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9769-Texto Do Artigo-28680-1-10-20201215
9769-Texto Do Artigo-28680-1-10-20201215
Marin
DOI: http://dx.doi.org/10.35499/tl.v14i2
Resumo:
O impulso da presente escrita foi um olhar de Derrida, que parecia ver sem
ser visto, em D’ailleurs Derrida. As palavras-imagens de alguém que já mor-
reu, portanto, de seus espectros, motivam as inquietações que norteiam o
texto. São discutidos os conceitos de fonocentrismo, mal de arquivo e es-
pectralidade, a partir das obras Gramatologia, Mal de Arquivo e Espectros de
Marx, com o objetivo de pensar até que ponto a escrita, em especial a escrita
biográfica, é permissiva aos espectros ou possibilita seu apagamento. Ao fi-
nal, enfatiza-se a questão sobre a intenção do autor que escreve, de garan-
tir a permanência de sua própria existência ou de apontar incansavelmente
para o que permanece refratário à síntese analítica e histórica e à tendência
ao arquivamento.
Palavras-chave: Espectros. Mal de Arquivo. Fonocentrismo. Escrita.
Abstract:
Image-words, biographical writing and the ghosts of
Derrida
The impulse of this writing was a look of Derrida, who seemed to see with-
out being seen, in D’ailleurs Derrida. The words-images of someone who has
died, of their spectra, motivate the concerns that guide the text. The con-
cepts of phonocentrism, archival and spectrality are discussed, based on the
works Of Grammatology, Archive Fever and Specters of Marx. The objective
is to think to what extent writing, especially biographical writing, is permis-
sive to the spectra or makes it possible to erase them. In the end, the ques-
tion about the intention of the author who writes is emphasized: whether
he intends to guarantee the permanence of his own existence or to point
tirelessly to what remains refractory to the analytical and historical synthe-
sis and the tendency to archive.
Keywords: Specters. Archive Fever. Phonocentrism. Writing.
* Docente no Instituto de Educação, Letras, Artes e Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do
Triângulo Mineiro - UFTM. E-mail: aamarinea@gmail.com.
desses conceitos, avançaremos para a dis- da análise de Derrida: a escrita seria, para
cussão da escrita como busca identitária ou Saussure, um “fora’, uma representação exte-
como criação de fantasmagorias, seguida da rior do “pensamento-som” (DERRIDA, 2017,
questão relativa ao interesse de Derrida por p.38). Esse tema central de Derrida, no texto
essa escrita. Por fim, voltaremos a nos colo- Gramatologia, é referido com o termo “fono-
car diante do fantasma de Derrida e respon- centrismo”2, a redução histórico-metafísica
der à questão sobre a (im)possibilidade de da escrita à categoria de instrumento subor-
apagamento dos espectros. dinado a uma linguagem plena e original-
mente falada. No entanto, Derrida considera
Rastros, suplementos e a escrita questionável essa redução da escrita à re-
presentação no interior de um pensamento
Iniciemos pela análise que Derrida faz da
que comportou o arbitrário do signo. Coelho
teoria etnológica de Lévi-Strauss, na qual
(2013, p.165) destaca esse reconhecimento
vê ressonâncias do problema da distinção
de Derrida concedido ao brilhantismo saus-
entre fala e linguagem escrita. O foco des-
suriano, na medida em que impediu pensar
sa análise é uma perspectiva que tomaria
o signo como “signo de”, apontando para a
a fala não escrita de povos ditos primitivos
ausência de elo causal entre significante e
como uma fala comunicativa, mas que não
significado, e exigindo pensá-lo no interior
se prestou à escrita, portadora de um senti-
de uma estrutura. É nesse sentido que es-
do restrito e aprisionado nela mesma. Essa
peculará sobre a possibilidade de uma ante-
perspectiva só é possível amparada na ideia
visão de Saussure sobre a inseparabilidade
de inspiração saussuriana: a distinção entre
entre fala e escrita no sistema linguístico,
uma linguagem pura, a fala, e uma linguagem
sendo os argumentos expostos nos capítu-
derivada, que representa a voz presente a si.
