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«Uma das lições da Covid-19 é que a catástrofe

não está, a priori, excluída»1


Crônica

Stéphane Foucart2
Embora a pandemia, no final das contas, deverá ser controlada, os grandes perigos ambientais
geram uma lenta deriva, a qual tudo leva a que será sem volta, alerta em sua crônica Stéphane
Foucart, jornalista do « Monde »
Publicado em 02.01.2021.
Crônica.
O ano que acabou permanecerá como o ano da distopia, aquele em que as notícias cotidianas
nos pareceu saírem de um romance de antecipação. Assim como a transformação das experiências
cotidianas das mais banais – caminhar pelas ruas no meio de uma multidão mascarada, saldar
colegas com os cotovelos, não entrar em lojas sem antes fazer abluções com álcool-gel – parece
carregada de irrealidade. Repetir isso não é muito original: a pandemia de Covid-19 não somente foi
o maior fato do ano que se acabou, como também foi o acontecimento que mais marcou a marcha
do mundo desde a segunda guerra mundial.
O mais perturbador é que essa distopia em que nós vivemos doravante, parecia impensável
para a maioria de nós há até muito pouco tempo, embora ela já fosse considerada de longa data
como uma possibilidade, ou até como algo bem provável, para a comunidade científica competente.
Mas quem teria levado a sério, há apenas 18 meses, um discurso alertando sobre a
emergência de uma infecção respiratória capaz de se propagar pelo conjunto do globo em algumas
semanas, de matar mais de um milhão e oitocentos mil indivíduos em menos de um ano, de jogar
milhões de outros na pobreza, de fazer o preço do petróleo cair abaixo de zero, de obrigar governos
a confinarem simultaneamente mais da metade da humanidade e a reduzir de maneira extraordinária
as liberdades individuais – até a proibição das famílias visitarem seus doentes e, de fato, aos
parentes e amigos de se reunirem para celebrar o ano novo?
Quem teria levado a sério uma tal distopia? Não muita gente. Testemunha disso foi o atraso
da maior parte dos responsáveis políticos para fazerem face à progressão da doença, ou ainda a
escolha das autoridades sanitárias francesas, teoricamente os mais bem informados sobre o risco
pandêmico, de jogar fora seus estoques estratégicos de máscaras alguns meses antes da emergência
do novo coronavírus, por razões de economia.

1 Este artigo, publicado originalmente no jornal Le Monde em francês, foi traduzido pela professora Tâmara de
Oliveira, para utilização restrita em cursos de Sociologia I da UFS.
2 Stéphane Foucart tem diploma em jornalismo científico pela École Supérieure de Journalisme de Lille. Ele atua
no jornal francês Le Monde, onde é responsável pelas sessões sobre ciências, sobretudo aquelas ligadas ao meio
ambiente e às Ciências da Terra.
Cenário plausível
Basta entretanto reouvir o curso dado em 18 de fevereiro de 2019 no Collège de France pelo
epidemiologista Arnaud Fontanet (CNAM, Instituto Pasteur), para compreender a que ponto o
potencial catastrófico de uma pandemia parecida com a que vivemos atualmente, já estava presente
no espírito dos pesquisadores que trabalham com o assunto. Evocando a pandemia de 2002-2003
devida ao SARS-CoV-1, Arnaud Fontanet afirmava que não era um alarmista, mas que aquela
pandemia tinha sido “um grande ensaio em relação ao que poderá nos acontecer”. “A gente pode
afirmar que tivemos muita sorte. Se a epidemia foi contida relativamente rápido, foi devido a certas
características do vírus que poderiam ser completamente diferentes”.
Assim, um cenário considerado plausível pelos melhores conhecedores do assunto pode
parecer tão improvável para a maioria de nós que ele é considerado como uma sombria profecia de
“mercadores do medo”. E ser varrido para debaixo do tapete. A catástrofe não é julgada impossível
porque ela seja materialmente impossível, mas precisamente porque ela é uma catástrofe.
Num livro importante publicado há quase duas décadas e que a pandemia da Covid-19
tornou atual, (Por um catastrofismo esclarecido, Seuil, 2002), o filósofo Jean-Pierre Dupuy tomou
Henri Bergson como testemunha para ilustrar essa ideia. Bergson dizia, sobre a primeira guerra
mundial, antes dela ser declarada, que ela lhe parecia “ao mesmo tempo tão provável quanto
impossível – ideia complexa e contraditória que persistiu até a data fatal».
Lire aussi l’entretien avec le philosophe Jean-Pierre Dupuy : « Si nous sommes la seule cause
des maux qui nous frappent, alors notre responsabilité devient démesurée  »
Os detratores da ecologia política costumam criticar sua retórica demasiado e
sistematicamente catastrofista, herdada de certos de seus textos fundadores dos anos 1960 e 1970 –
da La Bombe P de Paul Ehrlich até o célebre relatório do Clube de Roma. E de fato, esse
catastrofismo – bem diferente do de Jean-Pierre Dupuy, mas reinvestido há alguns anos pelos
“colapsólogos” - desserviu provavelmente a causa ambiental. Todavia, uma das lições da Covid-19
é que a catástrofe nunca pode ser completamente excluída.

Acontecimentos inimagináveis
Durante um ano, a Covid-19 nos tem mergulhado num mundo de medo e de solidões, de
perigo e de estranhamento. Mas daqui a um ano, talvez um pouco mais, o mundo provavelmente
terá se desembaraçado da nova doença. Mas os grandes perigos ambientais geram uma lenta deriva
para a distopia, da qual tudo leva a pensar que ela será sem retorno possível.
A gente vê: o aquecimento também contribuiu para os acontecimentos dentre os mais
inimagináveis do ano que passou. Eclipsados pelo novo coronavírus, os incêndios monstros que
abalaram a Austrália entre dezembro de 2019 e fevereiro de 2020 saíram rapidamente dos espíritos,
mais quem poderia acreditar que mais ou menos um quinto das florestas dessa ilha-continente
poderiam queimar em menos de três meses? E que animais selvagens fugindo dos braseiros fossem
procurar socorro – como vimos em imagens horripilantes – junto aos humanos?
Dos grandes incêndios australianos à destruição de dois vales alpinos sob torrentes de lama,
carregando as casas e arrancando dos cemitérios seus mortos, o clima também produz seu lote de
catástrofes cuja brutalidade também parece, cada vez mais frequentemente, sair da ficção científica.
«Quem teria acreditado que uma eventualidade tão extraordinária pudesse entrar no real com tão
pouca dificuldade?», se perguntava Bergson a propósito da Grande Guerra. Esta questão, nós ainda
não podemos deixar de nos colocar.

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