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GENUINAMENTE
BRASILEIRA
A herança europeia e o desafio da
construção de uma Filosofia nacional
ES NO ENE
CIDADE
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O ENEM NO NOVO GOVERNO • PROFESSOR EDUCADOR OU LIBERTADOR? (EM NIETZSCHE E STIRNER)
HUM ANIDAD DOR?
OU LIBERTA
EDUCADOR NER)
PROFESSOR CHE E STIR
(EM NIETZS
COLEÇÃO GRANDES OBRAS DO PENSAMENTO UNIVERSAL
acesse www.escala.com.br
/editoraescalaoficial
EDITORIAL
A herança
ou o exotismo
P
or que não temos uma Filosofia genuinamente
brasileira? O que significou para o país, ao longo
de toda a sua existência, conviver com ideias
provenientes de um legado colonial, Filosofia escri-
ta e pensada a partir da realidade europeia? Por que outros
países também colonizados produziram sistemas filosóficos
que se tornaram tradição de pensamento? Eis as perguntas
que o artigo de capa desta edição, de autoria de João de
Fernandes Teixeira, também colunista assíduo de Filosofia,
tenta responder.
Teixeira aborda, sem meias-palavras ou ilusões, o desafio
da construção de um pensamento genuinamente brasileiro,
considerando também o risco da formulação de sistemas
tão exóticos, quanto insignificantes para além dos olhos de
SHUTTERSTOCK
seus idealizadores. Para o autor, buscar uma filosofia espe-
cificamente brasileira ou sistemas filosóficos canibais, como
fez o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, citado no
artigo, pode ser interessante para a Antropologia, mas não
para a Filosofia.
“Uma filosofia especificamente brasileira, com a pretensão de expressar nossa
identidade nacional através do pensamento corre o risco de produzir um sistema de
ideias exóticas, ou seja, de produzir algo interessante apenas do ponto de vista de
nossos ‘descobridores’ e ‘colonizadores’”, escreve Teixeira. “Seria algo comparável a
um passeio de jipe na favela da Rocinha, algo para que os europeus se divertissem,
ou se penalizassem. Uma espécie de filosofia-suvenir, uma filosofia jabuticaba” – diz
o autor, sendo esta última expressão parte do título de seu texto neste número da
revista.
Para Teixeira, uma “filosofia monumental brasileira” seria um paradoxo. Ao passo
que uma formação sem a presença de autores e filósofos brasileiros, em suas tentati-
vas de construir algo que tenha uma exclusiva identidade nacional, também não seria
nada saudável. Engolir um “entulho religioso” e autoritário, cada vez mais mesclado
na política, segundo Teixeira, seria um dos grandes riscos da manutenção dessa práxis
no ensino. Assim como a tradição contrária ao conservadorismo também não tem
ajudado muito a Filosofia a se desenvolver no País. Para mais detalhes da abordagem
desses temas, corra os dedos pelas páginas a seguir e boa leitura!
Da Redação
www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 3
SUMÁRIO ANO X No 145 – www.portalespacodosaber.com.br
ER DA
O POD TIRA,
POR
MEN
REN
ATO
ANO X No 147 – www.portalespacodosaber.com.br
RIBEIRO
JANINE
número 147
GENUINAMENTE
BRASILEIRA
A herança europeia e o desafio da
construção de uma Filosofia nacional
IMAGENS:
A doutrina social da Igreja Conheça as correntes filosóficas
e seus novos fundamentos que apoiam o veganismo
DE CIÊNCIAS
CADERNO
EDUCAÇÃO
SOCIAIS &
SHUTTERSTOCK HUMANIDADES
PROFESSOR
DIREITO À
NO ENEM
EDUCADOR
(EM NIETZSCHE
CIDADE
NO NOVO
GOVERNO
OU LIBERTADOR?
E STIRNER)
CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO: O DIREITO À CIDADE • HUMANIDADES NO
ENEM NO NOVO GOVERNO • PROFESSOR EDUCADOR OU LIBERTADOR? (EM NIETZSCHE E STIRNER)
6 54
ENTREVISTA FILO ORIENTAL
Para Alonso Bezerra Dignidade e paciência em Confúcio,
de Carvalho, docente na coluna de André Bueno
da Unesp, a Filosofia é campo
56
de estudo e de reflexão
BRASIL/
com contribuições das mais
CAPA
relevantes para a história da
Como o
humanidade
Brasil, com um passado
marcado pela ignorância,
10
poderia produzir pensamento
filosófico? Será que isso nos
atrela, definitivamente, ao
passado filosófico dos países
HOMENAGEM
colonizadores?
Obra de Ivo Assad Ibri, regada
ao pragmatismo peirceano,
67
é tema de livro organizado PARA REFLETIR
com a participação de Literatura, Artes Visuais e
diversos autores Filosofia da Mente nos espaços
comandados por Ana Haddad, Walter Cezar Addeo
20
e João de Fernandes Teixeira
RELIGIÃO
O momento
74
em que
a Igreja passou a intervir
formalmente nas questões
sociais e econômicas, em seus ATUALIDADE
erros e acertos Brasil é pioneiro em educação
vegana no ensino básico, com
30
base na Filosofia e mesclada a
MESOLOGIA
diversas disciplinas
Uma discussão acerca das teorias
(e dos teóricos) geocentristas, por
82
Rodrigo Petronio OLHO GREGO
O poder da mentira, na política e na
vida social, por Renato Janine Ribeiro
CADERNO DE CIÊNCIAS
SOCIAIS & EDUCAÇÃO
IMAGENS: SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL
CO M
• Humanidades no Enem no novo governo P RO P O
STA
D IDÁT IC
A
Essencial e
necessária
Para docente da Unesp, a
Filosofia é campo de estudo
e de reflexão com contribuições
das mais relevantes para
a história da humanidade
Por Fábio Antonio Gabriel
O
entrevistado desta edição é graduado em
Filosofia (1986), em Ciências Sociais (1992) e
mestre em Educação (1997) pela Faculdade de
Filosofia e Ciências da Universidade Estadual
Paulista (UNESP), Campus de Marília. Doutor
em Filosofia da Educação (2002) pela Faculdade de Educa-
ção da Universidade de São Paulo (USP). Livre-Docente
(2013) pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Em
2007 fez pós-doutorado em Ciências da Educação na
Universidade Charles de Gaulle, Lille, França. Atualmen-
te é professor adjunto no Departamento de Educação da
UNESP, Campus de Assis e do Programa de Pós-Gradua-
ção em Educação da UNESP, Campus de Marília. Conver- como Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás
sa com os leitores da Revista Ciência e Vida sobre Filosofia de Aquino, Maquiavel, Descartes, John Lo-
da Educação e ética na educação. cke, Hume, Hobbes, Rousseau, Kant, He-
gel, Marx, Comte, John Dewey, Nietzsche,
FILOSOFIA • Prezado Alonso, você como estudioso da Filo- Heidegger, Sartre, Adorno, Horkheimer,
sofia da Educação poderia nos falar sobre alguns filósofos Foucault, Habermas, entre outros, foram
que demarcam relevância na história da filosofia? de fundamental importância na construção
??????????
des contribuições para a história da humanidade. Filósofos a ciência, a ética, a estética e muitos outros
campos do saber e da ação humana sofrem
as suas influências, no sentido de transfor-
Doutorando em educação com bolsa de doutorado concedida no âmbito
CAPES/Fundação Araucária, organizador de diversos livros na área de mar nossas concepções e atitudes no mundo
filosofia & educação: www.fabioantoniogabriel.com e na sociedade.
