-
breza, EAPN Portugal, escreveu uma “Carta REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ment (MOOC). https://developingchild.harvard.edu/
aberta aos poderes políticos sobre a pobreza Barreto, A. (autor), Branquinho, R. (Produtor) & Pon- resources/mooc-best-start-life-early-childhood-de-
tes, J. (Realizadora). (2007). Portugal, um retrato so- velopment-sustainable-development/
em Portugal”, afirmando como a pandemia cial [documentário]. Portugal: RTP. http://www.rtp. Statham, J. & Chase, E. (2010). Childhood wellbeing:
“acentuou a vulnerabilidade dos grupos mais pt/programa/episodios/tv/p20216 a brief overview. London: Childhood Wellbeing Re-
desfavorecidos da sociedade portuguesa”, re- Brito, A. T. (2019). O que realmente importa numa edu- search Centre, Briefing Paper 1.
cação de infância de qualidade?, Vasconcelos, Cunha, UNICEF (2004). A Convenção sobre os Direitos da
forçando, que a pobreza é o principal proble- Folque, Brito e Ascensão, Educação de infância: o Criança. https://www.unicef.pt/actualidade/publi-
ma do país. Como afirma Tolentino de Men- que temos e o que queremos, pp. 32-35, EDULOG, cacoes/0-a-convencao-sobre-os-direitos-da-crianca/
donça (2019) “não podemos esquecer que a Fundação Belmiro de Azevedo, ISBN: 9781795401388 UNICEF (2013). Child well-being in rich countries A
https://edulog.pt/storage/app/uploads/public/ comparative overview. Innocenti Report Card, n. 11.
qualidade de uma sociedade democrática se 5c7/506/2b7/5c75062b73d4d101502268.pdf Florence: UNICEF. https://time.com/wp-content/
mede pela forma como os mais frágeis são Center on the Developing Child at Harvard University uploads/2015/04/rc11_eng.pdf
tratados”, convidando-nos a que passemos (2016). From Best Practices to Breakthrough Impacts: UNICEF (2020). Medidas para a ação Local-Promo-
A Science-Based Approach to Building a More Promi- ção de ambientes seguros e protetores para as crian-
da “resignação e da indiferença à ação”. Nes- sing Future for Young Children and Families. http:// ças no pós-confinamento https://www.unicef.pt/
te mesmo sentido, a Rede Europeia Anti-Po- www.developingchild.harvard.edu actualidade/publicacoes/medidas-para-a-acao-local/
breza afirma a necessidade de “garantir uma Conselho Nacional da Educação (2016). Estado da
Educação 2016. Lisboa: CNE.

31 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO
Direitos em creche: uma leitura a partir de Malaguzzi

Sara Barros Araújo . Escola Superior de Educação – Instituto Politécnico do Porto


Centro de Investigação e Inovação em Educação (inED)

Em 1993, Loris Malaguzzi publicou Uma Car- dania baseada nos direitos, distinta de uma com particular robustez representacional
ta dos Três Direitos (Una Carta per Tre Diritti, cidadania baseada nas necessidades das nos contextos de creche: a de um ceticismo
no original), um verdadeiro manifesto em crianças, muito em voga à data da redação endémico relativamente à sua competência
defesa dos direitos dos três protagonistas deste documento. Fortemente arreigado a e possibilidades. Assistimos com uma re-
centrais da educação de infância: crianças, este posicionamento encontra-se um dos gularidade preocupante à proliferação de
educadores/as e famílias. Enquanto con- pontos focais da filosofia de Reggio Emilia: práticas influenciadas por representações
tributo para um número temático dedica- a imagem da criança. Relativamente à ima- focadas no défice e na ausência (de com-
do aos direitos das crianças1, tomo como gem associada a bebés e crianças até aos petências motoras, linguísticas, cognitivas
referente este texto do grande pedagogo três anos reconhecemos uma tendência ou metacognitivas), na romantização ou
italiano, um autêntico primus inter pares
como Moss (2016) o definiu, para empreen-
der uma análise, necessariamente breve face
à notória envergadura do tema, de como os
direitos de crianças e adultos em creche são
considerados num projeto pedagógico de
cunho progressista e radicalmente democrá-
tico, a abordagem de Reggio Emilia. Assim, e
apesar de uma concentração mais visível nos
direitos de bebés e crianças mais pequenas,
consideramos ser de vital importância reco-
nhecer a interdependência sinérgica entre
os direitos daqueles três protagonistas. Na
perspetiva de Malaguzzi, que partilhamos, os
direitos das crianças não podem ser respei-
tados sem se verem reconhecidos os direitos
de outros coprotagonistas, designadamente
os profissionais e as famílias. Percorreremos
um itinerário que focará separadamente os
direitos de cada um dos atores, sem negli-
gência das sinergias necessárias e desejáveis
entre eles, marca distintiva da visão equita-
tiva e justa que a perspetiva malaguzziana
nos propõe.

Direitos das crianças


Malaguzzi começa por sublinhar, no docu-
mento que nos serve de base, os direitos
das crianças de serem reconhecidas como
sujeitos de direitos individuais, jurídicos, civis
e sociais. É, no entender de Rinaldi (2006),
a reivindicação por Malaguzzi de uma cida-

1 As fotografias apresentadas neste artigo são da au-


toria de Cláudia Almeida (plantação), Paula Teixeira
(brincar heurístico) e Sara B. Araújo (pintura). Agradeço
à Cláudia e à Paula, minhas ex-alunas e, entretanto,
mestras em Educação Pré-Escolar pela ESE do Porto,
a autorização para a sua utilização.

32 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


dulcificação deste grupo geracional. Para e de constituir um princípio ético fundacio- suficientes. Afigura-se igualmente vital, se-
Malaguzzi, um dos seus “não-suportáveis” nal do direito da criança a uma identidade. A gundo o autor, a construção de uma pletora
referia-se a todas/os aquelas/es que proje- imagem de criança de Malaguzzi é, então, a de histórias locais (p. 24), abertas à diversi-
tavam e difundiam a imagem de uma crian- de uma criança com direitos, curiosa, produ- dade e experimentação de ideias, projetos e
ça aniquilada pela sua fragilidade, pobreza, tora de cultura, competente na experimen- práticas, num ethos de experimentalismo de-
parca competência e imperfeição (Malaguzzi, tação do mundo e na comunicação, através mocrático. O estudo que temos vindo a fazer
1993, citado em Hoyuelos, 2004). Estamos, de cem linguagens, dos seus pensamentos, de abordagens pedagógicas para a educação
pois, perante uma apreciação (um julgamen- emoções e dos significados que constrói. em creche tem permitido reconhecer várias
to?) dos bebés e crianças mais pequenas por Esta conceção encontra-se claramente pa- destas histórias locais que foram paulatina-
referência ao adulto, que não deixa de refle- tenteada em Uma Carta dos Três Direitos, mente construídas ao longo de décadas na
tir um “viés adultocêntrico”, como o definiu que atribui às crianças potencialidades natu- interface da teoria e da prática, de valores e
Scott (2000), gerador de baixas expectativas rais de extraordinária riqueza, força, criativi- conceções acerca dos bebés e das crianças
e, potencialmente, de exclusão. É, nas ideias dade, as quais não podem ser desconhecidas mais novas (Oliveira-Formosinho & Araújo,
de Monteiro e Araújo (2016), o perigoso con- e desiludidas sem provocar sofrimentos ou 2018). Neste entendimento, estas perspeti-
fronto com o modelo hegemónico do cida- empobrecimentos na maioria das vezes ir- vas ou abordagens pedagógicas, onde se si-
dão, do cidadão adulto como modelo de um reversíveis (Malaguzzi, 1993). É, na síntese tua também a abordagem de Reggio Emilia,
ideal regulador de poder (pp. 73-74). Também de Fochi (2015) a partir das suas leituras da podem ser creditadas enquanto contributos
a este propósito, Rosemberg (2011) afirmou obra do educador italiano, a declaração de de grande relevância para que os direitos das
que, quanto menor a idade da criança, maior uma criança capaz, portadora do inédito, crianças em contexto de creche se afastem
a desvalorização no espaço público, e de que cujo potencial não deve ser traído, e que de um jogo de verbosidade (Freire & Faun-
o silenciamento sobre as crianças mais novas deve ser seriamente considerada. A pers- dez, 1985) e se concretizem na esfera quo-
constitui uma forma de discriminação deste petiva de Reggio Emilia esclarece que esta tidiana.
segmento social, associada à posição subsi- é uma imagem que deve prevalecer desde o
diária das creches e à própria discriminação nascimento e que os ambientes educativos Direitos dos profissionais
das mulheres. Na mesma linha, Barbosa tem deverão reconhecer e ser responsivos a esta Em Uma Carta dos Três Direitos, Malagu-
vindo a apontar a invisibilidade dos bebés e conceção poderosa de criança. Neste senti- zzi sublinha os direitos dos profissionais
das crianças mais pequenas nas políticas, nas do, assume que esta não é apenas possuido- de contribuírem para a elaboração e apro-
práticas pedagógicas, nos discursos sociais e ra de direitos, mas também construtora de fundamento dos quadros conceptuais que
na investigação (Barbosa, 2010; Gobbato & direitos, o que abre caminho à constituição definem conteúdos, finalidades e práticas
Barbosa, 2016). de espaços que sejam autogenerativos, ou da educação, em sintonia com direitos das
Malaguzzi (1994) defendeu que a imagem de seja, espaços em que a criança possa criar e crianças e dos pais. Segundo o pedagogo, a
criança representa o ponto de encontro que construir novos direitos (Rinaldi, 2006). participação em redes de colaboração e de
cria uma coerência interna entre a teoria e a É de notar que esta imagem de criança, e interação múltipla, abertas à atualização,
prática nos contextos de educação, consti- a centralidade da assunção dos seus direi- experimentação, ao diálogo e ao confronto
tuindo-se enquanto estrutura sustentadora tos, surge na própria Proposta de Princípios constituem direitos fundamentais das e dos
de todo o projeto educativo. No seu artigo Fundamentais de um Quadro de Qualidade educadores de infância. O pedagogo esclare-
“Your image of the child: Where teaching para a Educação de Infância da Comissão ce que “As/os educadoras/es devem abando-
begins” (1994), salienta a importância de se Europeia (2014) enquanto eixo matricial e nar um modo isolado e silencioso de trabalho
estar consciente e de se declarar uma ima- transversal. A proposta frisa uma imagem da que não deixa qualquer vestígio” (1998, p.
gem de criança e de infância que guie as criança como ser único, aprendente curioso, 69), reivindicando, antes, o trabalho colegial
ações, relações e propostas que se levam a competente e ativo, cocriadora de conhe- enquanto rutura deliberada com a tradição
cabo com as crianças. Esta definição clara e cimentos, cidadãos e cidadãs com direitos de isolamento e solidão profissionais e cultu-
pública, de natureza teórico-prática, serve próprios, entre os quais se conta o direito rais entre educadoras/es de infância.
ainda outros propósitos, nomeadamente o à educação e a cuidados. Todavia, como de- Em sintonia com o preconizado em relação
de apoiar a construção de consensos e a par- fende Moss (2017), estes quadros de referên- aos direitos das crianças, também no caso
tilha em torno das ações de diversos atores, cia mais amplos, sendo necessários, não são dos profissionais Malaguzzi reconhece uma

33 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO

creche relativamente aos seus pares que tra-


balham na educação pré-escolar. O estudo
traz também evidências de que a preparação
poderá ser menos rigorosa, menos clara e
menos consistente do que a realizada com
profissionais a trabalhar com crianças mais
velhas, e que as experiências de estágio
em creche têm uma presença marginal em
muitos programas de formação profissiona-
lizante; ainda, a análise de alguns estudos
identificou fragilidades ao nível dos conhe-
cimentos das e dos formadores do ensino
superior relativamente às particularidades da
educação e cuidados em berçário e creche.
Todavia, há também um cenário que nos
poderá trazer ânimo. De facto, no âmbito
da nossa experiência ao nível da formação
e extensão, temos vindo a contactar com
dezenas de profissionais profundamente
motivadas para a aprendizagem profissio-
nal acerca das especificidades e subtilezas
da intervenção pedagógica em creche. Nos
últimos anos, e no âmbito dos seminários
Ser Bebé promovidos pela APEI, a adesão de
centenas de profissionais em vários pontos
do país, a expensas próprias em termos fi-
nanceiros e de tempo, faz-nos reconhecer
uma motivação e compromisso verdadeira-
mente promissores.
imagem robusta, aliada a elevadas expec- são claros: o direito à formação e as condi-
tativas. O pedagogo adianta que os profis- ções de trabalho em creche necessitam de Direitos das famílias
sionais sentem a necessidade de crescer em uma urgente revisão e mudança no contexto Malaguzzi sublinha também, no documento
competências, de transformar experiências português. que nos serve de referência, os direitos dos
em pensamentos, pensamentos em refle- No que concerne à formação, os dados não pais/famílias de participarem ativamente nas
xões, e reflexões em novos pensamentos são animadores. De facto, vários estudos so- experiências de crescimento dos seus bebés
e em novas ações (Malaguzzi, 1998). Este bre a realidade portuguesa têm evidenciado e crianças, no âmbito daquilo que designou
crescimento em competências encontra-se falhas ao nível da formação inicial e contí- o entrosamento cooperativo entre os con-
intrinsecamente associado às possibilidades nua destes/as profissionais para a educação textos de educação de infância e os pais. O
de formação de que podem beneficiam ou e cuidados em creche (e.g., Araújo, 2018; pedagogo sublinha a este propósito: “Nada
criar, sobretudo aquelas que acontecem em Coelho, 2005; Oliveira-Formosinho, 2011). No de procurações, nada de retraimentos.”
contexto de trabalho. Estamos perante um cenário internacional, o panorama é também A propósito da experiência reggiana,
direito irredutível dos profissionais: o direito preocupante. A recente revisão de literatu- Spaggiari (1998) adianta que os centros de
à formação, que é, por seu turno, uma con- ra levada a cabo por Araújo e Bussey (2020) atendimento constituem ambientes em que
dição para a garantia dos direitos das crian- concluiu que na maioria dos países analisa- todas as partes interessadas (crianças, edu-
ças, das famílias e das próprias mulheres. dos é exigido um nível de qualificação mais cadores e pais) são, concomitantemente,
Neste apartado, os dados de que dispomos baixo às e aos educadores que trabalham em educadores e aprendizes. Neste entendi-

34 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


mento, a participação das famílias na vida deverá perpassar uma imagem do sistema num momento de pré-inscrição e flexibilida-
quotidiana dos centros é favorecedora do como acessível às famílias e favorecedor da de face à diversidade de famílias e respetivas
processo educativo da criança, do seu bem- participação destas. Em relação ao primei- necessidades. No que concerne ao segundo
-estar, e de uma cultura da paz, materiali- ro aspeto, as autoras frisam a necessidade aspeto, convoca-se como central a neces-
zada no diálogo contínuo, nas realizações de as famílias serem informadas acerca dos sidade de os programas comunicarem aos
conjuntas e na partilha de responsabilida- programas e serviços disponíveis, os quais se pais a contribuição básica que representam
des e tarefas. Também Edwards e Gandini devem caracterizar por uma grande transpa- no desenvolvimento das crianças, bem como
(2001) referem que a definição de qualidade rência na sua organização, abertura a visitas propiciar oportunidades para que aqueles
se sintam e se tornem participantes na vida
do centro. Na ótica de Malaguzzi (1998), um
projeto educativo desta natureza exige um
planeamento cuidadoso no que diz respei-
to a procedimentos, motivações e interes-
ses, considerando centralmente formas de
encontro e de intensificação de relações,
o assegurar de uma atenção completa aos
problemas educativos e um foco primordial
na participação e na investigação.

Comentários finais
Quando convidado a discorrer sobre Reggio
Emilia numa entrevista largamente conheci-
da (Malaguzzi, 1998), o pedagogo sublinhou
que o isolamento, a indiferença, a violência e
a alienação constituíam fenómenos da vida
social contemporânea que a abordagem de
Reggio Emilia se dedicou (e dedica) a contra-
riar. Cada um destes fenómenos representa
potenciais ameaças e desafios a direitos fun-
damentais dos coprotagonistas dos proces-
sos vivenciais e educativos nas creches, que,
acreditamos, só poderão ser contrariados
no âmbito de uma pedagogia das relações,
entendendo a relação enquanto conjunção
dinâmica de forças e elementos que inte-
ragem no sentido de um propósito comum
(ibidem). Nesta medida, falarmos sobre co-
munidade parece-nos indispensável quando
falamos sobre a salvaguarda de direitos. Re-
cuperamos, a este propósito, uma recente
intervenção de José Tolentino de Mendonça
(2020) que nos relembra que a raiz etimo-
lógica da palavra comunidade (communitas)
associa dois termos (cum e munus), assina-
lando que os membros de uma comunidade
estão ligados por um munus, ou seja, por

35 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO

Mendonça, J. T. (2020). “O que é amar um país.” In-


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36 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO

Brincar, o direito (des)conhecido


Carlos Neto . Faculdade de Motricidade Humana Universidade de Lisboa

A valorização e consciência dos direitos nuar esses novos problemas passou a ser ur- maturidade morfológica, orgânica, sensorial,
das crianças é, na realidade, uma aquisição gente no sentido de humanizar os contextos percetiva, cognitiva e motora necessita de
muito recente, direitos que só nos finais de brincar livremente. Neste sentido, devem muito tempo para atingir níveis adequados
do século XIX atingem uma mudança sig- ser inumerados alguns desses problemas re- de adaptação e regulação interna para que
nificativa quanto à proteção da infância. A lacionados com o direito a brincar e a parti- as crianças sejam eficientes no seu controlo
compreensão sobre a complexidade do de- cipação em crianças e jovens e colocados em postural, capacidade de locomoção e preen-
senvolvimento humano e as diversas áreas contexto de reflexão e decisão pedagógica e são, linguística, lógica e expressiva. Não in-
científicas que sustentam a explicação deste terapêutica. A criança tem direito: teressa apressar aquisições que estão mar-
fenómeno deram uma contribuição decisiva cadas pelo tempo filogenético e ontogénico.
durante o século XX. Devem ser anotados 1. De ter tempo disponível para que tenha Antes de manifestarem as suas tendências
dois momentos históricos neste processo: tempo de poder ser criança. (talentos) não interessa estar a impor lógicas
1. A Declaração Universal dos Direitos da Vivemos numa sociedade em que os adul- adultas para as formatar de acordo com um
Criança (20 de novembro de 1959); tos vivem a correr no seu quotidiano, sem plano previamente estabelecido e semelhan-
2. A adoção pela Assembleia Geral das existir consciência de que as crianças têm te para todos. Ser criança vive-se em situa-
Nações Unidas da Convenção dos Di- uma perceção temporal diferente de viver ções incertas, inesperadas, para progredir
reitos das Crianças (20 de novembro de e de acordo com as suas caraterísticas in- com a segurança (proximidade) desejada e
1989). dividuais. As crianças não se desenvolvem à enfrentar por tentativa e erro a aprendiza-
Todos os Estados aderentes foram produ- pressa e em conformidade com as urgências, gem autodeterminada no seu progresso e
zindo instrumentos jurídicos na promoção necessidades e vontades dos adultos. Tempo confronto com o mundo exterior (distância).
dos direitos das crianças, tornando-se este para ser criança implica experimentar e testar Este vaivém entre dar proximidade (seguran-
fenómeno um processo notável de evolução o seu corpo como identidade primeira e de ça, afeto e alimento) e distância (autonomia,
e desenvolvimento de políticas públicas as- seguida o mundo complexo que a envolve. A descoberta e risco) será a referência funda-
segurando a obrigação de promover o de-
senvolvimento físico-motor, social, moral,
emocional, cognitivo e social de crianças e
jovens. Nesta sequência, interessa salientar
o artigo 31º sobre a promoção dos direitos
ao brincar, que define “o direito ao lazer, ao
jogo e aos tempos livres” e o artigo 12º so-
bre o direito à participação, “que garante à
criança a capacidade de discernimento sobre
o direito de exprimir livremente a sua opinião
sobre questões que lhe digam respeito, sen-
do devidamente tomadas em consideração
as opiniões da criança, de acordo com a sua
idade e maturidade”.
As culturas da infância têm vindo a ser
marcadas por grandes transformações nas
últimas décadas quanto ao direito a brincar
livremente. Diversas preocupações devem
mobilizar os especialistas nestas áreas em
relação a novos problemas que vão surgin-
do na vida quotidiana das crianças e jovens
e que atingem a vida familiar, escolar e co-
munitária. A visão entre o desenvolvimento
humano e uma cultura jurídica capaz de ate-

37 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


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mental no processo de aprendizagem infan- tam experiências desafiantes, inabituais, ponível para que os projetos das crianças se
til. Ensinar é distanciar. Esta relação entre diversificadas e interativas, e de preferência possa desenvolver com atitude tutorial posi-
segurança e independência é conquistada em espaços naturais e com materiais ou ob- tiva dos adultos e não com constrangimen-
pela experiência do brincar livre com o seu jetos soltos (loose parts). Interessa que os tos proibitivos.
próprio corpo, os objetos e os outros. Ser espaços de jogo sejam também confortáveis
criança é apropriar-se do seu próprio tempo (verdes) e recheados de “affordances” (recur- 3. De ter possibilidade de se mexer e ser
sem restrições impertinentes de atividades sos, aquilo que o ambiente envolvente per- ativa enquanto brinca.
demasiado estruturadas, conduzidas e pla- mite ao animal fazer) motores, emocionais, Uma das caraterísticas mais peculiares das
neadas. cognitivos e sociais. Este direito a um espa- crianças saudáveis é a necessidade de terem
ço de ação de qualidade não é compatível um nível de atividade física muito elevado.
2. De ter espaço adequado para aprender com um design formatado e obsessivamente O movimento humano é o grande arquiteto
a descobrir, experimentar e assimilar adulto (cimento e sintético). Os espaços para do cérebro dos sentimentos e das emoções.
conhecimento. brincar devem possibilitar aprendizagens va- Crianças que apresentam um perfil de jogo
O nosso corpo tem limites na sua sobrevi- riadas e recheadas de referências simbólicas de atividade física regular, sistemático e in-
vência e necessita desde muito cedo de se e de fantasia. Em educação de infância as tencional têm normalmente uma boa com-
referenciar no espaço (imaginário, sensorial, referências de sala de aula e recreio deve- petência motora, emocional e social. Apren-
percetivo, representativo, emocional e cor- riam desaparecer do vocabulário educativo e der a mexer e escutar o corpo dá saúde física
poral). Em primeiro lugar o espaço de den- ser substituídas por espaços interiores e ex- e mental. O comportamento lúdico na infân-
tro (sensações internas), seguido do espaço teriores onde as crianças podem circular em cia só tem significado evolutivo se estiver
periférico (propriocetivo) e depois o espaço liberdade para fazerem as suas experiências associado a um gasto saudável de energia
exterior natural e construído (físico e social). e descobertas (aprendizagem). O direito ao física. Brincar e ser ativo é uma das grandes
Este conhecimento de saber lidar com o seu espaço para brincar implica dar tempo dis- prioridades para as crianças do nosso tempo.
corpo em movimento no espaço implica re-
conhecer contrastes: de direção, perto-lon-
ge, alto-baixo, grande-pequeno, dentro-fo-
ra, devagar-depressa, eu próprio e os outros,
etc. A criança aprende a ler, escrever e con-
tar quando tem oportunidade de brincar em
espaços de forma livre, para se apropriar de
experiências no espaço topológico (proprie-
dades físicas e psicológicas) onde estabele-
ce as primeiras relações de espacialização e
comunicação com o seu corpo e constrói a
geometria do pensamento. O conhecimento
e domínio do espaço de ação é a primeira
e verdadeira escola de aprendizagem de
conhecimentos complexos que não são en-
sinados pelos adultos. Mais tarde (evolução
da maturidade cognitiva, motora, emocional
e social) os adultos terão oportunidade de
explorar e aperfeiçoar o que ela já conhece.
Nas primeiras idades a aprendizagem não se
impõe, sendo dispensáveis currículos dema-
siado formatados. O que é necessário garan-
tir são oportunidades de brincar livremente,
criando contextos de qualidade que permi-

38 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


O combate ao sedentarismo e à inabilidade são comportamentos com a mesma impor- vulneráveis e incapazes de resolver proble-
motora é uma tarefa gigantesca a implemen- tância que as aprendizagens consideradas mas e lidar com situações complexas. Uma
tar no contexto familiar, escolar e comunitá- habitualmente como socialmente úteis (as grande quantidade de crianças não gosta
rio. Crianças muito quietas ou agitadas são o escolares). da escola porque ela não tem desafios. Na
resultado de uma sociedade que tem vindo maior parte dos casos, os espaços escolares
a aprisionar a infância em lógicas de contro- 4. De ter permissão para lidar com o risco. existentes para brincarem e serem ativos
lo das suas energias para níveis compatíveis Sem risco não existe nem teria existido são completamente desoladores. Decretou-
com o tempo e as regras definidas pelas evolução na humanidade. Todos os animais -se nos últimos anos, de uma forma quase
conveniências dos adultos. Esta manipulação correm riscos no seu desenvolvimento, e em patológica, a desumanização e eliminação
subtil, exercida por vezes inconscientemen- especial quando são jovens. O confronto de espaços naturais das escolas, para as
te, está a pôr em causa a saúde física e men- com o risco (físico, emocional, cognitivo e crianças estarem completamente seguras
tal das crianças. Será conveniente despertar social) é um comportamento ancestral com e policiadas nos chamados “recreios”. Este
as nossas atitudes e comportamentos para um grande significado biológico e cultural. atentado ao direito das crianças de poderem
dinâmicas mais ativas nas primeiras idades, As grandes adaptações e conquistas da hu- brincar e ser ativas em situações arriscadas
para garantir desde cedo a criação de estilos manidade não estiveram isentas de situa- fez que a escola criasse uma pesada he-
de vida ativa que terão bons resultados em ções de risco. O próprio desenvolvimento da rança no desenvolvimento do sedentarismo
idades posteriores. A ideia de uma escola e criança realiza-se numa situação permanente e inabilidade motora na infância. Claro que
família apenas concentrados nos resultados de confronto com dinâmicas de superação não é só responsabilidade das escolas, mas
académicos dos filhos é um erro histórico individual e com o ambiente. A conquista da igualmente de uma cultura do medo que se
que poderá vir a pagar-se muito caro em postura de pé implica cair muitas vezes. To- instalou na cabeça dos pais e da sociedade
termos de saúde pública a curto, médio e das as crianças (e adultos) têm de cair imen- em relação ao conceito de segurança. To-
longo prazo. A melhor receita para termos sas vezes para se equilibrarem e poderem ca- dos querem tudo de bom para as crianças,
crianças saudáveis é dar-lhes oportunidades minhar. O risco dá valor à existência. O risco mas por vezes não têm consciência de que
de brincarem e serem ativas de forma fre- é a melhor forma de conquistar segurança estão a “matar” as próprias culturas da infân-
quente no seu quotidiano. Sentá-las muito e o melhor caminho para evitar o acidente. cia. É paradoxal o “apagão” que se deu nas
tempo seguido e também frente aos ecrãs é O confronto do corpo com situações de ris- memórias dos adultos sobre as brincadeiras
um “crime” que terá consequências inevitá- co real ou imaginário submete-nos a provas arriscadas que fizeram na sua infância. Que
veis no seu desenvolvimento. O excesso de cuja superação nos dá prazer e transcendên- crianças queremos para o futuro? Como se-
agitação motora e a falta de capacidade de cia, passando portas para outras realidades rão capazes de resolver conflitos, problemas
atenção poderão ser consequências de níveis mais sofisticadas de conquistas e aventu- e ultrapassar situações de dificuldade? Como
de atividade física e de confronto do corpo ras. O medo e a frustração são inerentes a serão capazes de se confrontar com o futuro
com situações de superação de si próprio e situações de risco que, na maior parte das incerto que se aproxima? Andamos todos a
com os outros insuficientes. Outros fatores situações, são ultrapassadas pelas crianças. brincar com a escola sem dar ao brincar a
físicos (excesso de peso, obesidade, analfa- A educação para o risco deveria ser um dos importância que tem no desenvolvimento de
betismo motor, diabetes, etc.) e desordens objetivos mais importantes a promover em pessoas que desejamos que sejam felizes e
mentais (ansiedade, depressão, hiperativida- casa, na escola e no espaço construído e na- tenham sucesso quando forem adultos.
de, défice de atenção) são uma consequên- tural. O que acontece com frequência é uma
cia da falta de tempo para brincar e ser ativo sociedade, família e escola adversas ao risco. 5. De ter direito a brincar ao ar livre
em diversos contextos de vida. A criança Os adultos não confiam na segurança das e na natureza.
tem direito a ser ativa e brincar na escola, em crianças, que têm habitualmente uma gran- O contacto com o espaço natural tem mui-
casa, na rua e na cidade para ganhar cultura de capacidade de leitura e de controlo para tos benefícios para a saúde e o bem-estar
motora suficiente para ser autónoma e saber distinguirem situações de risco suposto ou em todas as idades. Nas últimas décadas
tomar decisões adequadas a cada situação real. A superproteção, insegurança e medo temos vindo a verificar uma progressiva des-
(resolução de problemas). Caminhar, correr, exagerado dos adultos quando as crianças conexão dos seres humanos com a natureza
saltar, trepar, equilibrar-se, lançar, agarrar, se encontram em situações de risco é um devido à galopante concentração urbana e
pontapear, dançar, nadar, lutar, perseguir convite para as tornar imaturas, inseguras, à devastação de florestas e espaços verdes.