los introdutórios do Curso... apenas o meio
Embora Saussure tenha afirmado um siste-
para sistematizá-la.
ma linguístico em que a fala e a escrita são
A esse respeito, Santos (2018, p.480)
instâncias que se imbricam, algumas inter-
destaca a sugestão de Derrida de que “seu
pretações do VI capítulo da Introdução do
texto escreve o que não diz, sugere o que não
seu Curso de linguística geral, Representação
afirma” e “antevê a possibilidade de uma
da língua pela escrita, colocam em destaque
ciência dos signos em geral, não subordina-
um tratamento controverso baseado em sua
da à hierarquia da phoné/logos”. Isso talvez
distinção:
se confirme pelas assertivas que são apre-
A língua e a escrita são dois sistemas dis-
sentadas no avançado da obra saussuriana,
tintos de signos; a única razão de ser do se-
gundo é representar o primeiro [...]. O objeto 2 O termo fonocentrismo é citado no primeiro
linguístico não se define pela combinação da capítulo de Gramatologia. Derrida o apesenta
como “proximidade absoluta da voz e do ser, da
palavra escrita e da palavra falada; esta últi-
voz e do sentido do ser, da voz e da idealidade
ma por si só constitui tal objeto (SAUSSURE, do sentido”. A fala estaria relacionada com uma
2006, p.34). noção de signo que implica a distinção do sig-
nificado e do significante, que “permanece, por-
Logo na sequência dessa consideração, tanto, na descendência deste logocentrismo que
Saussure lembra que o aprendizado da es- é também um fonocentrismo: “Já se pressente,
crita é posterior ao da fala, de forma que se portanto, que o fonocentrismo se confunde com
a determinação historial do sentido do ser em
atribui uma importância à escrita que ela geral como presença” (DERRIDA, 2017, pp.14-
não tem. É essa assertiva o ponto de partida 15).
no capítulo IV, entre as quais, a que enfatiza são conceitual excludente das diferenças,
que o significante linguístico, em sua essên- Derrida sugere a ideia de rastro, ou grama,
cia, “não é de modo algum fônico, ele é in- como uma irredutibilidade a qualquer expe-
corpóreo, constituído não por sua substân- riência, algo que “deveríamos proibir a nós
cia material, mas somente pelas diferenças mesmos de definir no interior do sistema
que separam sua imagem acústica de todas de oposições da metafísica” e que não pode-
as outras” (SAUSSURE, 2006, p.138). Co- ríamos associar a uma “origem do sentido
mentando esse ponto, Mota (1997, p.307) em geral” (DERRIDA, 2017, p.11). O termo,
considera que “a tese do arbitrário do signo, em francês trace, sugere as marcas deixadas
segundo Derrida, é obstáculo mesmo para por uma ação ou pela passagem de um ser
a distinção radical entre signo oral e signo ou objeto (DERRIDA, 2017, p.22). Entenda-
gráfico”, de maneira que Saussure nunca te- mos: quando o discurso já se movimentou
ria pensado a escrita como representação na lógica das oposições binárias, é porque
da língua falada, mas “precisou dessas no- já se assumiu o pressuposto de um sentido
ções ‘inadequadas’ para detectar a ‘exterio- originário que pudesse se desdobrar em isto
ridade’ da empiria gráfica, e também sono- ou aquilo, afirmação ou negação, derivação
ra, relativamente aos significantes”. de significados. A busca desse originário é
Não obstante, a linguagem falada, segun- que justifica a fé no acesso ao ser plenamen-
do Derrida (2017, p.13), estaria sendo con- te presente, fundamento do que Derrida de-
siderada, por muitos teóricos, mais próxima nomina como metafísica da presença.