6 • ciência&vida
FILOSOFIA • Descartes é um filósofo que marca Para Kant, a disciplina
o início da modernidade. Como você entende a
contribuição de Descartes para pensar a educação? é um momento
ALONSO DE CARVALHO • Como sabemos, a moder-
nidade é o período do predomínio da ideia de que fundamental no
a ciência e a técnica podem desvelar toda a realida-
de, e que a razão humana cumpre uma função fun-
processo de formação
damental. É Descartes quem mostra que por meio do homem. Ela dá a
de um método de pensamento seríamos capazes de
chegar a um conhecimento certo e indubitável, sub- oportunidade para que
metendo os dados da natureza, por exemplo, a um
procedimento de análise, de tal maneira que todo o
ele, o homem, saia do
observável, tratado como objeto, seja reduzido aos seu estado de selvageria,
seus elementos mais simples. Embora não fosse in-
tenção de Descartes fornecer contribuições efetivas elemento comum a
para a educação, a forma pela qual pautou a sua vida
e o relato dos exercícios que praticou para alcançar
todos os animais, em
algo de seguro e fixo para chegar às ciências, apon- direção ao cultivo de
ta um percurso que podemos utilizar para pensar e
compreender as questões educacionais, sobretudo se suas sementes de
considerarmos a educação também como uma ciên-
cia ou, pelo menos, como um processo que adota humanidade
procedimentos próprios da atividade científica.
ciência&vida • 7
ENTREVISTA Alonso Bezerra de Carvalho
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HOMENAGEM
Sementes de
PRAGMATISMO na
Contemporaneidade
Obra ressalta, em vida, o trabalho do brasileiro
Ivo Assad Ibri, que reflete sobre Charles S. Peirce
10 • ciência&vida
Monica Aiub – Doutora
em Filosofia pela PUC-SP,
dirige o Interseção –
Instituto de Filosofia
Clínica de São Paulo.
www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 11
HOMENAGEM
S
ementes de Pragmatismo HOMENAGEAR FILÓSOFOS
na Contemporaneidade
(FiloCzar, 2018) é o títu-
VIVOS, ESTUDAR SUA OBRA,
lo da coletânea organi- SUAS CONTRIBUIÇÕES É, ALÉM DE UM
zada em homenagem a Ivo Assad
Ibri, filósofo brasileiro, referên-
RECONHECIMENTO EM VIDA, UMA
cia nos estudos sobre Pragma- FORMA DE DIVULGAR IMPORTANTES
tismo no Brasil e internacio-
nalmente, membro da Charles
REFLEXÕES E PESQUISAS QUE TRATAM
S. Peirce Society (EUA) – tendo DE QUESTÕES RELEVANTES DA
presidido esta sociedade no ano
de 2015. Ibri é fundador do Cen-
CONTEMPORANEIDADE
tro de Estudos de Pragmatismo
(PUC-SP), coordena os Encon- este brevíssimo recorte de seu
tros Internacionais sobre Prag- currículo mostra, trata-se de um
matismo (EIP) desde 1998 e é um pesquisador dedicado; mas quem
dos fundadores do grupo de tra- lê sua obra, assiste suas aulas ou
balho (GT) Semiótica e Pragma- conversa com ele sobre os desdo-
tismo da Associação Nacional de bramentos do Pragmatismo na
Pós-graduação em Filosofia (AN- contemporaneidade encontra um
POF). Integra o corpo de consul- fi lósofo inspirador, apaixonado
tores do Peirce Edition Project, da pela fi losofia, pela beleza de um
Universidade de Indiana (EUA), raciocínio correto, mas também
que edita a obra cronológica de pela beleza de uma composição
Charles S. Peirce e é editor das musical, de uma ação ética ou de
revistas Cognitio – Revista de Fi- uma ponte bem construída.
losofia e Cognitio-Estudos. Como Pela seriedade e fecundidade
ED FIGUEIREDO
de seu trabalho, pelo constante
diálogo com pesquisadores no
Brasil e no exterior, pela contínua
inspiração e orientação a pesqui- Ivo Assad Ibri, em encontro sobre
Pragmatismo
sadores interessados em questões
sobre o Pragmatismo, esta home-
nagem contou com a participação autores, cinco revisores, dois tra-
de muitos – e com o lamento de dutores e sete conselheiros edito-
tantos outros que não puderam riais envolvidos, além daqueles
participar neste momento, mas que participaram da homena-
que também o homenageariam gem de outras maneiras.
e homenageiam de outras ma- A proposta inicial foi feita
neiras, principalmente, desen- pelas professoras Maria Euni-
volvendo suas pesquisas e con- ce Quilici Gonzalez e Mariana
tribuindo para a construção do Broens, da UNESP de Marília.
conhecimento na área. Não foi nossa primeira coletâ-
Foi, portanto, um trabalho nea em homenagem a um filó-
colaborativo da comunidade sofo brasileiro e vivo. Em 2015
Capa do livro que homenageia o filósofo peirciana do Brasil e do exterior. organizamos o livro Filosofia
brasileiro Ivo Assad Ibri Somos seis organizadores, trinta da Mente, Ciência Cognitiva e o
12 • ciência&vida
PUBLIC DOMAIN/WIKIMEDIA COMMONS
pós-humano: Para onde vamos? dução de obras desta natureza: não houve indicação ou escolhas
(FiloCzar), em homenagem a merecidas homenagens. temáticas por parte dos organi-
João de Fernandes Teixeira, pio- O convite delas para a orga- zadores, sendo o livro o resulta-
neiro nos estudos em Filosofia nização da coletânea também foi do dos temas destacados espon-
da Mente no Brasil. Homenagear endereçado a Eluíza Bortolotto taneamente pelos autores. Com
filósofos vivos, estudar sua obra, Ghizzi, Lucia Ferraz Nogueira de os capítulos em mãos, pensamos
suas contribuições é, além de um Souza Dantas e Marcelo S. Ma- e ponderamos as melhores for-
reconhecimento ao trabalho do deira, que participam ativamen- mas para organizá-los.