39 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


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Esta destruição do contacto humano com o possam ser enquadradas nos projetos edu- conjunta de se dar a conhecer e conhecer os
espaço natural provoca uma crise tremenda cativos de cada escola. Sair fora da escola e outros. O sucesso do processo educativo em
de perda de fatores benéficos na formação permitir que as crianças tenham experiências qualquer contexto na infância está altamen-
de competências físicas, motoras, sensoriais, na floresta tem benefícios acrescidos para a te relacionado com a capacidade de se dar
percetivas, emocionais, cognitivas e sociais. sua educação global. Também as famílias ne- oportunidade de partilhar objetivos, planear
O contacto regular com a natureza permite cessitam de mais tempo disponível nos seus e desenvolver atividades. Ouvir e convidar as
desenvolver sensações e experiências que horários de trabalho para experimentar com crianças a participar em projetos não é uma
o espaço construído não permite. Caminhar os filhos e de forma regular, após a escola tarefa fácil de concretizar. Elas falam lingua-
pelo espaço natural permite saborear o silên- ou aos fins de semana, o contacto com a na- gens muitas vezes complexas e difíceis de
cio em oposição ao ruído, encontrar novos tureza através do brincar livre e a melhoria interpretar pelos adultos, devido à grande
cheiros e aromas, contemplações visuais ex- dos níveis de atividade motora fundamental. riqueza da sua imaginação, simbologia e fan-
citantes, contacto com a terra, a vegetação e Para que esta mudança possa acontecer, te- tasia, exigindo uma metodologia apropriada
as árvores, descobrir as maravilhas da fauna remos de desenvolver cidades com políticas na utilização de várias técnicas de auscul-
e respirar com mais naturalidade. As crianças públicas mais amigas das crianças, cidades tação (desenho, comunicação verbal, jogo
do nosso tempo vivem um “défice de natu- mais acessíveis a todos, através da criação dramático e artístico, etc.). Esta mudança
reza”, considerando o decréscimo das rotinas de zonas verdes e da preservação de áreas pedagógica desejada nas abordagens partici-
de vida nestes contextos, devido ao estilo de florestadas perto das habitações e das es- pativas com crianças é também cultural, pelo
vida sedentário em que vivem e à falta de colas. O direito de brincar no espaço natural que implica conhecer a sua ecologia de vida
tempo das famílias e das escolas para par- deveria constituir uma prioridade no desen- (diversidade, diferenças sociais, condições de
tilharem esse contexto em conjunto. Hoje volvimento da infância no século XXI. vida, idade, género, etc.).
está a perder-se a possibilidade de as crian-
ças poderem desenvolver uma “inteligência 6. De ter oportunidade de participar 7. De ter acesso ao brincar e ser ativo
natural” que se supõe ser fundamental para em iniciativas que lhe digam respeito. na rua e na cidade.
o seu equilíbrio emocional, harmonia corpo- Criar condições para ouvir as crianças e para Em tempos de adversidade e incerteza no
ral e relacionamento com o ambiente. Re- que elas possam participar em iniciativas e futuro é um direito fundamental devolver
cordo regularmente observações de crianças projetos na escola, na família e na comunida- a rua e a cidade às crianças para poderem
que vivem nas margens dos rios na floresta de é uma condição pedagógica e de cidada- brincar e ser ativos de forma livre. Muitas
amazónica, e as competências dos seus cor- nia fundamental para a formação futura de cidades pelo mundo fora estão a mudar a
pos exímios a brincar e serem ativos (agili- pessoas colaborativas, com pensamento crí- sua filosofia estratégica para um planea-
dade para subir aos coqueiros, equilibrar-se tico e capacidade criativa. O futuro é impre- mento urbano participativo para novas ne-
nas pirogas, correr com eficiência em todas visível e complexo, pelo que temos de prepa- cessidades que se colocam na saúde física e
as superfícies, etc.). Esta capacidade de rar estas novas gerações com dinâmicas par- mental nas primeiras idades. A crise sanitária
adaptação e disponibilidade motora e social ticipativas nas decisões que acontecem no que estamos a viver iluminou ainda mais a
através da exploração do meio natural está a seu quotidiano. Brincar e ser ativo na infân- necessidade de as cidades definirem novas
perder-se na infância, assumindo perigosos cia implica que estes pequenos atores sejam politicas públicas para as novas gerações. O
limites de artificialização dos contactos do considerados sujeitos de direitos e tenham confinamento em casa não pode ser defini-
corpo com realidades de espaço construído liberdade para ter opinião, expressar-se de tivo, sob pena de aumentar os problemas de
e virtual. Um dos objetivos fundamentais na forma espontânea e colaborar com as suas saúde física, emocional e mental dos mais
mudança dos espaços exteriores das esco- ideias na formulação de projetos relaciona- jovens, adultos e idosos. Esta situação estra-
las nas primeiras idades devia centrar-se na dos com as suas rotinas de vida. Esta mu- nha e perturbadora para todos deve ser bem
criação de ambientes verdes confortáveis, na danças nas formas de trabalho educacional cuidada na infância para que esta não seja
substituição de espaços estandardizados (ci- mais cooperativo implicam que os adultos amputada de direitos fundamentais de de-
mento e plástico) por espaços mais naturais não tenham programas pré-estruturados, senvolvimento saudável e da confiança num
e humanizados (terra, água, areia, troncos, completamente formatados, hierárquicos e futuro mais solidário. Sair para fora de casa
árvores, paus, pedras...), permitindo que as fechados. O comportamento de brincar defi- é, na atualidade, uma necessidade funda-
experiências de aprendizagem das crianças ne-se como uma ação de vínculo, ou relação mental para as crianças encontrarem amigos

40 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


apressados) para as ouvirem sobre muitas
coisas que têm para nos revelar sobre as
sua vidas, motivações, imaginários e repre-
sentações. O brincar vem de dentro, fazen-
do brotar imaginação e fantasia no tempo
próprio de ser criança. Somos pobres porque
não aprendemos a brincar e muitas vezes
somos nós próprios, adultos, que brincamos
com o direito de brincar. Por conveniência
dos adultos, o brincar é por vezes silenciado,
bloqueado e maltratado, por ser considerado
uma perda de tempo, não produtivo e se-
cundário. Forças poderosas se erguem para
termos crianças agitadas ou adormecidas,
dependentes de medicação e de tecnologias.
É urgente acordar para percebermos a mani-
pulação subtil exercida sobre a forma como
a infância é comercializada e silenciada. A
educação de infância tem uma importância
decisiva na implementação dos direitos de
as crianças brincarem e serem ativas. As
práticas e as perspetivas de intervenção na
escola devem ser repensadas com a urgên-
(socialização) e espaço disponível para brin- delos de “parques Infantis” padronizados e cia possível para mudarmos o paradigma de
carem e serem ativos (combater o sedenta- formatados sem valor de uso para o jogo e o uma escolarização que se institucionalizou
rismo). Podem ser encontradas soluções risco. Reinventar a rua e a cidade do futuro progressivamente e desrespeitou o equilíbrio
fechando ruas ao trânsito, criando passeios, para crianças deveria ser pensado numa di- que deve existir com o direito a brincar e ser
desenhando novos espaços verdes e redu- mensão adequada às “culturas de infância”, ativo.
zindo o trânsito automóvel. São bem-vindas com dignidade estética, dinâmica participa-
e desejáveis cidades educadoras e amigas tiva e oportunidades de ação. Necessitamos
da criança, que pensem o território urbano com urgência de ruas e cidades ativas para
destinado a pessoas que se movem num as crianças.
espaço humanizado e com condições de um O brincar e ser ativo é uma ferramenta ro-
planeamento sustentável nas proximidades busta para lidar com situações difíceis. Não
das habitações e das escolas. Aumentar e são só a ação motora e lúdica, mas também
melhorar as condições de independência e as perceções, representações, tomadas de
mobilidade de todos os cidadãos, em que se decisão e dinâmicas simbólicas que estão
incluem as crianças, implica pensar a rua e a associadas ao fenómeno. Aprender a mo-
cidade como espaço público em que a frui- ver o corpo significa adquirir mais confian-
ção do território se pode fazer em seguran- ça, bem-estar, autoestima e capacidade de
ça e num modo de deslocação diversificado superação, independentemente do contexto
(caminhando, correndo, usando a bicicleta, de ação. Aprender a mover o corpo implica
etc.). Adicionalmente, podem ser definidos atividade motora e ao mesmo tempo a sua
espaços com um design apropriado para escuta (autorregulação). Para as crianças
crianças e adultos poderem brincar de forma brincarem e serem ativas é necessário tempo
ativa e que não passem pelos velhos mo- e adultos emocionalmente disponíveis (não

41 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO
PARTICIPA – Instrumentos de desenvolvimento profissional para a promoção
do direito de participação das crianças em contexto de jardim de infância
Nadine Correia, Cecília Aguiar e Consórcio PARTICIPA 1
1

O direito de participação das crianças A participação no contexto de burocracias ou com as condições huma-
As crianças têm o direito de participar em de jardim de infância nas e materiais (Correia, Carvalho, Durães, &
todos os assuntos que lhes digam respei- O jardim de infância é um contexto no qual Aguiar, 2020). Por este motivo, é importan-
to, expressando livremente a sua opinião as crianças devem poder exercer o seu direi- te promover iniciativas de desenvolvimento
e vendo-a respeitada e considerada (Orga- to de participação (Sheridan & Samuelsson, profissional que apoiem os/as profissionais
nização das Nações Unidas, 1989). Ao lon- 2001). A participação tem sido descrita, in- na promoção da participação em contexto
go dos anos, várias têm sido as áreas do clusivamente, como um critério fundamental de jardim de infância (e.g., Correia, Camilo,
conhecimento, da investigação à prática, para a qualidade destes contextos, existindo Aguiar, & Amaro, 2019).
que se têm debruçado sobre este direito, estudos que sugerem que as crianças que
contribuindo para o seu progressivo reco- frequentam contextos de elevada qualidade O Projeto PARTICIPA
nhecimento (Percy-Smith & Thomas, 2010). relatam mais oportunidades para participar e O Projeto PARTICIPA está a ser desenvolvi-
Vários modelos têm sido propostos para exercer influência (Sheridan, 2007). do com o intuito de apoiar uma educação
compreender a participação das crianças Para além de ser um importante critério de de infância de elevada qualidade, através da
(e.g., Hart, 1992), entre os quais o mode- qualidade dos contextos de educação de in- promoção da implementação do direito de
lo de Lundy (2007). Segundo este modelo, fância, são vários os benefícios propostos na participação das crianças. Com base numa
para promover a participação, devem ser literatura, decorrentes do exercício da par- abordagem de desenvolvimento profissional
consideradas as seguintes dimensões: es- ticipação, para as crianças, para os adultos assente no modelo de Lundy (2007), o pro-
paço (as crianças devem ter acesso a um e para as instituições. Para as crianças, são jeto pretende intervir com educadores/as,
espaço seguro e inclusivo, onde possam descritos benefícios ao nível da sua autoesti- auxiliares e coordenadores/as de jardim de
formar e expressar as suas opiniões e pers- ma, das competências sociais, de comunica- infância. São objetivos específicos do Proje-
petivas); voz (as crianças devem ser encora- ção e de resolução de problemas, ou relacio- to PARTICIPA:
jadas a expressar a sua opinião, mediante nados com a prática de uma cidadania ativa (1) aumentar o conhecimento sobre o direito
fornecimento de informação apropriada); (Kirby & Bryson, 2002; Mesquita-Pires, 2012; de participação das crianças;
audiência (as crianças devem ser ouvidas e Pascal & Bertram, 2009). A investigação su- (2) promover atitudes positivas em relação à
consideradas por adultos com responsabili- gere ainda que, quando as crianças têm as concepção, implementação e monitoriza-
dade para o fazer); e influência (as perspe- suas perspectivas ouvidas e consideradas, ção de práticas facilitadoras da participa-
tivas das crianças devem ser consideradas, se percepcionam como um elemento valioso ção das crianças;
influenciando decisões sempre que apro- do grupo e reconhecem mais legitimidade às (3) desenvolver a capacidade de identificar,
priado). decisões dos adultos (Emler & Reicher, 2005; conceber, implementar e monitorizar prá-
A promoção deste direito constitui um in- Lind & Tyler, 1988). Para adultos ou para ins- ticas de promoção do direito de participa-
vestimento no bem-estar das crianças (Co- tituições, são descritos benefícios relaciona- ção das crianças;
missão Europeia, 2013) e é essencial para o dos com uma maior sensibilidade, por parte (4) desenvolver a capacidade dos/as profis-
desenvolvimento de uma cultura de direitos dos profissionais, ou a adopção de melhores sionais para trabalharem em conjunto,
humanos e de democracia. A sua promoção decisões, alinhadas com os interesses e ne- a vários níveis do jardim de infância, na
é, por este motivo, encorajada desde idades cessidades das crianças (Hart, 1992; Nah & identificação, utilização e mobilização de
precoces (Conselho da Europa, 2017). Lee, 2016). recursos individuais e organizacionais ne-
cessários à promoção da participação das
Apoiar os/as profissionais crianças.
1 Consórcio PARTICIPA: ISCTE-IUL: Cecília Aguiar, Nadi- de educação de infância
ne Correia, Isabel Correia, Eunice Magalhães, Filomena Apesar da relevância do direito de participa- Instrumentos de desenvolvimento
Almeida, Vanessa Figueiredo; inED/ESE-Politécnico do
Porto: Sílvia Barros, Sara Barros Araújo, Manuela Pes- ção, a sua implementação permanece ainda profissional
sanha, Cristiana Guimarães, Vera Coelho. Universidade um desafio para muitos profissionais. Um Para atingir os objetivos a que se propõe, o
Aberta Helénica: Konstantinos Petrogiannis, Efthymia estudo recente sugeriu, por exemplo, que Projeto PARTICIPA está a desenvolver três
Penderi, Elias Stavropoulos, Christoforos Karachristos.
Universidade de Varsóvia: Olga Wyslowska, Kamila educadoras de infância portuguesas percep- recursos de desenvolvimento profissional,
Wichrowska, Paulina Marchlik, Urszula Markowska- cionam diversos obstáculos à promoção da independentes, mas complementares:
-Manista; Odisee: Helena Taelman, Anneleen Boderé; participação, relacionados com a existência (1) um MOOC (curso online de acesso aberto
APEI: Luís Ribeiro, Cristina Mesquita.

42 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


e massivo) sobre o direito de participação pela Bélgica e pela Polónia em 1991, e pela of the child. British Educational Research Journal, 33(6),
927-942. doi:10.1080/01411920701657033
das crianças em contexto de jardim de Grécia em 1993). De seguida, são descritos Mesquita-Pires, C. (2012). Children and professionals’
infância, destinado a educadores/as, as- diferentes documentos (legais, de gestão, de rights to participation: a case study. European Early Chil-
dhood Education Research Journal, 20(4), 565-576, DOI:
sistentes operacionais/auxiliares e coor- carácter orientador) que contemplam a parti- 10.1080/1350293X.2012.737242
denadores/as ou diretores/as; cipação das crianças, em contexto de jardim Moser, T., Leseman, P., Melhuish, E., Broekhuizen, M., &
Slot, P. (2017). European framework of quality and wel-
(2) um instrumento de autoavaliação para de infância, em cada um dos países. lbeing indicators. Report D6.3, CARE: Curriculum quality
apoiar educadores/as e assistentes ope- De um modo geral, nos diferentes países, é analysis and impact review of European early childhood
education and care. Vestfold, NO: University College of
racionais/auxiliares na promoção de prá- enfatizada a participação ativa e responsável Southwest Norway.
ticas de elevada qualidade, através da das crianças, através da expressão e conside- Nah, K. O., & Lee, S. M. (2016). Actualizing children’s par-
ticipation in the development of outdoor play areas at an
promoção da participação das crianças, ração das suas perspetivas, bem como o pa- early childhood institution. Action Research, 14(3), 335-351.
ao nível da sala; pel do/a profissional de educação de infância doi:10.1177/1476750315621610
Organização das Nações Unidas (1989). The United Na-
(3) um instrumento de autoavaliação para na promoção de oportunidades (envolvendo tions convention on the rights of the child. New York, NY:
apoiar coordenadores/as ou diretores/as espaço e materiais adequados) para que a United Nations.
Pascal, C., & Bertram, T. (2009). Listening to young ci-
na promoção de práticas de participação, criança possa envolver-se nas decisões que a tizens: The struggle to make real a participatory para-
com base nos recursos organizacionais. afetam, em prol do seu bem-estar. digm in research with young children. European Early
Childhood Education Research Journal, 17(2), 249–262.
Cada um destes instrumentos será disponi- doi:10.1080/13502930902951486
bilizado em inglês e em cada uma das lín- Percy-Smith, B. (2010). Councils, consultations and
community: Rethinking the spaces for children and young
guas dos países parceiros: holandês, grego, people's participation. Children's Geographies, 8(2), 107-
polaco e português. O projeto prevê ainda INFORMAÇÕES 122. doi:10.1080/14733281003691368
Sheridan, S. (2007). Dimensions of pedagogical quality in
a realização de um estudo para averiguar a Toda a informação relativa ao Projeto PARTICIPA preschool. International Journal of Early Years Education,
pode ser consultada em http://child-participation. 15(2), 197-217. doi:10.1080/09669760701289151
viabilidade destes instrumentos, de modo a eu/ ou na Página de facebook, em https://www.fa- Sheridan, S., & Samuelsson, I. P. (2001). Children’s concep-
fundamentar o seu desenvolvimento, com cebook.com/ParticipaProject/ tions of participation and influence in preschool: A pers-
base em informação fornecida pelos seus pective on pedagogical quality. Contemporary Issues in
REFERÊNCIAS Early Childhood, 2(2), 169-194. doi:10.2304/ciec.2001.2.2.4
utilizadores, os/as profissionais de educação Comissão Europeia (2013). Investing in children: Breaking
de infância, em cada um dos países. Depois the cycle of disadvantage. Official Journal of the Euro-
pean Commission. Retrieved from http://eur-lex.europa.
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ficarão disponíveis para o público em geral. rights. Recommendation CM/Rec(2016)7 and explana- maximized
tory memorandum. Retrieved from https://rm.coe.in- [2] https://dre.pt/home/-/dre/631837/details/maxi-
t/1680702b6e mized
Instituições parceiras Correia, N., Carvalho, H., Durães, J., & Aguiar, C. (2020). [3] https://dre.pt/home/-/dre/631843/details/maxi-
O Projeto PARTICIPA, financiado pela União Teachers’ ideas about children’s participation within mized
Portuguese early childhood education settings. Children [4] https://www.dge.mec.pt/ocepe/sites/default/
Europeia ao abrigo do programa Erasmus+, é and Youth Services Review, 111, 104845. doi:10.1016/j.chil- files/Orientacoes_Curriculares.pdf
coordenado pelo ISCTE – Instituto Universitá- dyouth.2020.104845 [5] https://www.dge.mec.pt/estrategia-nacional-de-
Correia, N., Camilo, C., Aguiar, C., & Amaro, F. (2019). Chil- -educacao-para-cidadania
rio de Lisboa e tem como parceiros institucio- dren's right to participate in early childhood education [6] shorturl.at/dgxyV
nais a Escola Superior de Educação do Porto, settings: A systematic review. Children and Youth Services [7] shorturl.at/elqS1
Review, 100, 76-88. doi:10.1016/j.childyouth.2019.02.031 [8] http://mijnschoolisok.be/professionals/
a Associação de Profissionais de Educação de Hart, R. (1992). Children’s participation: From tokenism [9] shorturl.at/goMPR
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Development Centre. -vlaamse-regering-van-08-juni-2018_n2018012928.
Universidade Aberta Helénica (Grécia) e a Uni- Emler, N., & Reicher, S. (2005). Delinquency: Cause or con- html
versidade de Varsóvia (Polónia). sequence of social exclusion? In D. Abrams, M. A. Hogg, [11] shorturl.at/ahoQU
& J. M. Marques (Eds.), The social psychology of inclusion [12] http://europam.eu/data/mechanisms/FOI/
Embora a educação de infância assuma es- and exclusion (pp. 211-241). New York, NY: Psychology FOI%20Laws/Greece/Greece_Constitution_1975.pdf
pecificidades em cada um destes países, Press. [13] https://www.european-agency.org/country-in-
Kirby, P., & Bryson, S. (2002). Measuring the magic? formation/greece/legislation-and-policy
envolvendo regulamentação e práticas es- Evaluating and researching young people's participation [14] http://www.pi-schools.gr/content/index.
pecíficas no que respeita à participação das in public decision making. London, UK: Carnegie Young php?lesson_id=300&ep=367
People Initiative. [15] http://www.pi-schools.gr/preschool_education/
crianças, os países parceiros têm em comum Lind, E. A., & Tyler, T. R. (1988). The social psychology of odigos/nipi.pdf
a adesão à Convenção sobre os Direitos da procedural justice. New York, NY: Plenum. [16] shorturl.at/fqxN0
Lundy, L. (2007). ‘Voice’ is not enough: Conceptualising [17]http://prawo.sejm.gov.pl/isap.nsf/download.xsp/
Criança (ratificada por Portugal em 1990, Article 12 of the United Nations convention on the rights WDU20190001450/O/D20191450.pdf

43 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO

PORTUGAL

Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar (1997): Promoção do desenvolvimento pessoal e social da criança, com base em experiências
de vida democrática, numa perspectiva de educação para a cidadania [1].

Perfis geral e específico do educador de infância (2001): Construção participada de regras de convivência democrática, incluindo
gestão de situações problemáticas/conflitos interpessoais; envolvimento ativo das crianças nos processos de aprendizagem e na gestão
do currículo, na construção e prática de regras de convivência; vivência de práticas de colaboração e respeito no âmbito da formação
para a cidadania democrática [2, 3].

Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar (2016): A criança como sujeito e agente do processo educativo, cuja
participação deve ser incentivada; direito da criança a ser ouvida nas decisões que lhe dizem respeito, conferindo-lhe um papel ativo
no planeamento e na avaliação do currículo [4].

Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (2016): Lógica de participação e de corresponsabilização, incentivada desde a
educação pré-escolar; valorização da participação das crianças nas atividades realizadas na escola e na comunidade; promoção de uma
cidadania integrada transversalmente no currículo [5].

Perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória (2017): Participação de modo pleno e efetivo em todos os contextos educativos,
com aquisição de valores e competências que permitam à criança intervir, tomar decisões livres e fundamentadas e dispor de uma
capacidade de participação cívica, ativa, consciente e responsável [6].

BÉLGICA (FLANDRES)

Objetivos de Desenvolvimento para Crianças em Idade Pré-Escolar (2015): As crianças devem ser capazes de se proteger, de
entender as regras e os acordos necessários para viverem em sociedade; devem poder fazer acordos entre si com a ajuda de um adulto
e verificar se outros estão em conformidade com as regras estabelecidas em sociedade [7].

Quadro de Referência para a Qualidade da Educação (usado pela Inspeção Escolar) (2016): As escolas devem funcionar de forma
participativa e responsiva, visando o bem-estar e o envolvimento de crianças e profissionais [8].

Relatório do Comissário de Direitos das Crianças da Flandres e da Valónia (2018): Os direitos das crianças devem estar
explicitamente ancorados na educação, exigindo um plano de ação abrangente para a educação sobre os direitos [9].

Competências Básicas Gerais para Educadores (2018): O educador deve promover a emancipação das crianças, estimulando-as e
capacitando-as para serem independentes, terem iniciativa, responsabilidade e participação; os/as educadores/as devem apoiar as
crianças no desenvolvimento individual, a nível sócio-emocional, na participação social e na formação de atitudes e valores [10].

Programa do bacharelato em Educação Pré-Escolar (2019): Promoção de um clima positivo e coeso para viver, aprender e brincar,
focado no desenvolvimento da personalidade, da emancipação e da participação social de todas as crianças, com vista ao seu bem-
estar [11].

44 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


GRÉCIA

Artigo 16.º da Constituição Grega (Educação) (1975): A educação visa a instrução moral, intelectual, profissional e física, o desenvolvimento
da consciência nacional e religiosa e a formação de cidadãos livres e responsáveis [​12].

Lei n.º 1566 (1985): a criança, deve (a) tornar-se cidadão livre, responsável, democrático, e (b) desenvolver pensamento criativo e
crítico, bem como esforço e colaboração coletivos, de modo que, tendo iniciativa e com uma participação responsável, possa contribuir
decisivamente para o progresso da sociedade e o desenvolvimento do país [13].

Estrutura Curricular Unificada para o Jardim de Infância (2003): O jardim de infância tem como objetivo o desenvolvimento integral da
criança e a socialização, o desenvolvimento da independência e da autopercepção, dando prioridade a uma aprendizagem ativa, experiencial
e colaborativa; as atividades devem ser significativas e interessantes para as crianças que, através da exploração e da brincadeira, devem
ser incentivadas a descobrir e a expandir as suas percepções sobre o meio ambiente (nas dimensões física, social e cultural); as crianças
devem perceber que podem alterar o seu ambiente através da sua própria intervenção, sendo convidadas a intervir, a expressar as
suas ideias e a participar em atividades que as ajudem a desenvolver competências sociais, auto-estima, cooperação, singularidade, e a
identificar semelhanças e diferenças com o outro [14].

Guia dos Educadores de Infância (2006): Devem ser organizadas atividades de aprendizagem desafiadoras, significativas, solidárias e
inclusivas para as crianças, que promovam a sua autonomia e participação ativa; os educadores devem ouvir atentamente as ideias das
crianças e incentivá-las a decidir sobre assuntos que as afetam [15].

POLÓNIA

Orientações Nacionais para Educação Pré-Escolar (3-6) (2017), estruturadas em 3 partes [16]:

Atividades – criar condições para que as crianças se desenvolvam, brinquem e descansem livremente e em segurança, explorando de
forma independente o ambiente, possibilitando o conhecimento de valores e normas adequados ao seu desenvolvimento; envolver as
crianças na construção e no planeamento de atividades, através de acções intencionais, apresentando os resultados do seu trabalho.

Perfil da criança no final da educação pré-escolar – respeito pelos direitos e obrigações próprios e dos outros; atenção e expressão de
necessidades individuais, expectativas sociais em relação a outra criança ou grupo, por meio de mensagens verbais e não verbais.

Condições e método de implementação – uso de materiais e instrumentos didáticos que motivem as crianças a agir de forma
independente, descobrindo fenómenos e processos, consolidando o conhecimento e as competências adquiridas, e inspirando-as a fazer
as suas próprias descobertas e aprendizagens.

Padrão de Educação para a Profissão Docente (2019), devendo os/as educadores/as ser capazes de promover/organizar [17]:

(a) um ambiente educativo seguro e amigável (na sala de atividades, fora da instituição e no ambiente local) que encoraje as crianças a
expressar a sua individualidade de forma criativa, através do fornecimento de materiais e oportunidades diversos, e atendendo às suas
necessidades, competências e talentos.

(b) um relacionamento de confiança mútua entre todos os intervenientes no processo educativo, incluindo a família da criança.

(c) o uso de estilos e técnicas de trabalho que combinem diferentes áreas do conhecimento, estimulando a aprendizagem participativa,
proativa, reflexiva, conjunta e cooperante.

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: PRÁTICAS
Projeto Construir a Cidade – Exercício da Cidadania
Eva Leal . Educadora de infância

Um projeto de intervenção social revela a posto por quatro colunas: Não Gostamos;
preocupação das crianças em mudar o meio Gostamos; Fizemos; e Queremos. (…) As
onde habitam, fazendo-o de forma “ativa, crianças podem desenhar ou pedir ao adulto
apelando para uma atitude de cidadania in- ou a uma criança mais velha para escrever e
terventiva” (Manuela Guedes). posteriormente ilustrar. No fim da semana,
durante a reunião de conselho de sexta-fei-
Introdução ra, os conteúdos do Diário são analisados e
O presente artigo descreve o processo de discutidos por todo o grupo” (Folque, 2012,
um trabalho de projeto que surgiu da curio- p. 56).
sidade das crianças pela cidade e da sua ne- Foi exatamente o que aconteceu na reunião
cessidade de recreação no meio onde vivem, de conselho de sexta-feira. Após ouvirmos
Évora. as sugestões das crianças interessadas, com-
Dele decorreram a construção de competên- binou-se que iriam criar uma cidade como a
cias em diversas áreas de conteúdo: educa- nossa em ponto pequeno. Pelas palavras do
ção ambiental; educação para a saúde; ma- Tomás, queriam criar uma maquete. Assim,
temática; arquitetura: geometria, perspetiva; iniciámos o planeamento do projeto, onde
artes visuais: desenho, pintura e escultura; registámos: “O que sabemos; como vamos
urbanismo; mobilidade; e educação para a saber; o que vamos fazer; quem faz”.
cidadania.
O foco foi encorajar as crianças enquanto Desenvolvimento
sujeitos ativos a exercer a sua cidadania, O pequeno grupo de trabalho de “arquite-
envolvendo-se no espaço social e com en- tos/as” começou a desenvolver a ideia, dia-
tidades locais na tentativa de corresponsa- riamente, no momento dedicado aos proje-
bilização e construção de um espaço urbano tos e atividades da nossa agenda semanal. Fases da construção da maquete
mais humanizado. O primeiro desafio foi desenhar um pequeno
mapa do trajeto casa-colégio onde teriam
Ponto de partida de dar dois ou três pontos de referência. Ao minha casa há um café onde os meus pais
Tudo começou quando a Maria me observa- final da manhã, apresentaram os resultados tomam café.” Polícia, escola, museu, igreja,
va a guardar as casinhas-mealheiro da Mis- no momento das comunicações ao grande restaurante, campo de futebol, piscina foram
são Pijama e disse: grupo. Ao ouvirem os colegas relatar os seus outras tantas referências que permitiram en-
“Estas casinhas do dia do pijama eram tão trajetos houve imensas crianças da turma a riquecer as ideias do grupo de trabalho. Com
giras para nós brincarmos!” Questionei-a manifestar a vontade de também o fazerem. base nestas informações, o pequeno grupo
sobre o que faria com elas, e o Miguel, ao “(…) a comunicação desempenha uma fun- decidiu que seria importante personalizar as
ouvir a conversa, prontamente respondeu: ção social, em que a informação é partilhada casinhas com algo característico de cada ser-
“Eu fazia uma cidade enorme com tantas!” A e divulgada em benefício da ‘comunidade’ viço público, uma vez que eram todas iguais.
Maria, como se já imaginasse o que o Miguel do grupo” (Folque, 2012, p. 61). De seguida, tiveram de decidir como organi-
acabava de dizer, completou entusiasmada: No dia seguinte, quem quis desenhar o tra- zariam a cidade. Dos seus diálogos emergi-
“Sim, como as nossas casas!” Percebi nesse jeto casa-colégio pode fazê-lo. Ao final da ram as seguintes ideias: a cidade tem casas,
momento o potencial das casinhas e pedi- manhã, durante as comunicações, tínhamos pessoas, passeios, estradas e carros. Na ci-
-lhes que registassem no Diário de Grupo o uma panóplia de serviços enumerados: “A dade há carros, mas é melhor andar a pé ou
que queriam fazer através de desenhos. minha casa é junto ao hospital e passo pelo de bicicleta para não poluir. Tenho um livro
O Diário de Grupo é um instrumento de jardim.” “A minha é perto do templo, passo que mostra que Évora tem uma muralha à
pilotagem do MEM onde se faz o “registo todos os dias pela Praça do Giraldo e digo volta das casas. A cidade tem passeios para
semanal de incidentes, desejos, conflitos bom dia à minha vizinha.” “Eu moro perto do as pessoas andarem… e semáforos para os
ou relatos de acontecimentos que qualquer Évora Plaza.” “Ao lado da minha casa há uma carros pararem. Às vezes, as pessoas deixam
membro do grupo pretenda assinalar. É com- loja de brinquedos que eu adoro.” “Perto da os carros nos passeios.

