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O OUTRO E A COEXISTÊNCIA,

NO EXISTENCIALISMO DE HEIDEGGER

A ontologia de O Ser e o Tempo (Heidegger, 1984) tem, como ponto de partida,


a análise do ente que se relaciona com o próprio ser. Essa pré-compreensão ontológica,
o autor denomina existência. E enfatiza que, o que a define, não é qualquer aspecto
material ou psíquico, mas um modo de ser: a existência é constante projeção em
possibilidades escolhidas. Nesse ponto, cumpre esclarecer que o afastamento dos
determinantes materiais e psíquicos, dessa afirmação, leva o autor a designar esse ente
com o termo Dasein (ser-aí); a recusa do termo homem é explicada pelo risco, que seu
uso acarretaria, de uma categorização da existência.
A pré-compreensão ontológica está baseada na familiaridade que o Dasein tem
com o mundo. E tal familiaridade não é resultado de qualquer processo perceptivo ou
prático, uma vez que o mundo, nessa concepção, não designa um aspecto material. O
mundo só é nessa relação com o Dasein, assim como esse ente só existe na
transcendência ao mundo (portanto, o si do Dasein é fora de si). Daí Heidegger (1984)
afirmar que o Dasein é ser-no-mundo (essa transcendência especifica que não se trata
de estar dentro do mundo, logo, o Dasein não é intramundano, como o são os entes
que têm o modo de ser substancial).
Na familiaridade com o mundo, o Dasein situa-se a partir da rede de úteis, com a
qual se relaciona. E o fato de o mundo realizar-se dessa maneira, para esse ente,
justifica-se na responsabilidade com a própria existência. Com efeito, o Dasein é
cuidado na medida em que a relação com o próprio ser é intransferível e inexorável. Ou
seja, só o Dasein pode realizar as escolhas das possibilidades, nas quais se projeta. “O
Dasein é livre em suas escolhas, porém nunca livre para não escolher” (D’Avila
Lourenço, 2005, p.136).
O cuidado evidencia a faticidade do Dasein: esse ente é lançado na existência,
pela qual é responsável. E a falta de razões ou critérios desse lançamento aponta para o
desamparo da existência, e seu aspecto irremediável. Sobre o conceito de faticidade,
Heidegger diz:
O conceito de faticidade encerra em si o ‘ser em um mundo’ de um ente
‘intramundano’, de tal sorte que este ente (Dasein) possa compreender-se
como sendo seu ‘destino’ estar vinculado com o ser dos entes que lhe fazem
frente dentro do mundo que lhe é peculiar. (Heidegger, 1984, p.68)
Nesse vínculo com os entes que lhe fazem frente no mundo, o Dasein ocupa-se e
dispersa-se de vários modos, sempre cuidando-se. Mas a rede de úteis, que sustenta esse
processo, só se evidencia e ganha significação quando um útil se quebra ou perde a
função. Nesse caso, o mundo evidencia-se enquanto tal, ou seja, não como um
complemento ou apoio ao Dasein. A relação desse ente com o mundo não é marcada
pela acomodação ou naturalidade, mas pela inospitalidade.
A inospitalidade é aclarada por meio da angústia. Segundo esse autor, os
humores não são causados por estimulações internas ou externas. Ao contrário, eles são
quem abrem as possibilidades de o Dasein ser afetado pelas coisas do mundo. A
angústia seria o humor mais fundamental, uma vez que aclara o desamparo, inerente à
faticidade.
Nesse humor, o Dasein compreende que qualquer possibilidade só é levantada
se contraposta à impossibilidade. Assim, todas as possibilidades da existência têm, por
parâmetro, a impossibilidade da mesma, qual seja, a possibilidade da morte. Isso leva o
autor a dizer que o Dasein é ser-para-morte. Sobre essa afirmação, deve ser
esclarecido que, nessa ontologia, não se trata da morte biológica ou psíquica, e sim da
possibilidade constante que marca toda a existência.
Todavia, a compreensão dessa condição existencial não acontece original e
cotidianamente. Original e cotidianamente, o Dasein compreende de modo inautêntico
essa condição, esquivando-se da faticidade e do ser-para-morte. O desamparo
fundamental, esse ente tampona por meio da idéia de que a existência só não é segura
por causa de algum objeto intramundano e ameaçador. Logo, a angústia (que não
distingue nenhuma ameaça específica) é transposta em temor.
Voltando seu desamparo para as coisas do mundo, e não para a relação com o
próprio ser, o Dasein permanece num estado de dispersão, em que não compreende
propriamente sua singularidade Esse estado caracteriza o que o autor denomina A
Gente (Das Man).
Dessa maneira, o Dasein não distingue propriamente sua existência da dos
outros. (...) A Gente designa qualquer Dasein e nenhum ao mesmo tempo, ou
seja, ela é todos e ninguém (...) nesse estado de indiferença que caracteriza A
Gente, os modos de existência são uniformizados. (D’Avila Lourenço, 2005,
p.144)