pesquisador em vida, uma forma te da organização dos Encontros Seguindo a tradição do Centro
de divulgar importantes refle- Internacionais sobre Pragmatis- de Estudos de Pragmatismo, dos
xões e pesquisas que tratam de mo. É preciso destacar que mui- Encontros Internacionais sobre
questões relevantes da contem- tos autores, além da contribuição Pragmatismo e da Cognitio – Re-
poraneidade. Maria Eunice e com seus textos, enviaram exce- vista de Filosofia, o livro contém
Mariana têm se dedicado, além lentes sugestões para a composi- textos em português e em inglês.
de suas importantes pesquisas ção da obra. A apresentação do livro é bilín-
em Filosofia da Mente, Filosofia Cada autor escolheu a forma gue e foi escrita a muitas mãos.
da Informação, Filosofia Ecoló- que considerou mais adequada Os capítulos foram agrupados
gica, entre outros campos, à pro- para expressar sua homenagem, em partes por afi nidades temáti-
ED FIGUEIREDO
IVO ASSAD IBRI, AUTORAS CONSIDERAM
UM CONJUNTO DE OBRAS DO PINTOR
NGLÊS LUCIAN FREUD – TANTO
NO QUE SE REFERE AO CONJUNTO DAS
OBRAS, COMO ÀS RELAÇÕES ENTRE ELAS
E O AMBIENTE ATELIÊ, ESTABELECENDO
RELAÇÕES ENTRE FILOSOFIA E ARTE
poética, discorre sobre o papel periência estética. Poderiam as Ibri, no lançamento do livro: lisonja e
do pensamento poético na filo- analogias musicais ou a com- disposição para discutir ideias acerca do
Pragmatismo peirceano
sofia contemporânea. preensão dos efeitos da música
Antonio Valverde (PUC-SP) nos agentes ampliar nossa com-
escreve o capítulo Giambattista preensão sobre os estados men- obras e o ambiente do ateliê – e
Vico: Filosofia e Sabedoria Poéti- tais e sobre as melhores formas estabelecem relações entre filo-
ca, a partir de um apontamento para tornar melhor o mundo que sofia e arte.
de Peirce (1839-1914) sobre uma coabitamos?
passagem da obra Ciência Nova, Lucia Ferraz Nogueira de CONTRIBUIÇÕES
de Giambattista Vico (1668-1744). Souza Dantas (Faculdade São PARA AS
Lucia Santaella (PUC-SP) e Bento – SP) e Eluiza Bortolotto INTERPRETAÇÕES DE
Aline Antunes de Souza (Uni- Ghizzi (UFMS) fecham a pri- ALGUNS TEXTOS DE
versidade Nove de Julho-SP), em meira parte com Experiência CHARLES S. PEIRCE
Por uma Estética Semiótica, pro- Estética e Continuidade na Obra A segunda parte, Contribui-
põem a relação entre estética e de Arte: A Pintura de Lucian ções para as Interpretações de Al-
lógica, assim como a elaboração Freud à Luz do “Hiato no Tem- guns Textos de Charles S. Peirce,
de uma estética de cunho semió- po” e das “Coisas sem Nome” de começa com O Enigma das Doze
tico, fundamental para a consti- Ivo Ibri. A partir de ref lexões Tinturas nos Prolegômenos de
tuição de uma semiótica da arte. sobre percepção, presentes no 1906, de Winfried Nöth (PUC-
Mente e Música: Algumas manuscrito Thelepathy and Per- -SP/Universidade de Kassel) e
Hipóteses Rumo ao Admirável, ception (1903), de Peirce, e da Juliana Rocha Franco (UEMG),
é minha contribuição (Monica hipótese de Ibri sobre uma pos- que desenvolvem um estudo so-
Aiub – Instituto Interseção – sível filosofia da arte peirciana, bre o artigo “Prolegômenos para
SP). Partindo de analogias musi- nomeada por Ibri de “Sementes uma apologia ao pragmaticismo”
cais, estabeleço um diálogo entre peircianas para uma filosofia (PAP), o terceiro da série de ar-
a obra de Ibri, de Peirce e de neu- da arte”, as autoras consideram tigos de Peirce sobre o seu prag-
rocientistas, músicos e filósofos um conjunto de obras do pintor matismo, escritos para a revista
contemporâneos. “Afinação” e inglês Lucian Freud – com des- The Monist entre 1905 e 1906.
“admirável” são conceitos-cha- taque para a especial continui- Sara Barrena e Jaime Nu-
ve, e a hipótese central diz res- dade nas relações entre as qua- biola (ambos da Universidad de
peito à afirmação de Ibri, sobre lidades da parte e do todo, tanto Navarra), em Translating Char-
a possibilidade de vivenciarmos no que se refere ao conjunto das les S. Peirce’s Letters: A Creative
o “admirável” no interior da ex- obras, como às relações entre as and Cooperative Experience [A
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HOMENAGEM
ED FIGUEIREDO
sar com e através do outro. O po-
ético, o filosófico e o pedagógico
das falas de Ibri inter-relacionam
Ibri, no lançamento do livro: lisonja e disposição para discutir ideias acerca do Pragmatismo peirceano pensamento e poesia no texto
peirciano e estimulam o olhar
Tradução das Cartas de Charles Em The Continuity of the para a complexidade presente na
S. Peirce: Uma experiência Cria- Infinite Semiosis and the Falli- obra de Peirce.
tiva e Cooperativa], descrevem a bilism of Inquiry in C. S. Peirce
experiência de tradução e estu- [A Continuidade da Semiose In- SOBRE O CONCEITO
do de textos de Peirce, realizada finita e o Falibilismo da Investi- DE VERDADE
pelo Grupo de Estudos de Peir- gação em C. S. Peirce], Rossella A quarta parte do livro é
ce da Universidade de Navarra. Fabbrichesi (Universitá di Mi- composta por dois capítulos. So-
Trata-se do estudo das “Cartas lano) destaca a importância da bre a Concepção de Verdade de
Europeias”, escritas por Peirce, continuidade entre a lógica e a A. Tarski, de Edelcio Gonçalves
principalmente durante suas metafísica na filosofia de Peir- de Souza (USP), apresenta os ob-
viagens à Europa (entre 1870 e ce, apontando para os riscos jetivos da concepção tarskiana e
1883) e estabelecendo sua comu- em seccioná-las. Neste sentido, sugere que o critério de adequa-
nicação com cientistas e intelec- as contribuições de Ibri para a ção material qualificaria uma
tuais europeus. compreensão da importância definição de verdade em confor-
do conceito de continuidade midade com a concepção clássica
APORTES PARA em Peirce são fundamentais de verdade. Em seguida, partin-
ABORDAGENS para que este equívoco possa do de uma análise do paradoxo
DA OBRA DE ser evitado. do mentiroso, mostra que lin-
CHARLES S. PEIRCE Finalizando esta parte, Vin- guagens naturais não possuem
Iniciando esta parte, José cent Colapietro (Pennsylvania definição de verdade capaz de
Luiz Zanette (PUC-SP), em So-
bre a Atualidade do Conceito
do Idealismo Objetivo de Peirce,
apresenta dois modos de fazer
CAPÍTULO COM ANÁLISE DO PARADOXO
a leitura da filosofia de Peirce: DO MENTIROSO MOSTRA QUE
de um lado a leitura Thomas L.