46 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


Como as suas ideias eram dispersas foi ne- Estava dada a resposta ao desejo das crian-
cessário ajudar as crianças a representar ças de construir uma cidade. No entanto,
mentalmente o que queriam fazer através na minha perspetiva desafiadora de apren-
da observação atenta de um mapa da cidade dizagem, propus ainda uma visita ao Centro
que temos na sala. Trocaram ideias, interpre- de Arte e Cultura da FEA para vermos a ex-
taram os seus ícones, debateram perspetivas posição “Arquiteturas Pintadas”. Tal como o
espaciais (vista de cima e vista de lado não nome indica, estava relacionada com o tema
são iguais) e decidiram que seria melhor de- e pudemos apreciar arquitetura, desenho,
senharem um mapa da “cidade ideal”. Posto urbanismo e pintura sob a visão de artistas
isto, avançaram para a construção da ma- plásticos, o que seguramente enriqueceu o
quete, seguindo rigorosamente o mapa que grupo do ponto de vista criativo e influen-
elaboraram. Passados poucos dias, puderam ciou as suas brincadeiras na sala. Exposição Arquiteturas Pintadas
testar a cidade brincando autonomamente. A experiência artística “pode ser desenvolvi-
Contudo, identificaram um problema: “as da através de três dimensões distintas: exe-
ruas são demasiado apertadas para as pes- cução – aplicando técnicas; criação – fazer
soas e carros! Por causa disso houve um cão de novo; apreciação – através do contacto
atropelado.” com obras de outros” (Guedes, 2012, p. 7).
Voltámos a reunir o grupo de trabalho e “Apreciar obras consagradas de diversos es-
pensámos juntos numa solução: “É melhor tilos e épocas permite colocar no olhar das
os carros não andarem dentro da cidade. crianças os ingredientes necessários à con-
Vamos fazer uma estrada para carros à vol- ceptualização da obra em si, isto é, a criança
ta da muralha, e um caminho de ferro para aprende a olhar e a ver para além do que é
o comboio. Dentro das muralhas só andam óbvio. Repara nos pormenores, observa o
as pessoas e os animais.” Nestas propos- traço e a cor, imagina a história da obra, co-
tas para solucionar o problema constato as loca-se dentro da peça e escrutina-a ao de-
competências adquiridas através de outros talhe – e é neste olhar e ver que se constrói
projetos que desenvolvemos no âmbito da a singularidade da obra que ela própria irá
sustentabilidade do planeta e da vida quoti- criar” (Ibid, p. 8).
diana, e considero que devem ser reforçadas Inspirados na exposição, em sala aproveitá- Como eles brincavam na sala depois de ir à exposição
através desta brincadeira. mos pequenas peças geométricas de már-
more para edificar cidades ao gosto de cada
O papel do educador um. Esta nova brincadeira complementava
“Cabe ao educador apoiar e mediar todo o a brincadeira da maquete da cidade ideal e
trabalho de projeto ajudando as crianças a expandia a experiência do ponto de vista da
antecipar, a representar mentalmente o que arquitetura, da geometria e da construção.
querem saber, fazer ou mudar. O educador Até aqui, este foi um projeto técnico-artísti-
clarifica o significado social do trabalho pre- co que visou sobretudo a produção artística,
visto, tendo em conta a sua utilização, apro- embora tenha tido uma vertente de estudo
priação, intervenção e difusão. A sua função e alguma pesquisa para fundamentação de
é de questionamento permanente, para que ideias em mapas, livros e internet.
as crianças compreendam a necessidade de “Existem três tipos de projetos: os projetos
serem elas próprias os agentes ativos das temáticos de estudo e/ou de investigação
suas aprendizagens. O educador deve tam- científica são aqueles em que as crianças
bém ter um papel preponderante na cons- estão confrontadas com uma questão (que-
trução de um espírito cooperativo dentro da remos saber) e mobilizam os seus conheci-
sala de aula” (Guedes, 2011, p. 8). mentos e capacidades de pesquisa para a Diagnóstico e Intervenção social

47 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


48 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020
49 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020
: PRÁTICAS

resolverem; implicam atividade experimental 3) Foi sugerido organizarmos um passeio de


para a validação das hipóteses colocadas. turma com as suas bicicletas e trotinetas,
Os projetos técnico-artísticos são aqueles e ainda visitarmos o Parque Rodoviário
que apelam para as atividades de constru- de Arraiolos para aprenderem regras de
ção ou produção de obras artísticas (quere- segurança rodoviária para peões e ciclis-
mos fazer). Os projetos de intervenção social tas.
são projetos em que existe a preocupação 4) Decidimos que o resultado das nossas
de mudar o meio em que as crianças vivem investigações no terreno seriam mostra-
(queremos mudar), intervindo de forma ativa, das ao presidente da Câmara Municipal,
apelando para uma atitude de cidadania in- juntamente com sugestões de melhoria.
terventiva” (Guedes, 2011, p. 7). Foi através deste encorajamento do envol-
Porém, pairavam no ar algumas afirmações vimento ativo das crianças no processo de
feitas pelas crianças: “Na cidade há carros, mudança que o projeto tomou o rumo da in-
mas é melhor andar a pé ou de bicicleta para tervenção social.
não poluir.” “A cidade tem passeios para as A minha intenção ao encaminhar as crianças
Falta de rampas nos passeios junto às passadeiras pessoas andarem… e semáforos para os car- para estas dinâmicas é fomentar-lhes o es-
ros pararem.” “Às vezes, as pessoas deixam pírito crítico sobre o espaço público e, numa
os carros nos passeios.” Procurámos ouvir o perspetiva alargada, pôr também os pais a
que tinham a dizer, trazendo-as para a dis- pensar sobre a cidade que temos, se responde
cussão, convidando-as a participar ativamen- às nossas necessidades humanas e se todos
te na investigação. Assim, em reunião: juntos podemos impulsionar a mudança. Inspi-
1) Foi feito um diagnóstico, validado por rada claramente na ideia de que “A Cidade dos
várias crianças da turma. Se “há quem Nenos implica ralentizar tráfico, devolverlles o
estacione o carro em cima da passadei- espazo aos peóns e ás bicicletas e mais devol-
ra, em frente à porta do colégio e nós verlle as prazas á xente.” (Tonucci, 2015, p. 81).
não conseguimos passar”, era urgente Questiono-me enquanto educadora sobre o
arregaçar as mangas e agir. Criámos um que posso fazer para deixar a nossa cidade
cartaz para colocar à porta da Institui- melhor, mais apta a todos os cidadãos (crian-
ção com a mensagem: “Não pode es- ças, jovens, adultos e idosos), sobre o que pos-
tacionar o carro em cima da passadeira, so fazer para que não nos resignemos todos
Expositores de comércio que ocupam metade da via os peões querem passar em segurança!” ao açambarcamento das ruas pelo trânsito e
Este começou logo a surtir o efeito de- pelo comércio que usa a via abusivamente.
sejado. Que posso fazer para devolver a rua às pes-
2) Decidimos ir para a rua verificar como soas em geral e às crianças em particular? Para
está a mobilidade dos peões e que iría- que os receios e inseguranças dos adultos em
mos, de imediato, alertar a comunida- relação à rua não sejam transmitidos às crian-
de para o que não funciona bem. Mas ças, impedindo-as de usufruir na totalidade de
como? Criámos cartões verdes para atri- um espaço que é seu e que tantos benefícios
buir ao que está bem, cartões amarelos proporciona física, cognitiva e sociavelmente?
para o que não está bem, mas já está Posso fazer que os meus alunos aprendam a
em mudança, e cartões vermelhos para o ser cidadãos, pois a cidadania acontece quan-
que dificulta ou desrespeita a segurança do a exercitamos. Posso mostrar-lhes que a
dos peões. No terreno criámos intera- distância entre nós, cidadãos, e a autarquia
ção com as pessoas e questionámo-las não é assim tanta, se não desistirmos daquilo
sobre as suas ações para as ajudarmos que idealizamos, neste caso um espaço urba-
Redigir a carta para o presidente da Câmara a refletir. no mais humanizado e inclusivo.

50 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


“A receptividade dos autarcas e de dirigentes
permite aproximar as crianças destas institui-
ções e do trabalho feito pelas suas equipas e
abrir caminhos para que, no futuro, se atinjam
mudanças culturais profundas e se enraíze a
participação infantil” (Silva e Silvestre, p. 39).
A nossa solicitação recebeu parecer favorá-
vel da autarquia, que se tem empenhado em
promover Évora como cidade educadora atra-
vés de práticas sustentáveis. Aguardamos a
reunião, mas para já a Divisão de Mobilidade
e Ambiente deu-nos a conhecer um projeto
europeu, “A Serpente Papa-Léguas”, que Évo-
ra implementou e visa mudar os hábitos de
deslocação das famílias para as escolas, convi-
dando-as a fazê-lo de forma sustentável (a pé,
de bicicleta, nos transportes públicos ou num
carro partilhado). Teremos todo o gosto em in-
cluir a participação neste projeto na nossa ca-
minhada para a sensibilização da comunidade.
É caso para dizer que foi a própria ação das
crianças que as levou a conhecer e a relacio-
Passeio de bicicleta da nossa turma nar-se com a cidade e com as entidades lo-
cais, tendo sempre por base o pressuposto da
construção coletiva, da corresponsabilização
social e partilha de recursos e saberes, numa
perspetiva de diálogo e concertação para um
bem comum: melhorar a mobilidade de peões
e, consequentemente, a qualidade do ar que
respiramos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Guedes, M. (2011). Trabalho em Projetos no Pré-esco-
lar. Escola Moderna n.º 40, 5.ª série, p. 7.
Guedes, M. (2012). Projetos de Arte – Fazer para
Aprender. Escola Moderna n.º 43, 5.ª série, p. 8.
Folque, M. A. (2012). O aprender a aprender no pré-
-escolar: o modelo pedagógico do Movimento da
Escola Moderna. Lisboa: Fundação Calouste Gulben-
kian, FCT.
Tonucci, F. (2015). A Cidade dos Nenos. Kalandraka:
Pontevedra.
Silva, I. e Silvestre, S. (2016). A Participação das Crian-
ças na Construção da Cidadania no Concelho de Gou-
veia. Criança, Cidade, Cidadania – Atas do colóquio
internacional. Associação para o Desenvolvimento
das
Poder ser livre, correr e brincar em ruas só para peões e sem expositores de preferência

51 Cadernos de Educação de Infância n.º 119 Jan/Abr 2020


: PRÁTICAS

Participação, um direito essencial


Nuno Gonçalves . Educador de Infância, Centro Social Paroquial de Chaves

“Já sei, podíamos participar nos jardins da para promover essa nova conceção de infân- Assim se garante o direito e o dever das
nossa cidade” (Duarte, 5 anos). cia, deixando a criança de ser perspectivada crianças a serem escutadas e estimuladas a
“Vamos Reflorir Chaves” como um objecto de direito para converter-se participar no sentido de influenciarem a sua
num sujeito de direitos. própria aprendizagem.
A Declaração sobre os Direitos da Criança, Os direitos de participação dizem respeito Estamos perante uma imagem de criança
aprovada em 20 de Novembro de 1959, foi um ao nome e identidade, a ser consultada e ativa e com agência.
marco no reconhecimento das especificidades ouvida, ao acesso à informação, à liberdade A participação na educação e cuidados para
da infância. Em 2020 comemoram-se os 30 de expressão e opinião e a tomar decisões. a infância é um conceito multifacetado que
anos da aprovação pela Assembleia Geral das O direito a formar e exprimir opiniões, a ser inclui política educativa, gestão, pedagogia,
Nações Unidas da Convenção sobre os Direi- valorizada a sua participação nas decisões currículo e avaliação. Envolve diferentes
tos da Criança (CDC). que lhe dizem respeito, a participar e pronun- interessados, em que os principais são as
Este documento, adotado em 1989 e ratifica- ciar-se sobre o seu projeto de vida, a intervir, crianças; os pais e outros membros da famí-
do por Portugal em 21 de Setembro de 1990, enquanto parceira, no sistema de promoção e lia envolvidos nos cuidados, educação e bem
tornou-se um pilar jurídico e simbólico que proteção em que se insere. estar das crianças; os profissionais de edu-
aponta para a universalidade dos direitos dos Esta nova conceção de infância reconhece o cação; toda a comunidade, uma vasta rede
cidadãos mais novos. A Convenção sobre os potencial criativo, a inteligência e a sensibili- social (OCDE, 2012) constituída por todos os
Direitos da Criança veio alicerçar esta nova dade da criança. As crianças são coconstruto- interessados da comunidade local, incluindo
visão sobre a criança, reconhecendo-lhe a ras da sua aprendizagem e reconhecem que outros serviços e cidadãos.
capacidade de ser titular de direitos e reco- são participantes ativas e competentes no No que diz respeito à participação das crian-
nhecendo-a como um sujeito ativo, ao dar-lhe desenvolvimento das experiências. Assegu- ças, esta deve ter lugar durante os proces-
importância e atribuir-lhe direitos próprios. ram os seus direitos, não apenas de provisão sos de ensino e aprendizagem centrados
O direito à participação surge como a gran- e de proteção, mas também de participação na sua experiência, que encorajem os seus
de novidade da Convenção, que foi essencial e expressão. interesses e explorações através de “cem lin-

52 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


guagens” (Edwards et al., 1993) e promovam ticipação e protagonismo na orientação das socialização e as suas maneiras de interpre-
também as suas disposições para aprender, suas vidas e para que possam, no dia a dia, tação das coisas que vivem, experimentam,
isto é, todas as estratégias através das quais influenciar os contextos em que vivem (Clar- criam, recriam e sentem.
as crianças aprendem a aprender (Carr, 2001). ke et al., 2005; Rinaldi, 2006; Clark e Moss, Retenho a observação do Duarte, de 5 anos,
Mas a agência das crianças é reconhecida 2011). com a sua mania saudável que caracteriza as
quando elas são vistas como membros ativos Este amplificador, esta lente de aumento, crianças (independentemente da faixa etária)
da comunidade, com direitos e capacidades vai-nos possibilitar ultrapassar o muro que de inventar, recriar e imaginar. Reforcei a
de expressar a sua opinião, tomar decisões isola a escola da comunidade, muro firme e ideia de como é importante observar e es-
e participar. E também quando são vistas que tem bases sólidas, pois foi construído ao cutar a criança e necessário construir formas
como construtoras ativas da sua aprendiza- longo de anos, mas que mesmo assim pode colaborativas de pensar o quotidiano da in-
gem, enquanto agentes criadores de conhe- ser derrubado. fância, de maneira a reconhecer à criança a
cimento (Philips, 2010). Partindo desta escuta ativa da voz das crian- sua agência.
ças, desenvolvemos um projeto que preten- “Temos mesmo que ajudar (pausa). Eu já
Vamos iniciar os passos da aventura deu dar resposta a espaços de aprendizagem disse que podíamos ajudar nos jardins da
As consequências dos fogos do Verão de ativa e consciente. A conceção do projeto cidade. Estão tão tristes!”, diz o Duarte em
2018 nas zonas que envolveram a cidade de sustenta-se na ideia de trabalho planificado voz alta. Rapidamente o interesse do Duar-
Chaves, marcadas pela descaracterização da colaborativamente e de alargamento dos te contagiou o grupo, que se aproxima dele.
paisagem e pelas alterações sociais e econó- saberes a partir dos interesses emergentes. Ouve-se o Miguel: “As florestas também
micas, tiveram profundo impacto, sobretudo Abrem-se assim as portas para considerar as precisam de ajuda. Não há árvores, nem pas-
em alguns dos jardins de Chaves que em crianças como sujeitos privilegiados nas pes- sarinhos.”
tempos foram o ex-libris desta cidade. quisas com a sociedade, a cultura e o mun- Percebo uma discussão entre o Duarte, o
Passando a ser uma reflexão e preocupação do. Uma verdadeira aventura de sensibilida- Miguel e a Mariana, todos de 5 anos, sobre
presente nos discursos e narrativas locais, de e escuta aos mundos sociais e culturais a diferença entre as florestas, os jardins, os
tornou-se necessária uma abordagem edu- das crianças. animais que morreram durante o fogo, as ár-
cativa e pedagógica que respondesse às A actividade que juntos planificámos foi um vores. O Duarte afirma:
dúvidas e preocupações demonstradas pelas passeio à rua para se perceber como o fogo “Esta terra aqui é da floresta, baixa-se e
crianças: é tão transformador. mexe na terra, porque a do jardim não é tão
“As florestas arderam; agora não temos Na nossa sala, enfatizámos uma visão de escura e é mais fofinha.”
árvores para respirar!” (Miguel, 5 anos). “E educação centrada na pedagogia da escuta, As mãos do Duarte e a terra parecem conver-
os passarinhos, onde vão fazer os ninhos?” que é aquela que cria um contexto de escuta sar com alguma intimidade. O Duarte parece
(Guilherme, 5 anos). “Os bombeiros precisam que é igual a aprender, desenvolver e criar. A encantado com a terra, uma terra simples
de ajuda.” (José, 5 anos). “Os nossos jardins escuta das crianças é a chave para a planifi- apenas humedecida com água, mas enrique-
ficaram tão tristes” (Dinis, 5 anos). “Já sei, cação. Ao escutarmos as crianças, estamos cida pela imaginação e repleta da curiosidade
podíamos participar nos jardins da nossa ci- a permitir e a encorajar o aprender, criar, a do menino. Aquela exploração suspende o
dade” (Duarte, 5 anos). valorizar as suas vozes, as suas criações, ten- tempo e envolve o Duarte numa longa jor-
Estas crianças viveram e sentiram estas do como finalidade única a reconstrução da nada de compreender o mundo através das
preocupações de perto. aprendizagem. suas mãos. “A minha mão está preta!”, grita
Solicitam-nos, assim, um olhar e uma escuta Desafiam-se assim fronteiras entre espaços, ele, ficando muito tempo a brincar consigo
atenta e sensível num diálogo coletivo. Fa- modos de olhar, comunicar e viver. Vimos mesmo e com a terra. O seu envolvimento
lamos da necessidade de escutar as crian- jardins e florestas queimadas, árvores derru- era tanto que as crianças ao seu redor fo-
ças com uma “lente e um amplificador que badas, e ouviu-se o silêncio de vastas áreas ram-se aproximando para experimentarem
aumenta”, que nos aproxima das suas vo- que tinham perdido os animais que as en- as mesmas sensações que ele. No entanto,
zes, ações, reações, manifestações, medos, cantavam. as ações do Duarte diferem completamen-
ansiedade e relações. Escutar as crianças, Dedicámos tempo suficiente para a obser- te das das demais crianças. As suas mãos
incluindo uma pedagogia da escuta, é um vação das crianças e do modo como elas sabem o que fazem: “Na casa do meu avô
meio fundamental para promover a sua par- produzem a sua cultura, as suas formas de estou sempre a brincar na terra.”

53 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: PRÁTICAS

Brincar com a terra era para o Duarte uma As falas das crianças revelam entusiasmo em Inspiradas nesta e noutras opiniões, foram
ação muito familiar e as suas mãos mexem- participar e ajudar os bombeiros, os jardins de realizadas reuniões com as crianças e pais
-se com conhecimento. É assim que se cons- Chaves, as florestas. Exploram-se conheci- para a apresentação do projeto e para se
titui uma relação íntima entre ele e a terra mentos prévios, ideias, sensações. partilharem propostas e estratégias para o
que explora. O menino dispõe-se a viver a Assim seguimos com a nossa missão de tra- operacionalizar.
beleza da natureza. balhar por projectos de pesquisa, acreditando Para Rinaldi (2014), cada criança é portadora
O Duarte continuava a fazer buracos e apa- na capacidade da criança para a construção de sensibilidade ecológica, e isso ocorre des-
nhava paus que colocava dentro dos bura- de uma sociedade mais participativa, amorosa de que é muito pequena. Quando se aceita
cos como se fossem árvores. A relação de e respeitadora. o seu papel social e cultural, família, escola
afetividade desenvolvida com o seu amigo Juntos, decidimos regressar à rua para reco- e sociedade assumem um imediato copro-
Miguel constitui-se num elemento bastante lher bolotas de carvalho nas avenidas da ci- tagonismo, e são ativados múltiplos recur-
importante na sua relação com a terra, as dade, recolher as mais diversas sementes na sos afetivos, intelectuais, sensoriais. Todos
árvores, a natureza: “Sabes, Miguel, que as natureza, recolher terra no meio ambiente na- fazem perguntas, porque estão em relação
árvores choram e falam quando as regamos. tural. Durante este percurso fazemos registos com o mundo.
Elas nascem se fizeres um buraco na terra e gráficos nos jardins da cidade. Desta forma, promove-se eficazmente a par-
colocares lá uma semente. Assim: olha!” Depois desta colheita de sementes, as crian- ticipação das famílias. Um modelo de parti-
“Eu sei”, diz o Miguel. “Depois as raízes vão ças tentam elaborar possíveis teorias sobre cipação das famílias que corresponde a uma
nascer e juntam-se umas às outras. Depois elas. “Se não semearmos as sementes, elas verdadeira aliança educativa.
vai crescer e mais tarde chora pelas folhas.” morrem”, diz o Duarte. Automaticamente, Da reunião com os pais saiu a ideia da rea-
“Temos de arranjar sementes. Vamos ser outro ponto de vista organiza o pensamento: lização de uma grande sensibilização das
plantadores de árvores e flores.” “Não, se a molharmos ela vive cinco dias”, co- crianças e famílias da comunidade educativa
A natureza acolhe profundamente o desejo menta a Mariana. O confronto é também um para a preocupação com a conservação da
intrínseco da criança de desvendar mistérios convite. A comunicação é um fator essencial natureza e o respeito pelo ambiente; reali-
e, por meio dessas inclinações investigativas, ao longo de todo o processo. Entrelaçam-se zação de um desfile de jardins nómadas,
coloca-a em comunhão não apenas com a ideias e fortalece-se a necessidade de cons- com as plantas semeadas e cuidadas pelas
vida, mas com todos os outros seres. truírmos o horto pedagógico e estufas, ver- crianças, transportadas em carretas pelos
Não restam dúvidas de que as crianças são dadeiros laboratórios de investigação onde pais; realização de uma feira solidária na
pesquisadoras natas. Elas olham o mundo e crianças e adultos semearam, plantaram, re- principal praça da cidade com as plantações,
interrogam-se sobre as coisas, vão em busca garam, cuidaram, observaram, registaram. que serão vendidas ao público a favor dos
de respostas sobre diferentes questões da Construímos e dinamizamos as cozinhas de bombeiros.
vida. Pensar a vida a partir do que as crian- lama, um espaço de participação, exploração Neste linha de pensamento foi necessário
ças nos indicam revoluciona, mexe e remexe, e deslumbramento que proporcionou uma ri- fazer uma reunião com as crianças, educa-
desafia-nos com emoções, visões, que insis- queza e variedade de aprendizagens em todas dores e algumas famílias, com o presidente
tentemente nos convidam a deixarmo-nos as áreas de conteúdo: a cozinha de lama rece- da Câmara e com o presidente da Junta de
seduzir pela magia da fluidez, onde o sonho bia as folhas velhas, ervas e flores mortas que Freguesia, que acolheram e impulsionaram o
e a realidade se entrelaçam. Sentimo-nos en- eram retiradas do horto pedagógico. projecto. Desta reunião com os presidentes
cantados. As crianças cantaram, dançaram ao som de surgiu a ideia de associar a este projecto a
Já na sala trouxemos para o grupo o que dis- músicas, disseram poesias e adivinhas, ouvi- polícia, os bombeiros e as bandas do conce-
seram o Duarte e o Miguel. Alguns quiseram ram histórias de sementes e plantas e apren- lho de Chaves para animarem o desfile.
registar. deram coisas importantes sobre a natureza. A participação da comunidade envolve todos
“Nuno, vamos ajudar. É só arranjar sementes A curiosidade é contagiante e as ideias reve- os que vivem na proximidade da instituição,
para as árvores nascerem, foi o Duarte que lam pensamentos e relações com a vida de cidadãos com responsabilidades e interesse
disse”, diz o Miguel. todos os dias. Diz o Dinis: “Os pais podiam pela educação, mas também todos os ser-
“A minha mãe disse que os bombeiros estão ajudar-nos, os jardins da cidade são muitos e viços da comunidade (Litjens and Taguma,
muito cansados. É perigoso, um carro até ar- o meu pai sabe fazer tudo, olha que é uma 2010). A participação da comunidade remete
deu”, comenta a Matilde. boa ideia!” também para a cooperação entre a institui-

54 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


ção e outros serviços, bem como outros ní- “mostra pedagógica” aberta às famílias e à
veis de educação, organizações, associações, comunidade educativa.
polícia e outros serviços (OCDE, 2012). A criança e a natureza relacionam-se de
O projecto prossegue e recebemos a visita maneira simples e, provocadas com algu-
de mães, avós, floristas, engenheiros, para mas questões e observação das plantas
contarem histórias, ensinarem a moldar o a germinar, lançámos o desafio à família,
barro, explicarem como respeitar e preservar a cafés e restaurantes, para em conjunto
o ambiente, cuidar das sementes e plantas… reutilizarmos recipientes, nomeadamente
Organizámos visitas à olaria do Sr. Ambrósio, garrafas e garrafões de plástico que na na-
que permitiu que as crianças experimentas- tureza levariam 200 anos para se decom-
sem o barro e fizessem várias figuras para por. Também recolhemos carretas no meio
posterior venda. Visitámos a Biblioteca rural e em empresas de construção civil,
Municipal, permitindo às crianças ouvirem facilitando uma maior educação ambiental
histórias de sementes e plantas e fazerem e servindo de suporte a muitas plantas que
pesquisas no âmbito do projeto. Visitámos iam germinando.
e experimentámos os laboratórios da Escola Aproximava-se a data do desfile e crianças
Secundária Fernão de Magalhães e das Ter- e adultos espalharam cartazes pela cidade,
mas de Chaves; elaboram convites e organizaram desdobrá-
Curiosas, as crianças pareciam descobrir veis e intervenções de sensibilização.
minimundos escondidos em cada canto. A comunidade educativa, pais, familiares,
Parecem encantadas com a natureza, o que amigos, polícia, bombeiros, presidente da
convoca para o levantamento de questões. Câmara Municipal e presidente da Junta,
As crianças procuram no seu reportório ele- reúnem-se na praça principal da cidade e
mentos para comunicarem as suas teorias. numa perspectiva de avaliação social, as
“Para as plantas germinarem precisam de luz crianças comunicam o que fizeram, como e
e água”, diz o Pedro, de 5 anos. “Sabem que o que aprenderam, os processos, as desco-
cada vez temos menos água, temos que a bertas, as experiências que marcaram todo
poupar porque ela é precisa para as plantas, o percurso que permitiu a sensibilização
as pessoas e os animais”, diz a Mariana. “Não delas próprias, das famílias e comunidade
há problema: quando quisermos água, reza- para a preocupação com a conservação da
mos à mãe do céu”, comenta o Rúben, de natureza e o respeito pelo ambiente.
4 anos. O desfile de jardins nómadas pela cidade de
Íamos escutando as ideias, as dúvidas, as Chaves, com as plantas semeadas e cuida-
certezas, as vontades, interesses e neces- das pelas crianças transportadas em carre-
sidades das crianças e, como escribas, re- tas pelos pais, que se apresentaram vestidos
gistávamos. de jardineiros e as mães de Maias floridas,
Testemunhar estes encontros convoca o dando brilho e cor à cidade, foi participado
olhar para interpretar as diferentes vozes, e centralizou as atenções. Decorreu ao som
os silêncios e as descobertas. O mundo de algumas bandas do concelho de Chaves
real e o imaginário ligam-se e dão forma que se associaram ao projeto.
aos pensamentos das crianças. A curiosida- Na praça histórica da cidade realizou-se a
de presente na infância materializa-se em exposição das carretas (Jardins de Chaves
ações e surge um novo projeto relacionado Floridos), que foram visitadas por outras
com a água, uma verdadeira comunidade escolas e público em geral.
em aprendizagem. O produto final de todo Neste espaço preparámos a “feira solidária”
o processo resultou numa exposição tipo com as plantações das crianças, bolos e ou-