Se nesse estado de indiferença o Dasein não compreende autenticamente sua


singularidade, ele tampouco compreende autenticamente seu ser-com-outros. O ser-
com-outros é um existencial, da mesma forma como o ser-no-mundo e o ser-para-
morte. Assim, manter-se com os outros não é um fato contingente, mas uma
determinação ontológica: o Dasein compartilha o mundo com outros entes que têm o
mesmo modo de ser (a existência) mesmo que, circunstancialmente, nenhum deles
esteja presente. É interessante comentar que, sobre essa condição de ser-com-outros,
Sartre (1997) entende que o Dasein é condenado ao solipsismo, visto que a relação com
os outros é um atributo universal (coincidindo com o ponto de vista abstrato do sujeito
kantiano), afastada de qualquer referência concreta. Essa perspectiva de Heidegger,
segundo Sartre (op.cit.), é justificada pela influência do pensamento de Husserl : “[...] a
teoria de Husserl não parece sensivelmente diversa da de Kant [...]. O outro seria aqui
uma categoria suplementar que permitiria constituir um mundo, e não um ser real
existente para além desse mundo.” (Sartre, 1997, p.304).
A compreensão que o Dasein tem do outro não está baseada em algum
relacionamento ou qualquer forma de contato, mas é inerente ao ser-no-mundo.
Contudo, essa compreensão varia conforme o modo, autêntico ou inautêntico, com que
o Dasein conduz sua existência. Perdido na Gente, o Dasein permanece aturdido na
rede de úteis (estabelecida pela estrutura do cuidado), compreendendo o outro de
maneira impessoal e imprópria.
O Dasein distingue sua relação com outro Dasein (mitsein), da sua relação com
os entes substanciais (Sein-bei). E nessa pré-compreensão reside a possibilidade do
Dasein poder se colocar no lugar do outro, até o ponto em que essa identificação
alcança um estado de não distinção entre o si (Selbstsein) e o outro (Mitsein),
constituindo A Gente. Porém, a força que a rede de úteis mantém nesse estado de
publicidade (Öffentlichkeit), levanta a hipótese (não declarada no texto de Heidegger
[1984]) de que, dessa maneira, o outro Dasein é colocado como um dos úteis que
sustenta essa estrutura.
No estado de indiferença, que caracteriza A Gente, há uma tentativa de fuga da
responsabilidade pela própria existência. Melhor dizendo, nesse estado, o Dasein tenta
driblar sua faticidade e ser-para-morte, através da representação.
Mas a morte própria não pode ser representada (nenhum Dasein pode realizar a
morte por outro). É, portanto, no ser-para-morte (com efeito, na disposição para
vivenciar a angústia que evidencia tal existencial) que está a possibilidade do Dasein
existir de modo autêntico.
É importante notar que, por inautencidade, o autor não entende um valor
negativo, mas um modo de existir fundado na própria estrutura do Dasein.
Esse ente já nasce inserido em determinadas possibilidades (considerando
que o conjunto dessas possibilidades é o mundo). E sua tendência inicial e
regular não é se apropriar delas, mas confundir-se com elas. Por isso,
Heidegger designa a inautenticidade por cotidianidade. As normas do
cotidiano são ditadas pela publicidade. E é dentro desse estado público que o
Dasein desenvolve-se. Logo, é a partir dele que tal ente pode [...] voltar-se
para suas possibilidades próprias. (D’Avila Lourenço, 2005, p. 146)