Short, numa vertente analítica,
LINGUAGENS NATURAIS NÃO
e de outro, a de David Dilworth, POSSUEM DEFINIÇÃO DE VERDADE
hermenêutico-pragmática, apro-
CAPAZ DE CUMPRIR O CRITÉRIO
ximando esta última da leitura
feita por Ibri. DE ADEQUAÇÃO MATERIAL
16 • ciência&vida
ALGUNS TIPOS DE AÇÃO PARECEM ULTRAPASSAR
O ESCOPO DA ÉTICA TRADICIONAL, PODENDO
CARACTERIZAR A ÉTICA INFORMACIONAL COMO
UMA EXTENSÃO DE PRINCÍPIOS TRADICIONAIS
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HOMENAGEM
ED FIGUEIREDO
comunicação estética e das dis-
cussões sobre a ética da atuação
política de partidos políticos e
movimentos sociais. Conjunto de autores de “Sementes” em torno do homenageado: diferentes pontos de vista e o
objetivo comum de dar destaque ao trabalho de Ibri
Finalizando esta parte, em
On Informational Ethics [Sobre
a Ética Informacional], João An- TRAÇANDO Fabbrichesi, intitulada “As raízes
tonio de Moraes (FAJOPA) e Íta- RELAÇÕES ENTRE gregas do Pragmatismo: um novo
la Maria Loffredo D’Ottaviano CHARLES S. nome para um antigo modo de
(UNICAMP) analisam a ética PEIRCE E OUTROS pensar” . Nesta conferência, Ros-
informacional, observando as PENSADORES sella Fabbrichesi defende, a par-
razões de sua aparição e os pro- A última parte desta home- tir da análise da sociedade grega
blemas que compõem sua agen- nagem inicia-se com o capítulo retratada na Ilíada, que a noção
da de pesquisa. Diante da cres- Peirce e Uexküll Sobre Semiose e de verdade pautada na ideia de
cente integração das tecnologias Rede da Vida, de Arthur Arau- poder operativo, capaz de pro-
digitais na vida cotidiana, novas jo (UFES). As noções de rede duzir bons resultados, é ineren-
possibilidades de (inter)ação no da vida e de regra comum do te tanto à cultura grega antiga
meio ambiente se dão, entre elas significado de Uexküll e o pro- quanto ao Pragmatismo, pois
ações de caráter moral. Alguns cesso de semiose de Peirce são em ambos os casos, a verdade é
tipos de ação parecem ultrapas- colocados lado a lado, sugerindo derivada de resoluções observa-
sar o escopo da ética tradicional, que para ambos os autores a vida das para determiná-la e medida
podendo caracterizar a ética in- pode ser vista como um proces- através das consequências que
formacional como uma extensão so contínuo de significação ou produz. Perine considera as raí-
de um subsistema de princípios semiose. As relações entre essas zes gregas do Pragmatismo, pro-
morais de sistemas éticos tradi- noções são analisadas segundo postas por Rossella Fabbrichesi
cionais, tornando necessária a uma visão processualista. e aborda a questão no campo da
inclusão de outros sistemas que Marcelo Perine (PUC-SP), em ética, diferentemente da autora
permitam a avaliação moral dos Pragmatismo e Virtude, comen- que aborda a perspectiva epis-
novos tipos de ação. ta uma conferência de Rossella temológica. Destacando alguns
IBRI, Ivo Assad. “Sementes Peircianas para uma Filosofia da Arte” In: Cognitio: Revista de
Filosofia. São Paulo, v. 12, n. 2, 2011. pp. 205-219.
Dewey. Contudo, segundo ela, há,
FABBRICHESI, Rossella. “As raízes gregas do Pragmatismo: um novo nome para um antigo
na interpretação de Rorty, decla- modo de pensar” In: Cognitio: Revista de Filosofia. Vol. 9 n, 2, 2008. pp. 205-221.
rações muito controversas sobre PEIRCE, Charles Sanders. Collected Papers of Charles Sanders Peirce. (CP). CD-ROM past
cada um desses autores. masters. Charlotterville: Intelex Corporation, 1992.
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RELIGIÃO
DOUTRINA
SOCIAL
DA IGREJA:
uma guinada
progressista
Um recorte das obras dos Papas
Leão XIII, João XXIII e Paulo VI
20 • ciência&vida
Renato Nunes Bittencourt
Doutor em Filosofia
pelo PPGF-UFRJ /
IMAGENS: SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL
Coordenador do Curso
de Administração da
FACC-UFRJ. E-mail:
renatonunesbittencourt@
gmail.com
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RELIGIÃO
A
Igreja Católica sofreu duros reveses JAMAIS O CATOLICISMO SE
com a consolidação da Modernidade.
Perda de poder político, desprestígio EXPRESSOU DE MANEIRA
ideológico, concorrência com as seitas TÃO CONTUNDENTE
protestantes. Sua demora em responder aos pro-
blemas candentes da época custaram-lhe a con- SOBRE QUESTÕES DO
testação de sua hegemonia na formação religiosa CAPITALISMO COMO A
da sociedade ocidental. O Oitocentismo foi um
período marcado por incontáveis inovações téc- PARTIR DA CONSOLIDAÇÃO
nicas, por transformações políticas radicais e pela DOS DOCUMENTOS QUE
formulação de concepções sociais que se contrapu-
nham aos paradigmas tradicionais da velha orde-
FAZEM PARTE DA CHAMADA
nação teológica e metafísica da civilização cristã. DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
O positivismo, o darwinismo, a laicização cultural,
o aburguesamento social, a efervescência dos mo- do debate sobre a justa ordenação social. Contudo,
vimentos revolucionários, são alguns dos agentes jamais ela se expressou de maneira tão contundente
que sacudiram as bases axiológicas da cultura oci- como a partir da consolidação dos documentos que
dental. Novas forças surgem para se tentar resolver fazem parte da chamada Doutrina Social da Igreja.
problemas até então insolúveis. Não é nossa pretensão, no presente texto, abordar
Um desses problemas se dá na chamada questão todos esses documentos, o que demandaria muito
social e a situação dos trabalhadores explorados mais espaço. Faremos então um recorte das obras
pelas agruras de um sistema capitalista desregula- dos Papas Leão XIII, João XXIII e Paulo VI, enfa-
do, injusto e opressor. Isso não significa que a Igre- tizando alguns dos seus aspectos éticos, políticos e
ja Católica houvesse até então se mantido afastada econômicos na tentativa de se estabelecer uma so-
ciedade de conciliação, justa e bem-ordenada con-
forme os princípios cristãos.