55 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: PRÁTICAS

tros bens confeccionados pelas famílias, que plenitude. nhecendo-as como cidadãs na promoção da
foram vendidos ao público, tendo sido anga- A curiosidade das crianças foi estimulada de educação ambiental e tornando-as mais cons-
riado um valor significativo para ser entregue forma exponencial, bem como o seu desen- cientes, responsáveis e solidárias.
aos bombeiros e instituições solidárias locais. volvimento cognitivo e emocional. Partindo A construção participada de atividades e es-
Todo o processo de organização e recolha de da escuta ativa da voz das crianças, a equipa tratégias que tenham como base a interven-
dinheiro durante e após a feira solidária foi, pedagógica desenvolveu estratégias de par- ção no seu espaço e contexto, mormente as
ele próprio, um imenso processo de apren- ticipação e parcerias de inclusão educativa a ligadas às preocupações da cidade, do meio
dizagem para as crianças: da escolha do que partir das quais os objetivos expressos nas envolvente, hábitos e conhecimento cultu-
fazer às técnicas de produção, da definição OCEPE se constituíram como princípios e fun- ral são elementos-chave de apropriação de
dos preços de venda ao público à forma de di- damentos da abordagem pedagógica. competências e saberes relativos à sua vida
vulgar e, por último, da contabilidade à entre- Nessa perspetiva, a escolha das atividades, e à da comunidade. Os jardins de Chaves, as
ga do cheque, isso tornou este projeto ainda estratégias e metodologias de desenvolvi- florestas, os bombeiros foram aqui a grande
mais especial do que já fora até ao momento. mento deste projeto potenciaram a reflexão preocupação para as crianças.
Todo o projeto contou com o envolvimen- e a assunção de comportamentos e atitudes As abordagens refletidas e decididas em con-
to de parceiros locais do concelho: famílias de respeito pela cidade, pelo ambiente e que junto – equipa pedagógica, crianças, pais,
(apoio logístico, na pesquisa, na construção/ contribuem para uma formação integral do autarquia –, tendo por base os interesses
decoração das carretas, no desfile dos jardins cidadão. comuns, implicam o desenvolvimento de ati-
nómadas, na colaboração com bolos, venda e Os desafios que se colocaram incentivaram tudes positivas na relação com os outros, nos
compra de plantas da feira solidária). A Câma- a experimentação e dotaram as crianças de cuidados e na criação de hábitos de respei-
ra Municipal de Chaves e a Junta de Freguesia uma capacidade de investigação incrível, num to pelo ambiente, por melhorar os espaços e
apoiaram através da cedência de espaço para contexto lúdico, rico e estimulante que deve consequentemente a cultura.
a realização das atividades, do apoio logísti- caracterizar as aprendizagens em idade pré- Ao estabelecer relações e parcerias entre fa-
co e técnico às crianças em palco, desfile de -escolar. As áreas curriculares foram trabalha- mília e comunidade, associando-as a objetos,
jardins nómadas, feira solidária e exposição das de forma transversal, tendo como área situações e preocupações, torna-se dinâmico
de carretas, empréstimo de bancas, etc. A de intervenção pedagógica por excelência a e funcional o conhecimento e o respeito pelo
PSP apoiou com a sua presença durante o Formação Pessoal e Social das crianças, reco- ambiente, pela cultura, pelos famosos jardins
desfile de jardins nómadas e os Bombeiros
asseguraram a segurança durante o desfile,
mas também nas constantes visitas à nossa
instituição. Foram ainda muitos os apoios vin-
dos de instituições e empresas locais, como
a McDonald’s, Flavimpério, Munível e Mestre
Alimentar, Renascença, os Gaiteiros de Lebu-
ção, Banda Filarmónica Os Pardais, Grupo de
Bombos, as Estufas de Chaves... Mas não fi-
cou por aqui, porque o Parque Biodiversidade,
a Quercus, a Escola Secundária Fernão de Ma-
galhães e as Termas de Chaves complemen-
taram a ação através do apoio logístico e da
disponibilização de informação temática, da
cedência de algumas árvores e da realização
de visitas de estudo onde foi possível apren-
der imenso.
A cidade abriu-se assim às crianças, às famí-
lias, à escola, permitindo-lhes o direito à par-
ticipação, podendo viver a experiência na sua

56 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


de Chaves, pela floresta e pela sociedade na mãe disse que foi a coisa mais bonita que já da cidade, internet, entidades oficiais, livro de
ajuda aos bombeiros. Sendo estes alguns dos viu na nossa cidade, foi mesmo lindo” (Ma- avaliação, etc.), culminando com um voto de
objetivos fundamentais e princípios educati- riana). congratulação apresentado pelo presidente
vos da educação pré-escolar (OCEPE), com- As crianças falaram ainda sobre as atividades da Câmara Municipal de Chaves.
preender-se-á a inovação e, sobretudo, o em que mais se envolveram, os projetos em
espaço de integração futura, um projeto que que participaram mais ativamente e o tipo de
terá continuidade, pelo impacto nas crianças, ação que desenvolveram:
famílias e comunidade, numa perspetiva for- “Os passeios pela floresta foram tão bonitos! REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
mativa e de desenvolvimento pessoal, cultural Eu gosto da floresta e dos jardins, das árvo- Clark, A, Kjohalt, and Moss P. (eds.) (2005) Beyond
e social de todos os envolvidos. res, das flores e da terra” (Duarte). Listening to Children’s Perspectives on Early Chil-
dhood Services. Bristol: Policy Press.
Por outro lado, o registo e a partilha do co- “Eu fiz muitas pesquisas com o meu pai e a Carr, M. (2001) Assessment in Early Childhood Set-
nhecimento e aprendizagem, utilizando dife- minha mãe. A minha mana aprendeu muitas tings: Learning Stories. London, Paul Chapman Pu-
rentes suportes de documentação partilhadas coisas comigo” (José). blishing.
em exposição (mostra pedagógica), em jornais Os discursos das crianças revelam que tiveram Edwards, C., Gandini, L. e Forman G. (eds.) (1993). The
da cidade, no Facebook, potencia a reflexão e uma participação ativa na planificação e na Hundred Languages of Childhood Education and
Care: Languages of Evaluation. London: Routledge.
aproxima as crianças da compreensão futura escolha dos materiais: Fernandes, N. (2009). Infância, Direitos e Participa-
dos fenómenos culturais, sociais e ecológicos. “Quando escrevemos no diário que eu, o ção. Representações, Práticas e Poderes. Porto. Edi-
Porque a educação de infância é um tempo Duarte e o Guilherme íamos falar com o se- ções Afrontamento.
de formação do cidadão e de desenvolvimen- nhor presidente, fiquei muito feliz. Viste? Eu OCDE (2001) Starting Strong: Early Childhood Educa-
to pessoal, só podemos esperar que os resul- até agradeci a todos por votarem em mim” tion and Care. Paris: OCDE
OCDE (2012) Starting Strong III: A quality toolbox for
tados sejam construídos no futuro com base (Miguel). Early Childhood Education and Care. Paris: OCDE
nas experiências agora proporcionadas. “Gostei mesmo muito de ir pedir as carretas Phillips, L. G. (2010) Young Children’s active citi-
Nas suas explorações, as crianças vão perce- e plantar as nossas flores nas carretas. Que zenship: storytelling, stories and social actions. Tese
bendo a interdependência entre as pessoas lindos jardins!” (Duarte) de Doutoramento em Filosofia. Queensland: Univer-
e entre estas e o ambiente, relacionando-se Os pais valorizaram o projecto e sentiram-se sity of Technology. Faculty of Education.
Pureza, J. M. (2000). O que os jovens (não) sabem
com os hábitos, preocupações locais e cultu- implicados em todo o trabalho que se desen- sobre os direitos humanos. Noesis, 56, 27-28.
rais e com as problemáticas dos seus contex- volveu. Numa nota retirada de uma caderneta RINALDI, Carla. Documentação e avaliação: qual a
tos de vida, compreendendo a sua posição e podemos ler: “(…) foi um projecto fantástico. relação? In Tornando visível a aprendizagem: crian-
papel no mundo e como as suas ações podem Todos os dias a Beatriz tinha novidades e al- ças que aprendem individualmente e em grupo. Col.
provocar mudanças. Abrir a possibilidade aos guma coisa que queria pesquisar. Pedia-nos Reggio Children/Project zero. Phorte Editora: São
Paulo, 2014
pais e famílias de as acompanhar foi também para participarmos com histórias e recolha de RINALDI, Carla. Documentação e investigação
uma mais-valia na partilha desta experiência sementes, bolotas, terra. Depois gostei muito (1999): Diálogos com Reggio Emilia: Escutar, Investi-
e do conhecimento que ela proporcionou às do desfile, de ouvir os meninos a partilharem gar e Aprender (Cap. 9). São Paulo: Paz e Terra, 2014
crianças e que as acompanhará na sua vida. tudo o que fizeram e a entrega do donativo (esta deve estar mal citada, tem duas datas)
Quisemos, no momento final, perceber as aos bombeiros. Estou mesmo feliz e agrade- Silva, L. Marques, L, Mata, L.& Rosa, M. (2016). Orien-
tações Curriculares para a Educação Pré-Escolar.
conceções das crianças sobre o trabalho de- cida.” Lisboa: Ministério da Educação / Direção – Geral da
senvolvido: O projeto assumiu uma centralidade efetiva Educação (DGE).
“Eu gostei mesmo muito, principalmente nas vivências comunitárias locais. Nesse sen- Tomás, C. (2011) “Há muitos mundos no mundo”.
porque os bombeiros ficaram felizes e vão tido, podemos afirmar ter sido pertinente a Cosmopolitismo, Participação e Direitos da Criança.
comprar fatos novos para se protegerem” ( valorização do projeto pelas crianças, pais, au- Porto. Edições Afrontamento.
Vasconcelos, T. (2007). A Importância da Educação
Miguel). tarquia, comunidade, a divulgação das “boas na Construção da Cidadania. Saber (e) Educar, 12,
“Gostei de ver as nossas bolotas a transfor- práticas” e as mudanças de atitude. Estas 109-117.
marem-se em carvalhos tão bonitos; agora afirmações são corroboradas pelas inúmeras
estão prontinhas para irem para a floresta” mensagens de apoio e reconhecimento, cons-
(Beatriz). tantes ao longo de todo o tempo de incidên-
“Os nossos jardins ficaram lindos! A minha cia do projeto, através de vários canais (jornais

57 Cadernos de Educação de Infância n.º 119 Jan/Abr 2020


: PRÁTICAS

Aqui mora uma pessoa


Helena Martinho . Jardim de Infância do Vimeiro. Agrupamento de Escolas D. Lourenço Vicente

No ano de 2010/11 surgiu, no Jardim de In-


fância do Vimeiro, um projeto que começou
pelo desafio de uma mãe arquitecta, Ana
Timóteo,1 que devido à sua naturalidade
alemã e à atividade profissional, colocou no
caminho do grupo de crianças o nome do
controverso e incontornável artista plásti-
co, gráfico, filósofo, arquiteto e ativista (em
prol da integração do homem com a nature-
za) austríaco Friedensreich Hundertwasser
(1928-2000).
Enquanto arquiteto era claramente contra
a ortogonalidade dos espaços “não huma-
nos”, que tiravam o homem do seu meio
e ambiente natural. Apostou sempre nas
formas orgânicas, nas cores fortes e numa
exuberante ligação e harmonia com os ele-
mentos da natureza.
Nos seus discursos e contra uma arquitec-
tura racional, estéril e repetitiva, exigia, em do autor. Era como se o jardim de infân-
troca, a liberdade criativa da construção e o cia se tivesse transformado num ateliê de
direito à individualidade. assessores do Hundertwasser. Pintura,
Na sua perspectiva cada um deveria dese- construção tridimensional de elementos da
nhar o seu próprio ambiente, e é dele esta natureza, modelagem de cúpulas em pasta
frase, central em todo o nosso projeto: de madeira... uma série de atividades que
“Aquele que vive numa casa deve ter o direi- deram origem à criação de várias maquetas
to a olhar pela sua janela e desenhar como arquitectónicas.
queira toda a parte da parede externa que Mas quando parecia termos chegado ao fi-
possa alcançar com o braço; assim será evi- nal do projeto, a ideia das janelas personali-
dente para todo o mundo, à distância, que zadas ganhou força e resolvemos criar uma
ali vive uma pessoa.” “fachada de prédio” no nosso muro exterior,
O projecto iniciou-se com uma imersão na com uma janela da autoria de cada criança.
obra arquitectónica deste artista com pro- Os projetos foram desenhados primeiro em
jeção das suas obras e muitas conversas de papel e depois pintados sobre platex em
grande dinamismo sobre as ideias ecoló- grandes dimensões. Mais tarde foram apa-
gicas e humanizadas deste autor. Rapida- rafusados ao referido muro branco.
mente as crianças se deixaram fascinar pela Aquelas eram as janelas que gritavam a
exuberância das formas, cores e soluções quem passasse ou nos viesse visitar: “Aqui
de interligação com a natureza. mora uma pessoa.” Ou, melhor: “Aqui mo- adulta ativa numa sociedade livre, quisemos
Depois deste “banho” inicial, o gabinete ram várias pessoas.” Pessoas diversas, pes- ir ainda um pouco mais longe.
Esboço Cúbico, da mãe arquiteta, provi- soas únicas. Porque a educação deve potenciar o conhe-
denciou módulos-base para a intervenção Mas depois de termos já exercido o direito cimento e a inteligência intrapessoal (auto-
plástica das crianças segundo as regras à liberdade de expressão, vivido questões conhecimento e capacidade de agir adapta-
como a da identidade pessoal, a do direito à tivamente com base nesse conhecimento)
1 Um agradecimento especial à arquiteta Ana Timóteo intervenção no ambiente/contexto em que e interpessoal (capacidade para perceber o
e ao ateliê Esboço Cúbico. se vive, preparando a criança para uma vida humor, intenções, motivações e sentimen-
tos de outras pessoas, empatia), os nossos

58 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


passos dirigiram-se ainda para uma ativida-
de que poderia intitular-se como “A minha
bandeira”.
A partir do contacto com o simbolismo de
bandeiras de diversos países, desafiaram-se
as crianças para um momento de autorre-
flexão, para que cada uma selecionasse os
seus pontos fortes e o que era mais sig-
nificativo para si. Com base nessa reflexão
cada uma idealizou um projeto de bandeira
pessoal que revelasse a sua identidade (em
desenho, pintura e colagem). Mais tarde, as
costureiras da família fizeram réplicas das
bandeiras em tecido. No final do ano cada
criança levou essa bandeira para casa, numa
manifestação inequívoca de identidade e
autoconhecimento.
Todo este percurso permitiu um exercício
de liberdade de expressão, construção de
identidade, de cidadania, de compreensão
de factos culturais e ambientais, de cons-
trução da ideia de que o cidadão pode e
deve atuar sobre o seu contexto/ambiente.
Tudo fatores presentes nos direitos huma-
nos em geral e nos das crianças em parti-
cular.
É por isso que acreditamos que dois jardins
de infância ou duas salas de jardim não po-
dem ser iguais, nem veicular fenómenos de
massa e estereotipias irrefletidas.
“Aqui mora uma pessoa”, defendia Hunder-
twasser.
Em qualquer espaço escolar deveria ser cla-
ro e óbvio que:
“Aqui ‘moram’ muitas pessoas, e todas di-
ferentes!”

59 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: PRÁTICAS
Quero voltar ao jardim de infância com a memória dos dinossauros
Ofélia Libório . Agrupamento de Escolas de Coimbra Oeste

Quando fui desafiada a escrever um artigo evidente a vulnerabilidade das crianças. To- pode resumir-se a um dia do calendário. E
sobre a minha prática pedagógica tendo dos pudemos notar como as crianças foram este seria apenas um momento para tentar
como ideia central os direitos da criança esquecidas no momento de tomar decisões. contrariar uma prática, muito presente nas
pensava estar distante de convulsões ca- Como temos assistido nos órgãos de co- famílias e até nas escolas, de comemorar a
pazes de colocar a generalidade das nossas municação social, Pedernera, presidente do data com atividades recreativas e oferta de
crianças em situações de extrema pobreza Comité dos Direitos da Criança da ONU, é presentes às crianças. Partindo da ativida-
e violência. Acreditava que caminhávamos uma das vozes a afirmar que a pandemia de “A escola dos meus sonhos”, sugerida
para o aperfeiçoamento do exercício dos fez das crianças as principais vítimas cola- na brochura da UNICEF, os nove grupos
seus direitos já reconhecidos e efetivos terais. de crianças dos sete jardins de infância do
para muitas delas, ainda que com proble- A intervenção dos Estados, puramente se- agrupamento, com as suas educadoras,
mas e assimetrias por resolver. Estávamos curitária e sanitária, não teve em conta as iriam explorar ideias sobre os espaços. Os
a sair da crise gerada pelos problemas eco- crianças que ficaram privadas da escola, contributos das crianças seriam compilados
nómicos que começaram a sentir-se nos dos amigos, de familiares e até do ar livre, no formato de testemunhos gravados em
países do Sul da Europa no final da primeira abrindo-se caminho para grandes desigual- filme pelos porta-vozes dos grupos (crian-
década do século XXI e que veio agravar o dades no acesso à educação e à cultura, ao ças), para serem apresentados à direção
risco de pobreza e exclusão social de dois sofrimento psicológico e à doença mental. do agrupamento, à autarquia, às famílias e,
milhões e meio de crianças europeias, ex- As características das crianças, a sua de- tanto quanto possível, divulgados na comu-
cluindo “as crianças mais pobres das con- pendência colocam problemas aos adultos nidade.
dições normativas da infância contemporâ- num momento em que o jardim de infância, Entretanto, as crianças ficaram em casa,
nea, no que respeita aos direitos de provi- a instituição que as sociedades ocidentais com a comunicação restrita à esfera familiar
são – educação, alimentação e saúde – mas criaram com a função de as guardar e ensi- e dependentes das iniciativas, meios e pos-
também de proteção” (Sarmento e Trevisan, nar, está encerrado. Por outro lado, a crise sibilidades dos adultos. A sua agência – en-
2017, 21). económica acentua a emergência de res- tendida como a possibilidade de intervir nos
A minha atividade profissional nas duas postas para situações de carência e atrope- acontecimentos à sua volta, na qualidade
últimas décadas refletiu a ideia da parti- los graves a direitos básicos de provisão e de indivíduos a quem são facultadas infor-
cipação das crianças como eixo central da proteção. Em consequência, corremos o ris- mações e são dadas oportunidades para o
pedagogia em educação de infância. Fui co de esquecer os direitos de participação. fazer (Barnes, 2000) – ficou limitada. Desde
desenvolvendo um discurso pedagógico ali- Considerar a importância da participação logo porque “é constitutivo do conceito de
nhado com o de muitas outras pessoas e das crianças implica colocá-las no centro da agência que a pessoa possa escolher cursos
entidades que se estrutura a partir da defe- agenda, tanto política como educativa. diferentes de ação, logo, tenha liberdade”
sa dos direitos de participação das crianças. (Formosinho, 2007, p. 27). Quando muito,
No centro desse discurso está a ideia de Tentativas de manter a coerência, podemos falar de possibilidades de inter-
que a participação é indiciadora do exercí- pelas crianças venção, numa perspetiva puramente indivi-
cio de direitos pelas crianças e, simultanea- O projeto deste artigo começou por ser a dualista e limitada a decisões da sua vida
mente, uma medida de aperfeiçoamento divulgação de evidências da minha práti- pessoal, na esfera familiar.
desses mesmos direitos (Oudenhoven e ca pedagógica respeitante ao ano letivo Assistimos nos últimos tempos ao surgi-
Wazir, 2007). 2019/2020. mento de um discurso preocupado com o
A linguagem dos direitos continua a ser ne- Não sendo titular de grupo neste ano letivo, como ensinar à distância, pouco focado no
cessária na escola, como forma de educa- propunha-me documentar e partilhar uma como aprender à distância e, sobretudo,
ção para e pela democracia. prática pedagógica que evidenciasse a par- nada preocupado com o como continuar a
As assimetrias conhecidas entre crianças ticipação das crianças no jardim de infância. viver a infância longe das escolas e jardins
no exercício dos seus direitos bastariam, Imaginei fazê-lo através da comemoração de infância.
só por si, para justificar a necessidade de do Dia da Criança, seguindo algumas ideias Recordo uma iniciativa de um grupo de edu-
repetir este discurso. O acentuar dessas as- expostas pela UNICEF em 2017, a propósito cadores, despretensiosos e interessados
simetrias com a chegada da pandemia da da comemoração da data. Sabemos que o em refletir em conjunto, o Envolve-te, na
covid-19 ampliou as justificações e tornou trabalho sobre os direitos da criança não qual participei. O grupo recolheu dados de

60 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


opinião de crianças e jovens de todo o País Os educadores compreenderam que o ca- com a qualidade necessária.
sobre o ensino à distância e divulgou-os. minho do E@D não se adequa à educação “Na educação pré-escolar, o grupo pro-
Um testemunho por dia foi publicado no de infância, desde logo pelo entendimento porciona o contexto imediato de interação
Facebook, em abril e maio. Tínhamos como da sua função de ensinar como facilitado- social e de socialização através da relação
principal intenção chamar a atenção para a res de aprendizagem, a partir de currículos entre crianças, crianças e adultos e entre
necessidade de ouvir as crianças em assun- que, como sintetiza Sousa (2018) com base adultos. Esta dimensão relacional constitui
tos essenciais para elas, concretamente os no texto das Orientações Curriculares para a base do processo educativo” (Lopes da
respeitantes à forma como passaram a ter a Educação Pré-Escolar (OCEPE) e numa Silva, Marques, Marta e Rosa, 2016, p. 26).
acesso à educação. As crianças deveriam entrevista a Isabel Lopes da Silva, se po- Pelas razões expostas, no meu agrupamen-
ser ouvidas para poder levar-se em consi- dem apelidar de “experienciais” porque ba- to de escolas, no período em que os jardins
deração o que dissessem no momento de seados em experiências de aprendizagem, de infância foram encerrados, as educado-
tomar decisões, tal como consta na redação “emergentes” na medida em que partem ras estabeleceram como principal objetivo
do art.º 12 da Convenção sobre os Direitos tanto do planeado como do não planeado, manter as crianças em contacto umas com
da Criança. “não prescritivos” porque não subordinam as outras. Propusemo-nos apoiar e incen-
Seria o ensino à distância (E@D), que esta- a intervenção do educador a objetivos de tivar as crianças nas suas descobertas e
va a ser oferecido naquele momento, uma aprendizagem e não preveem avaliação su- experiências em casa, significando-as na
resposta educativa adequada, na opinião mativa. partilha umas com as outras e aceitando
das crianças? Por outro lado, o conhecimento sobre as todas as experiências, independentemente
Observaram-se nesses testemunhos sobre- funções de creches e jardins de infância e da sua natureza e conteúdo. Podiam falar
tudo as grandes diferenças entre crianças. sobre os ganhos que as crianças retiram da e enviar documentos das suas habilidades
Diferenças individuais advindas dos estilos frequência desses estabelecimentos permi- na bicicleta, das descobertas a alimentar
de aprendizagem, da maior e menor auto- tia antever que, à distância, seria impossível os animais, das experiências culinárias, das
nomia no uso dos instrumentos e plata- garantir o direito das crianças a aprender flores que encontravam no passeio, das
formas digitais, da falta de comunicação
cara a cara, ou, simplesmente, advindas da
falta de acesso a esses instrumentos por
razões socioeconómicas. Mas encontrámos
na maior parte dos testemunhos um dado
comum: as crianças diziam ter saudades do
jardim de infância/escola, ou faziam refe-
rência, de forma explícita, às suas caracte-
rísticas sociais.
“Tenho atividades novas, gosto de traba-
lhar em casa, o que gosto menos é quando
tu (mãe) não me dás atenção porque es-
tás a trabalhar com as manas. É diferente
porque na minha escola há muitas pessoas
e é divertido e tenho amigos” (Joaquim, 5
anos).
“Gosto de acordar cheio de energia, de ir
para a sala ver televisão e às vezes como
chocolate às escondidas (...). Também gos-
to das aulas na televisão e gosto de partici-
par na ginástica. Tenho saudade do Kiko e
do Zé e também da professora, não quero
que ela esteja doente” (Hugo, 6 anos).

61 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: PRÁTICAS

hortas urbanas que construíam, da constru- considerando a frequência bastante regu- que conheciam o jogo, nitidamente felizes
ção de legos da véspera, da leitura de um lar das crianças nas sessões síncronas, mas porque o amigo tinha respondido desta vez.
livro, de um desenho, das idas a espaços de prefiro sinalizar dois casos de aparente in- O António sorriu e voltou a mergulhar na
natureza, do que quisessem. Às educadoras sucesso, pela reflexão que nos possibilitam sua consola.
cabia o papel de colocar em comum essas as suas histórias: duas crianças que conhe- Nas sessões seguintes, o António, senta-
experiências e incentivar novas explorações cia bem, o António e o Enzo,1 de quem fui do no sofá vermelho com a sua consola na
a partir daí. Pretendíamos garantir que con- educadora no ano letivo anterior e de quem mão, levantava momentaneamente a cabe-
tinuávamos a orientar-nos pelo princípio de nunca perdi o contacto, uma vez que con- ça e respondia às perguntas diretas que lhe
que um currículo em educação pré-escolar tinuei a apoiar o grupo até ao final do 2º eram feitas com sim e não. Continuava apa-
é emergente e não prescritivo e acontece período, uma vez por semana. rentemente zangado e não participava es-
num espaço e tempo particulares (contex- Para situar a forma como encarei esta forma pontaneamente em nenhuma conversa. Os
to). Em simultâneo, realizámos filmes em de estar com as crianças, importa explicar pais diziam que também não demonstrava
que surgíamos pessoalmente a propor ati- que foi pedido aos familiares que dessem interesse nas gravações que eram enviadas
vidades e a colocar hipóteses de explora- autonomia às crianças, que não as forças- para casa, tanto as que incluíam os contri-
ção, para que as crianças sentissem alguma sem a estar presentes e não restringissem butos dos colegas, como as que continham
continuidade na relação connosco. Ou seja, os seus movimentos em frente ao ecrã. as propostas das educadoras. Nas palavras
quisemos garantir intencionalidade, fazen- da mãe estava “insuportável e birrento”.
do das situações educativas essencialmente O caso do António (5 anos) Em junho, o António regressou ao jardim de
espaços e tempos de relação, onde as ideias O António apareceu em todas as videocon- infância, embora com frequência irregular,
emergem, se cruzam e consequentemente ferências a partir de casa, sentado num sofá com mais cinco crianças e uma educadora
se complexificam. vermelho, cabeça baixa, com uma consola nova. Eu e a nova colega decidimos manter
Não estando aberto o jardim de infância na mão. Nas primeiras sessões não olhou o acompanhamento do grupo à distância,
que pode responder à imagem da criança para a câmara, parecia zangado. Quando de forma coordenada. Numa dessas vi-
que possuo, fruto de uma história coletiva nos dirigíamos a ele mexia ligeiramente a deoconferências colocámos em comum as
que se cruza com a história da institucio- cabeça, mas não falava ou dava qualquer experiências em casa e no jardim de infân-
nalização das crianças (Dahlberg, Moss & outro sinal de estar interessado na comu- cia, como habitualmente, a partir de uma
Pence, 2003) e com os meus valores pes- nicação. Também não fazia nenhum mo- apresentação realizada com os contributos
soais, desejava garantir no espaço virtual vimento que indiciasse querer sair dali. Os enviados pelas famílias. Depois decidimos
a coerência. Coerência com a conceção de pais diziam que parecia não gostar, mas que contar as janelas do edifício em que cada
criança competente, para quem o jardim de quando questionado não recusava. um se encontrava naquele momento, dando
infância representa não a preparação para Um dia a mãe enviou-me uma foto do An- continuidade a uma ideia surgida na video-
a vida, numa lógica de ação vertical sociali- tónio junto ao rio, num local onde tínhamos conferência anterior. Uma grande animação
zadora de adultos relativamente a crianças, desenvolvido várias atividades, com um pe- que deu lugar a grandes aprendizagens
mas um espaço de construção dos seus dido do filho: “O António pede para dizer matemáticas. Por fim, as educadoras pro-
mundos sociais na interação com os pares que tem saudades de passear com a Ofélia puseram a realização de um desenho para
(Corsaro, 2003). e com os meninos.” mostrar uns aos outros. O António acabou
Tal como o jardim de infância, este espa- Na sessão síncrona seguinte disse ao Antó- o seu desenho, aproximou-se espontanea-
ço deveria permitir o encontro entre crian- nio que tinha gostado da fotografia junto mente da câmara do computador, mostrou
ças, ainda que a presença orientadora de ao rio, que também tinha saudades de ir lá o desenho e gritou: “Este sou eu com os
adultos, sabia-o à partida, inviabilizasse passear com todos e pedi-lhe que nos mos- meus amigos no jardim, estou muito feliz,
o desenvolvimento de “culturas de pares” trasse o jogo da consola. O António olhou a mas faltam aqui muitos!”
(idem). câmara do computador, disse entusiasma- Fiquei momentaneamente em silêncio. Os
A minha experiência no E@D com um grupo do o nome do jogo e mostrou o ecrã da adultos do outro lado da câmara também,
de crianças teve a duração de dois meses, consola. Algumas crianças reagiram dizendo incapazes de lidar com aquele desespero.
em substituição de uma educadora titular Logo que consegui, agradeci o desenho e
de grupo. Poderia falar de algum sucesso, 1 Todos os nomes de crianças neste artigo são fictí- disse que ficava contente pela felicidade
cios.