de uma significação natural do que a escri- Em Gramatologia, Derrida (2017) defen-
ta, que apenas fixaria convenções, estando de que haveria, no modo do logocentrismo,
associada a um caráter derivado, técnico e uma crença na possibilidade de apreensão
representativo. A escrita, diz ele, “não teria do ser do ente como essa presença. Quan-
nenhum sentido constituinte”, sendo a deri- do Derrida fala da presença na perspectiva
vação “a própria origem da noção de signi- do arquivo, em Mal de arquivo (2001), está
ficante”, ao qual ela é associada (DERRIDA, se referindo a essa busca de um sentido ori-
2017, p.14). Tudo se passa como se algo es- ginário que poderia se dar como presença.
condido na fala, um significante puro, uma Quer, por essa via, evitar qualquer tentativa
“substância fônica”, forjasse as diferenças de “restaurar ou explicitar uma ontologia”,
entre mundano e não mundano, fora e den- ou atingir “intuições ontológicas profundas
tro, idealidade e não idealidade, transcen- acedendo a uma verdade originária” (DER-
dental e empírico (DERRIDA, 2017, p.9). RIDA, 2017, p.24).
Como se vê, a própria explicitação de A busca de um sentido originário, no in-
um originário na fala já recai sobre o uso terior da linguagem, resultaria sempre uma
de oposições binárias que caracterizam o remissão interminável a significantes, o que
pensamento ocidental, nas quais se evi- demonstra a impossibilidade de acesso e a
dencia o conflito entre natureza e cultura impertinência de discursos que se pautam
que Derrida denunciará como subsumido na justificativa da presença totalizadora do
no discurso etnográfico, ainda quando as sentido. A fala, segundo Derrida, sempre
ciências humanas pensaram tê-lo superado. foi tomada como mais próxima dos senti-
Contra essa prevalência das oposições biná- dos originários que a escrita, o que identi-
rias, que facilmente conduz a uma dimen- ficará, sem muitos esforços, na filosofia de
ordem social (DERRIDA, 2001, p. 11). Dessa versão clássica do trabalho intelectual pre-
forma, o interesse pelo arquivo já prevê um sente nos discursos da historiografia. Nes-
exercício de poder. sa versão, “o arquivo seria um conjunto de
Poderíamos considerar que o arquivo documentos estabelecidos como positivida-
subtrai algo da vida, constituindo um frag- des, na sua materialidade, e que seria ainda,
mento de história que, uma vez arquivado, na sua pretensa objetividade, o reflexo do
está sujeito ao esquecimento, à destruição. que ocorreu de fato na experiência históri-
Nas conduções psíquicas descritas pela psi- ca”, representando um monumento da tra-
canálise, está previsto esse apagamento da dição (BIRMAN, 2008, p.109). Está no alvo
memória. No arquivamento material, há das discussões derridianas justamente essa
também uma potência destrutiva, colocada ingenuidade de não prever as influências
em ação tanto pelo arquivista, por se utili- do arquivamento, os exercícios de poder
zar do poder de fragmentar o mundo dos fa- nele engendrados, os conteúdos do arquivo
tos e arquivar o fragmento numa espécie de colocados como passados e fixos. Há uma
testemunho incontestável dos fatos, assim virtualidade no arquivo não previsto nesse
como por quem reinterpreta o material ar- conceito, condição coerente com a possibi-
quivado. Em todo processo de arquivamen- lidade de tomá-lo como sujeito à destruição.