Os desdobramentos das revoluções industriais
reconfiguraram o sistema produtivo da humani-
dade mediante inovações técnicas que transforma-
ram para sempre o modo de vida da sociedade mo-
derna, que adentrava em um regime de afluência
material, de rápida urbanização e de idolatria pelo
novo. Contudo, nem todos os segmentos sociais
se beneficiaram dessas mudanças substanciais. As
bases materiais para essas inovações, os trabalha-
dores das indústrias, os mineiros, os camponeses,
viviam em condições precárias, em uma luta diária
por sobrevivência, e pouca simpatia despertavam
nos assépticos membros da burguesia e da aristo-
cracia. As massas trabalhadoras encontraram nos
socialismos e nos anarquismos discursos e práti-
cas que incentivaram sua contraposição violenta
ao sistema opressivo do patronato capitalista, não
apenas através de greves, mas também de revoltas
e revoluções. A classe trabalhadora, desprovida de
SHUTTERSTOCK
22 • ciência&vida
PUBLIC DOMAIN /WIKIMEDIA COMMONS
apelar para meios extremos. Quando os trabalha-
dores se rebelam e chacoalham a ordem pública,
os poderes estabelecidos se agitam e se unem para
debelar essas ousadias.
A técnica usual é a repressão, mas métodos su-
tis também são utilizados para que se estabeleça o
consenso social, papel muito bem desempenhado
pela Igreja Católica nesse momento de crise geral.
A Igreja Católica é refratária em relação aos méto-
dos revolucionários e seus inerentes extremismos.
O caminho conveniente para a transformação da
sociedade é o reformismo, e para tanto a Igreja Ca-
tólica se coloca como a mãe e mestra da verdade
que auxilia o Estado a organizar as classes sociais
em convergência de ideais, mantendo assim a paz
pública. O grande desafio é realizar na prática esse
projeto, pois as paixões e demandas egoístas, em
especial das classes dominantes, são poderosas e
constantemente instrumentalizaram o poder do
Estado para que a balança jurídica favorecesse o
seu lado. Por isso, a Doutrina Social da Igreja exige
que o poder do Estado seja exercido por pessoas
moralmente qualificadas, capacitadas a governar Papa Leão XIII
pelo bem comum e não apenas para satisfação dos
grupos mais abastados, evitando-se assim a discór- exatamente proporcionado e que se poderá chamar
dia social. Trabalhadores e patrões não são inimi- simétrico, assim também, na sociedade, as duas
gos, mas irmãos componentes de um organismo classes estão destinadas pela natureza a unirem-se
cujas partes são interdependentes. harmoniosamente e a conservarem-se mutuamente
O Papa Leão XIII, na Carta Encíclica Rerum No- em perfeito equilíbrio. Elas têm imperiosa necessi-
varum (publicada em 15.5.1891), apresenta a tese dade uma da outra: não pode haver capital sem tra-
de que o erro capital é crer que as duas classes são balho, nem trabalho sem capital. Quanto aos ricos
inimigas natas uma da outra, como se a natureza ti- e aos patrões, não devem tratar o operário como
vesse armado os ricos e os pobres para se combate- escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem,
rem mutuamente num duelo obstinado. Isto é uma realçada ainda pela do Cristão. O trabalho do cor-
aberração tal, que é necessário colocar a verdade po, pelo testemunho comum da razão e da filosofia
numa doutrina contrariamente oposta, porque, as- cristã, longe de ser um objeto de vergonha, honra
sim como no corpo humano os membros, apesar o homem, porque lhe fornece um nobre meio de
da sua diversidade, se adaptam maravilhosamen- sustentar a sua vida. O que é vergonhoso e desu-
te uns aos outros, de modo que formam um todo mano é usar dos homens como de vis instrumentos
www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 25
RELIGIÃO
26 • ciência&vida
possam perpetuar legalmente os seus privilégios. querda, mas de qualquer mentalidade sociopolíti-
O Papa Paulo VI, na Carta Encíclica Popolurum ca dotada de decência e senso de responsabilidade
Progressio (publicada em 26.5.1967), demonstra a econômica:
total conexão da Igreja Católica com os problemas
candentes da época, o subdesenvolvimento social, O bem comum exige por vezes a expropriação,
os efeitos deletérios do imperialismo e a aviltante se certos domínios foram obstáculos à prosperidade
convivência entre o esplendor da riqueza e a po- coletiva, pelo fato de sua extensão, da sua explora-
breza nas cidades (resultado do egoísmo das classes ção fraca ou nula, da miséria que daí resulta para
dominantes, alheias ao sofrimento das massas). O as populações, do prejuízo considerável causado aos
progresso material da civilização humana é plena- interesses do país (PAULO VI, Populorum Progres-
mente adequado ao Plano Divino, mas não pode sio, p. 121).