62 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


dele. A Maria, de 5 anos, ligada de casa, para me tocar e dizia-me olá com um sorri- bos os casos são de aparente insucesso, já
também tentou comunicar e disse que es- so de orelha a orelha. que a comunicação não foi efetiva em ne-
tava bonito. O comportamento do António Devido à frequência irregular, o Enzo só nhum deles.
nas videoconferências manteve-se inaltera- participou numa videoconferência a partir Mas talvez não possamos falar de completo
do até ao final do ano letivo: parecia zanga- do jardim de infância. Nessa sessão respon- insucesso do E@D. Talvez seja mais correto
do com o mundo. deu às solicitações e deu contributos com o falar de sucesso relativo. Mantivemos um
De todas as vezes que passei no jardim de incentivo dos adultos presentes, mas com canal de comunicação aberto, mesmo sa-
infância observei que, no exterior, o Antó- pouco entusiasmo. Percebia-se que estava bendo que muitas das linguagens usadas
nio corria atrás dos colegas como se não com pressa para ir brincar, a videoconferên- pelas crianças não caberiam nesse canal,
houvesse amanhã. Ao contrário do que cia limitava-lhe os movimentos. ou caberiam apenas em parte. De forma
acontecia antes do encerramento, não Passados alguns dias a mãe enviou-me uma imperfeita e incompleta, as crianças falaram
parava na concretização de nenhum jogo. mensagem: “O Enzo pergunta porque é que connosco e nós com elas, o que nos deu
Quando me via, olhava momentaneamente, a Ofélia e os meninos não aparecem no elementos para escrever dia a dia as suas
sorria, mas não tentava aproximar-se. computador. Diz que tem saudades.” histórias integradas num coletivo, não dei-
A zanga do António transporta-me para xando que fosse um mero tempo de espera.
O caso do Enzo (4 anos) as memórias que tenho do início da minha
A mãe do Enzo aparecia sempre no início carreira num hospital pediátrico e para os Projetar o futuro com a memória
das videoconferências, colocava o aparelho inícios de ano letivo com a chegada de me- dos dinossauros
na posição certa e saía para outra divisão da ninos novos. Recordo, no hospital, os me- Ouvimos a todo o momento que estamos
casa onde se encontrava em teletrabalho. ninos zangados quando os pais chegavam perante uma nova normalidade, insinuan-
No final da manhã telefonava para perguntar depois de os terem deixado algum tempo do-se o medo de que nada voltará a ser
como tinha corrido. A resposta era sempre sozinhos. No jardim de infância são muitas como antes. Talvez não volte a ser. Mas
a mesma: “Correu bem, não se preocupe, o as imagens que me ocorrem de meninos sem memórias não poderemos construir o
Enzo esteve connosco como quis, a brincar zangados, sem compreenderem a razão futuro. E há memórias que nos lembram
com as suas coisas.” para ficarem no jardim de infância, priva- que, em educação de infância, é imperioso
Do lado de cá da câmara víamos a sala lá de dos de relações que já conhecem. Por outro continuar a apostar em pedagogias partici-
casa. Ao fundo, o Enzo brincava com os seus lado, a pouca interação do Enzo e depois as pativas.
brinquedos, não se aproximava do compu- suas manifestas saudades questionam-me Recordo um dos últimos projetos que vivi
tador. Quando eu ou os colegas dizíamos o sobre a efetiva importância do E@D que com um grupo de jardim de infância, nasci-
seu nome percebíamos que olhava para o realizámos. do de interesses explícitos das crianças: “Os
ecrã, mas continuava a brincar, parecia feliz. Todos temos no ouvido a frase batida, dinossauros”. Nada de novo, um projeto
Às vezes saía da sala, demorava um instante usada até à exaustão, do poema de Loris que vimos documentado vezes sem conta
e voltava a correr para os seus brinquedos. Malaguzzi, mentor da proposta pedagógica em contextos de jardim de infância. Desta
Construía pistas, casas, alinhava os bonecos italiana de Reggio Emilia, “A criança é feita vez o interesse inicial foi do Miguel.
e os carros e brincava, brincava... de cem”. De facto as crianças falam de mui- O Miguel estava a chegar ao jardim de in-
À noite, depois do teletrabalho, a mãe tenta- tas maneiras, com muitas linguagens. Ouvir fância aos 3 anos, com algum receio e recu-
va mostrar-lhe os contributos dos colegas e as crianças, escutá-las implica estar aberto sa da nova situação. Na primeira conversa
das educadoras em formato de fotografia e a todas essas linguagens. Implica usar toda com a mãe fiquei a saber do seu grande
filme. Ele via, mas não fazia muitos comen- a nossa capacidade empática no decorrer interesse por dinossauros. Por sorte tínha-
tários. da ação e depois dela. O “bem-estar emo- mos terminado o ano letivo anterior com a
Em junho o Enzo voltou ao jardim de infân- cional” (Laevers, 1994) determina as possi- visita a um parque temático de dinossauros
cia. De todas as vezes que lá passei obser- bilidades de abertura das crianças ao mun- e havia novas reproduções em plástico no
vei que parecia feliz, no exterior. Quando do que as rodeia, e consequentemente a cesto dos animais. Grande parte dos meni-
me via corria para mim, chegava à linha que predisposição para a aprendizagem, e é um nos tinha transitado para a escola do 1.º ci-
separava no recreio a zona de sujos da zona facto que nestas duas histórias percebemos clo do ensino básico, tinham ficado apenas
de limpos e parava, estendia-me o cotovelo duas situações bem distintas. Porém, am- os mais pequenos, mas decidimos respeitar

63 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: PRÁTICAS

a escolha do grupo do ano anterior relativa ainda não era brilhante e o meu conheci- Quem tinha ido ao parque temático dos
à compra de material e adquirimos as mi- mento de dinossauros limitado, levava-o dinossauros no ano letivo anterior contou
niaturas. para o computador para encontrar os no- as suas experiências, todos diziam querer
Escusado será dizer que era junto do ces- mes escritos e poder reproduzi-los oral- ir. Mas havia um problema: ir ao parque te-
to com dinossauros que encontrávamos a mente de forma correta. mático era dispendioso e muitos pais não
todo o momento o Miguel. Foi aí que co- Algumas crianças juntaram-se às nossas podiam pagar. No ano anterior a viagem
mecei a sentar-me com ele. Ele ensinou-me pesquisas. Nos dias seguintes começaram a tinha sido feita com um subsídio da Câmara
o nome dos dinossauros que estavam no chegar dinossauros nas mãos das crianças. Municipal. Como fazer?
cesto. Falou-me também dos que tinha lá Afinal era um interesse de muitos. Num Foi então que a Beatriz disse: “Já sei, ga-
em casa, na casa do pai e na casa da mãe, desses dias, numa conversa da manhã em nhamos dinheiro!” Lembrei os direitos da
onde os arrumava, quem brincava com ele que mostrávamos os dinossauros uns aos criança e expliquei que as crianças não
com os dinossauros... outros, o Ricardo disse: “O ano passado vo- devem trabalhar e porquê, justificando a
Como não conseguia compreender os no- cês foram aos dinossauros e eu não, estava razão por que não ganham dinheiro. “Está
mes com clareza, a articulação do Miguel de férias. Gostava de lá ir.” bem, não podemos trabalhar, mas pode-

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mos vender coisas como nas feiras!”, disse que temático fomos todos, ficou apenas REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
o Afonso. Perguntei o que poderíamos ven- uma criança que adoeceu. Barnes, B. (2000). Understanding agency: social
theory and responsible action. London: Sage.
der. Algo que fosse deles? Brinquedos? Da alegria, do “bem-estar emocional” e da Corsaro, W. (2003). Ação coletiva e agência nas
“Bolachas”, disse a Beatriz. “Isso, fazemos “implicação” (Laevers, 1994) das crianças, culturas de pares de crianças pequenas (texto po-
bolachas e vendemos!”, concordou o Afon- do que aprenderam, cada uma ao seu ritmo licopiado).
Dahlberg, G., Moss, P., Pence, A. (2003). Qualidade
so. ”Pois, nós já aprendemos a fazer bola- e à sua maneira, sobre dinossauros, mas na Educação de Infância: perspetivas pós-moder-
chas contigo!”, rematou a Beatriz. sobretudo da observação da emergência de nas. Porto Alegre: ArTmed.
Não havia justificação capaz de contrariar disposições para a aprendizagem (cooperar, Laevers, F. (ed.) (1994). The Leuven Involvement
Scale for Young Children. Experiential Education Se-
aquele espírito empreendedor. O grupo planear, investigar, persistir, perseguir um ries nº 1, Leuven: Centre for Experiential Education.
concordou. Iríamos fazer bolachas para objetivo), da participação das famílias e da Libório, O. (2010). Investigar com crianças na forma-
vender. comunidade e do seu envolvimento no jar- ção inicial em educação de infância. Tese de Douto-
ramento, Universidade de Aveiro.
E assim surgiu um projeto que implicou dim de infância retirei os aspetos essenciais Silva, L. Marques, L, Mata, L.& Rosa, M. (2016).
fabrico diário de bolachas pelas crianças positivos da avaliação deste projeto. Orientações Curriculares para a Educação Pré-Es-
com ingredientes fornecidos pelas famílias, A festa dos 4 anos do Miguel, que ele quis colar. Lisboa: Ministério da Educação / Direção-Ge-
ral da Educação (DGE).
produção de pacotes de papel para as bo- realizar com os novos amigos no jardim de Mallaguzi, L. (1999). Histórias, ideias e filosofia bá-
lachas, definição de grupos para ir até ao infância, foi sobre o tema dos dinossauros. sica. In C. Edwards, L. Gandini & G. Forman. As cem
mercado, situado paredes meias com a es- A prenda da família, uma ossada de dinos- linguagens da criança: a abordagem Reggio Emília
na educação da primeira infância. Porto Alegre:
cola, entregar as bolachas aos feirantes que sauro para escavar e descobrir qual paleon- ArTmed. 59-104.
se ofereceram para as vender e envolvimen- tólogo profissional, foi aberta nesse dia no Oudenhoven, N. & Wazir, R. (2007). As novas crian-
to das famílias na venda das bolachas. Devi- jardim de infância, porque o Miguel quis ças do século XXI: necessidades emergentes. Lis-
boa: Texto Editores.
do à divulgação do projeto numa página do partilhá-la com os amigos. Sarmento, M., Trevisan, G. (2017). A crise social de-
Facebook chegámos a receber encomendas A metodologia de projeto faz parte das pro- senhada pelas crianças: imaginação... Educar em
de bolachas de diversos pontos do País. As postas pedagógicas denominadas de parti- Revista, Curitiba, Brasil, Edição Especial nº 2. 17-34.
Sousa, F. (2018). O currículo para a Educação Pré-
pessoas queriam ajudar as crianças a con- cipativas. Porém, lembro uma análise que -escolar entre o específico e o comum: o caso das
cretizar o desejo de ir ao parque temático realizei no passado (Libório, 2010), a pro- OCEPE. Revista de Estudos Curriculares, vol. 9 (1).
dos dinossauros. pósito das propostas pedagógicas para a 24-44.
UNICEF Portugal (2017). Guia para educadores e
Todos os dias contávamos o dinheiro e re- educação pré-escolar que defendem a par- professores. https://www.unicef.pt/media/1311/
gistávamos o resultado das nossas vendas ticipação das crianças. Nessa altura, a revi- guia-educadores-professores-dudc.pdf (acesso em
numa tabela, analisávamos quão longe nos são da literatura, nacional e internacional, 23 de abril de 2020)
encontrávamos do objetivo (o número a levou-me a concluir que o desenvolvimento
que tínhamos chegado e que representava de práticas pedagógicas participadas não
a quantia a pagar pela viagem). depende apenas dos métodos e das técni-
Paralelamente surgiram no jardim de infân- cas. Não se trata de encontrar uma fórmula
cia muitas atividades a propósito dos dinos- que garanta o desenvolvimento de práticas
sauros: a leitura e construção de livros; a participadas pelas crianças, já que a partici-
visualização de filmes; a realização de cole- pação depende do quadro de valores mais
ções de cromos; as atividades plásticas de lato que os profissionais possuem.
representação com tintas, com barro, com Retomarei, se possível, a proposta da “Es-
pasta de papel; a invenção de uma dança cola dos meus sonhos” e refletirei sobre
de dinossauros; a aprendizagem de canções as possibilidades do E@D no futuro, mas
sobre dinossauros; a classificação de acor- quero, acima de tudo, voltar ao jardim de
do com o meio de locomoção a alimenta- infância com a memória dos dinossauros.
ção, o revestimento...
Criámos até a área dos dinossauros onde
expusemos toda a documentação que fo-
mos construindo sobre o assunto. Ao par-

65 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO
Os direitos da criança – uma leitura através das Orientações Curriculares
para a Educação Pré-Escolar
Isabel Lopes da Silva, Liliana Marques, Lourdes Mata e Manuela Rosa

A Convenção dos Direitos da Criança (CDC)1 Todas as crianças têm também direito à cionalidade, género, língua materna, cultura,
de 1989, ratificada pelo Estado português em educação, que visa a “igualdade de oportu- religião, etnia, orientação sexual de membro
1990, representa o compromisso dos Estados nidades” (art.º 28 da CDC). Esta finalidade da família e, ainda, das suas diferenças a ní-
signatários de assegurar esses direitos através é especialmente relevante para a educação vel cognitivo, motor ou sensorial, ou quais-
de políticas e medidas que os respeitem e de infância, uma vez que a investigação tem quer outras.
promovam. No entanto, o cumprimento des- demonstrado que a educação de infância de Por outro lado, o direito à educação declara-
ses direitos não cabe apenas aos Estados e qualidade pode, mais do que outros níveis do no art.º 28 da CDC define que o “Estado
exige o envolvimento de todas as instituições educativos, contribuir para uma maior igual- tem a obrigação de tornar o ensino primário
e pessoas que lidam, no quotidiano, com as dade de oportunidades (OECD, 2017). obrigatório e gratuito, encorajar a organiza-
crianças, desde os pais até aos profissionais As finalidades da educação são desenvolvidas ção de diferentes sistemas de ensino secun-
de diferentes serviços, de que fazem parte as no artigo seguinte (art.º 29 da CDC), que es- dário acessíveis a todas as crianças e tornar o
instituições de educação de infância. Por isso, tabelece que a educação se destina a desen- ensino superior acessível a todos, em função
a CDC constituiu uma referência para a ela- volver todas as potencialidades da criança, o das capacidades de cada um”, tendo em vis-
boração das Orientações Curriculares para a que está interligado com o direito de a criança ta assegurar o exercício desse direito na base
Educação Pré-Escolar (OCEPE, 2016). atingir o seu “máximo desenvolvimento” (art.º da igualdade de oportunidades.
Os direitos da criança aplicam-se a todos os 6.2). Desta finalidade decorre a necessidade Estas preocupações estão também expres-
seres humanos desde o nascimento até aos 18 de na educação de infância promover a au- sas nos princípios orientadores do Decreto-
anos (art.º 1 da CDC). No entanto, a comissão toestima, a autoconfiança, a dignidade hu- -Lei n.º 54/2018, de 6 de julho, que esta-
que supervisiona a implementação dos direi- mana em paralelo com o desenvolvimento de belece as normas que garantem a inclusão
tos da criança julgou necessário publicar um outras competências e aprendizagens (UN, de todos no processo educativo. Neste
texto específico (UN, 2005) sobre a aplicação 2005, p. 13). Reconhece-se, ainda, que “sepa- documento, inclusão é o “direito de todas
destes direitos à infância, por considerar não rar cuidar e educar não corresponde ao su- as crianças e alunos ao acesso e participa-
ter sido dada suficiente atenção às crianças perior interesse da criança” (UN, 2005, p. 14) ção, de modo pleno e efetivo, aos mesmos
mais pequenas como detentoras de direi- A educação, nomeadamente a educação de contextos educativos” (alínea c, art.º 3º do
tos. Neste texto, que define a infância como infância, deve não só respeitar e promover DL). Trata-se do direito de cada aluno a uma
o período do nascimento até aos 8 anos, é os direitos das crianças, mas também permi- educação inclusiva que responda às suas po-
sublinhado que “respeitar os interesses, expe- tir-lhes tomar consciência dos direitos huma- tencialidades, expectativas e necessidades
riências e desafios específicos que se colocam nos, o que implica uma educação “participati- no âmbito de um projeto educativo comum
a todas as crianças desta idade é o ponto de va” que “na prática, lhes dê oportunidades de e plural que proporcione a todos a partici-
partida para pôr em prática os seus direitos exercer os seus direitos e responsabilidades pação e o sentido de pertença em efetivas
durante esta fase crucial das suas vidas” (UN, de modo adaptado aos seus interesses, preo- condições de equidade, contribuindo assim
2005, p. 3). cupações e capacidades em evolução” (UN, para maiores níveis de coesão social.
Os direitos da criança são universais (art.º 2 2005, p. 15).
da CDC) e caracterizam-se também pela sua A referência aos direitos da criança e ao seu
indivisibilidade e interdependência, sendo que sentido na educação de infância, concretiza-
todas as decisões e ações relativas às crianças da nas OCEPE, foi organizada de acordo com
e que afetam o seu bem-estar se subordinam quatro perspetivas especialmente marcantes
“ao seu superior interesse” (art.º 3 da CDC). no texto: direito à inclusão; direito à partici-
Estas decisões e ações, estando dependentes pação; direito de brincar e de participar livre-
quer dos Estados quer dos adultos responsá- mente na vida cultural e artística; (Co) Res-
veis pelas crianças, terão de ter tem conta as ponsabilidade das famílias na educação.
opiniões das crianças, que não serão “ignora-
das ou rejeitadas com base na idade ou na Inclusão de todas as crianças
imaturidade” (UN, 2005, p. 6). O art.º 2 da CDC, referido anteriormente, ex-
plicita que os direitos se aplicam a todas as
1 UNICEF, Comité Português (2019) Convenção sobre os crianças sem qualquer discriminação de na-
Direitos da Criança (Edição revista).

66 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


Procura-se, assim, garantir que o Perfil dos gatória, com o DL 54/2018, de 6 de julho, e pecífica que crianças com deficiência têm
Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória com a Convenção dos Direitos da Criança. direito a cuidados especiais, educação e
é atingido por todos, ainda que através de formação adequados. As OCEPE não se
percursos diferenciados, os quais permitem Como é que nas OCEPE está explicitado referem explicitamente a crianças com de-
a cada um progredir no currículo com vista o direito à inclusão ficiência, sublinhando a inclusão de todas
ao seu sucesso educativo (ME/DGE, 2017). A “Exigência de resposta a todas as crian- as crianças, quaisquer que sejam as suas
Estudos internacionais reconhecem, e é ças”, um dos fundamentos das OCEPE características.
assumido por muitos países, o papel de- (2016), vem dar corpo a esta ideia de inclu- A “Organização do Ambiente Educativo”,
terminante que desempenha o início de um são de todas as crianças, ao explicitar que assente numa abordagem sistémica e eco-
processo de educação de qualidade, reafir- “independentemente da sua nacionalida- lógica, constitui uma perspetiva de com-
mando que a educação de infância é um di- de, língua materna, cultura, religião, etnia, preensão da realidade, que reforça a neces-
reito de todas as crianças. Sabe-se, também, orientação sexual de membro da família, sidade imperativa de inclusão. No entanto,
que a frequência da educação pré-escolar das suas diferenças a nível cognitivo, motor “para a construção de um ambiente inclu-
pode ter um papel relevante na promoção ou sensorial, etc.” todas as crianças “par- sivo e valorizador da diversidade, é funda-
da igualdade de oportunidades, mais do que ticipam na vida do grupo, sendo a diversi- mental que o estabelecimento educativo
nos outros níveis de educação (OECD, 2017). dade encarada como um meio privilegiado adote uma perspetiva inclusiva, garantindo
Em Portugal, a educação pré-escolar é para enriquecer as experiências e oportu- que todos (crianças, pais/famílias e profis-
considerada “a primeira etapa da educação nidades de aprendizagem de cada criança” sionais) se sintam acolhidos e respeitados;
básica no processo de educação ao longo (p. 10). haja um trabalho colaborativo entre profis-
da vida” (Lei-Quadro nº 5/97, de 10 de fe- A intervenção educativa expressa neste sionais; pais/famílias sejam considerados
vereiro), o que está em concordância com fundamento requer que o educador de- como parceiros; exista uma ligação próxima
os objetivos da educação indicados no art.º fina as suas intenções pedagógicas numa com a comunidade e uma rentabilização
29 do CDC que refere que a educação deve abordagem integrada e globalizante das dos seus recursos” (p. 10).
“promover o desenvolvimento da persona- diferentes áreas de conteúdo, tendo em A abordagem sistémica e ecológica permite
lidade da criança, dos seus dons e aptidões consideração a exigência de dar resposta “adequar, de forma dinâmica, o contexto do
mentais e físicas, na medida das suas po- a todas as crianças. Esta exigência impli- estabelecimento educativo às características
tencialidades”. ca necessariamente “a adoção de práticas e necessidades das crianças e adultos” (p.
Nesse sentido, as OCEPE, enquanto prin- pedagógicas diferenciadas, que respondam 22). Conhecer os sistemas em que a criança
cipal documento curricular e pedagógico às características individuais de cada uma cresce e se desenvolve, permite ao educador
para a educação pré-escolar encontram-se e atendam às suas diferenças, apoiando as compreender melhor cada criança de forma
em consonância com o preconizado no Per- suas aprendizagens e progressos” (Idem). a respeitar as suas características pessoais,
fil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obri- O art.º 23 da CDC é bem claro quando es- cultura e saberes já adquiridos, apoiando a

67 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO

sua maneira de se relacionar com os outros 33). A oportunidade do conhecimento de que frequentam a educação pré-escolar em
e com o meio social e físico. diferentes culturas possibilita às crianças Portugal.
A diversidade é, assim, entendida como não só conhecer as características da sua Neste sentido, é realçada a importância da
forma de educação intercultural, em que o e de outras comunidades, como também o aprendizagem da língua portuguesa, que
quotidiano no jardim de infância se organi- desenvolvimento de atitudes de respeito e é essencial para o sucesso educativo, mas
za num contexto de vida democrática, em compreensão face à diversidade. sem esquecer que a “partilha da sua própria
que as crianças participam, numa perspe- Conforme referido nas OCEPE, “o respeito língua e cultura não só reforça a autoesti-
tiva de equidade, independentemente das pelas culturas e línguas das crianças, além ma e identidade da criança, como enrique-
diferenças de género, sociais, físicas, cog- de ser uma forma de educação intercultu- ce a sensibilidade intercultural do grupo”
nitivas, religiosas ou étnicas, num processo ral, leva a que as crianças se sintam valo- (p. 61). Esta necessidade está contemplada
educativo que contribui para uma maior rizadas e interajam com segurança com no art.º 30 da CDC, que salvaguarda que a
igualdade de oportunidades. Mais uma vez, os outros” (p. 60). Esta preocupação está criança pertencente a uma minoria tem o
é realçado o papel importante que a edu- também presente quando no domínio da direito à sua própria vida cultural, a praticar
cação pré-escolar tem na educação para os “Linguagem Oral e Abordagem à Escrita” a sua religião e utilizar a sua própria língua.
valores, que se “vivem e aprendem na ação se alerta para o facto de o português não As preocupações relacionadas com a inclu-
conjunta e nas relações com os outros” (p. ser a língua materna de todas as crianças são estão também presentes no último ca-

68 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


pítulo das OCEPE, “Continuidade Educativa Esta é a visão de criança como cidadã de da, a escuta é ativa, pois recorre a todos os
e Transições”. Considerando a diversidade de plenos direitos, que exerce a sua “agência” sentidos, provocando mais questões e não
percursos, das origens sociais e culturais e as (Vasconcelos, 2009) através da participação, tanto as respostas, permitindo novas formas
características individuais de cada criança, as entendida como a possibilidade de “influir de diálogo com as crianças e apoiando a re-
OCEPE realçam a atenção muito especial que diretamente nas decisões e no processo, em flexão dos adultos.
merecem as transições, nomeadamente o que a negociação entre adultos e crianças é Assim, a escuta é uma forma de estar na
cuidado de as planear em conjunto com to- fundamental, um processo que possa inte- ação para que se leve à prática o direito à
dos os intervenientes (crianças e suas famí- grar tanto as divergências como as conver- participação (art.º 12 da CDC), o direito à li-
lias, educadores, professores e pessoal não gências relativamente aos objetivos preten- berdade de expressão (art.º 13 da CDC) e o
docente). Destaca ainda que a inserção da didos e que resultam num processo híbrido” direito à liberdade de pensamento, consciên-
criança na instituição e no grupo exige, so- (Tomás, 2011, p. 105). cia e religião (art.º 14 da CDC).
bretudo, que o ambiente educativo se adap- O direito à participação considera as crianças
te às suas necessidades e características e como atores sociais competentes que são Como é que nas OCEPE está explicitado o
não o contrário. Para isso, é essencial que envolvidas nos processos de decisão, escu- direito à participação
no estabelecimento educativo se reflita em tadas e apoiadas para expressarem as suas O direito à participação e aos que lhes es-
equipa e se definam estratégias globais para perspetivas, sendo estas tidas em conta nos tão diretamente associados encontra-se ex-
apoiar as transições que as crianças vivem no processos de deliberação. presso nos fundamentos das OCEPE (2016),
seu processo educativo. A CDC, no art.º 12, afirma esta visão quan- nomeadamente no segundo, que reconhece
Como se pode verificar, as OCEPE assumem do determina que “a criança tem o direito a criança como sujeito e agente do proces-
uma perspetiva claramente inclusiva que se de exprimir livremente a sua opinião sobre so educativo. Para que este fundamento e
revela ao longo de todo o texto e atravessa questões que lhe digam respeito e de ver os artigos da CDC referidos sejam postos
os capítulos deste documento. essa opinião tomada em consideração”. Esta em prática, são indicados alguns princípios
Considerando que a frequência da educação visão de criança é ainda reforçada quando se educativos, onde se propõe que os educa-
pré-escolar pode fazer a diferença no pro- estabelece no art.º 13, referente à liberdade dores partam das experiências da criança e
cesso educativo das crianças e contribuir de expressão, que “a criança tem o direito de valorizem os seus saberes como suporte de
para uma maior igualdade de oportunidades, exprimir os seus pontos de vista, obter infor- novas aprendizagens. Propõe-se, ainda, que
o acesso à educação de qualidade, que inclui mações, dar a conhecer ideias e informações, escutem e considerem as opiniões da crian-
todas as crianças desde os primeiros anos sem considerações de fronteiras”, e no art.º ça, garantindo a sua participação nas de-
de vida, sem qualquer tipo de discriminação, 14 que a criança tem o direito “à liberdade cisões relativas ao seu processo educativo
tem vindo a afirmar-se como prioritário a de pensamento, consciência e religião, no e estimulem as suas iniciativas apoiando o
nível mundial. O direito à educação e à in- respeito pelo papel de orientação dos pais”. desenvolvimento e a aprendizagem de cada
clusão de todas as crianças está explicitado Para que a criança possa participar é funda- criança.
na Convenção dos Direitos da Criança, assim mental a prática da escuta, sendo esta uma Ao longo de todo o texto das OCEPE, várias
como nos normativos legais relativos à edu- capacidade que as crianças revelam desde são as referências a formas de agir para que
cação. muito cedo, em que demonstram que têm estes direitos sejam respeitados. Logo no
voz e sabem como escutar e querem ser es- capítulo relativo à “Intencionalidade educa-
O direito à participação cutadas pelos outros (Rinaldi, 2001). Ainda tiva”, refere-se que as ações de observar,
Reconhece-se que as crianças, desde o nas- segundo esta autora, esta capacidade de es- registar e documentar são instrumentos
cimento, são enérgicas, curiosas, abertas ao cuta traz benefícios para adultos e crianças, cuja organização, análise e interpretação
que é novo e diferente, são portadoras de pois percebem significados, desenvolvem possibilitam construir a “visão” das crianças,
saberes, de expectativas, de valores e de di- teorias interpretativas, enquanto narrativas percebendo as suas teorias explicativas,
reitos, são competentes, construtivas e de- que dão sentido ao mundo que as rodeia. possibilitando a adequação do planeamen-
tentoras de teorias explicativas sobre o que Estas teorias explicativas revelam como as to e avaliação ao desenvolvimento do seu
as rodeia, e que a sua forma de aprender é crianças pensam, questionam e interpretam processo de aprendizagem.
através da ação lúdica que as carateriza (Ma- a realidade e a sua própria relação com essa Ainda na intencionalidade educativa, no
lavasi & Zoccatelli, 2013). realidade e com os outros. Assim entendi- tópico “Planeamento e avaliação – um pro-

69 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO

cesso participado”, afirma-se que “consi- é um tempo estruturado mas também fle- Também para o sucesso na transição do
derar a criança como agente do processo xível, onde os diferentes momentos fazem jardim de infância para o 1º ciclo do ensi-
educativo e reconhecer-lhe o direito de ser sentido para as crianças e se tem em conta no básico, se evidencia o papel das crianças
ouvida nas decisões que lhe dizem respeito o tempo necessário para fazerem experiên- como protagonistas, a necessidade de as
confere-lhe um papel ativo no planeamen- cias e explorarem, para brincarem, experi- envolver neste processo, proporcionando
to e avaliação do currículo…” (p. 16). Esta mentarem novas ideias, modificarem as diálogos e a explicitação das suas expetati-
participação possibilita à criança fazer pro- suas realizações e as aperfeiçoarem. Este vas, bem como as suas interrogações sobre
postas, prever como as vai pôr em prática tempo pertence às crianças e aos adultos, essa transição. É também importante que
e com quem. O envolvimento da criança por isso a sua organização deve ser decidi- sejam apoiadas na tomada de consciência
na avaliação torna-a protagonista no seu da por ambos. Esta intencionalidade para o das aprendizagens que realizaram no jardim
processo de aprendizagem, e para que esta tempo deve ser do conhecimento das crian- de infância e da sua importância para conti-
participação aconteça o educador deverá ças, podendo elas decidir quando, onde nuarem a aprender (OCEPE, p. 105).
apoiar a autoavaliação, ajudando a criança a e com quem vão desenvolver a sua ação, Os direitos à participação, à liberdade de
descrever o que fez, como fez e com quem podendo propor alterações sempre que expressão e à liberdade de pensamento
fez, prevendo a continuidade da sua ação sintam essa necessidade. É a partilha de serão respeitados através de oportunida-
de forma a melhorar ou encontrando outras poder entre educador e crianças que permi- des frequentes para o desenvolvimento de
formas de fazer. Este apoio do educador no te que estas se apropriem e participem na “processos autónomos” (Lansdown, 2005,
processo de autoavaliação permite que a organização e funcionamento do ambiente citado por Tomás, 2011) em que as crianças
criança aprenda a prever o que quer fazer, educativo. têm o poder de empreender a ação, esco-
tornando-a mais capaz no planeamento e Os três artigos da CDC (12, 13 e 14) que te- lhendo os temas a tratar e controlando o
enriquecendo a sua ação (OCEPE, 2016). mos tido como referência são também le- processo a desenvolver, onde o adulto tem
É a intencionalidade na organização do am- vados em consideração ao longo de todas o papel de mediador.
biente educativo que possibilita operacio- as áreas de conteúdo propostas nas OCEPE
nalizar na prática os direitos à participação, (2016), onde é reafirmado que o reconhe- Direito de brincar e participar livremente
à liberdade de expressão e à liberdade de cimento da criança como sujeito e agente na vida cultural e artística
pensamento, consciência e religião (art.º 12, do processo educativo lhe garante o direito O art.º 31 da CDC reconhece que a criança
13 e 14 da CDC). Em primeiro lugar, impor- de ser escutada nas decisões relativas à sua tem o direito de brincar e participar livre-
ta pensar as formas de interação no gru- aprendizagem e de participar no desenvolvi- mente na vida cultural e artística, reme-
po (adulto-criança, criança-criança e entre mento do currículo. Este processo capacita tendo para uma complementaridade entre
adultos) para potenciar a existência de um a criança para reconhecer os outros como estes dois aspetos.
clima relacional onde se promove o bem-es- recursos, apresentar as suas interpretações O direito de brincar adquire particular sen-
tar emocional e físico, criando um ambiente e negociar ações colaborativas (Vasconce- tido nas sociedades ocidentais atuais, no-
tranquilizador, onde as crianças se sintam los, 2009). É no contexto relacional e de meadamente devido às limitações criadas
bem e saibam que são escutadas e valoriza- interação social no jardim de infância que por espaços urbanizados, em que a circu-
das. Também deverá ser pensado o espaço reconhecemos as crianças como capazes de lação rodoviária é intensa, o que tem como
onde as interações têm lugar. A organiza- construir a sua aprendizagem, partindo da consequência a exiguidade dos espaços
ção e funcionamento deste espaço deve ser sua curiosidade e dos seus interesses para interiores; a dificuldade de acesso a espa-
partilhado com as crianças para que estas explorar e compreender o mundo que as ro- ços exteriores e a ambientes naturais; uma
o entendam e, ao observar como estas o deia através das suas experiências e saberes excessiva proteção dos adultos, que impe-
utilizam e escutando as suas opiniões, pos- únicos. de as crianças de se movimentarem e cor-
sibilita-se a participação e a tomada de de- A participação das crianças continua a es- rerem riscos. As crianças passaram, assim,
cisão sobre as mudanças a efetuar. Assim, tar presente no capítulo da “Continuidade a ser “segregadas” para espaços planeados
as crianças apropriam-se deste espaço, o Educativa e Transições”, quando se sugere e controlados pelos adultos, que limitam a
que lhes permite fazer escolhas e utilizar os a colaboração das crianças no planeamento sua necessidade de explorar, imaginar e in-
materiais de diferentes maneiras. para receber os novos colegas, na passa- teragir com outras crianças (Coelho & Vale,
O tempo em que as interações acontecem gem da creche para o jardim de infância. 2017; Figueiredo, 2015).

