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O ABRIGAMENTO DE CRIANÇAS E JOVENS NA PERSPECTIVA

DA FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL
Nívio Gabriel Brito Vieira1

A elaboração deste artigo foi fundamentada e construída na do-se na relação com o outro, constrói o seu – mundo
prática de atendimento clínico realizado na Clínica de Psicologia dando sentido à sua existência e escolhendo viver de acor-
Newton Paiva, no estágio curricular de Psicologia Fenomenológi- do com os seus valores ( o que confere um caráter único
ca existencial Humanista e, mais especificamente, no atendimen- e singular) e responsabiliza-se por si próprio na realização
to de A. e sua vivência no Abrigo. A solicitação pelo atendimento do seu projeto. Assim, a existência individual é uma totali-
psicológico partiu de seus pais adotivos e, inicialmente, era refe- dade, única (singular) e concreta.
rente ao seu desempenho escolar. Em conversas com os mes-
mos, foram trazidas queixas do comportamento de A., tais como Nos relatos sobre sua infância, ela conta que sua mãe não
falar mentiras, pegar objetos alheios e entrar em conflito com os fazia comida para ela e para os seus 11 irmãos, que moravam
outros irmãos, que não são adotados. Durante os atendimentos, em uma casa de quatro cômodos: cozinha, banheiro, o quarto
A. trouxe o desejo de rever a mãe biológica, que ele não via da mãe e o quarto dos irmãos. A mãe comia e não dava para
há mais de 4 anos, desde antes de ter sido adotada. Conforme os filhos e depois que terminava, saia. A. dividia o que sobrava
Winnicott(2000, citado por Rodontaro 2002, p.3): para eles. Quando não tinha nada, ela dava água com açúcar
para os irmãos, relatando que só conseguia dormir depois que
O roubo pode ser entendido como a busca de algo pela todos estavam alimentados. A única pessoa que os ajudava era a
criança, a esperança de ainda encontrar o que procura. avó materna, que morava ao lado de sua casa e sempre levava
Na destrutividade, a criança busca a quantidade de es- biscoito e outros alimentos para eles quando a mãe não estava
tabilidade ambiental que poderá suportar a tensão que lá. A. relata que a mãe saía à tarde e só voltava de madrugada. Ela
decorre de um comportamento impulsivo. (...) A criança dormia na parte da manhã, bebia todos os dias e estava sempre
provoca reações ambientais totais, como alguém que está com um namorado diferente, normalmente homens mais novos
procurando o corpo da mãe, os da mãe(...) do que ela. Inclusive um desses homens, com o qual a mãe se
relacionou, teve uma briga com ela e, durante este acontecimen-
A., nos encontros realizados, mostrou-se bem retraída, to, mostrou os órgãos genitais para os irmãos de A. Ela disse não
sempre se posicionando com os membros bem rentes, as per- ter visto, pois estava atrás dele. A avó viu a confusão e entrou em
nas juntas e os braços junto ao corpo. Falava em tom baixo, contato com o Conselho Tutelar, fazendo a ocorrência, e, no
apenas quando solicitada, necessitando da intervenção constante dia seguinte, algumas pessoas do Conselho foram lá e levaram A.
por meio de questionamentos e perguntas. “Os meninos têm e seus irmãos para o abrigo. Nesta época, a cliente estava com 6
apresentado uma característica comum entre eles, à situação de anos e permaneceu abrigada até os 9 anos, quando foi adotada.
abandono familiar, observando-se em quase todos baixa auto- A cliente contou que ficou com nove irmãos em um abrigo,
-estima” (RODONTARO, 2002). enquanto os dois irmãos mais velhos foram para outro, pois lá
Por outro lado, segundo o que a cliente relatou nos encon- só recebiam jovens com menos de 17 anos. Sempre que possí-
tros, demonstrou ter desenvolvido maturidade e necessidade em vel, ia visitá-los no outro abrigo. Onde ficou, é descrito por ela
construir sua existência e tentar se responsabilizar, o que é marcado como uma grande casa, cuidada por um casal. O coordenador
principalmente na relação de cuidado que ela estabeleceu com os era muito bravo e violento e batia sempre que alguma criança
seus irmãos consangüíneos. De acordo com Teixeira (2006, p 291): desobedecia ou quando ele achava necessário. A. diz que,apesar
disso, eles eram “boas pessoas”. As regras no abrigo eram muito
Em síntese, a existência individual caracteriza-se por três rígidas e, muitas vezes, a cliente não conseguiu dormir, lembran-
palavras-chave – cuidado, construção e responsabilidade do da mãe, e cantava baixinho olhando para janela “...mamãe
– na medida em que o individuo cuida da sua existência sumiu, mamãe sumiu...” e quando o senhor via que tinha alguma
procurando conhecer-se e compreender – se, descobrin- criança que não estava dormindo, ele batia. A. fingia que estava
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chorando para ele ficar com pena e não ser agredida. Uma de rem expressas.
suas irmãs mais novas, que é muito bagunceira, apanhava sempre. De acordo com Teixeira (2006, p 293):
Conforme Teixeira (2006, p 293):
A ansiedade é ela própria um dado da existência com que