to, mantém-se a possibilidade de supres- A distinção entre verdade material e
são de virtualidades que se quer negativar, verdade histórica, retomada do pensamen-
esquecer, colocar em segredo. É para esses to freudiano por Derrida, na análise do ar-
fantasmas que Derrida aponta, querendo quivo, aponta para a possibilidade de des-
ampliar o que o arquivamento, necessaria- mantelamento dessa fixidez do arquivo. A
mente, reduziu no exercício de um mal de verdade histórica poderia ser aventada a
arquivo. cada investida interpretativa sobre o mate-
Para o mal de arquivo, Derrida mesmo rial arquivado, o que, ao mesmo tempo em
apresenta uma definição: “a pulsão de morte que inaugura uma potência de desconstru-
não é um princípio. Ela ameaça de fato todo ção, repete as mesmas tramas da ação ar-
principado, todo primado arcôntico, todo quivística. No comentário de Birman (2008,
desejo de arquivo. É a isto que mais tarde p.116), o arquivista e o intérprete constitui-
chamaremos de mal de arquivo” (DERRIDA, riam, por suas operações de organização e
2001, p.23). Movimenta esse mal de arquivo leitura, a consignação do arquivo. As bases
a aposta no princípio arcôntico que reúne a da psicanálise ampliariam, na direção dessa
busca da origem e a consignação. Tal apos- interpretação, os limites do arquivo:
ta é entendida como a coordenação em um O arquivo não se constituiria apenas de tra-
sistema no qual todos os elementos são re- ços patentes e ostensivos, mas também pelas
unidos em uma configuração ideal (DERRI- múltiplas leituras possibilitadas pela condi-
DA, 2001, p.14). A possibilidade de esque- ção de posterioridade do intérprete e pela
cimento ou do apagamento voluntário que ação das operações do recalque e da repres-
perpassa a lógica do arquivamento configu- são, que transformariam o que é patente em
ra seu caráter de pulsão de morte. latente e virtual (BIRMAN, 2008, p.118).
Para melhor explicitar a problemática Seria preciso admitir uma virtualidade,
do arquivamento, Derrida transita na histó- uma espectralidade, que minimizaria a ilu-
ria e na psicanálise. Pretende questionar a são de pura objetividade do arquivo.
Freud havia suspeitado dessa espectra- Hanold associado à imagem, pela vincula-
lidade, mas não avançou para a suspensão ção com a lembrança dessa figura feminina
da busca de uma originalidade que desse da infância, movimentada por recalques. Há,
significação e ordem aos arquivos na di- no entanto, uma verdade que permanece re-
mensão psíquica. Derrida considera que o calcada no delírio: “a verdade é espectral,
pensamento freudiano tem o mérito de não fantasmática, eis aí sua parte de verdade ir-
negligenciar a espectralidade, os fantasmas redutível à explicação”. Para Derrida (2001,
e assombrações, mas, ao tentar dar conta p.117), isso permite considerar que Freud
deles de modo positivo, tentou conjurá-los. sofreu do mal de arquivo.
Se leva em conta os fantasmas, é para dar Estar com mal de arquivo, não pode signi-
conta deles, explicar e reduzir a crença ne- ficar outra coisa que não sofrer de um mal,
les (DERRIDA, 2001, p.122). de uma perturbação ou disso que o nome
Esse rastro denunciador da busca de “mal” poderia nomear. [...] É dirigir-se a ele
uma verdade no delírio levou Freud a reafir- com um desejo compulsivo, repetitivo e nos-
mar a conjuração do fato ao arquivo. Foi com tálgico, um desejo irreprimível de retorno à
essa disposição que julgou acessar, a partir origem, [...] uma saudade de casa, uma nos-
talgia de retorno ao lugar mais arcaico do
de uma experiência pessoal, a origem de sua
começo absoluto (DERRIDA, 2001, p.118).
própria alucinação. Freud reconheceu expe-
rimentar uma alucinação furtiva, perceben- Toda ciência comporta uma prática ar-
do-se diante de um fantasma: a imagem de quivística e Derrida nos lembra o desenvol-
uma paciente morta que ele pensa ver, para vimento de uma tecnologia apropriada às
logo em seguida perceber que ela apenas suas materialidades: “tecno-ciência, a ciên-
ressurge no corpo de sua irmã viva, que o cia só pode consistir, em seu próprio movi-
procura em seu consultório. mento, em uma transformação de técnicas
Nessa mesma inclinação à busca de uma de arquivamento, de impressão, de inscri-
origem que justifique a espectralidade, na ção, de reprodução, de formalização, de co-
obra O delírio e os sonhos na ‘Gradiva” de W. dificação e de tradução de marcas” (DER-
Jensen, Freud analisa o romance de Jensen, RIDA, 2001, p.26). Lembremos que, nas
Gradiva: uma fantasia pompeiana, onde há ciências que guardam relações com práticas
um jogo entre a imagem e a realidade, na etnográficas, um arquivamento de materiais
atmosfera alucinatória do arqueólogo Ha- advindos de discursos (a fala, a voz) como
nold. Após notar a imagem de Gradiva es- fonte de dados para a interpretação dos fe-
culpida em alto relevo, réplica da obra do nômenos sociais, respeitando o que Derrida
século II, em sonho, Hanold visualizara a aponta como uma analogia entre o fonológi-
morte de Gradiva e seu soterramento nas co e o sociológico, também configura um fo-
cinzas de Pompeia. Inaugura, motivado por nologismo legitimador a uma ciência que se
essa imagem, uma busca arqueológica nas dá como modelo de todas as ciências ditas
ruínas, onde se espanta com a visão de uma humanas (DERRIDA, 2017, p.127).