Diante da afirmação citada, é de suma importância observar a diferença entre


fundamento e origem. O modo autêntico, de compreender a relação com o próprio ser,
está no fundamento do Dasein. “O fundamento está prenunciado na origem” (D’Avila
Lourenço, 2005, p.147).
O modo autêntico da existência exige que o Dasein adiante-se à própria morte.
O que, visto que se trata de uma ontologia, não equivale a buscar, por vias concretas ou
imaginárias, a morte. Trata-se da assunção de que a morte é uma possibilidade
constante. Essa assunção, longe de designar um acabamento, permite que o Dasein
escolha as possibilidades próprias, uma vez que assim o ser manifesta-se em sua
autenticidade.
Nesse ponto, o autor salienta que a manifestação do ser é temporal. Na filosofia
de Heidegger, o tempo não é um acontecimento longitudinal, mas uma atividade do ser
(daí a designação temporalidade). Nessa temporalidade lógica, o ser-para-morte vem
dar sentido ao sido (e a condição de faticidade) e ao instante (notando que o instante
caracteriza um presente diferente do agora, onde figura uma espera pelos
acontecimentos). No instante, o Dasein realiza sua situação, qual seja, a de precursar a
morte própria, ratificando as possibilidade herdadas em seu nascimento (sempre
advertindo que, nascimento e morte não são fatos biológicos).
A decisão, de assumir a possibilidade da morte própria e de apropriar-se das
possibilidades herdadas no nascimento, especifica o ser-resoluto, capaz de realizar seu
destino. O termo destino, Heidegger define da seguinte maneira: “Com esta expressão
designamos o gestar original do Dasein, gestar implícito no ser-resoluto próprio e em
que o Dasein faz-se tradição de si mesmo, livre para a morte, a si mesmo, em uma
possibilidade herdada, porém, sem embargo, eleita.” (Heidegger, 1984, p. 414)
Interessa advertir que o ser-resoluto não é uma conquista definitiva. Cuidando-
se, o Dasein tende, todo momento, voltar à existência inautêntica. Tampouco o ser-
resoluto designa um estado de despotismo, pois ele só é conquistado via angústia, a
qual não pode ser acionada por meio de qualquer controle físico ou psíquico. Além
disso, a singularidade que o ser-resoluto assume não determina isolamento; é nessa
assunção e na escolha das possibilidades próprias (e não mais nas escolhas das
possibilidades ditadas pela Gente), que o Dasein respeita as possibilidades alheias.
O Ser e o Tempo (Heidegger, 1984) não alcança a ontologia pretendida pelo
autor. Isso leva Heidegger à análise do Ser, sem partir da análise dos entes. Após O Ser
e o Tempo, a afirmação é a de que o Ser só se manifesta através dos entes, e o ente
existe nessa manifestação (Heidegger, 1979).
A manifestação do Ser é temporal. E cumpre considerar que, nessa reformulação
de sua ontologia, Heidegger não prescinde da temporalidade autêntica do Dasein, mas
prioriza a temporalidade original do Ser (que, como nota Haar [1990], parece ser uma
temporalidade anterior, à qual a temporalidade autêntica do Dasein é submetida). Essa
temporalidade acontece de maneira epocal. Especificamente, em cada Época, o Ser se
manifesta de determinado modo. Em cada Época, o envio do Ser, e seu acolhimento por
parte do homem (notando que, após 1930, o autor já utiliza o termo homem em sua
ontologia), acontece de maneira específica (Heidegger, 1969). Esse movimento consiste
no desencobrimento do que é vigente. E o que determina esse movimento? A não