A história afasta-se do projeto por intermédio de vivencia o individuo se confronta inevitavelmente e que pode ser ex-
de contradição interpessoal e/ou impessoal) na seqüên- perimentado de forma mais intensa e significativa mais em
cia da qual o individuo escolhe afastar-se ou é afastado. certos momentos da trajetória existencial do que noutros.
A psicopatologia caracteriza-se essencialmente por uma Por exemplo, pode associar-se a crises pessoais, luto, do-
existência limitada, tematizada e bloqueada. Limitada e ença física, fases de transição do ciclo de vida individual ou
aprisionada, porque afastada dos seus valores e da sua pos- familiar, entre outras situações.
sibilidade de auto-afirmação. O individuo não experimenta
a sua existência como uma realidade. Tematizada pelo seu Conforme descrição dos pais sobre a cliente, ela estava apre-
passado, na medida em que o individuo continua a viver em sentado comportamentos que eram considerados pelo Conselho
função de uma identidade e características que já não são Tutelar como comuns em casos de adoção, como contar men-
as presentes. Bloqueada no seu desenvolvimento, porque tiras e furtar objetos sem necessidade concreta, causando muito
não consegue projetar-se no devir. transtorno e conflito na relação dos pais com a filha adotiva. No
âmbito da construção de sua existência, sua principal referência
No processo psicoterapêutico realizado, foi possível observar foi a mãe. Mesmo não sendo um modelo que atendesse às suas
que, apesar da cliente ter conseguido desenvolver-se em muitos necessidades, serviu para dar a ela esta referência, e o tempo
aspectos, no momento presente da psicoterapia, apresentava-se do abrigo, já de forma oposta, mas da mesma forma marcante,
ainda muito presa ao seu passado, tanto em relação à mãe bioló- deixou parâmetros sociais de ameaça e retenção.
gica, no seu desejo constante de revê-la, como nas vivências do O que vai ocorrer, muitas vezes, como no caso abordado,
abrigamento, que estavam presentes no seu modo de expres- é que depois da adoção, mesmo quando os pais adotivos man-
sar, que se apresentava embotado. Conforme descreve Levizon têm um bom relacionamento com o filho adotado, como no
(2000, citado por Rodontaro 2002, p. 4): caso apresentado, conforme A. relatou nunca ter sido violentada
pelos pais adotivos e ser tratada igual aos irmãos, que são filhos
Observamos que, desde o início de seu desenvolvimento, há consangüíneos. Uma das hipóteses para esse comportamento é
perturbações sérias nas relações de objeto, resultante em o sentimento oculto de achar que os pais adotivos a roubaram,
muita sensibilidade frente a situações de separação e um tiraram da sua mãe, que fica mais nítido no constante pedido de
medo exarcebado em serem abandonadas. Essas crianças A. de rever a mãe.
devem ter ficado expostas a intensas cargas de ansiedade Atualmente, o que foi observado no caso apresentado, é algo
provenientes de situações como a separação da mãe, que freqüente na realidade social de muitas crianças e adolescentes,
deixa “marcas” em seu desenvolvimento. O medo de novas que, além de perder a tutela da mãe ou cuidador, perdem toda
perdas das pessoas de quem dependem ou a quem estão uma realidade experiencial de família e se deparam, muitas vezes,
ligadas parece acompanhar a criança como uma cicatriz com a realidade institucional, na sua maioria cruéis e insensíveis
dolorosa e pronta para se abrir a qualquer momento. com o sofrimento que eles vivenciam.
A necessidade de ser feita uma intervenção nesta realidade
As graves consequências das vivências de separação da mãe social que assola a vida de muitas crianças em nosso país é evi-
e da vida nos abrigos trazem algumas características especificas dente e demanda não só um trabalho dos profissionais de psico-
de cada pessoa presente nas suas singularidades, nas relações e logia, mas um trabalho multidisciplinar com todos os profissionais
outras mais comumente compartilhadas entre esses jovens, tais envolvidos com essas instituições. È preciso trazer para dentro
como as dificuldades escolares e de aprendizagem e a baixa auto- do abrigo formas de lidar com as perdas que as crianças e ado-
-estima. Estão presentes nas formas traumáticas, como a separa- lescentes, muitas vezes, estão passando, e despertar sentimentos
ção da mãe é feita e nas precárias condições relacionais estabele- comunitários, de autonomia e solidariedade em suas vivências
cidas nos abrigos. Sem dúvida, para uma criança ou adolescente, neste ambiente. Neste sentido a psicologia existencial humanista
uma passagem por tal circunstância é vivenciada com muita tensão é de grande importância para direcionar o trabalho tanto com as
e angústia, que ficam reprimidas por não terem espaço para se- pessoas abrigadas com as pessoas que trabalham no desenvolvi-
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mento de atitudes necessárias para uma melhoria desta realidade
social. Conforme descritas por Teixeira (2006, p 294):