mulher que associa ao fantasma de Gradi- Consideremos que, também na escrita
va, descobrindo posteriormente se tratar biográfica, esse arquivamento é, por vezes,
de uma mulher real, Zoe, amiga de infância, o norteador de uma reconstituição histórica
por quem nutria sentimentos reprimidos. da existência. Aí também, a espectralidade é
Na análise de Freud, ganha foco o fetiche de furtiva ao mal de arquivo, impedindo qual-
rastros e das fantasmagorias que sempre as artes não discursivas portam sempre dis-
sobrevivem. É nesse sentido que o tema dos cursividade, do mesmo modo que as artes
fantasmas nos permite revisitar o pensa- discursivas portam sempre não‑verbalida-
de: toda a arte, incluindo a arquitectónica, a
mento sobre a escrita com a suspeita de que
escultórica e a pictórica, por natureza mais
o jogo de remessas significantes, que todo rebeldes à palavra e mais muradas no silên-
texto encena, é movimentado pelo encontro cio, está repleta de discursos virtuais (BER-
com espectros. NARDO, 2017, p.62).
O trajeto feito até aqui, originado pela
Derrida admite a invisibilidade em toda
preocupação em esboçar alguns elementos
imagem. As artes nos sugerem o invisível.
centrais da filosofia de Derrida que nos per-
Há um suporte de invisibilidade em todo
mitissem chegar à noção de espectralidade,
visível, defende Derrida em Pensar em não
nos abre, agora, a possibilidade de pensar-
ver. Reforça: se não é visível o que torna a
mos sobre os impulsos da escrita, com ima-
coisa visível, “então uma certa noite vem ca-
gens ou palavras, na literatura e no cinema,
var um abismo na própria apresentação do
como gestação e dispersão de fantasmas,
visível” (DERRIDA, 2012, p.399). É com esse
entre eles, o do próprio Derrida.
traço de invisibilidade que o artista cria. Seu
fazer pressupõe o que Derrida chama de um
Palavras, imagens e
enceguecimento. Há um momento em que
espectralidades o artista que desenha está cego, quando é
Palavras e imagens são equiparáveis, em surpreendido pelo próprio traço, uma “ce-
Derrida, a partir de seus traços de espec- gueira que aflora os demais sentidos”, “que
tralidade. As palavras podem, mesmo, dese- deixa por instantes os conceitos ou pré-con-
nhar imagens. ceitos que formulam o mundo visível para
Pimentel considera que “o texto derri- se entregar ao abismo de uma certa noite”
diano é de uma profusão de reflexos, de pin- (PIMENTEL, 2015, p.183).
turas distendidas em palavras-imagens, de- É assim que o desenhista dá a ver o que
senhos que se assemelham a seus próprios não vê. Ainda quando o desenho é repre-
desenhos de escrita, fotografias que recon- sentativo, o traço escapa ao campo de visão
tam o negativo de sua escrita de imagem” (DERRIDA, 2010, p.52). Memórias de cego: o
(PIMENTEL, 2015, p.184). auto-retrato e outras ruínas é título de uma
A aproximação que a palavra e a imagem exposição feita no Louvre, em 1990-1991,
guardam com a dimensão da espectralidade sob curadoria de Jacques Derrida, em que
justifica a proximidade com que Derrida as inclui desenhos relacionados ao tema da
trata, associando o trabalho de montagem cegueira. Freire destaca do texto derridiano
cinematográfica ao da escrita. Há algo que que a acompanha: “haveria em todo ponto
torna as coisas visíveis, a partir delas, pala- de vista (point de vue) uma espécie de vista
vra e imagens, mas que não é da ordem do nenhuma (point de vue), um invisível consti-
visível, compartilhamento que desestabiliza tuinte de toda visão” (DERRIDA apud FREI-
a classificação das artes entre discursivas e RE, 2012, p.187, grifos da autora).
