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Jovens lêem, mas não entendem

o que lêem
9 JAN 2022 08:00

Relatório | Ler um texto sem interromper e compreendendo o que se está a ler,


através de cenários mentais e capacidade de pensamento abstracto, é uma
capacidade que se está a perder

Jacinto Silva Duro


jacinto.duro@jornaldeleiria.pt

Numa época onde há cada vez mais oferta de livros infanto-juvenis,


o fenómeno de ler e não compreender o que se acabou de ler, ou não
conseguir destrinçar o tipo de conteúdo, afecta especialmente os
jovens digitais, mas também abrange muitos adultos, enredados numa
nova forma de analfabetismo funcional.

A conclusão é retirada da análise ao Programme for International


Students Assessment (PISA) 2018, cujos resultados foram
apresentados no final do ano passado, mas é igualmente referida por
outros documentos que analisam a prática de leitura entre os jovens.

Por exemplo, a percentagem dos estudantes portugueses que não


sabe distinguir facto de opinião é de 50%, quando a média da OCDE é
de 47%, revela a análise Leitores do séc. XXI: desenvolver
competências de leitura num mundo digital, elaborado a partir do PISA
2018.

“Antes, os jovens liam uma enciclopédia e sabiam que o que estava lá


escrito era verdade. Agora procuram informação [menos fiável] na
internet”, alertou o director da OCDE para a Educação, Andreas
Schleider, durante a apresentação do relatório.
O PISA, realizado de quatro em quatro anos e da responsabilidade da
OCDE, mostra que os jovens em idade escolar gostam cada vez
menos de ler, gastam cada vez menos tempo nessa actividade e não
entendem o que lêem.

“O problema está em gastar demasiado tempo com ‘coisas’ que não nos
acrescentam nada em termos criativos. Os nossos cérebros ficam mais
preguiçosos se fizermos sempre a mesma coisa”

Ricardo Cardoso

Em Portugal, os alunos, em vez de ficção, revistas ou jornais, dizem


que lêem sobretudo chats, notícias curtas online e “sites com
informações”, refere o mesmo documento.

“Sabem ler, mas compreendem sempre o que lêem? Sabem escrever,


mas redigem com clareza, destreza e fluência? Os jovens esperam
que seja a esfera digital a substituir-lhes a inteligência e a contribuir
sem rodeios para a solução de problemas. Limitam-se às mil teclas
que os rodeiam e, se estas não responderem às suas necessidades,
desistem.”

A afirmação é de Luís Lobo Henriques, que, como professor de


Português, tem testemunhado ao longo da carreira o aumento do
número de jovens que não entendem o que lêem.

“Resulta a interpretação incorrecta de textos e mensagens - como se


multiplicam os que não conseguem exprimir por escrito, e claramente,
uma ideia.” O professor dá o exemplo de alunos que lhe dizem que os
livros “pesam muito” e lhes dão sono.

“Precisam é de imediatismo. Não lêem porque são hiperactivos,


querem actividades que lhes espoletem a adrenalina e as emoções.
Pois se nem sequer vêem a família a ler! O adulto não faz, a criança
não reproduz.”
Ana Lázaro, autora de livros e teatro para a infância acrescenta que,
“se passamos a conhecer e usar menos palavras para articular ideias,
edificar pensamentos e construir subtilezas, ficamos menos capazes
de agir perante a realidade, de nos relacionarmos. ‘Desumanizamo-
nos’”.

A autora cita Martha Nussbaum, filósofa e antropóloga, que defende


que as Humanidades e as Artes perderam terreno nos sistemas
educativos, em prol do estudo em exclusivo das disciplinas
relacionadas com produtividade económica.

“Com isso se perde a ousadia da imaginação e a experiência


empática, tão indispensáveis na prática da democracia. No decurso do
meu trabalho com crianças e adolescentes na área artística, consigo
atestar que esta é um movimento que se vem afirmando.”

As palavras, como diz Bettencourt, “não lhes passam por dentro, não
lhes entendem o sabor”.

Ou seja, os jovens preferem uma abordagem mais pragmática para a


obtenção de conhecimento, através do digital? Certamente. Mas será
melhor? A OCDE diz que não.

O organismo cita vários estudos, entre eles o 21st Century Readers:


Developing Literacy Skills in a Digital World, e afirma que “os alunos
que lêem regularmente para se divertir têm mais oportunidades de
melhorar as suas competências de leitura por meio da prática.”

No PISA 2018, um em cada quatro (28%) alunos “concordou” ou


“concordou fortemente” que “ler é um desperdício de tempo”. O
documento alerta ainda que os níveis mais elevados de prazer na
leitura, estão ligados às origens socio-económicas. Os alunos mais
favorecidos lêem mais por prazer, enquanto os menos favorecidos
preferem manter-se afastados dela, enveredando por actividades
intelectualmente mais simples, como o desporto ou “passear pelas
redes sociais”.

“A queda na valorização da leitura pode afectar as competências de


leitura e a equidade, visto que o prazer da leitura medeia a relação
entre contexto socio-económico e desempenho em leitura”, refere o
PISA, revelando que cerca de 49% dos alunos nos países da OCDE
“lêem apenas se for necessário”. No estudo de 2000, eram 36%.

“Contar histórias, ouvir histórias e recriá-las sempre foi um gesto


inerente aos humanos, porque com as histórias conseguimos elaborar
as nossas próprias emoções, contradições, desejos e angústias”,
lembra Ana Lázaro.

Do crédito ao horário

Analfabetismo funcional

Se acredita que ler e compreender o que se leu, nos seus sentidos literal e
figurado, é sobrevalorizado, não se esqueça que um analfabeto funcional tem
dificuldades a preencher uma candidatura de emprego, entender um contrato
para um crédito pessoal, seguir instruções escritas, ler um artigo num jornal,
interpretar os sinais de trânsito, consultar um dicionário, entender um simples
horário dos autocarros ou, já que nos aproximamos de um sufrágio, o
programa eleitoral de um partido

Nem tudo o que está na net é mau


Luís Lobo Henriques diz que o universo multimédia e as redes sociais
agravaram a tendência de fuga ao livro.

“É nesse tão vasto circo que tantos exibem o seu analfabetismo


funcional, a sua iliteracia. Não só multiplicando erros de ortografia,
como de sintaxe ou de descodificação das mensagens redigidas pelos
que manipulam melhor a escrita”, resume.

(…)

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