70 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


Colocam-se, ainda, outros constrangimen- perspetivas, procuram analisar o seu papel que corresponde a um interesse intrínseco e
tos ao brincar, tais como o crescente acesso na infância, o conceito de brincar mantêm- se caracteriza pelo prazer, liberdade de ação,
a dispositivos eletrónicos, a excessiva co- -se “ambíguo”, havendo uma necessidade imaginação e exploração” (OCEPE, 2016, p.
mercialização de brinquedos e, finalmente, de “reconceptualizar a dicotomia “brincar/ 105).
a pressão dos resultados escolares. Muitas trabalhar, brincar/aprender” (Coelho & Vale, Por vezes, nos jardins de infância o brincar é
destas limitações são, aliás, reconhecidas 2017, p. 329). sobretudo circunscrito a tempos designados
no comentário a este direito elaborado pela de “atividades livres” ou de “brincadeira livre”,
comissão que supervisiona a aplicação dos Como é que nas OCEPE está explicitado o em que as crianças escolhem a área da sala
direitos da criança (UN, 2013). direito de brincar e participar livremente na para onde pretendem ir, e em que a educado-
A importância de brincar tem, porém, uma vida cultural e artística ra ou educador quase não intervém, uma es-
longa tradição na educação de infância. “O A importância do brincar é mencionada nas pécie de “recreio” dentro da sala. Este tempo
esforço para definir o brincar tem-se cru- OCEPE, no seu fundamento “Construção ar- distingue-se daquele que é destinado a “ativi-
zado com o debate acerca da natureza da ticulada do saber”, que considera o brincar dades orientadas”, propostas e dirigidas pelo
infância e das finalidades da educação” como “atividade natural da iniciativa da crian- educador, frequentemente iguais para todas
(Coelho & Vale, 2017, p. 319). Mas, apesar ça que revela a sua forma holística de apren- as crianças, que é usualmente visto como
dos contributos da psicologia, da sociolo- der” (p. 10), sendo o termo definido no glos- o tempo de “trabalhar” e de aprendizagem.
gia e da antropologia que, de diferentes sário como “atividade espontânea da criança, Pode assim dizer-se que o desenvolvimento

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: ARTIGO

do currículo é marcado por “um risco ao suas iniciativas”, o que lhe permite “conhe- áreas de conteúdo, abordadas de modo ar-
meio” que divide o “brincar improdutivo” cer melhor os seus interesses, encorajar ticulado, dá sentido à ligação estabelecida
do “trabalho sério” de aprendizagem. Esta e colocar desafios às suas explorações e no art.º 31 da CDC entre o direito de brincar
dicotomia entre brincar/aprender e brincar/ descobertas. Esta observação possibilita- e de participar livremente na vida cultural e
trabalhar é construída pelos adultos e faz -lhe ainda planear propostas que, partindo artística. Nas OCEPE, as áreas de conteúdo
pouco sentido para as crianças. dos interesses das crianças, os alarguem e são entendidas “como âmbitos de saber,
Considerar o brincar no jardim de infância aprofundem. Deste modo, a curiosidade e com uma estrutura própria e com perti-
como correspondendo às escolhas que as desejo de aprender da criança vão dando nência sociocultural” (p. 31), como manifes-
crianças realizam nas diferentes áreas em lugar a processos intencionais de explora- tações da cultura humana, perspetivas de
que a sala está organizada remete, em pri- ção e compreensão da realidade, em que compreender e de se relacionar com o mun-
meiro lugar, para as intenções dos educa- várias atividades se interligam com uma do, com relação entre si, de que a criança
dores na organização dessas áreas, sendo finalidade comum, através de projetos de progressivamente se apropria. Assim, o
que espaços organizados por estes e que se aprendizagem progressivamente mais com- jardim de infância é um local de vida e de
mantêm inalteráveis e com os mesmos ma- plexos” (p. 11). interação cultural, em que a curiosidade das
teriais durante todo o ano não promovem o Considerar que brincar implica uma organi- crianças é estimulada, de modo a se irem
direito das crianças a brincar. zação estimulante do ambiente educativo e apropriando, mas também reconstruindo e
A “Organização do ambiente educativo da em que a observação e o envolvimento do recriando a cultura, no seu direito à “liber-
sala”, que inclui a organização do grupo, do educador no brincar da criança podem dar dade de expressão, liberdade de procurar,
espaço e do tempo é considerada nas OCE- origem a propostas da criança ou do educa- receber e expandir informações e ideias”
PE como suporte do desenvolvimento cur- dor para o desenvolvimento de projetos de (art.º 13 da CDC).
ricular, estando incluída na organização do aprendizagem tem de ser contextualizado As diferentes áreas de conteúdo sublinham
espaço, não só da sala, mas também do es- no direito de participação da criança (art.º esta visão de acesso à cultura e à arte, ex-
paço exterior que poderá proporcionar ou- 12 da CDC). A organização do ambiente plicitando-se, nomeadamente, no domínio
tras oportunidades educativas, como exer- educativo não é assim apenas pensada em da Educação Artística, que “experiências e
cício físico e exploração do meio natural. Se função das crianças, isto é, para as crian- oportunidades de aprendizagem diversifi-
a valorização do brincar em meio natural ças, mas com elas, e os seus interesses e cadas ampliam a expressão espontânea das
deu origem nos países escandinavos aos iniciativas são também tidos em conta no crianças e garantem o direito de todas no
“jardins de infância da floresta” (também desenvolvimento do currículo. Este é pla- acesso à arte e à cultura artística” (OCEPE,
difundidos noutros países), os espaços ex- neado e avaliado com as crianças, numa p. 47). De igual modo, o Conhecimento do
teriores favorecem a iniciativa e autonomia permanente interação e negociação entre Mundo procura introduzir as crianças na
das crianças (Figueiredo, 2015) e, por isso, as propostas dos educadores e as iniciati- cultura científica intimamente relacionada
serão desejavelmente menos estruturados vas e propostas das crianças. com a sua metodologia.
e mais “naturais”. É neste sentido que, na Introdução das O desenvolvimento do currículo terá tam-
Não basta deixar que as crianças brinquem “Áreas de Conteúdo”, se afirma que “a pers- bém em vista os objetivos da educação in-
“livremente” no exterior ou na sala, esco- petiva holística, que caracteriza a aprendi- dicados no art.º 29 da CDC, em que a liga-
lhendo as áreas para onde pretendem ir e zagem da criança e que está subjacente ao ção entre o direito de brincar e de participar
com quem querem brincar, o que querem brincar, estará também presente na abor- na vida cultural e artística são consideradas
fazer e como. É também fundamental o dagem das diferentes áreas de conteúdo condições para a criança “otimizar o seu po-
papel do ou da educadora em “estimular o […] Não há, assim, uma oposição, mas uma tencial” (UN, 2013, p. 5). Importa não esque-
brincar através de espaços e materiais di- complementaridade e continuidade entre o cer que todas as crianças têm direito a uma
versificados, apoiando as escolhas, explora- brincar e as aprendizagens a realizar nas di- educação que desenvolva todas as suas po-
ções e descobertas das crianças” (OCEPE, ferentes áreas de conteúdo” (OCEPE, 2016, tencialidades, o que implica uma educação
p. 12). p. 31) inclusiva (art.º 2 da CDC). Se brincar, pelas
A ação do educador passa por observar as A complementaridade e continuidade entre interações sociais que proporciona, favo-
crianças enquanto brincam, ou “envolver-se a aprendizagem holística que caracteriza rece essa inclusão, todas as crianças são
no brincar das crianças, sem interferir nas o brincar e a aprendizagem nas diferentes também incluídas ao participarem e colabo-

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rarem na vida cultural do jardim de infân- que “têm de ser ensinadas” numa ordem Nestes artigos da CDC, é sempre conside-
cia. Deste modo, “a educação inclusiva e o previamente estabelecida pelo educador rada primordial a responsabilidade dos pais,
brincar inclusivo reforçam-se mutuamente” para que todas as crianças aprendam ao sendo esta, no art.º 18, direcionada para
(UN, 2013, p. 5). Cabe ao educador não só mesmo tempo, considerando-se assim que a educação e desenvolvimento da criança,
desenvolver uma pedagogia diferenciada, estão preparadas para o 1º ciclo. Importa, considerando sempre o interesse superior
mas também estar atento a preconceitos, sim, desenvolver as suas potencialidades, da criança. Já no art.º 5 da CDC é colocada
que as crianças manifestam desde muito os seus saberes, disposições para aprender a ênfase na responsabilidade parental de
cedo, de forma a promover um espírito de e fortalecer a sua autoestima, resiliência, proporcionar instrução e orientação ade-
compreensão e de tolerância, que é tam- autonomia, criando condições favoráveis quadas, de acordo com as caraterísticas da
bém um dos objetivos da educação estabe- para que tenha “sucesso, não só na etapa criança. Por fim, o art.º 27 da CDC realça
lecidos pelo art.º 29 da CDC. seguinte, mas também na aprendizagem ao as responsabilidades parentais de assegu-
O desenvolvimento de todas as potencia- longo da vida” (OCEPE, p. 31). rarem um nível de vida adequado à criança
lidades da criança remete ainda para uma para o seu desenvolvimento “físico, mental,
perspetiva do brincar como uma atividade (Co) Responsabilidade das famílias espiritual, moral e social”.
rica e estimulante, que “se caracteriza pelo na educação Apesar de se focarem em aspetos diferen-
elevado envolvimento da criança, demons- Tanto na CDC como nas OCEPE, as famílias tes da responsabilidade das famílias, em
trado através de sinais como prazer, con- e a sua articulação com outras entidades qualquer um destes artigos da CDC é sem-
centração, persistência e empenhamento educativas surgem com especial importân- pre colocado em paralelo o compromisso
(OCEPE, p. 12). Este envolvimento das cia para o desenvolvimento da criança. do Estado, respeitando sempre os direitos
crianças no brincar permite o desenvolvi- Logo no preâmbulo da CDC é bem clara esta e responsabilidades dos pais, mas assegu-
mento da curiosidade e da criatividade, de centralidade da família e a necessidade de rando as condições necessárias para que
competências sociais e comunicacionais, apoio por parte das estruturas competen- estes possam desempenhar esse papel, ga-
dá a oportunidade de resolver problemas, tes para o desempenho do seu papel, quan- rantindo estruturas, serviços, instituições,
de tomar iniciativas, de colaborar com ou- do é referido: “convictos de que a família, instalações, ou facilitando apoio material,
tros, de exprimir as suas opiniões, persistir elemento natural e fundamental da socie- financeiro ou programas de apoio (art.º 5,
nas tarefas, de estabelecer relações entre dade e meio natural para o crescimento e 18 e 27 da CDC). Consideramos assim, como
aprendizagens. Estas oportunidades de bem-estar de todos os seus membros, e ideias centrais na leitura destes artigos da
aprendizagem atravessam todas as áreas de em particular das crianças, deve receber a CDC, a centralidade dos pais, mas também
conteúdo (OCEPE, p. 12), em que o envolvi- proteção e a assistência necessárias para o papel importantíssimo de suporte do Es-
mento da criança, reconhecido pelos mes- desempenhar plenamente o seu papel na tado e das suas estruturas, para que estes
mos sinais, é condição para atingir um “nível comunidade”. possam desempenhar o seu papel da me-
profundo de aprendizagem” (Laevers, 2011). Assim, procuraremos articular o conteúdo lhor forma, sendo sempre respeitados e aci-
Por isso, valorizar as aprendizagens que as de alguns dos artigos da CDC, direciona- ma de tudo, procurando arranjar formas de
crianças realizam ao brincar em função de dos especificamente para o papel das fa- dar a resposta mais adequada a cada crian-
aprendizagens que estão também incluídas mílias na educação, com o texto das OCE- ça. Este compromisso entre duas entidades,
nas áreas de conteúdo não significa instru- PE (2016), de modo a ilustrar como esses respeitando-se na sua individualidade e
mentalizar o brincar pelos seus fins “didáti- direitos e princípios estão subjacentes à competências, e simultaneamente apoian-
cos”, mas sim reconhecer, apoiar e alargar perspetiva educativa e à atuação dos pro- do-se face a um objetivo comum é concep-
as competências informalmente adquiridas, fissionais, considerada no texto das OCE- tualizado e denominado como “Parceria”
de modo a promover não só o direito de PE. Para esta articulação elegemos, como (OECD, 2006). É neste compromisso de um
brincar, mas também de participar livre- ponto de partida três artigos da CDC onde dos parceiros face a um objetivo comum (o
mente na cultura e na arte. o papel da família é referido de forma clara interesse da criança e o seu processo de
Considerar as áreas de conteúdo como e assumindo-se como elemento central: o desenvolvimento e aprendizagem) que sur-
formas de participação da criança na vida art.º 5 – Orientação da criança e evolução; ge a ligação destes direitos com as OCEPE
cultural implica que estas não sejam vistas o art.º 18 – Responsabilidade dos pais; o (2016). O Estado, enquanto parceiro, na fi-
como “disciplinas singulares e atomizadas”, art.º 27 – Nível de vida. gura da Direção-Geral da Educação, assume

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o seu papel e responsabilidade por diferentes tendo no meio físico e social, e as relações e damento, “Exigência de resposta a todas as
vias, sendo uma delas a elaboração de legisla- interações que estabelece com outros adul- crianças”, onde é indicada a responsabilidade
ção e de orientações curriculares, neste caso tos e crianças. Estas ocorrem nos diferentes do estabelecimento educativo em adotar uma
as OCEPE. Aqui não só se estabelecem alguns contextos de vida da criança, entre os quais “perspetiva inclusiva, garantindo que “todos
princípios gerais para a atuação das estrutu- o de educação de infância, mas também no (crianças, pais/famílias e profissionais) se sin-
ras educativas com as famílias, como se suge- meio familiar, onde as práticas educativas, tam acolhidos e respeitados” e, mais ainda,
rem estratégias e ações mais concretas para a imbuídas de uma cultura própria, contribuem “pais/famílias sejam considerados como par-
operacionalização destes princípios. para o seu desenvolvimento e aprendizagem. ceiros” (OCEPE, 2016, p. 10).
Neste fundamento é explicitada a necessida- Ao longo do texto das OCEPE são várias as
Como é que nas OCEPE é explicitada de de se articularem e respeitarem as práticas sugestões para o envolvimento das famílias,
a (co) responsabilidade das famílias e papéis destes dois contextos, o institucional começando estas logo no capítulo da “In-
na educação (jardim de infância) e o familiar, apontando-se tencionalidade Educativa – Construir e gerir
No primeiro Fundamento das OCEPE (2016), para que “… o/a educador/a estabeleça rela- o currículo”, onde é dito que, “dada a impor-
que se refere ao “desenvolvimento e a apren- ções próximas com esse outro meio educati- tância do contexto familiar na educação das
dizagem como vertentes indissociáveis no vo, reconhecendo a sua importância para o crianças, o/a educador/a também planeia
processo de evolução da criança”, é realçado, desenvolvimento das crianças e o sucesso da e avalia a sua ação junto dos pais/famílias,
para além do papel da maturação biológica, a sua aprendizagem” (OCEPE, 2016, p. 9). Mais prevendo estratégias que incentivem a sua
importância das experiências que a criança vai explícita ainda é a referência no terceiro fun- participação, permitindo-lhe conhecer me-

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lhor o contexto familiar e social das crianças e criança e às famílias, o que, para darem uma te introduzir intencionalidade na sua ação, va-
envolver os pais/famílias no processo educa- resposta adequada, implica um conhecimento lorizando as culturas familiares, as diferenças
tivo, ajustando e reformulando a sua ação em mútuo. Para isso, existe um elemento indis- entre culturas e respeitando a identidade cul-
função da avaliação dessas práticas” (OCEPE, pensável que é recorrentemente enunciado tural das famílias. Este respeito é central para
2016, pp. 18-19). nas OCEPE: a comunicação. A comunicação que, no trabalho com as crianças e as famílias,
O respeito pela realidade e pela individualidade também é essencial para a construção de par- se possa contemplar um dos aspetos do art.º
das famílias, o respeito pelas suas responsabi- cerias, pois elas assentam no diálogo e numa 29 da CDC (Objetivos da educação) que passa
lidades primordiais na educação e desenvolvi- comunicação efetiva bidirecional (Albright & por “imbuir na criança o respeito pelos seus
mento dos seus filhos, como preconizado na Weissberg, 2010). pais, a sua própria identidade cultural, o seu
CDC, estão bem espelhados nesta afirmação, A comunicação pode reforçar as relações en- idioma e os seus valores, pelos valores nacio-
sublinhando-se a importância de se envolve- tre profissionais e famílias, levando a que se nais do país em que reside, do país de origem,
rem os pais no processo educativo e de se apoiem mutuamente para assegurarem con- quando for o caso, e das civilizações diferen-
fazerem os ajustes necessários para incentivar sistência e qualidade na atuação e segurança tes da sua”.
e melhorar essa participação. Estas ideias são na vida das crianças (Swick, 2003). As referên- A comunicação dos profissionais com as fa-
novamente corroboradas no capítulo da “Or- cias à comunicação entre profissionais e famí- mílias exige respeito pela sua privacidade en-
ganização do ambiente educativo”, quando se lias é frequente ao longo do texto das OCEPE. quanto família e pela privacidade da criança.
foca a relação entre o jardim de infância e os Essa comunicação é enunciada de forma a Há que reconhecer que, tal como preconizado
pais/famílias. No início, é referido que a ins- não só manter as famílias informadas, mas es- no art.º 16 da CDC, “a criança tem o direito de
tituição e as famílias são dois contextos que sencialmente a conhecer a criança e famílias, ser protegida contra intromissões na sua vida
contribuem para a educação da criança e por o que pensam, o que fazem e as suas necessi- privada, na sua família, residência e corres-
isso é essencial que exista articulação entre dades. Esta informação é central para a inten- pondência …” e portanto os profissionais de-
eles. É sugerido que esta articulação seja feita cionalidade educativa dos profissionais, pois verão acautelar estes aspetos em momentos
a dois níveis: um mais individual, contemplan- “falar com as famílias sobre a aprendizagem de partilha de informação com as famílias, ou
do cada família em particular; e um mais glo- dos seus/suas filhos/as e tomar consciência quando fazem propostas de atividades. Este
bal/coletivo, que considera os pais enquanto da sua ação e do progresso das crianças, para aspeto é, de resto, um dos pontos contem-
grupo. Refere-se a este respeito que “os pais/ decidir como apoiar melhor o seu processo de plados na Carta de Princípios para uma Éti-
famílias, enquanto primeiros e principais res- aprendizagem (OCEPE, p. 13). Isto exige a par- ca Profissional da APEI onde se refere, entre
ponsáveis pela educação das crianças, têm ticipação de diferentes intervenientes, recor- os compromissos do profissional para com
o direito de conhecer, escolher e contribuir rendo a “formas de comunicação e estratégias a criança, a necessidade de “garantir o sigi-
para a resposta educativa que desejam para que promovam esse envolvimento e facilitem lo profissional, respeitando a privacidade de
os seus filhos” (OCEPE, p. 29). Esta ideia arti- a articulação entre os diversos contextos de cada criança” (APEI, s.d).
cula-se estreitamente com a perspetiva sub- vida da criança” (idem). Nas OCEPE a centralidade da responsabilida-
jacente ao art.º 18 da CDC onde se preconiza Uma comunicação fluida permite às e aos de dos pais/famílias na educação da criança
que “os pais ou, quando for o caso, os tutores profissionais explicitar as suas opções, o que continua a estar subjacente quando se abor-
legais serão os responsáveis primordiais pela valorizam, através de um “diálogo construtivo dam as questões associadas à continuidade
educação e pelo desenvolvimento da criança. e formativo para todos” (p. 15). Por outro lado, educativa e transições, onde não só a co-
A sua preocupação básica será a garantia do este diálogo facilita relações de confiança, municação se mantém enquanto elemento
melhor interesse da criança. Para garantir e permitindo “aos pais/famílias expor as suas transversal para o conhecimento mútuo e
promover os direitos enunciados na presente opiniões, expectativas e dúvidas e ser escla- adequação de práticas, como também para o
Convenção, os Estados partes devem prestar recidos sobre as opções tomadas pelo/a edu- estabelecimento de relações de confiança es-
assistência adequada aos pais e aos tutores cador/a” (OCEPE, p. 19). O conhecimento do senciais para se conseguirem criar parcerias e
legais no desempenho das suas funções na educador será assim mais abrangente sobre dar uma resposta adequada a cada criança. Só
educação da criança e devem assegurar a cria- os contextos familiares das crianças do seu assim se conseguirá dar resposta aos artigos
ção de instituições, instalações e serviços para grupo, sendo esta informação mobilizada para 5 e 18 da CDC na sua determinação de que os
o cuidado da criança”. Este compromisso do adequar a sua intervenção educativa (OCEPE, pais, apoiados pelas estruturas competentes
Estado passa por criar estruturas de apoio à 2016). Deste modo, conseguirá mais facilmen- do Estado, cumpram a responsabilidade de

75 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO

proporcionar às crianças a instrução e orien- instituição educativa é indispensável na edu- OECD-LEED Forum on Partnerships and Local Go-
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tação adequadas, necessárias para a sua cação das crianças. leed/forum/partnerships.
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se conseguirá que as estruturas educativas, documentos com finalidades e objetivos cla- dicators on Early Childhood Education and Care.
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jardim de infância e escola, cumpram o seu ramente distintos, existe muita proximidade 9789264276116-en.
papel de apoio às famílias e crianças, assegu- entre eles. As OCEPE, enquanto documento Rinaldi, C (2001). The Pedagogy of Listening: the pers-
rando-lhes uma educação adequada ao seu curricular dirigido aos profissionais que vão pective of listening from Reggio Emilia. Innovations in
early education: the international Reggio exchange,
desenvolvimento e também uma qualidade lidar, educar, interagir e apoiar as crianças 8(4), 1-4. Recuperado de https://static1.squarespace.
de vida que sustente esse desenvolvimento nos seus processos de desenvolvimento e de com/static/526fe9aee4b0c53fa3c845e0/t/540f-
em todas as suas dimensões, tal como pre- aprendizagem, não podiam deixar de conside- ce31e4b00c94d884e002/1410321969279/Pedago-
dy+of+Listening+-+Rinaldi+-+Fall+2001.pdf.
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https://doi.org/10.1023/A:1023399910668
Neste artigo procurámos fazer uma articu- Tomás, C. (2011). Há muitos mundos no mundo –
lação entre alguns dos artigos da CDC e os cosmopolitismo, participação e direitos da criança.
fundamentos gerais e princípios de ação REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Porto: Edições Afrontamento.
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elegemos quatro grandes temas que nos pa- ning. In S. Christenson & A. Reschly (Eds) Handbook the rights of the child. Recuperado de https://tbin-
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currículo e a sua opinião considerada, sendo laridade obrigatória. Lisboa: Ministério da Educação, Decreto-Lei n.º 54/18 (2018) Assembleia da Repúbli-
Direção Geral da Educação. https://dge.mec.pt/ ca. Diário da República, 1.ª série (n.º 129/2018, Série I
deste modo envolvidas nas decisões. O res- sites/default/files/Curriculo/Projeto_Autonomia_e_ de 2018-07-06). ELI: https://dre.pt/application/con-
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76 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO
Investigação com crianças: a exigência
de uma ética fundada nos direitos
Cristina Mesquita . Centro de Investigação em Educação Básica, Instituto Politécnico de Bragança

A reconceptualização da criança enquanto raramente afirmam uma ética investigacional e vulnerável, mas ao mesmo tempo a sua
ator social fez emergir, nas últimas décadas, com crianças. participação. A Convenção sobre os Direitos
várias reflexões em torno dos princípios e Mais recentemente, foram desenvolvidos da Criança (Assembleia Geral das Nações
processos da investigação que as envolve diferentes projetos com o intuito de criar Unidas, 2019) e os seus mais recentes pro-
(Bell, 2008; Christiensen & James, 2005; referências éticas para os investigadores que tocolos facultativos são instrumentos inter-
Morrow, 2012; Woodhead & Faulkner, 2005). estudam as problemáticas relacionadas com nacionais que afirmam esses direitos e apre-
Existe uma preocupação partilhada inter- as crianças. A título de exemplo, enunciamos sentam a questão dos “direitos da criança
nacionalmente que reflete a importância o projeto internacional Ethical Research In- como uma especificação da solução dada ao
de assegurar que a dignidade humana das volving Children (ERIC), que foi criado para problema dos direitos do homem”, deixando
crianças, os seus direitos e bem-estar sejam ajudar os investigadores e outros atores so- claro que “os direitos da criança são conside-
garantidos e respeitados em todas as inves- ciais que, profissional ou familiarmente, se rados como um ius singulare com relação a
tigações, independentemente do contexto. relacionam com crianças a compreenderem um ius commune” (Bobbio, 2004, p. 21).
Importa, por isso, que os princípios éticos da o que significa planear e conduzir investiga- Apesar de a Convenção sobre os Direitos da
investigação com crianças e a garantia dos ções éticas que envolvem crianças e jovens Criança (CDC) assumir um conjunto de obri-
seus direitos sejam assumidos não apenas em diferentes contextos geográficos, sociais, gações para os Estados (e seus atores) e não
como exigência da investigação, mas sobre- culturais e metodológicos. O ERIC assume para os indivíduos, não impondo obrigações
tudo como um imperativo moral. que a investigação que envolve crianças é diretas aos investigadores, ela tem-se cons-
Desta assunção emerge a necessidade de toda a investigação em que participam, di- tituído como uma estrutura útil e importan-
construir espaços de diálogo e de comunica- reta ou indiretamente, crianças por meio de te que pode informar a investigação ética
ção entre diversos atores sociais (investiga- um representante, independentemente da com crianças (Lundy & McEvoy, 2012). Além
dores, educadores de infância, professores, sua função e da metodologia ou técnicas das referências explícitas à CDC em artigos
educadores sociais, pais, etc.) com o pro- usadas para recolher, analisar e interpretar conceptuais (Christensen & James, 2005), é
pósito de gerar pensamento crítico, diálogo dados ou informações (Graham et al., 2013, comum encontrar estas mesmas referências
reflexivo e tomadas de decisão éticas que p. 2). Desta forma, procura-se garantir que em artigos que se centram nos métodos de
possam contribuir para uma reflexão pro- a dignidade humana das crianças, os seus investigação e que assumem aquilo que tem
funda sobre os fundamentos teóricos, me- direitos e bem-estar sejam respeitados em sido designado, como uma abordagem ba-
todológicos e os valores subjacentes à inves- todas as investigações, independentemente seada nos direitos da criança (Beazley et al.,
tigação que envolve as crianças. A ênfase é do contexto. 2009; Bessell, 2015; Graham et al., 2013).
colocada na necessidade de uma abordagem Nos pontos que se seguem argumenta-se A ideia de considerar as crianças como co-
reflexiva em torno da ética em investigação sobre a importância de os investigadores, produtoras de investigação torna explícito
que promova relacionamentos dinâmicos e bem como os profissionais de educação de o respeito pelas crianças enquanto investi-
de respeito entre os investigadores, crianças, infância, quer na sua função profissional, gadas e pelas suas próprias ideias e capa-
famílias, comunidades, organizações e ou- quer na sua função de investigação ou de cidade. Como afirma Alderson (2005), “as
tras partes interessadas. participantes em investigações, estarem de- convenções pelos direitos, com apoio quase
Assumimos que a investigação com crianças vidamente informados das questões éticas universal e estatuto quase legal, fornecem
é importante, uma vez que, entre muitos ou- que envolvem a investigação com crianças. uma justificação formal para que os padrões
tros objetivos, ela tem o potencial de infor- Todos estes atores sociais têm o dever de éticos sejam observados na investigação” (p.
mar as políticas e as práticas, contribuindo salvaguardar os direitos das crianças em to- 261).
para a garantia dos seus direitos. Contudo, das as suas dimensões. Diversos autores tornam explícito que a in-
pode ser questionável a forma como os di- vestigação com crianças é fundamental para
reitos da criança são garantidos na investiga- 1. Os direitos da criança e a ética na compreender as suas vidas (Alderson, 2005;
ção produzida. Os estudos de Mishna, Antle investigação Graham et al., 2013; Kellett, 2005; Woo-
e Regehr (2004) e de Bell (2008) revelam que, Os direitos da criança, espelhados em vários dhead & Faulkner, 2005). A participação das
apesar de existirem diferentes guiões éticos instrumentos jurídicos nacionais e interna- crianças na investigação significa que podem
para a investigação em educação, essas refe- cionais, refletem o caráter especial das crian- falar de direito próprio (Alderson, 2005),
rências carecem, muitas vezes, de definição e ças, tendo em conta a sua condição única o que garante que as suas experiências e