- Facilitar ao individuo uma atitude mais autentica em re-


lação a si próprio
- Promover uma abertura cada vez maior das perspectivas
do individuo em relação a si próprio e ao mundo
- Clarificar como agir no futuro em novas direções
- Facilitar o encontro do individuo com o significado da sua
existência
- Promover o confronto com e a superação da ansiedade
que emerge dos dados da existência

O desenvolvimento dessas atitudes vai possibilitar que a pessoa,


independentemente do lugar que ocupe na sociedade, passe a se
responsabilizar por sua existência, facilitando a abertura à construção
de novas alternativas, dando sentido à sua vida e permitindo a auto-
-realização. E a partir daí, também vai se comprometer a responsabi-
lizar pela existência do outro, gerando, assim, uma preocupação real
com as questões sociais s quais não pode ser desvinculada.

REFERÊNCIAS

ROTONDARO, Daniela Pacheco. Os desafios constantes de uma psi-


cóloga no abrigo. Psicol. cien. prof. [online], set. 2002, vol..22, no.3 [citado
1º Maio 2008], p.8-13. Disponível em: <http://pespsic.bvs-psi.org.br/scielo.
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ISSN 1414-9893.

LEVINZON,G. K. A criança adotiva na psicoterapia psicanalítica. São


Paulo, Editora Escuta, 2000.in ROTONDARO, Daniela Pacheco. Os desafios
constantes de uma psicóloga no abrigo. Psicol.cien.prof. [online], set. 2002,
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TEIXEIRA, Jose A. Carvalho. Introdução à psicoterapia existencial. Analise


Psicológica (online). 2006, vol.3, n° 24 [citado 01 Maio 2008], p. 289-309. Dis-
ponível em: <HTTP://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/apsv24n3/v24n3a03.pdf>

WINNICOTT, D.W. Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro, Editora


Imago, 2000. In: ROTONDARO, Daniela Pacheco. Os desafios constantes de
uma psicóloga no abrigo. Psicol. cien.prof. [online], set.2002, vol.22, n° 3 [ci-
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php?script=sci-arttext&pid=s1414-98932002000300003&1ng=pt&nrm=iso>

NOTA DE RODAPÉ

1Aluno do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva do estágio


supervisionado pela professora Raquel Neto.

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