ser dissociado do progresso espiritual, isto é, a re-
alização da caridade, da solidariedade, da justiça, A denúncia dos abusos do capitalismo também
da comunhão entre os povos. Algumas das suas não pode ser escamoteada. Em nome dos seus fun-
colocações chocariam as consciências mais desavi- damentos o ser humano usualmente se desperso-
sadas, tal como a defesa da reforma agrária, que de naliza e se afasta dos mandamentos divinos, tor-
maneira nenhuma é uma demanda exclusiva da es- nando-se frio, calculista, desprovido de amor ao
próximo. Mesmo a propriedade privada, direito criativa que são geradas pela concorrência eco-
legítimo para a dignidade da pessoa humana, não nômica, de nada adianta se essa prática é gera-
pode ser imputada de maneira absoluta em caso de da apenas com o fito egoísta de sucesso material
prejuízo para o bem comum: em detrimento dos demais, pois a tônica desse
empreendimento enaltece o individualismo e su-
Infelizmente, sobre estas novas condições da so- prime a lógica da colaboração mútua. Podemos
ciedade, construiu-se um sistema que considerava inclusive fazer aqui uma crítica ao discurso do
o lucro como motor essencial do progresso econômi- empreendedorismo empresarial, pois no fundo o
co, a concorrência como lei suprema da economia, que se encontra por trás dessa reconfiguração do
a propriedade privada dos bens de produção como espírito capitalista é uma nova técnica de geração
direito absoluto, sem limite nem obrigações sociais de mais-valia, onde o sujeito é valorizado por suas
correspondentes (PAULO VI, Populorum Progres- capacidades de inovação e recriação pessoal no
sio p. 122) mercado para que em verdade amplifique o índice
de lucro dos detentores dos meios de produção. O
Encontramos no texto de Paulo VI também empreendedorismo e a competição só encontram
uma objeção ao espírito concorrencial inerente real dignidade econômica em uma gestão produ-
ao liberalismo. Apesar da proatividade e da força tiva orientada para a satisfação horizontal e co-
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MESOLOGIA por rodrigo petronio
A revolução dos
geocentristas
O
leitor deve ter visto e se as especificidades, os axiomas estão de com hipóteses. Por exemplo,
divertido recentemente para a filosofia como as evidências como o heliocentrismo, a teoria da
com um vídeo no qual estão para a ciência experimental. gravitação universal transcorreu de
Olavo de Carvalho nega Pois bem. O sistema heliocêntrico Newton a Einstein sendo colocada à
o heliocentrismo, o sistema segundo não pode ser refutado porque não é prova. Recentemente a aferição de
o qual a Terra gira em torno do sol. apenas uma hipótese ou um axioma. ondas gravitacionais corroborou a
Não satisfeito, também nega Einstein. Ele é uma evidência. E só pode teoria de Einstein. Por isso é uma lei,
Como você viu, eu disse nega. Não ser refutado por outras evidências, não uma hipótese.
disse refuta. Qualquer um pode ne- levantadas e comprovadas ao longo A teoria da seleção natural de
gar qualquer coisa. A refutação não de um lento percurso e de milhares Darwin tampouco é uma hipótese.
se restringe a negar. Consiste em de- de experimentações cotidianas le- É uma evidência que vem sendo
sarticular o cerne de uma teoria. vadas a cabo por milhares de cien- confirmada há quase dois século por
Em filosofia, a refutação demanda tistas ao redor do mundo. Esse é o experimentos. Ao passo que o cria-
a desarticulação do axioma, o centro percurso da refutabilidade, descrito cionismo é uma hipótese que tem
lógico de um sistema. Nas ciências por Popper. dez mil anos de existência e nunca
experimentais, a refutação exige uma Por esse motivo, evidências não foi comprovada, pois o termo-Deus,
invalidação das evidências. Malgrado podem ser colocadas em igualda- cerne de seu postulado, não é pas-
sível de verificação empírica. Equi-
valer darwinismo e criacionismo
O UNIVERSO É FORMADO POR conduz a outros dois ismos: obscu-
BILHÕES DE GALÁXIAS E TRILHÕES rantismo e charlatanismo.
30 • ciência&vida
locais, não de refutação global. E apenas na Terra e propôs um sistema heliocêntri-
podem ser substituídas por outras evidên- co. Eratóstenes de Cirene fez experimen-
cias. Quem diz refutar globalmente uma tos a partir da luz deduziu a curvatura da
evidência querendo reduzi-la a uma hi- Terra em relação ao sol. Sua pesquisa tam-
pótese é um charlatão. Um obscurantista. bém deu ensejo a especulações heliocên-
Um completo picareta. Simples assim. tricas. O Corpus Hermeticum, texto-base
O nome sofisticado par quem nega da religião solar da Antiguidade conheci-
evidências é negacionista. Na historiogra- da como hermetismo, tem uma descrição
fia, por exemplo, apesar das esmagado- minuciosa do sistema heliocêntrico. Os
Rodrigo Petronio nasceu
ras evidências, os negacionistas negam o Satapatha Brahmana, compilação de tex- em 1975, em São Paulo.
Holocausto e o genocídio do povo judeu tos sagrados do hinduísmo, descrevem Escritor e filósofo,
pelos nazistas. Os racistas são negacio- uma cosmologia heliocêntrica. atua na fronteira entre
nistas das evidências da escravidão e da Na modernidade, Giordano Bruno foi literatura, semiologia,
paridade genética entre as diversas raças. queimado em uma fogueira pela Inquisi- narratividade e Filosofia.
Professor titular da Faap.
Os negacionistas do patriarcado negam as ção, formada pelos olavistas do século XVI Desenvolve pós-doutorado
infinitas evidências da violência e assime- (nada de novo sob o sol), por defender o no Centro de Tecnologias
tria entre homens e mulheres. heliocentrismo e a pluralidade dos mun- da Inteligência e Design
Olavo de Carvalho e os olavistas con- dos. Copérnico defendeu o heliocentris- Digital [TIDD/PUC-SP]
mo, mas denegou-o, com medo de ter o sobre a obra de Alfred
seguem a proeza de serem negacionistas
North Whitehead e as
de quase todas as evidências do século mesmo destino. Galileu teve que abjurar ontologias e cosmologias
XX. Diferente do que o Olavo de Car- (negar suas crenças) diante da Igreja por- contemporâneas. Autor,
valho afirma em sua aula-piada, o helio- que demonstrou empiricamente o helio- organizador e editor de
IMAGENS: SHUTTERSTOCK/ARQUIVO PESSOAL
centrismo e o geocentrismo não são duas centrismo. Seria queimado também se diversas obras. Publicou
mais de duas centenas de
hipóteses equivalentes. O geocentrismo é não o fizesse. Toda cosmologia desde o
artigos, resenhas e ensaios
uma hipótese que foi descartada e com- século XVI e XVII é heliocêntrica: Kepler, em alguns dos principais
pletamente refutada pelo heliocentrismo. Leibniz, Newton, Descares, Hume, Lo- veículos da imprensa
E isso vem desde a Antiguidade. cke, Kant, Humboldt, Gödel, Dirac, Plan- brasileira. Recebeu prêmios
O grego Aristarco de Samos descreveu ck, Böhr, Poincaré, Whitehead e Einstein. nacionais e internacionais
nas categorias poesia,
e defendeu um sistema heliocêntrico. Era- Depois de ter o vídeo desmentido por
prosa de ficção e ensaio.
clides de Ponto mediu as variantes da luz cientistas em uma reportagem da Folha
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de S.Paulo, Olavo de Carvalho en- ENQUANTO SE DEBATE SOBRE
viou um assecla para defendê-lo. A
emenda saiu pior do que o soneto. PLURIVERSOS, EMARANHAMENTO
O iluminado mentecapto defendeu o QUÂNTICO, TEORIA DAS CORDAS,
guru dizendo que o guru estava ques-
tionado o conceito de centro do uni-
UNIVERSOS ALTERNATIVOS,
verso. Não se a órbita era geocêntrica OS DOENTES MENTAIS QUE
ou heliocêntrica.