visuais. Bernardo assim sintetiza essa ideia: Uma escrita sem o apoio da visão se-
Não há arte não espacial, advoga Derrida, ou ria como um desenho de cego: quando se
que não plasme um efeito de espaçamento: escreve sem ver, diz Derrida (2010, p.11),
do a parceira já está morta. Nessa ocasião, matéria espectral através da qual pretendia
ele reflete sobre a sobrevivência da virtua- retornar depois de sua morte?
lidade do filme à morte, dela e futuramente No momento em que me movo por es-
dele, e sobre como o fantasma da própria sas inquietações, me recordo da tela A noi-
Ogier se evidenciou quando reviveu a cena: te estrelada (1889) de Vincent Van Gogh.
“pude então experimentar o sentimento Na apresentação da tela no Museu de Arte
perturbante do retorno do seu espectro, o Moderna, lemos que há, nela, um campo de
espectro do seu espectro reaparecendo para energia turbulenta, de onde se destaca um
me dizer, reaparecendo‑me a mim aqui ago- cipreste conectando a terra e o céu, uma ár-
ra: ‘Agora… agora… agora, sim, acredita em vore tradicionalmente associada a cemité-
mim, eu acredito em fantasmas’” (DERRIDA rios e luto. No site do mesmo museu, há uma
apud BERNARDO, 2017, p.87). série de vídeos de teor quase investigativo
É nesse sentido que Freire sintetiza a que especulam as invisibilidades das telas e
fantasmagoria que a imagem cinematográ- da vida de Van Gogh que, um ano depois da
fica inevitavelmente lança no mundo: “o fil- criação de A noite estrelada, suicidou-se. Há,
me, pode sobreviver a suas mortes e mesmo ao que parece, traços de espectralidade que,
se os dois ainda estivessem vivos, estariam como no caso da experiência derridiana em
já a partir dali, transformados em fantasmas Ghost Dance, se duplicam nos fantasmas
(FREIRE, 2014, p.63). O que fica, na imagem, sugeridos pela noite, ainda que iluminada
é algo como um simulacro de vida, um resto pelas estrelas, e no do próprio artista que já
que permanece, um fantasma. Se palavras e não mais testemunha essa permanência que
imagens comungam espectralidades, o que sua obra inaugurou no mundo.
fica da escrita seria também esse resto, essa No vídeo7, enquanto o narrador descre-
fantasmagoria. ve e especula sobre a vida e a obra de Van
Retomo, a este ponto, o olhar de Derrida Gogh, sua voz é embebida em uma atmos-
na tela de Dailleur’s, Derrida. Tudo parece se fera musical, ela mesma, tomada pela noite
passar como se previsse, naquele instante, a e por suas fantasmagorias. Logo no início,
sobrevida do filme à própria morte e à morte após informar os elementos que compõem
dos espectadores. Saberia que de uma exis- a imagem da tela aqui referida, o narrador
tência escriturística restariam fantasmas menciona o fato da tela ter sido pintada em
que frequentariam espaços, acadêmicos ou um hospício, no ano que antecede a morte
não, alastrando-se em múltiplas reescritas? do seu autor, quando a imagem do quadro
é substituída, na película, pela imagem do
Se não uma clara intencionalidade, podería-
artista, meio que espectral, com foco no seu
mos supor um reconhecimento do inevitável
olhar inquisidor e, ao que parece, melancó-
alcance desses espectros do autor que é, que
lico. Para além dessa aproximação tateante
escreve incansavelmente, inclusive em tom
do olhar para a tela, já pressentimos toda
autobiográfico, e de suas buscas por algo
sua marca espectral.