referência ao princípio da causalidade não permite que o autor identifique as razões
desse envio e suas formas de acolhimento.
À Época atual, Heidegger designa Época da Técnica. E sobre a essência da
técnica, o autor comenta: “A técnica não é, portanto, um simples meio. A técnica é uma
forma de desencobrimento.” (Heidegger, 2002, p.17). O desencobrimento, que rege a
Época da Técnica, acontece sob a forma da exploração. O controle e a segurança
constituem as marcas do desencobrimento explorador (ib.). Por isso, o vigente aparece
como dis-ponível.
Embora o homem não se reduza a mero dis-ponível, ele participa da dis-posição.
Na Época da Técnica, o homem é na posição de objeto (Heidegger, 1969), na dis-
posição. Dessa maneira, o conhecimento se dá sob a forma do cálculo; tudo é
objetivável para o cálculo. Logo, a relação com o outro é também calculada. Há,
segundo o autor (ib), o privilégio da representação.
E qual o papel do homem, nessa forma de manifestação do Ser?
Quem realiza a exploração que des-encobre o chamado real, como dis-
poniblidade? Evidentemente, o homem. Em que medida o homem tem este
des-encobrir em seu poder? O homem pode, certamente, representar, elaborar
ou realizar qualquer coisa, desta ou daquela maneira. O homem não tem,
contudo, em seu poder o desencobrimento em que o real cada vez se mostra
ou se retrai e se esconde. Não foi Platão que fez com que o real se mostrasse
à luz das idéias. O pensador apenas respondeu ao apelo que lhe chegou e que
o atingiu. (Heidegger, 2002, p.21)
Dessa maneira, o autor (2002) entende que a liberdade do homem está na
compreensão do envio do Ser, pois nisso reside a verdade. O homem pode contradizer
essa forma de envio do Ser, mas não pode modificá-la. O desafio do Ser ao
desencobrimento não é sujeito à arbitrariedade humana.
Assim, tomando as noções dessa ontologia, surge a questão: como a existência
autêntica (descrita em O Ser e o Tempo) acontece na Época da Técnica? Em outras
palavras, qual o lugar do ser-resoluto, nessa reformulação de Heidegger?
Sobre isso, é interessante a seguinte afirmação:
Entretanto, hoje em dia, na verdade, o homem já não se encontra em
parte alguma, consigo mesmo, isto é, com a sua essência. [...] Com isto
não escuta nada que faça sua essência ex-sistir no espaço de um apelo e por
isso nunca pode encontrar-se, apenas, consigo mesmo. (Heidegger, 2002,
p.30, grifo do autor)

Notando que, para esse autor, é apenas encontrando-se consigo mesmo que o
homem pode compreender a essência do outro, entende-se que a coexistência
permanece velada, sob o modo da dis-ponibilidade.

Referências Bibliográficas
D’AVILA LOURENÇO, L.C. A angústia, segundo Freud e Heidegger. 234f.
Tese (Doutorado em Ciências) _ Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão
Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2005.

HEIDEGGER, M. El ser y el tiempo. Original publicado em 1927. Madrid:


Fondo de Cultura Econômica, 1984.

______________ Ensaios e conferências. Petrópolis: Editora Vozes. 2002.

______________ Sendas perdidas. Buenos Aires: Editorial Losada, 1969.

HAAR, M. Heidegger e a essência do homem. Lisboa: Instituto Piaget, 1990.

INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

SARTRE, J-P. O ser e o nada _ ensaio de ontologia fenomenológica.


Petrópolis: Editora Vozes, 1997.

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