Mas quem está falando em centro
GOVERNAM O BRASIL ESTÃO
do universo? O heliocentrismo postu- PREOCUPADOS EM SABER QUAL
la o sol como centro do sistema solar.
Por isso o sistema se chama sistema
BOLINHA GIRA EM TORNO DE QUAL
solar. As estrelas são as usinas do uni-
verso. Por causa da energia e da den- problema político. É uma demência de fome. Cientistas que trabalham
sidade, exercem força gravitacional coletiva normatizada. Fingem refutar para difundir ideias absolutamente
sobre os demais astros ao redor. teorias quando na verdade apenas aceitas em todas as democracias li-
O universo é formado por bilhões defendem superstições e o mais tri- berais e em todos os países capita-
de galáxias e trilhões de estrelas. Se vial senso comum. E negam os fatos listas do mundo.
o universo tiver um centro, hipóte- e as evidências como se estivessem Enquanto esses países enri-
se que poderia ser levantada, esse produzindo teoria. O desserviço des- quecem com ciência e tecnologia.
centro deveria envolver essa multidi- sa inversão é gigantesco. Imaginem Enquanto debatem pluriversos, ema-
mensionalidade de bilhões e bilhões milhares de pessoas, das mais varia- ranhamento quântico, teoria das
de galáxias. Isso não invalida em ab- das crenças, classes sociais, ideologias cordas, universos alternativos, cos-
solutamente nada a lei da gravitação e graus de instrução sendo lobotomi- mologias paraconsistentes e ontolo-
restrita de corpos celestes e astros ao zadas por esses farsantes de internet. gias pluralistas, os doentes mentais
redor da estrela-sol. Essa atitude é uma violência que governam o Brasil estão preocu-
O desastre de pessoas como Ola- contra os milhares de professores pados em saber qual bolinha gira em
SHUTTERSTOCK
vo de Carvalho e seus seguidores e cientistas brasileiros. Muitos de- torno de qual. Se o sol orbita a Terra
no poder é inclassificável e inquali- les anônimos, ganhando a vida aos ou se a Terra o sol. O próximo passo
ficável. Não consiste apenas em um trancos e barrancos com salários será a defesa da Terra Plana.
32 • ciência&vida
CADERNO DE CIÊNCIAS
SOCIAIS & EDUCAÇÃO
DIREITO À CIDADE
DIREITO À CIDADE
A segregação e o crime na cidade de São Paulo
A
realidade das grandes cidades é uma como campo de pesquisa o bairro da Mooca.
paisagem repleta de muros que sepa- No livro ela diz:
ram seres humanos e individualizam
os mundos. A fala do crime- ou seja, todos os tipos de conversas,
Cada condomínio possui um mundo a comentários, narrativas, piadas, debates e brincadei-
parte do externo, um lugar onde pessoas se ras que têm o crime e o medo como tema- é contagian-
isolam atrás de enclaves fortificados e a partir te. Quando se conta um caso, muito provavelmente
daí estabelecem outros tipos de relações socio- vários outros se seguem; e é raro um comentário ficar
espaciais, mantendo-se seguras de toda a sem resposta. (...) O medo e a fala do crime não apenas
SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL DO AUTOR
Victor Santana de
Araújo é graduando violência que as amedronta e as mantém tran- produzem certos tipos de interpretações e explicações,
em Sociologia cadas atrás de grandes muros. como também organizam a paisagem urbana e o
e Política pela A professora titular do Department of espaço público, moldando o cenário para as interações
Fundação Escola de City and Regional Planning da Universidade sociais que adquirem novo sentido numa cidade que
Sociologia e Política da Califórnia, Teresa Pires do Rio Caldei- progressivamente vai se cercando de muros.1
de São Paulo (FESPSP). ra, em seu livro “Cidade de Muros”, fez um
1
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime,
estudo entre os anos 1988 e 1998 sobre as
segregação e cidadania na cidade de São Paulo; tradução de Frank
mudanças na cidade de São Paulo a partir dos de Oliveira e Henrique Monteiro. São Paulo: Editora 34;
discursos crescentes sobre violência, tendo Edusp, 2011. p. 27.
O DIREITO À CIDADE
O Direito à Cidade é uma teoria
que nasce a partir dos processos de
urbanização e de propagação do
capitalismo.
A partir da dinamização da
indústria e dos comércios, aumenta-
4
HARVEY, David. A produção capitalista do es-
paço. Annablume, 2005. p. 150.
mais violento que os outros animais residenciais multifamiliares existentes muros: crime, segregação e cidadania na
cidade de São Paulo; tradução de Frank de
porque fala. É por meio de um no Município de São Paulo. Oliveira e Henrique Monteiro. São Paulo:
simples questionamento, aparen- Art. 3º § 2º- Fica o responsável Editora 34; Edusp, 2011.
temente duvidoso, que podemos pelo edifício, administrador ou síndico, CARLOS, Ana Fani Alessandri. O espaço
de fato nos questionar seriamente conforme for o caso, obrigado no prazo urbano: novos escritos sobre a cidade. São
acerca da violência cometida entre de 60 (sessenta) dias a partir da publi- Paulo. FFLCH, 2007.
os seres humanos. Pois a linguagem cação desta Lei, a colocar na entrada do HARVEY, David. A produção capitalista do
possui uma relação dialética com edifício e de forma bem visível o aviso espaço. Annablume, 2005. p. 150.
a cultura e estabelece, então, uma de que trata o “caput” deste artigo.10 MARX, Karl. O Capital: crítica da economia
relação de dominação. política. São Paulo: Boitempo, 2013
A violência da linguagem está E mesmo com as exigências LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São
intimamente ligada à violência da lei, não apenas os condomínios Paulo: Centauro. 2001. p. 11.
sistêmica, e um exemplo pode ser desrespeitam as normas previstas, SANTOS, Milton. A urbanização desigual:
observado nos condomínios, cujos mas os próprios trabalhadores desses a especificidade do fenômeno urbano em
países subdesenvolvidos. São Paulo: Editora da
elevadores e portarias não servem condomínios enxergam a si mesmos Universidade de São Paulo, 2012.
9
ZIZEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. 10
São Paulo. Lei nº 11.995, de 16 de janeiro de ZIZEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais.