como um “eu” que permanecerá sendo? Ou
Essas palavras-imagens que tecem frag-
a escrita não carrega qualquer intenciona-
mentos biográficos de Derrida e Van Gogh
lidade. Ou o apego de Derrida à escrita tem
a ver com uma imagem-palavra, ainda que 7 Disponível em: https://artsandculture.google.
com/asset/la-nuit-transfigur%C3%A9e/bgEu-
fantasmagórica, que ele não quer ver borra- wDxel93-Pg?childAssetId=zQFQE2liz3GQ0w&hl
da pelos riscos da fala. Não seria, por fim, a =pt-BR
se recusam a entregar tudo de uma vez por de suas provocações, em uma tentativa de
todas. São silenciadas pelos olhares que conduzi-las a um corpo de conceitos que
já insinuam: não sobreviverei, daqui logo só pudesse ser lido em consonância com
mais, senão como um espectro. algum efeito pragmático. Se não é esse per-
sonagem que se confunde com uma prática
A escrita e demarcação de rastros da referencialidade, é talvez a imprecisão da
Em 1994, Derrida concedeu uma entrevis- espectralidade que deve permear um texto
ta a Betty Milan, de Paris para a Folha, em onde há uma espécie de correspondência
que, por vários momentos, interrompeu a de anseios e pressentimentos, tecido em
fala, alegando não conseguir explanar a con- qualquer escrita não arquivística. O espec-
tento as questões que lhe eram destinadas. tro, em Derrida, é isso que escapa à redução
Momento marcado, obviamente, por algum da síntese teórica e do arquivamento. Voltar
constrangimento e muita dissonância. Não aos espectros pressupõe reconhecer esse
obstante, em uma das suas respostas, falou escape e manter uma “vigilância em relação
de Marx, do espectro de Marx. Esclareceu a certas maneiras que os homens têm na so-
que a obra Espectros de Marx não sugeria ciedade de esquecer, dissimular” (DERRIDA
uma apologia ao retorno das análises mar- apud MILAN, 1994, s/p).
xistas aos nossos tempos, mas o que ficou Segue-se uma entrevista em tom errático
dela como rastro, atemporal. Fantasmas não e parece imperar uma pressão incontorná-
morrem nunca. O que não foi dito sobre o vel sentida pelo entrevistado. As questões
pensamento marxista, o que restou de uma estão escritas nos papéis nas mãos do filó-
apropriação redutora é o que permanece sofo, que as lê, por mais de uma vez, e decla-
como um ruído ao fundo dos discursos teó- ra não ser possível ou viável respondê-las.
ricos e políticos. Uma frase parece resumir seus anseios de
É nesse sentido que afirma não se tratar que aquilo tivesse um fim repentino: “eu es-
de um retorno a Marx, mas de Marx: “ques- crevo tão melhor do que falo...”.
tionar com o espírito de Marx não quer di- Não parece estranho uma frase que, ao
zer reaplicar dogmaticamente a doutrina mesmo tempo em que aponta para o desejo
de Marx, voltar a uma ortodoxia marxista”. de evitar a fala prolixa, reforça o interesse
O retorno a Marx seria como que uma re- pela restituição da legitimidade da lingua-
dução de seus pensamentos àquilo que já gem escrita, minimizada pela prevalência
fora configurado como doutrina marxista, o da fala. Em Gramatologia, como vimos, Der-
que, de alguma forma, significaria, segundo rida cita o fonocentrismo, apontando para
Derrida, “uma maneira de neutralizar Marx, a necessidade de contornar um caráter ins-
de fazer dele um personagem da Academia trumental associado à escrita, distanciada
Filosófica”, de forma que sua leitura do es- do originário e da totalização de sentidos na
pectro marxista pretendia protestar contra fala.