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: ARTIGO

perspetivas informam de perto os estudos, investigação com crianças tivesse evoluído preende a liberdade de procurar, receber e
fornecendo conhecimentos precisos e cul- de um cenário amplamente desregulamen- expandir informações e ideias de toda a es-
turalmente específicos, o que, consequen- tado para um espaço caracterizado pelos pécie, sem consideração de fronteiras, sob
temente, aumenta o valor e a validade dos desafios complexos, multidimensionais e forma oral, escrita, impressa ou artística ou
resultados. Como se indicou anteriormente, dinâmicos que os investigadores têm vivido. por qualquer outro meio à escolha da crian-
as informações sistemáticas recolhidas junto Alderson (2005), que valoriza a participação ça;
das crianças podem contribuir para o for- das crianças na investigação, afirma que “en- Artigo 36.º – a criança tem o direito de ser
talecimento de leis, políticas e práticas que volver todas as crianças mais diretamente na protegida contra todas as formas de explo-
promovam a sua dignidade, os seus direitos investigação pode, deste modo, salvá-las do ração prejudiciais a qualquer aspeto do seu
e bem-estar humanos. O envolvimento das silêncio e exclusão e de serem representa- bem-estar.
crianças na investigação é vital para assegu- das, erradamente, como objetos passivos, Beazley et al. (2009) referem que a conjuga-
rar o seu direito de participar em questões enquanto o respeito pelo seu consentimento ção destes direitos se traduz nas seguintes
que as afetam, conforme é reconhecido na informado ajuda a protegê-las das investi- considerações: as crianças serem participan-
CDC. Além disso, o impacto potencial que os gações camufladas, invasivas, exploradas ou tes na investigação, mas ao mesmo tempo
resultados podem ter nas suas vidas e a im- abusivas” (p. 263). estarem protegidas dos danos que daí pos-
portância de defender os seus direitos, tanto Contudo, conforme sugerem Beazley et al. sam resultar; a responsabilidade dos inves-
de proteção como de participação, reforça (2009), o respeito pelos direitos humanos tigadores usarem métodos que facilitem a
a necessidade de ter diretrizes e princípios das crianças cria o “direito de ser devida- expressão das suas opiniões, pontos de vis-
éticos internacionalmente acordados que mente investigada”, o que significa que os ta e experiências (métodos de investigação
podem ser aplicados em vários contextos. princípios éticos dos investigadores devem, amigáveis para as crianças (research-friendly
A ética na investigação que envolve crianças em alguns casos, salvaguardar os direitos de methods).
está assim intimamente relacionada com a proteção das crianças sobre os seus direitos Apesar das tensões que esta dupla dimen-
garantia e consideração dos seus direitos. A de participação (Bessell, 2015). O direito de sionalidade pode representar (e tem repre-
Convenção sobre os Direitos da Criança, ao ser devidamente investigada não está con- sentado), entendemos que as considerações
atribuir visibilidade e legitimidade à agência sagrado na CDC, mas deriva da interpretação éticas que os investigadores enfrentam não
e participação das crianças (artigos 12.º e de uma combinação de disposições de qua- têm de ser colocadas em termos de oposi-
13.º), cria um conjunto de implicações consi- tro artigos: ção. Conforme afirmam Graham et al. (2013),
deráveis para os investigadores, relacionadas Artigo 3 (ponto 3) – os Estados partes ga- a proteção e a participação das crianças de-
com o dever ético de garantir que as crianças rantem que o funcionamento de instituições, vem ser perspetivadas de tal forma que a sua
tenham o direito de expressar as suas opi- serviços e estabelecimentos que têm crian- competência, dependência e vulnerabilidade
niões sobre o próprio processo de investiga- ças a seu cargo e asseguram a sua prote- não devem determinar, por si só, a sua inclu-
ção. Ao mesmo tempo que se reconhece a ção seja conforme às normas fixadas pelas são ou exclusão da investigação, mas antes
agência da criança e o seu direito a participar autoridades competentes, nomeadamente informar a maneira como ocorre a sua par-
em atividades como a investigação, também nos domínios da segurança e saúde, relati- ticipação.
devem ser acautelados os seus direitos de vamente ao número e qualificação do seu Esta assunção implica que a investigação
proteção e provisão, assegurando que, en- pessoal, bem como quanto à existência de com crianças se apoie numa dimensão refle-
quanto participante, a criança tem também o uma adequada fiscalização; xiva. A ênfase deve ser colocada nas relações
direito a ser protegida. A importância de am- Artigo 12.º (ponto 1) – a criança com capa- múltiplas que ocorrem ao longo do processo,
bas as dimensões na investigação tem gera- cidade de discernimento tem o direito de que é onde as questões éticas emergem, in-
do uma rica e diversa construção ideológica, exprimir livremente a sua opinião sobre as cluindo as que se relacionam com proteção
metodológica e de práticas investigacionais, questões que lhe digam diretamente respei- e participação. Consideramos, por isso, que
com abordagens éticas moldadas pelo pró- to, sendo devidamente tomadas em consi- além das questões da investigação, todos os
prio entendimento dos investigadores e das deração as suas opiniões, de acordo com a procedimentos que lhe são inerentes, como
organizações, em conjunto com considera- sua idade e maturidade; a produção de provas, a análise e discussão
ções teóricas, sociopolíticas e culturais mais Artigo 13.º (ponto 1) – a criança tem direito dos dados ou a sua disseminação devem ser
amplas (Graham et al., 2013). Isto fez que a à liberdade de expressão. Este direito com- considerados pelos investigadores. O dever

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de cuidado e a exigência de reflexão ética pam na investigação é um princípio assumido de dados seja de gerar novas provas, esse
não devem ser determinados apenas pela na ética investigativa. O respeito exige que objetivo nunca deve ter precedência sobre
natureza do conhecimento produzido, mas os indivíduos sejam tratados como capazes os direitos dos participantes individuais. A
pela natureza e sensibilidade dos proce- de deliberar sobre os seus objetivos pessoais não-maleficência requer um exame do perfil,
dimentos de recolha dos dados e das suas e de agir em conformidade com tal delibe- competências e capacidades dos investiga-
implicações subsequentes (Berman et al., ração. Respeitar um participante significa dores para garantir que estes são adequa-
2016). Afirmamos, por isso, que o respeito atribuir importância aos seus valores, prefe- dos, qualificados ou competentes. Também
é parte integrante das decisões e ações dos rências e crenças e reconhecer a sua capaci- requer a consideração explícita de meios
investigadores, tendo em conta a natureza dade de fazer julgamentos, expressar as suas para garantir a privacidade dos participantes,
e as condições do envolvimento das crian- opiniões e fazer escolhas. A investigação a sua segurança e a salvaguarda dos possí-
ças na investigação, independentemente do fundada no respeito, implica a compreensão veis impactos negativos decorrentes da sua
contexto, geografia ou orientação metodo- de que adultos e crianças são sujeitos intera- participação.
lógica. tivos, envolvidos em relacionamentos com-
Outra importante ideia a considerar relacio- plexos de interdependência, o que requer o 2.3 Justiça
na-se como o cruzamento entre os interes- entendimento de que as tomadas de decisão O princípio da justiça requer que se consi-
ses da investigação e a vida quotidiana das são realizadas em contextos sociais e que a dere quem é beneficiado e quem assume o
crianças. Esta intersecção vai observar-se ao agência pessoal pode estar limitada pela ida- ónus da investigação. Isso requer uma re-
longo de todo o processo, o que requer que de, circunstâncias ou capacidades pessoais. flexão sobre os métodos propostos para a
o investigador, além de aceitar as crianças Respeitar as crianças enquanto participantes seleção dos participantes. Esta deve ter em
como participantes, as considere como pes- na investigação implica situar a sua ação na consideração a injustiça que pode emergir
soas afetadas por essa mesma investigação, sua experiência, assumindo as relações desi- dos preconceitos sociais, raciais, sexuais e
o que significa que elas iniciam o processo guais de poder que frequentemente existem, culturais institucionalizados na sociedade.
de investigação com direitos, que continuam bem como o reconhecimento das suas capa- Estes princípios éticos implicam a conside-
a deter em todos os momentos da pesquisa. cidades em desenvolvimento. ração de um conjunto de procedimentos
Tal como nos informa Bell (2008), os inves- no decurso da investigação, entre os quais
tigadores, bem como todos os adultos, não 2.2 Beneficência e da não-maleficência destacamos o consentimento informado,
devem presumir que as crianças partilham a O princípio da beneficência reclama que a garantia da igualdade nos processos de
sua visão de mundo ou seguem uma agen- a atividade investigativa promova o bem- seleção, interação e análise dos dados, a
da comum, pelo que devem estar disponí- -estar dos indivíduos, comunidades ou da salvaguarda da privacidade e confidenciali-
veis para aceitar as decisões das crianças, a sociedade como um todo. O princípio da dade dos participantes, o reconhecimento e
sua disponibilidade e as suas visões sobre a beneficência requer a identificação clara dos garantia da sua liberdade de expressão e o
realidade que observam e sobre a qual cons- benefícios que podem surgir dos resultados. acesso a toda a informação.
troem significados. O investigador deve reconsiderar os procedi-
mentos investigativos no caso de não existir 3. Questões éticas a considerar na
2. Princípios éticos na investigação que articulação entre benefícios e resultados. A investigação com crianças
envolve crianças beneficência inclui o conceito de reciprocida- Apesar do discurso habilitador da partici-
Reconhecer a correlação entre direitos da de, segundo o qual as evidências geradas são pação das crianças na investigação, o que
criança e ética na investigação é uma forma devolvidas aos participantes para que eles permanece menos óbvio é a forma como
de promover uma abordagem investigativa contextualizem a sua participação e poten- os investigadores garantem que esse direito
baseada em direitos. Nesta perspetiva, Ber- cialmente beneficiem com o conhecimento seja assegurado. O reconhecimento de uma
man et al. (2016) referem a necessária con- disseminado. abordagem baseada nos direitos implica uma
sideração dos seguintes princípios éticos na Decorre do princípio da não-maleficência reflexão permanente por parte dos investi-
investigação que envolve as crianças: a garantia de que os procedimentos da in- gadores, que, em muitas situações, se veem
vestigação não podem causar danos ou le- envolvidos em questões que necessitam de
2.1 Respeito sões aos participantes. Embora o objetivo respostas éticas e coerentes.
O respeito por todas as pessoas que partici- principal da investigação, recolha e análise Uma das questões que pode antecipar al-

79 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO

Tabela 1 - O direito de a criança ser devidamente investigada

Artigos O que significa para a investigação O que significa na prática dos educadores
Artigo 3, ponto 3:
Os educadores de infância devem revelar
Os Estados partes garantem que o funciona- competência profissional, ser conhecedores
mento de instituições, serviços e estabeleci- A pesquisa deve estar de acordo com os mais dos direitos das crianças e dos princípios
mentos que têm crianças a seu cargo e asse- elevados padrões científicos possíveis. éticos relativos à investigação que envolve as
guram a sua proteção seja conforme às nor- crianças.
mas fixadas pelas autoridades competentes,
Os investigadores devem ser cuidadosamente Devem solicitar todas as informações sobre
nomeadamente nos domínios da segurança e
recrutados e supervisionados. os procedimentos, prestando atenção à forma
saúde, relativamente ao número e qualificação
como as crianças são envolvidas na investi-
do seu pessoal, bem como quanto à existência
gação.
de uma adequada monitorização.
Artigo 12.º, ponto 1
Os educadores de infância devem criar as
A criança com capacidade de discernimento condições necessárias para que as crianças
tem o direito de exprimir livremente a sua opi- As perspetivas e opiniões das crianças devem expressem livremente a sua opinião no decur-
nião sobre as questões que lhe digam direta- ser parte integrante da investigação. so das investigações, garantindo que as suas
mente respeito, sendo devidamente tomadas perceções, saberes e vivências são tidas em
em consideração as suas opiniões, de acordo consideração.
com a sua idade e maturidade.
Artigo 13.º, ponto 1
A criança tem direito à liberdade de expres-
são. Este direito compreende a liberdade de É necessário encontrar e usar métodos que Os educadores de infância devem garantir que
procurar, receber e expandir informações e ajudem as crianças a expressar as suas pers- os métodos e processos de recolha de dados
ideias de toda a espécie, sem consideração de petivas e opiniões livremente, no decurso da são os mais adequados para que a criança se
fronteiras, sob forma oral, escrita, impressa ou investigação. expresse livremente.
artística ou por qualquer outro meio à escolha
da criança.
Os educadores devem assegurar que as crian-
ças querem participar voluntariamente e que
Artigo 36.º
não são coagidas para tal.
A criança tem o direito de ser protegida contra As crianças não devem ser prejudicadas ou ex-
Devem acompanhar a criança no decurso do
todas as formas de exploração prejudiciais a ploradas através da participação em pesquisas.
processo, garantindo que estão protegidos to-
qualquer aspeto do seu bem-estar.
dos os aspetos do seu bem-estar físico, emo-
cional e social.

guns dos problemas da investigação relacio- sobre o estatuto das crianças informa os outros investigadores que já tivessem pas-
na-se com a lente com a qual o investigador métodos e os processos utilizados na re- sado por processos semelhantes, no sentido
foca a sua investigação. Na realidade a re- colha e análise dos dados, enviesando, em de recolher informações úteis sobre a melhor
lação da investigação com o seu objeto de alguns casos, o estatuto de participante da forma de garantir que os direitos da criança
estudo está intimamente articulada com a criança. Importaria que os investigadores se observavam em todas as fases da inves-
forma como a infância é teorizada. Em mui- considerassem como 1.ª fase da investigação tigação. Outro importante contributo seria
tos casos, a perspetiva dos investigadores a reflexão com diferentes atores, entre eles a criação de um processo negocial onde as

80 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


crianças, enquanto participantes, referissem preendendo que este envolve muito mais 4. O educador de infância enquanto
o que estariam dispostas ou não a fazer em do que concordar em participar na investi- guardião (protetor/garante) dos direitos
prol daquela investigação. gação. Consentir requer tempo para decidir, da criança
Outra questão relaciona-se com o discurso ser capaz de fazer perguntas sobre a inves- Atualmente, existem muitas investigações
dos investigadores. Em muitos casos, assu- tigação e ser capaz de dizer sim ou não. O em curso em contexto de educação de infân-
mindo a imaturidade das crianças, a lingua- consentimento deve ser visto como contí- cia que envolvem os educadores de infância,
gem utilizada pelos investigadores é infan- nuo e não como um evento pontual. Neste as crianças, as suas famílias e outros atores
tilizada, recorrendo a questões demasiado sentido é importante determinar as formas educativos. Conforme referimos, a investi-
simples, o que leva as crianças a produzir de consentimento, bem como os atores a gação é absolutamente fundamental para a
respostas superficiais.As crianças falam com quem este necessita de ser solicitado. Não reconceptualização teórica sobre a infância,
propriedade sobre as suas experiências e se deve supor que o consentimento dos sobre as práticas e as políticas educativas e
emoções. No entanto, se lhes colocarmos pais ou educadores é suficiente e que as sociais.
questões fora das suas vivências, elas são crianças não precisam de o expressar ou É neste âmbito que dedicamos esta secção
vagas e não dão um contributo substantivo recusar. Ter uma participação consentida ao papel do educador de infância, enquanto
à investigação. significa que a criança compreendeu os pro- garante dos direitos das crianças, nas inves-
Os métodos de pesquisa são uma preocu- pósitos da investigação e a sua ação no de- tigações que se realizam nos contextos edu-
pação central em qualquer tipo de inves- curso do processo; que ela sabe e entendeu cativos onde desenvolve a sua ação.
tigação. Como referimos anteriormente, o que, se não aceitar fazer parte da pesquisa, No interessante manual How to research
respeito na investigação deve ser explicita- nenhum mal lhe irá acontecer; que concor- the physical and emotional punishment of
mente articulado com os métodos de pes- da em ser participante e em contribuir para children, Ennew e Plateau (2004) apresen-
quisa, o que pressupõe que estes se ade- a investigação porque reconhece a sua im- tam uma tabela onde fazem corresponder
quem àquilo que a criança é, ao contexto portância e os seus benefícios; e que tem os artigos fundamentais da CDC com as suas
sociocultural em que vive e à forma como a o direito de recusa, em qualquer momento implicações na investigação que envolve as
cultura informa as suas experiências, capa- do processo. crianças, no sentido de garantir o direito a
cidades e perspetivas (Graham et al., 2013). As questões em torno do anonimato dos serem devidamente investigadas. Tendo em
Usar métodos mais sensíveis às competên- participantes devem ser explicadas às crian- conta a responsabilidade ética e deontológi-
cias ou interesses específicos das crianças ças. Muitas vezes elas desejam que os seus ca dos educadores de infância, procurámos
pode permitir que elas se sintam mais à nomes sejam usados nos relatórios. De fac- ampliar a tabela dos autores, descortinan-
vontade com os investigadores e deem to, o anonimato nem sempre é necessário do o papel destes profissionais no desen-
contributos mais relevantes. Contudo, em e as decisões sobre isso devem ser nego- volvimento das investigações a realizar em
situação de vulnerabilidade, os investiga- ciadas com todos os envolvidos, incluindo contexto educativo, no sentido de garantir
dores devem pensar se é absolutamente alguma possibilidade da perda de confiden- e salvaguardar os direitos de participação e
necessário para a sua investigação fazer cialidade dos relatórios de pesquisa. Quan- proteção das crianças. Baseado em Ennew e
perguntas diretas às crianças sobre expe- do for necessário, os investigadores podem Plateau (2004, p. 29)
riências dolorosas. Neste enquadramento encorajar crianças a escolher os seus pró- Conforme se enuncia na tabela 1, é impor-
considera-se que as crianças não devem prios pseudónimos como forma de superar tante que os educadores de infância com-
sentir-se obrigadas a responder às pergun- esse problema. preendam que o princípio da participação
tas dos adultos apenas porque eles têm um As questões da confidencialidade são, tal- determina que as crianças sejam envolvidas
estatuto diferente do seu, ou porque esses vez, as mais sensíveis nos processos inves- na tomada de decisões e na gestão das suas
dados são relevantes para a investigação. tigativos com crianças. Os investigadores vidas, mesmo quando convidadas a fazer
É aqui que reside a diferença entre uma devem refletir sobre a melhor forma de parte de uma investigação. A investigação
investigação eticamente justificada e um assegurar a confidencialidade completa e participativa significa que todas as pessoas
investigador que adota uma atitude etica- em todas as fases do processo, salvaguar- e organizações afetadas pelas informações
mente correta. dando e protegendo as crianças para que recolhidas estão totalmente envolvidas no
Importa também refletir sobre as questões não fiquem expostas ao risco e para que a processo de investigação.
relacionadas com o consentimento, com- confiança não seja quebrada. Investigação e prática devem fazer emergir

81 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO

uma dimensão educativa mais alargada, fo- formadora de educadores de infância, nos (2009). The right to be properly researched: Re-
search with children in a messy, real world. Chil-
calizada na ação interativa, contextualizada, inquieta a produção investigativa realizada dren’s Geographies, 7(4), 365–378. https://doi.
renovada em cada dia e sustentada em prin- no âmbito dos estágios curriculares. Aos org/10.1080/14733280903234428
cípios éticos e humanizantes. Compreende- futuros educadores de infância exigimos a Bell, N. (2008). Ethics in child research: Rights, rea-
son and responsibilities. Children’s Geographies, 6(1),
-se assim que a investigação que se desen- realização de uma investigação no decurso 7–20. https://doi.org/10.1080/14733280701791827
volve com crianças tem de ser entendida das suas intervenções (estágios em diferen- Berman, G., Hart, J., O’Mathúna, D., Mattellone,
numa dimensão praxiológica, em prol do tes contextos). São, na maioria dos casos, E., Potts, A., O’Kane, C., Shusterman, J., & Tanner,
T. (2016). What We Know about Ethical Research
bem dos profissionais, das crianças, das suas jovens que se encontram a construir refe- Involving Children in Humanitarian Settings: An
famílias e da comunidade. As ações dos in- rentes conceptuais e metodológicos que Overview of Principles, the Literature and Case
vestigadores e dos educadores de infância lhes permitam exercer a sua profissão e aos Studies (Innocenti Working Papers N. 2016/18; In-
nocenti Working Papers, Vol. 2016/18). https://doi.
devem dialogar num movimento que favo- quais é solicitado, ao mesmo tempo, que org/10.18356/ce5b9789-en
reça a interpretação da experiência que, por se iniciem na prática da investigação. Uma Bessell, S. (2015). Rights-Based Research with
sua vez, conduza a uma melhor compreen- prática que se apoia mais nas dinâmicas do Children: Principles and Practice. Em R. Evans,
L. Holt, & T. Skelton (Eds.), Methodological Ap-
são das narrativas das crianças e das suas que resulta ou não, do que na intenciona- proaches (pp. 1–18). Springer Singapore. https://doi.
visões sobre o mundo. lidade da ação para o desenvolvimento e org/10.1007/978-981-4585-89-7_17-1
A utilização de diferentes métodos e técnicas aprendizagem das crianças. São ao mesmo Bobbio, N. (2004). A era dos direitos. Elsevier Editora.
Christensen, P., & James, A. (2005). Investigação com
que explicitem a visão das crianças inscreve- tempo investigadores e investigados, apren- crianças: Perspectivas e práticas. Routledge.
-se numa linha ética, porque permite que dizes da profissão que, direta ou indireta- Christiensen, P., & James, A. (2005). Investigação com
todas as crianças documentem e registem as mente, envolvem as crianças na recolha de crianças. Escola Superior de Educação Paula Frassi-
neti.
suas ideias e sentimentos. Os educadores de dados, sem um verdadeiro conhecimento Ennew, J., & Plateau, D. P. (2004). How to research
infância, com as suas práticas respeitadoras, dos procedimentos éticos envolvidos. É the physical and emotional punishment of children.
devem estar atentos aos métodos usados neste particular que assumem relevância International Save the Children Alliance, Southeast,
East Asia and Pacific Region.
pelos investigadores, questioná-los e sugerir os supervisores das escolas de formação Graham, A., Powell, M. A., Anderson, D., Fitzgerald,
abordagens que possam valorizar a investi- de educadores de infância, no sentido de R., Taylor, N. J., UNICEF, & Office of Research. (2013).
gação. O seu contributo é absolutamente ajudar os futuros educadores de infância a Ethical research involving children.
Kellett, M. (2005). How to Develop Children as Re-
fundamental, quando entendem o benefício que encontrem o sentido ético da sua ação e searchers: A Step-by-Step Guide to Teaching the Re-
da investigação. da sua investigação, valorizando as crianças search Process. SAGE Publications Ltd. https://doi.
Além de garantir os direitos de participação enquanto participantes e garantindo que org/10.4135/9781446212288
Lundy, L., & McEvoy, L. (2012). Children’s rights
os educadores de infância devem também todos os seus direitos são salvaguardados. and research processes: Assisting children to (in)
acautelar os direitos de proteção da crian- Entendemos, assim, que a investigação ba- formed views. Childhood, 19(1), 129–144. https://doi.
ça e, nesse sentido, devem estar avisados seada nos direitos da criança envolve o reco- org/10.1177/0907568211409078
Mishna, F., Antle, B. J., & Regehr, C. (2004). Tapping
quanto ao impacto e contributo que os par- nhecimento e a consideração cuidadosa da the Perspectives of Children: Emerging Ethical Issues
ticipantes, crianças e adultos, poderão ter ênfase da sociedade nos direitos coletivos in Qualitative Research. Qualitative Social Work:
nesse particular. Também aqui as relações e individuais, nas negociações do processo Research and Practice, 3(4), 449–468. https://doi.
org/10.1177/1473325004048025
de poder não podem ser ignoradas. Inves- de investigação e na assunção de que todos Morrow, V. (2008). Ethical dilemmas in research with
tigadores, educadores, crianças e famílias podem contribuir para que estes sejam ga- children and young people about their social environ-
devem estabelecer compromissos, negociar rantidos. ments. Children’s Geographies, 6(1), 49–61. https://
doi.org/10.1080/14733280701791918
processos e garantir os princípios de respei- Morrow, V. (2012). The Ethics of Social Research with
to, beneficência, não-maleficência e justiça, Children and Families in Young Lives: Practical Experi-
que possam assegurar a dignidade de todos ences. Em J. Boyden & M. Bourdillon (Eds.), Child-
hood Poverty (pp. 24–42). Palgrave Macmillan UK.
os participantes, independentemente do seu REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS https://doi.org/10.1057/9780230362796_3
papel na investigação. Alderson, P. (2005). Crianças como investigadoras. Woodhead, M., & Faulkner, D. (2005). Sujeitos, ob-
Em Investigação com crianças: Perspectivas e práti- jectos ou participantes? Dilemas da investigação
Os estudos sobre e com as crianças neces- cas (pp. 261–280). Routledge. psicológica com crianças. Em Pia Christiensen & A.
sitam de uma construção conceptual, meto- Assembleia Geral das Nações Unidas, S. (2019). Con- James (Eds.), Investigação com crianças: Perspetivas
dológica e ética que levam décadas a fazer venção sobre os Direitos da Criança e Protocolos Fa- e práticas (pp. 1–28). Escola Superior de Educação
cultativos. Comité Português para a UNICEF.
sentido. É nesta perspetiva que, enquanto Beazley, H., Bessell, S., Ennew, J., & Waterson, R.
Paula Frassineti.

82 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO
Educar para a sexualidade e direitos das crianças
Vânia Beliz . Psicóloga Clínica e da Saúde. Mestre em Sexologia

Quando falamos em educação sexual são


muitos os receios das famílias e dos profis-
sionais de educação. Em Portugal, a educa-
ção para os afetos e sexualidade é um dos
eixos do Referencial de Educação para a
Saúde1 (2017) em meio escolar que resulta de
uma parceria entre a Direção-Geral da Edu-
cação e a Direção-Geral de Saúde e o SICAD -
Serviço de Intervenção nos Comportamentos
Aditivos e nas Dependências.
Obrigatória desde 2009, a educação para a
sexualidade ainda não é uma realidade na
educação formal. Não sendo obrigatória
para a educação pré-escolar, surgem apenas
sugestões de abordagem para que alguns
temas possam ser trabalhados desde cedo
com as crianças. O direito à educação sexual
está consagrado nos direitos sexuais e re-
produtivos que fazem parte dos direitos da
humanidade. Após a adoção da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948),2 sur-
giram várias convenções com o objetivo de
operacionalizar o seu cumprimento, de que
são exemplo o Plano de Ação da Conferência
Internacional de População e Desenvolvi- para esta em que se inclui o direito à educa- ceu o regime da educação sexual em meio
mento, no Cairo (1994),3 e a Plataforma de ção sexual. escolar, os seus objetivos e o seu enquadra-
Ação da IV Conferência Mundial da Mulher, A conferência de Pequim é, no entanto, a mento. A lei prevê que cada criança e cada
em Pequim (1995),4 entre outras. No âmbito principal referência na conquista dos direitos jovem tenham um mínimo de horas para
da saúde das crianças e dos adolescentes, reprodutivos e sexuais como direitos huma- abordar os temas da educação sexual em
o principal marco legal internacional surgiu nos, reforçando a importância da proteção cada ano de escolaridade: 6 horas nos 1.º e
com a Convenção Internacional sobre os das meninas e das mulheres, pela sua vulne- 2.º ciclos do ensino básico e 12 horas no 3.º
Direitos da Criança (1989).5 Esta convenção rabilidade em todo o mundo. ciclo do ensino básico e no ensino secundá-
reconheceu as crianças e os adolescentes Cinco anos após o Cairo, a ONU reforçou o rio.
como seres sujeitos de direitos. A conferên- direito dos jovens à privacidade, ao sigilo, ao A educação pré-escolar, não sendo obriga-
cia do Cairo deu um contributo importante consentimento informado, à educação no tória, conta com indicações que referem a
na área dos direitos reprodutivos e dotou os currículo escolar, à informação e assistência importância das abordagens da sexualidade
adolescentes (indivíduos dos 10 aos 19 anos) à saúde sexual e reprodutiva, evitando desta a partir desta etapa. O dito referencial7 é
como sujeitos de direitos, perspetivando-se forma situações graves como a gravidez na apresentado pela tutela como “(…) uma fer-
um conjunto de ações e de políticas públicas adolescência, o casamento infantil, as infe- ramenta educativa flexível, de adoção volun-
ções sexualmente transmissíveis, a violência tária, passível de ser utilizada e adaptada em
1 https://dge.mec.pt/noticias/educacao-saude/referen-
cial-de-educacao-para-saude e abuso sexual, entre outros. função das opções e das realidades de cada
2 https://unric.org/pt/declaracao-universal-dos-direi- Só em 2009 é aprovada na Assembleia da contexto educativo, desde a educação pré-
tos-humanos República a Lei n.º 60/20096 que estabele- -escolar ao ensino secundário (…)” (p. 6). Este
3 http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relatorio-cairo.pdf
4 http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploa- referencial pretende orientar os profissionais
ds/2013/03/declaracao_beijing.pdf 6 Lei nº 60/2009, de 6 de agosto. Estabelece a aplica- na promoção e educação para a saúde, con-
5 https://www.unicef.pt/media/2766/unicef_convenc- ção da educação sexual nos ensinos básico e secun-
-a-o_dos_direitos_da_crianca.pdf dário. 7 Ver nota 1.

83 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO

tribuindo desta forma para o desenvolvimen-


to integral das crianças e jovens, tornando-os
cidadãos mais ativos e responsáveis.
Nas OCEPE (1997), nos temas incluídos na área
de conteúdo de Desenvolvimento Pessoal e
Social abordam-se questões da sexualidade
sem que sejam efetivamente referidas. Temas
como valores e desenvolvimento da identida-
de são explorados de forma pouco objetiva da
perspetiva da educação sexual.
Apesar de as últimas OCEPE não referirem
também, explicitamente, a educação sexual,
organismos internacionais como a UNAIDS,
UNFPA, UNICEF e OMS apresentam uma
proposta, “Orientação Técnica Internacional
sobre a Educação em Sexualidade” (2018),8
consistente para a elaboração de programas
em educação sexual desde a educação pré-
-escolar. O documento publicado pela UNES-
CO desde 2010 apresenta um currículo através
de oito eixos/temáticas destinados a crianças
e jovens dos 5 aos 18 anos de idade, sugerin-
do que deverá ter continuação na educação danças também em resposta a todas as De forma lúdica e através de inúmeros mate-
ao longo da vida. mudanças sociais. Se, antes, educar para a riais, é possível dar resposta às dúvidas das
Para Calderone e Ramey (1986),9 as bases da sexualidade via os seus objetivos na preven- crianças de forma responsável e adequada.
educação sexual da criança têm o seu início ção de riscos, infeções e gravidez, hoje a pre- Seguindo o exemplo de vários países do mun-
na primeira infância, através da relação que venção importante, por exemplo, da violência do,10 concluímos que o trabalho de educação
se estabelece entre a criança e os cuidadores, baseada no género é trabalhada através da sexual começa com as crianças destas idades
nas respostas às suas necessidades básicas, educação sexual formal. No último guia da com resultados muito positivos. À semelhan-
de que são exemplos a alimentação e os afe- UNESCO (2018), o eixo do tema “género” foi ça de outras áreas, a prevenção deve começar
tos. Assim, quando a criança é cuidada e vê reforçado tendo em conta as consequências desde tão cedo quanto possível e, tendo em
respondidas as suas necessidades cria uma graves que a violência baseada no género tem conta todas as aprendizagens importantes
rede de segurança muito importante para o principalmente nas meninas. O acesso à Inter- durante o pré-escolar, considera-se um enor-
seu crescimento físico e emocional. Razão por net, a crescente erotização precoce e acesso me desperdício não se aproveitar esta fase
que os profissionais de educação de infân- à pornografia e conteúdos violentos reque- tão importante do desenvolvimento para in-
cia são agentes privilegiados neste contacto, rem que exista uma abordagem que apoie a vestir na nossa saúde e felicidade.
pela relação próxima que têm com a criança. criança na compreensão do que a rodeia.
A capacidade para a intimidade e para a con- A educação sexual assume-se hoje como
fiança estabelecidas na infância irá influenciar uma parceira importante para a promoção da 10 Spring Fever (Rutgers, Holanda), https://www.rutgers.
as relações futuras na assunção de responsa- saúde das crianças e, devido à sua relevância, international/springfever; Educação Sexual Integral
bilidades que privilegiem o seu bem-estar e o deve ser reforçada a capacitação junto das Cuaderno de ESI para la Educación Inicial, http://
www.bnm.me.gov.ar/giga1/documentos/EL002083.
dos outros. famílias e profissionais de educação de in- pdf, Uruguai ( Consejo de Educación Inicial y Primaria
Os temas da educação sexual têm tido mu- fância. A exploração destes temas requer que (CEIP), Guidelines for Comprehensive Sexuality Edu-
também estes se sintam confortáveis e bem cation (América https://siecus.org/resources/the-
8 https://www.unaids.org/sites/default/files/media_as- -guidelines)
set/ITGSE_en.pdf preparados para as questões cada vez mais
9 Calderone, M. S. & Ramey, J. W. (1986). Falando com complexas apresentadas pelas crianças.
seu filho sobre sexo. São Paulo: Summus.

84 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO
Funções e objetivos do educador de infância na hospitalização da criança
Inês Isabel Lopes Simão Barroso . Educadora de infância no Serviço de Pediatria da Unidade Local de Saúde de Castelo
Branco

A educação de infância é a primeira etapa ž Espaços próprios, zonas de brincar para relacionadas com a hospitalização.
na educação, que fundamenta e desenvol- as crianças e salas de estar para os ado- Atualmente, na hospitalização infantil, com
ve competências na criança. Dependendo lescentes. as exigências de humanização dos cuidados
da idade da criança, o educador de infância ž Educador de infância/animador perma- hospitalares, é cada vez mais frequente a
deve pensar em estimular as diferentes áreas nente, envolvido também na informa- inserção do educador de infância na equipa
do saber cognitivo, linguístico, motor, senso- ção às crianças e acompanhantes no multidisciplinar. Deste modo, a hospitaliza-
rial, entre outros. âmbito do trabalho de equipa multidis- ção pediátrica deve obedecer a um conjunto
Deve proporcionar momentos lúdicos sem- ciplinar. de normas que regulem a atenção especial
pre com uma perspetiva educativa e peda- A intervenção que se faz com uma criança que deve ser dada à criança. Cada criança ao
gógica, tendo consciência das limitações e hospitalizada pretende criar uma interação ser hospitalizada sente necessidade de obter
objeções das crianças, propiciando vivências participativa nas atividades lúdico-pedagó- respostas para as suas questões. A hospita-
adequadas a cada uma delas. Assim, o papel gicas e no jogo simbólico. Aparentemente, lização significa uma mudança drástica para
do educador de infância é inquestionável no a ação a exercer é complexa. No entanto, ao a criança, bem como para família, sendo a
que respeita ao desenvolvimento e apren- relativizar as situações elas tornam-se me- ação do educador de infância importante
dizagem de uma criança. O profissional de nos agressivas, acalmando medos e colocan- para minimizar a dor afetiva relativa à mu-
educação de infância não está ligado so- do em prática as planificações. O acolhimen- dança, ajudando na adaptação, integração e
mente às creches e jardins de infância, mas to num serviço de pediatria pretende sempre socialização no Serviço de Pediatria.
a onde haja equipas multidisciplinares e de facilitar a integração das crianças num am- Assim, é importante conhecer as funções e
intervenção, nomeadamente em âmbito biente estranho, criando laços com os pro- objetivos do educador de infância no Serviço
hospitalar, integrando equipas de saúde nas fissionais, permitindo esclarecer de uma for- de Pediatria e compreender a sua importân-
unidades pediátricas. ma simples todas as dúvidas e apreensões cia nestes ambientes.
Em 1997, o Ministério de Educação publicou
as Orientações Curriculares para a Educação
Pré-Escolar, fazendo que o papel do educa-
dor fosse clarificado e valorizado, dando di-
retrizes para o trabalho de campo. No entan-
to, ainda não há muito material pedagógico
que nos elucide a nível hospitalar, conside-
rando a quase inexistente investigação nesta
área tão específica.
É importante referir que, apesar de tudo,
existe reconhecimento da importância da
presença do educador de infância no hos-
pital, tendo em conta que a brincadeira, as
atividades lúdico-pedagógicas são “psicote-
rapias” e mecanismos colaborantes no tra-
tamento, colmatando simultaneamente as
necessidades educativas das crianças hospi-
talizadas. Assim, a intervenção destes profis-
sionais é importante para facultar vivências
lúdicas e emocionais, de modo a melhorar a
qualidade da hospitalização infantil. Segundo
a Comissão Nacional de Saúde da criança e
adolescente (2009) devem existir condições
de internamento adequados a este grupo
específico, nomeadamente:

85 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: ARTIGO

A hospitalização da criança que ajuda a tornar penosa a situação de manência no hospital, as crianças têm neces-
Quando um adulto é hospitalizado, esta- internamento. sidades educativas e direitos específicos da
mos perante uma situação quase sempre As crianças hospitalizadas encontram-se hospitalização que abrangem a escolarização
marcante para esse doente, também no que sempre em situação vulnerável porque e o brincar.
diz respeito às condições sociais e afetivas. o ambiente traumático fundamenta isso A educação é um direito de todos e um dever
Quando a hospitalização se refere a uma mesmo. A equipa profissional tenta des- de cada um de nós. Assim, as funções do
criança, a carga é ainda mais penosa, uma mistificar os sentimentos negativos em prol educador de infância no hospital, nomeada-
vez que se alteram todas as suas rotinas da convivência e exploração ambiental. Os mente no Serviço de Pediatria, passam por
diárias, que serão substituídas durante o profissionais de saúde e integrados nas implementar e proporcionar experiências
internamento. Segundo Redondeiro (2003), unidades pediátricas têm consciência de educativas e pedagógicas para as crianças
as rotinas das crianças hospitalizadas são que as crianças têm a capacidade de en- e adolescentes hospitalizados. A brincadei-
distintas da realidade quotidiana. No en- tender o que se passa com elas, integrando ra e as atividades lúdico-pedagógicas são
tanto, os tempos devem ser ocupados para a sua condição de doentes, relativizando a um meio para atender às necessidades das
minimizar os efeitos da hospitalização e hospitalização e não os cuidados. crianças.
estimular o desenvolvimento da criança. O O educador de infância deve proporcionar
internamento leva a quebras nas atividades As funções do educador de infância um ambiente acolhedor, propício ao mundo
da vida diária, como por exemplo ir à escola, no hospital lúdico, auxiliando a brincadeira e a imagina-
jogar, estudar e relacionar-se com os pares. Todo o tipo de hospitalização requer aten- ção, devendo ainda utilizar a intervenção do
A criança depara-se com atuações e regras ção, pois é uma fase de especial sensibilida- lúdico e da pedagogia como meio catalisador
distintas daquelas a que está habituada, o de. Independentemente do período de per- nas situações de internamento.
Além das funções já referidas anteriormente
e que são da competência do educador de
infância no hospital, são também de refe-
rir os apoios psicológicos dados, ainda que
de forma indireta, às crianças e à família.
Os seus objetivos são conseguir atender às
dificuldades das crianças hospitalizadas, mi-
nimizando medos e angústias, facilitando o
seu desenvolvimento pessoal e educacional.
As atividades em contexto hospitalar são
realizadas nas salas destinadas a esse efeito,
podendo também ser praticadas nas enfer-
marias, dependendo da patologia da criança
e da facilidade ou não que a mesma tem em
se deslocar. De referir ainda que uma das
funções do educador de infância no hospi-
tal passa por conhecer, observar, colaborar e
trabalhar diretamente com a família da crian-
ça hospitalizada. É através da família que o
educador conhece a criança, facilitando as-
sim a interação e planificação de atividades,
uma vez conhecidas as suas limitações, obje-
ções e gostos pessoais.
No hospital o profissional de educação de
infância tem ainda a função de auxiliar a
criança na sua integração dentro das unida-

86 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


des pediátricas, através da ludicidade, otimi- no hospital é parte integrante da equipa de – Desde a fundação da Nacionalidade até ao fim do
regime de Salazar-Caetano. (4ª ed.). Lisboa: Funda-
zando a hospitalização, facilitando as intera- saúde, propondo soluções que facilitem e ção Calouste Gulbenkian.
ções com os seus pares a nível físico, social e possibilitem a integração da criança hospi- Ciornai, S., (2005). Percursos em arteterapia. São
afetivo, bem como mental e psíquico. “Brin- talizada, prestando-lhe um atendimento per- Paulo: Summus editorial.
Cohn, C., (2005). Antropologia da criança. Rio de Ja-
car” torna-se especialmente indispensável sonalizado, num ambiente adequado à pato- neiro. Jorge Zahar.
quando a criança se encontra hospitalizada. logia que levou à hospitalização. Esta ação Comissão Nacional de Saúde Infantil., (1993). Relató-
Mesmo assim, é importante sublinhar que a poderá ser executada nas salas de tratamen- rio da Comissão Nacional de Saúde Infantil. Lisboa:
Ministério da Saúde.
“brincadeira” não é apenas deixar fazer sem to, nas enfermarias ou na sala de atividades. Crefaldi, M., (1999), Hospitalização na Infância, Re-
qualquer tipo de orientação. As atividades a desenvolver são preparadas presentações Sociais da Família sobre a Doença e a
Cada “brincadeira” ou atividade pedagógi- e planificadas numa ótica pedagógica e pre- Hospitalização de Seus Filhos (taubate) São Paulo,
Cabral.
ca deve ser pensada para as condições em ferencialmente personalizadas, sendo desen- Cunha, M. L., (1996). A Escola e o Hospital: uma
que a criança se encontra durante a hospi- volvida uma proposta lúdico-pedagógica de análise comparativa. Braga: Universidade do Minho:
talização. A criança deve ser estimulada no acordo com os padrões de desenvolvimento Escola de Economia e Gestão.
Doverty, N., (1994). O uso terapêutico da brincadeira
sentido de explorar o mundo que a rodeia da criança. no Hospital. Revista Nursing.77. pp. 12 -15.
naquele preciso momento e para entender Ao longo de todo o internamento o educa- Fuente, A., e Belver, M., (2005). Los niños en los hos-
que, apesar de estar a enfrentar um interna- dor interage com os pais/família no sentido pitales. Salamanca: Ediciones témpora.
Guillén, M., e Mejía, A., (2002). Actuaciones educati-
mento e uma doença, há momentos lúdicos de ajudar a compensar as crianças a nível vas en aulas hospitalárias – Atención escolar a niños
e propícios à realização de atividades. académico, pedagógico e social, promoven- enfermos. Madrid: Ediciones narcea.
do e ajudando no desenvolvimento da auto- Hohmann, M., e Weikart, D. P., (2003). Educar a
Criança. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Objetivos do educador de infância confiança para a sua recuperação. Hugues, F., (1999). Children, Play and development.
no hospital Como conclusão, podemos afirmar que o (3ª ed.) Estados Unidos da América.
Os objetivos do educador de infância a nível educador procura minimizar o sofrimento Jorge, A. M., (2004). Família e hospitalização da
criança. Loures: Lusociência.
hospitalar diferem dos objetivos que este causado pela hospitalização, encorajando a Martínez, C., (1990). Comprension infantil de la enfer-
profissional tem em relação ao jardim de criança no tratamento clínico, apoiando-a madad – Un estúdio evolutivo. Madrid: Ediciones de
infância, uma vez que a criança se encon- pessoal e educacionalmente, promovendo la Universidade Autonoma de Madrid.
Spodek, B., (2002). Handbook of research on the
tra numa situação adversa. O educador de a sua participação na elaboração de ativi- education of young children. New York: Fundação
infância deve proporcionar bem-estar, moti- dades. A ajuda na adaptação, integração e Calouste Gulbenkian.
vando as crianças doentes para a educação socialização no meio hospitalar, com toda a Thorndike, R. L., (1973). Reading comprehension,
education in fifteen countries: An empirical study.
e para a aprendizagem, assim como para a equipa de saúde, são funções que lhe estão New York: John Wiley.
brincadeira. diretamente confiadas. Trianes, M., (2003). Estrés en la infancia – Su preven-
A prática destes profissionais deve ser exer- ción y tratamento. Madrid: Ediciones Narcea.
Valladares, A., (2004). Manejo arte terapêutico no
cida através da ludicidade, contribuindo tan- pré-operatório em Pediatria. Revista Eletrónica de
to para a aprendizagem como para o desen- Enfermagem, V. 6, Nº 1.
volvimento da cura, através de um trabalho BIBLIOGRAFIA
lúdico, completo e inovador envolvendo e Azevedo, M., (1999). Papel e importância do lúdico
para profissionais de saúde: Análise de jogos e brin-
integrando as crianças o mais possível no cadeiras em um contexto hospitalar. Dissertação de
meio hospitalar. Uma das funções do edu- Mestrado: Londrina.
cador de infância no hospital é utilizar a edu- Barros, L., (2003). Psicologia pediátrica: perspetiva
desenvolvimentista (2ª ed.). Lisboa: Climepsi.
cação, a aprendizagem e a ludicidade como Bártolo, E., (2007). Formação em contexto de tra-
meios humanizadores no que respeita à prá- balho no ambiente Hospitalar, Lisboa: Cadernos
tica educacional e pedagógica no hospital, Climepsi de saúde.
Carmoy, R., (1997). Le Psichologue Clinicien dans un
contribuindo assim para o restabelecimento Seurice de Clinique pour Enfant e Adolescents, In Le
da criança hospitalizada, tendo sempre em Metier de Psychologue Clinique, Paris, Nathan.
conta o tempo necessário para fazer a sua Carvalho, M., (1996). A Enfermagem e o Humanis-
mo, Braga, Edição Luso-Ciência, Edições Técnicas e
integração e socialização com toda a equipa. Científicas, Lda.
De referir ainda que o educador de infância Carvalho, R., (2008). História do ensino em Portugal

87 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: DIVULGAÇÃO
Vitória, vitória, todos temos direito a uma história
Fernanda Freitas . Presidente da Associação Nuvem Vitória

Há coisas às quais não conseguimos atribuir mos no nosso voluntariado é o 6º: “Direito Depois de um período piloto que ocorreu
um preço devido ao valor que têm. Uma ao amor e à compreensão por parte dos pais entre outubro de 2016 e março de 2019,
boa noite de sono é uma delas. Imagine ser e da sociedade.” Porque contar uma história com intervenção no Serviço de Internamen-
criança e a noite ser passada num hospital. é um ato de amor. to Pediátrico do Piso 6 do Hospital de Santa
Não é uma ideia simpática, mas é a realidade E contar histórias de embalar a crianças que Maria, a Associação cresceu e aumentou a
de muitas crianças. Ao pensar nelas – e nos estão em hospitais tem sido o trabalho vo- equipa e o espectro de ação, atuando agora
seus cuidadores que também acabam por luntário de um conjunto de pessoas que dão em três pisos deste mesmo hospital. A área
estar “internados” – decidimos trazer para a vida à Associação Nuvem Vitória, que cofun- de intervenção também tem vindo a aumen-
Pediatria a magia dos contos de embalar à dei em 2016. tar: estamos, atualmente, no Hospital de São
hora de deitar. Quisemos criar um projeto inovador, que João no Porto, no Hospital de Vila Franca de
Quando, em 2011, presidi ao Ano Europeu do proporcionasse uma noite de sono recupe- Xira e no Centro de Medicina de Reabilita-
Voluntariado, consegui ter um retrato bas- radora para que as crianças se sintam o mais ção de Alcoitão. No ano passado, chegámos
tante fiel do que é a realidade do volunta- confortáveis possível num espaço que não a Braga e a Leiria – esta última, no âmbito
riado no nosso país. Percebi sobretudo que é o seu ambiente familiar. Por outro lado, do Portugal 2020 (Portugal Inovação So-
são muitas as pessoas que, em Portugal, temos procurado também estimular o envol- cial) – e ainda ao Hospital Garcia de Orta,
tomaram a decisão de dedicar parte do seu vimento dos pais, familiares e cuidadores na em Almada, e ao Hospital de Cascais. Para
tempo aos outros, sem esperar nada em tro- área da leitura e da narração oral em diferen- a estatística, estão as mais de 54 400 his-
ca, a não ser um sorriso. Comecei a designar tes contextos, procurando com isto elevar o tórias contadas em mais de 22 mil horas de
esta “recompensa” como o nosso “salário nível de literacia das populações. voluntariado, impactando aproximadamente
emocional”: aquele que não se deposita em Desde sempre, este projeto teve caracterís- 33 000 internamentos.
nenhum outro banco que não o dos afetos, ticas únicas, enquadrando, pela primeira vez Para se poder contar histórias em ambien-
da boa vontade e do amor. em Portugal, o conceito de voluntariado em te hospitalar temos de conhecer e cumprir
E é por isso que, de todos os direitos con- ambiente hospitalar pediátrico e, simulta- escrupulosamente uma série de regras e ter
sagrados na Declaração sobre os Direitos da neamente, em período noturno (das 20 às uma conduta que deve ser exemplar: um
Criança, sinto que aquele que mais trabalha- 22 horas). ponto fundamental e que toca nos direitos

88 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


das crianças, é o facto de todos respeitarmos
a individualidade dos doentes e a privacidade
da família – só sabemos o primeiro nome e a
idade da criança, não precisamos de detalhes
da sua patologia. Só necessitamos de saber
se a criança nos autoriza a entrar e que tipo
de história prefere.
Como voluntários, acreditamos na capacida-
de que contar uma história tem para propor-
cionar um sorriso a uma criança e com isso
melhorar o final do seu dia. Contar e escutar
histórias é um momento mágico; estimula a
imaginação e ajuda as crianças a descobrir
outros lugares, outros tempos, permitindo-
-lhes viajar para outros mundos.
Cada voluntário já tem uma mão cheia de
histórias pessoais ligadas ao projeto: desde a
criança que de manhã dissera à mãe: “Ainda
bem que vou para o hospital porque estão
lá as nuvens” ou o bebé de 7 dias que parou
de chorar quando ouviu uma suave lengalen-
ga, perante o olhar incrédulo do pai, até à
menina que, assim que chegámos, pediu à
mãe para ligar à sua melhor amiga, para que
juntas pudessem ouvir a história da Nuvem. descansa durante a noite responde melhor
Também há internamentos longos, em que aos tratamentos. E está mais serena e feliz. É
as crianças já pedem determinados livros e, nesta felicidade que assenta a Nuvem Vitó-
esses, não faltam nos sacos das nuvens do ria: queremos por isso chegar a muitas crian-
dia seguinte; e miúdos que querem um saco ças que, longe de casa e por vezes sozinhas,
igual ao nosso para “ser nuvem na escola”. têm, mesmo assim, o mimo de uma história
Há muitos meninos que nos dedicam dese- ao deitar.
nhos e outros que se inspiram nas nossas Atualmente contamos com o apoio de 540
histórias para escrever as deles. Como a I., ”nuvens” em todo o país, 540 pessoas incrí-
que tem sempre um poema para partilhar veis que dão algumas horas do seu tempo
connosco. (normalmente dedicadas ao jantar com a
As histórias ligam-nos também às famílias. família) para levar esta magia às pediatrias.
Lembro-me, por exemplo, de um pai de um As histórias são ferramentas essenciais para
bebé de cinco meses, internado há várias se- a construção da identidade e dos valores da
manas, que só se ia embora depois de nós criança. Todos acreditamos no poder desta
chegarmos porque tinha a certeza de que ação e sabemos que não há nenhuma crian-
iríamos adormecer o seu pequenino. Temos ça que não goste de ouvir uma boa história.
tantas e tão boas recordações! Por cada noi- Acrescentaria que é mesmo um direito, des-
te, trazemos connosco mais histórias do que de que nascemos.
aquelas que levamos nos sacos.
Dormir é o melhor remédio. Agora consegui-
mos perceber que uma criança internada que

89 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: NAS BANCAS: INFÂNCIA
Devaneios Poéticos de um Bebé de Ana Mourato, edição: Ninho de Papel, setembro de 2020. isbn: 978-989-33-0673-4
O Peixe Arco-Íris de Marcus Pfiste , edição: Kalandraka, julho de 2020.  isbn: 9789897491214
A Menina com os Olhos Ocupados de André Carrilho, edição: Bertrand Editora, julho de 2020. isbn: 9789722539340

A menina com os olhos ocupados não vê a


carrinha dos gelados, os cãezitos com que
Narrativa poética onde as emoções e ex- se cruza na rua, os amigos. Nem sequer vê
pressões da primeira infância são traduzi- girafas, golfinhos, piratas, discos-voadores
das em poesia. Neste livro, nos encontros O brilho das suas escamas iluminava a e montanhas-russas. Até que um dia o te-
com o fio da palavra, tecem-se devaneios água sempre que passava, ao mesmo tem- lemóvel parte-se, ela levanta a cabeça e…
de um bebé. São tecidos apalavrados que po que chamava a atenção dos outros pei- descobre o mundo que tem estado à sua
dão corpo à infância, ao que a torna segu- xes, que o admiravam e lhe pediam para espera!
ra e apta para caminhar na pele da criança brincar com ele, apesar da sua indiferença
e nos lugares do adulto. e vaidade. Porém, tudo mudou quando
o peixe Arco-Íris negou insultuosamente
uma das suas escamas cintilantes a um
peixinho azul que, indignado, foi contar o
sucedido aos seus amigos. A partir desse
momento ninguém quis ter mais nada a
ver com o peixe Arco-Íris e todos lhe vi-
ravam as costas quando se aproximava.
Então, ele ficou só e triste...

Um grande clássico da literatura infantil


sobre a humildade, a generosidade e a
bondade, já traduzido em inúmeras línguas
e agora publicado no nosso país.

90 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


Gosto de ti (quase sempre) de Anna Llenas , edição: Porto Editora, fevereiro de 2020. isbn: 978-972-0-70830-4
?
Luísa - As histórias da minha vida de Luísa Ducla Soares; Ilustração: Ângela Vieira, edição: Porto Editora, junho de 2020. isbn: 978-972-0-72879-1
O Macaco Rabugento de Suzanne Lang; Ilustração: Max Lang , edição: Nuvem de Letras, maio de 2020. isbn: 9789897840074
?.?

Por que será que determinadas caracterís- Quim Panzé, o chimpanzé, está de péssimo
ticas de uma pessoa por vezes  nos agra- humor — sem razão aparente. Os amigos
dam mas outras vezes nos incomodam? dele não conseguem compreender. Como
O Rui e a Rita são muito diferentes um do pode ele estar de mau humor num dia tão
outro. Aceitar as diferenças nem sempre é bonito? Todos o incentivam a levantar a
fácil... Mas quem disse que seria? cabeça, a sorrir, a fazer coisas que os fa-
Este livro destina-se não só a crianças mas No ano em que assinala 50 anos de vida zem felizes. Mas o Quim não aguenta ou-
também a adultos, e convida-nos a com- literária, Luísa Ducla Soares abre-nos a por- vir tantos conselhos e acaba por perder o
preender o que nos diferencia, mostrando ta da sua intimidade ao recordar neste livro controlo. Será que só precisa que o deixem
o efeito mágico dos opostos. momentos da sua vida e da sua carreira que em paz quando fica rabugento? O hilariante
irão fazer as delícias de todos os seus leito- bestseller do New York Times sobre como
res — crianças e não só! lidar com sentimentos inexplicáveis — e o
perigo de os reprimir.
Através de histórias, ilustrações e fotogra-
fias, ficamos a conhecer Luísa: a criança, a
jovem, a mãe, a avó e a escritora. Não são,
naturalmente, esquecidos os mais novos,
inspiradores e destinatários de grande par-
te da sua obra.

91 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


: NAS BANCAS: EDUCAÇÃO
Aprender a ser cigano hoje – empurrando e puxando fronteiras de Mirna Montenegro, edição: Cáritas Portuguesa, junho de 2020.  isbn: 978-
972-9008-74-0
Os Crocodilos Também Choram. Histórias que os animais nos contam sem tugir nem mugir de Javier Gimeno, edição: A Esfera dos Livros,
maio de 2020. isbn: 9789896268862
Defender o Futuro. Manual para o cidadão consciente de Leila Teixeira, edição: Livros Horizonte, junho de 2020.  isbn: 9789722419628  

O estilo de vida atual das sociedades oci-


O livro foi elaborado em torno da ques- dentais está a levar o planeta a um estado
tão central “como se aprende a ser cigano de rutura: quanto mais extraímos, produ-
hoje”, partindo do pressuposto que, desde zimos e consumimos, mais frágil se torna
a “Revolução dos Cravos” do 25 de Abril de e mais comprometido fica o nosso futuro
1974, algumas medidas de política social — assim como o das próximas gerações.
foram introduzidas em Portugal, provo- Sabe por que choram os crocodilos? Todos temos direito a viver num planeta
cando algumas mudanças na organização E porque é que os chimpanzés sorriem? saudável e com um ambiente sadio, assim
social cigana, medidas de política social e Imagina macacos numa farra ou um ele- como o dever de o proteger e de lutar para
de habitação cujas implicações foram pre- fante fora de si porque quer comer deter- que isso aconteça. Diminuir o consumo e
senciadas nas comunidades ciganas e sub- minados frutos? tentar viver com o mínimo desperdício pos-
sequente compulsividade da escolaridade sível são duas das coisas que pode come-
obrigatória. Concretamente, pretendeu- Neste original e divertido livro, Javier Gi- çar a fazer já hoje, mas será que bastam?
-se saber i) que mudanças ocorreram e se meno, naturalista e biólogo-conservador Ao longo das páginas deste livro vai ficar a
as comunidades ciganas têm consciência no parque natural de Faunia, localizado em conhecer os principais problemas de cariz
delas; ii) se estas foram profundas e/ou Madrid, revela-nos as histórias que os ani- ambiental da atualidade e perceber que,
superficiais, conjunturais e/ou estruturais; mais contam, sem tugir nem mugir: singu- para conseguirmos viver em comunhão
iii) e, por fim, desvelar contornos da "lei laridades, curiosidades e anedotas de um com o planeta, precisamos de alterar de
cigana" que enforma a(s) cultura(s)(s) a mundo apaixonante. forma estrutural o nosso modo de estar na
braços com a tensão entre a tradição e a vida - Mas não deixe que isso o assuste. Em
modernidade, nos seus processos de pre- . Defender o Futuro - Manual para o Cida-
servação, manutenção e mudança, visando dão Consciente vai encontrar dicas simples
captar a convivência dialética entre con- e práticas que o irão ajudar a adotar novas
servação e mudança através da aborda- mudanças e comportamentos rumo a um
gem da sua complexidade. Abordaram-se mundo mais sustentável, para que também
conceitos de fronteiras, complexidade e possa ser um herói pelo planeta. Mas, mais
construção de identidades múltiplas, pes- que mostrar os problemas, é um livro que
soais e sociais, assente na ideia principal apresenta soluções e que o guia pelos ca-
da aprendizagem experiencial na formação minhos a seguir. Afinal, está do seu lado
de adultos. Nesse processo, conclui-se dar o primeiro passo. Aceita o desafio?
que se aprende a ser cigano hoje empur-
rando e puxando fronteiras sem as abolir.

92 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


A Nação das Plantas de Stefano Mancuso, edição: Pergaminho, fevereiro de 2020. isbn: 9789896875961
?
Salvar o Planeta Começa ao Pequeno-Almoço de Jonathan Safran Foe , edição: Objectiva, junho de 2020.  isbn: 9789897840470
Não Há Planeta B. Dicas e truques para um ambiente sustentável de Carmen Lima, edição: Edições Chá das Cinco, março de 2020. 
?.?
isbn: 9789897103612

Está nas nossas mãos ajudar a mudar o


rumo do Planeta. E se é verdade que as
grandes mudanças conjunturais são fun-
O novo bestseller de Stefano Mancuso é Um apelo urgente e impossível de ignorar damentais para garantir a continuidade da
uma apologia, e também um manual prá- que nos força a abrir os olhos e a mente espécie humana, igualmente importantes
tico e a explanação de uma filosofia de para o estado de emergência climática que são as medidas adotadas por cada um de
vida sobre o significado mais profundo e vivemos hoje. nós. Reduzir o consumo de recursos, au-
abrangente da ecologia. mentar a eficiência energética e o recurso a
A nação mais importante e poderosa do Jonathan Safran Foer, um dos mais brilhan- energias renováveis, optar por sistemas de
mundo é também a menos ouvida e repre- tes, originais e promissores escritores da mobilidade suave ou adotar a política dos
sentada: a das plantas. Os anos mais re- sua geração, sabe que é da maior gravidade 5R na gestão dos nossos resíduos urbanos
centes têm visto um assustador aumento a crise ambiental que vivemos hoje, e que é são pequenos gestos que nos tornam mais
da primazia dos interesses financeiros (ou vital o envolvimento de todos nós na solu- responsáveis em termos ambientais.
da negligência política) sobre a proteção ção deste problema.
ambiental - com resultados desastrosos Mas, para reduzir a pegada ambiental, o
evidentes para todos, mas sofridos sobre- Por isso, escreveu Salvar o Planeta Come- mais importante é estarmos preparados
tudo pelos mais vulneráveis. ça ao Pequeno-Almoço. Porque é urgente para pensar, comprar e até comer de for-
conhecermos os números, mas mais impor- ma diferente. Porque todos os pequenos
Nesta obra fascinante e reveladora, o au- tante ainda é sentirmos que eles têm um gestos são importantes, como a produção
tor de A Revolução das Plantas explica efeito direto nas nossas vidas e, sobretudo, deste livro em papel reciclado.
como, mais que nosso dever, é do nosso que cada um, individualmente, apesar da
interesse zelar pelo continuado bem-estar nossa humana relutância em mudarmos os
desta nação… até porque, por muito que nossos hábitos, pode fazer um mundo de
achemos que pertencemos a outro reino, diferença.
a verdade é que estamos irrevogavelmente
enraizados nesta Nação das Plantas.
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93 Cadernos de Educação de Infância n.º 120 Maio/Ago 2020


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