“uma certa desapropriação filosófica de Fala e escrita, visão e audição, dia e noite
Marx” (DERRIDA apud MILAN, 1994, s/p). são oposições binárias que aparecem am-
Nessa sua mesma lógica, será preciso plamente problematizadas nas obras derri-
que Derrida retorne sem ser reduzido a um dianas. Estão conectadas, sendo os primei-
personagem da Academia Filosófica, evi- ros termos – fala, visão e dia – associados à
tando, assim, qualquer redução dos efeitos proximidade do sentido, portanto, à síntese
interminável por um eu. Defende Derrida tralidades. Por fim, haveria possibilidade de
que quem diz poder encontrar algo como apagamento dos fantasmas? Para Derrida,
esse “eu”, já não escreve mais, ou melhor, já os fantasmas persistem e, ainda que se tente
não vive mais. Logo, na sequência, Derrida livrar deles, estão sempre a retornar.
está diante de um grande aquário e comen- Síntese das questões dirigidas a Derrida:
ta a impaciência dos peixes, enquanto a câ- por que falar de si, dar-se à escrita biográfi-
mera se desdobra entre o olhar de uma des- ca, quando já se prevê que ela não carrega-
sas criaturas e o do seu observador. Diz se rá senão espectralidades? O jogo da escrita,
sentir também aprisionado, diante de uma entre a busca de identidade e a insinuação
mirada e, ambos, o humano que é e o não de espectros, parece mais um efeito radica-
humano, fazem a experiência do tempo, de lizador da intenção de povoar a escrita com
formas absolutamente distintas. Assim co- invisibilidades que propriamente de conju-
meça a aparição da espectralidade de Der- rar os fantasmas. Em outros termos, a escri-
rida: partindo do compartilhamento com os ta se constituiria em uma forma de acenar
animais não humanos, passando pelas mar- com a própria existência a busca inglória e
cas do pós-colonialismo e pela violência da interminável de determinações do ser que
tentativa de revelação do secreto, própria esbarra sempre no invisível, não dito, não
dos totalitarismos que forçam a identifica- totalizável, mas que, nem por isso, pode abs-
ção, avançando para a alegoria da circunci- ter-se de deixar marcas, olhares nas telas
são, que denuncia inscrições, como as que que vão inquirir o espectador: “você acredi-
ficam no corpo, chega ao esconderijo do su- ta em fantasmas?”.
blime arquitetado na escrita. Toda escrita, No encadeamento das imagens-palavras
reforça Derrida, é uma forma de resistência em Dailleur’s.., Derrida confessa ter escrito
e suas forças resguardam a possibilidade da muito e ele mesmo se faz a pergunta: por
transgressão. que se escreve tanto? Segue considerando
Nesse momento, em que já enfrenta a ne- que é inevitável se revelar na escrita e que
cessidade do escape das revelações e identi- deve, por isso, pedir perdão, já que não con-
ficações, se encaminha para a impossibilida- segue se defender de uma espécie de pudor
de de escrever um livro sobre as marcas da
de dizer.
circuncisão, que deveria tocar as raízes do
Por que escreves? Parece que você acha que
inconsciente, jamais dadas à plena luz. In-
o que escreve é interessante, [...] o que, de
sistir no intento poderia significar sofrer de uma certa maneira, é absolutamente obsce-
um mal de arquivo. Dessa perspectiva, seria no. O ato de escrever é injustificável desse
impossível também apagar os fantasmas, ponto de vista. Então, pede perdão, como
ainda que fossem ocultados, ignorados e es- alguém que se desnuda e diz “aqui estou,
quecidos. Obliterar não é, necessariamente, olhem” e, naturalmente, pede de imediato
destruir. A escrita tomada por obscurida- perdão: “perdoem-me por me fazer de inte-
ressante” (DERRIDA, 1999, s/p).
des, ainda quando é a escrita de si, sempre
carregará um indeterminado, não revelado, Há também outro motivo para pedir
não identificado, de forma que escrever à desculpas, segundo ele, algo que o inquieta
busca de uma identidade é um movimento sempre, que tem a ver com a marca, a im-
que retroalimenta expectativas, oferecendo, pressão deixada, e com a linguagem: “quan-
a cada nova intenção, um campo de espec- do deixo uma impressão, apago a singulari-
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