Tradução Miguel Serras Pereira. 1 ed. São Paulo: 1996. Disponível em: http://legislacao.prefeitura. Tradução Miguel Serras Pereira. 1. ed. São
Boitempo, 2014. pp. 58-59. sp.gov.br/leis/lei-11995-de-16-de-janeiro-de-1996 Paulo: Boitempo, 2014.
O ENEM E A
BATALHA CULTUR AL
Ciências Sociais e Humanidades no ENEM do
Governo Bolsonaro: perspectivas e parâmetros
O
Dr. Alessandro capitão da reserva e ex-deputa- por temas alinhados à tradição Liberal Clássi-
Farage é Cientista do federal Jair Messias Bolsonaro ca. O patriotismo, os direitos civis, a democra-
Político, Jurista, (PSL) abriu seu caminho em dire- cia liberal e a economia de livre-mercado, com
Sociólogo e ção à presidência da República com discurso todas as suas bases humanistas e sociológicas,
Demógrafo. Pós- antiesquerdista. Desde cedo, prometeu trans- terão lugar no ENEM em 2019.
Doutorado pela formar seu governo em promotor dos valores e Sabemos que não há consensos imutáveis
University of ideais nacionalistas, contra a dissolução moral nas Ciências Sociais, e por isso é razoável con-
Denver. Diretor das esquerdas e a cultura antirrepublicana do cluir que as questões elaboradas para o ENEM
Acadêmico patrimonialismo1. são fruto de opções teóricas relativamente ar-
da Riotech e É nesse sentido que o Exame Nacional do bitrárias. No campo aberto do arbítrio, as con-
Coordenador no Ensino Médio (ENEM) merece nossa atenção. vicções dominantes no interior do Instituto
Colégio Objetivo. Seu conteúdo de Ciências Humanas é compos- Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
E-mail: alefarage@ to por conhecimentos básicos da área. Contu- Anísio Teixeira (INEP) podem influenciar de-
gmail.com do, o “básico” é largamente determinado a par- cisivamente a elaboração das questões e mesmo
tir das referências intelectuais dos responsáveis do tema indicado para a redação. Por alcançar
Rafael Valladão pela organização do exame. Assim no governo milhões de estudantes, o ENEM é um instru-
é Licenciando em Bolsonaro as questões de Ciências Sociais e mento de luta na guerra cultural que Bolsonaro
Ciências Sociais Humanidades serão provavelmente marcadas declarou contra o “socialismo”.
pela Universidade pelas Escolas Conservadoras e Liberais. As
Federal Fluminense temáticas associadas à esquerda, tais como o A GUERRA CONTRA
e Professor de Marxismo e a Terceira Via, serão substituídas O MARXISMO CULTURAL
Sociologia em curso Se o novo governo está empenhado em
pré-vestibular 1
O patrimonialismo é a característica de um determinada sociedade despetizar a administração, como declarou o
desde 2014. que não possui distinções entre o patrimônio público e o privado. ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni
trimonialismo em favor de uma Edu- mo não teria saído vitorioso das urnas
cação Cívico-Patriótica. Entende-se se a academia e os grandes meios de
que a educação forma a mentalidade comunicação não fizessem a cabeça
dominante e pode ser instrumentali- dos brasileiros no sentido de torná-los
zada nesse sentido. simpáticos às pautas esquerdistas. Eis
Pela educação porque, segundo a estratégia gramsciana.3
Olavo de Carvalho, a política não é A revolução silenciosa do grams-
meramente decidida na disputa de in- cismo começaria pelo recrutamento
teresses entre os poderosos. Ela é pro- de docentes no ensino básico e no
duto da cultura dominante no país, isto nível superior, passando pela sedu-
é, da espessa nuvem de ideias, crenças ção ideológica de artistas e profissio-
e costumes que encobre a vida em so- nais da comunicação. Nas palavras
VALTER CAMPANATO/AGÊNCIA BRASIL
ciedade. Os burocratas e políticos de de Olavo de Carvalho, “a pessoa se
Brasília são, antes de tudo, formados torna socialista sem nem perceber”,
pelas ideias e crenças preponderantes logo ela aprende a raciocinar em
em seu meio de origem. O filósofo é termos ideologizados como luta de
adepto da abordagem psicológica da classes. A contaminação ideológica
cultura e acredita na prevalência do seria fruto do marxismo cultural, isto
mental sobre o material. é, a inoculação sistemática de ideias
O ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni Bolsonaro não poderia, portanto, e ideais marxistas na mentalidade
eliminar o patrimonialismo sem des- dos brasileiros.
(DEM), então é lógico que a equipe truir as bases culturais do lulopetis- O presidente está pessoalmente
de Bolsonaro vai se preocupar com mo. Uma dessas bases é o conteúdo comprometido com a missão de ex-
órgãos federais estratégicos no con- prático-pedagógico disseminado na tirpar os elementos ideológicos do
fronto com o esquerdismo. Entre eles, educação pública. Logo, reformular o gramscismo, supostamente difusos
o Ministério da Educação ocupa posi- ENEM significa ganhar uma batalha na prática institucional do governo.
ção de destaque. Não por acaso, o novo na guerra cultural. Segundo Olavo Portanto, a mudança da cultura acadê-
ministro é Ricardo Vélez Rodriguez, de Carvalho, o PT chegou ao poder mica do MEC nos convida a refletir
intelectual alinhado ao Liberalismo baseado na hegemonia cultural de sobre as possíveis mudanças nos temas
Clássico2. Em seu discurso de posse, esquerda, lentamente construída por usualmente abordados pelo ENEM.
Vélez afirmou que irá “combater com jornalistas e intelectuais marxistas Se as edições anteriores do exame
denodo o marxismo cultural” e que desde fins do regime militar. O petis- trouxeram questões de corte progres-
haverá viés “liberal-conservador nas sista, devemos esperar em 2019 um
políticas educacionais”. Para o chefe
do MEC, o lulopetismo é essencial-
UMA DAS BASES exame marcado pelo conservadorismo
moral e liberalismo econômico.
mente patrimonialista. CULTURAIS DO Além da oposição cerrada às
O tema da guerra cultural foi po- pautas progressistas, deve haver um
pularizado no Brasil por Olavo de LULOPETISMO ousado revisionismo de questões his-
Carvalho, filósofo que foi adotado
como ideólogo pelo bolsonarismo. O
SERIA O CONTEÚDO tóricas bastante sensíveis à nossa his-
toriografia. Para os adeptos do bol-
filósofo é influente no governo e indi- PRÁTICO- sonarismo, os temas históricos foram
cou os nomes de Vélez Rodriguez ao interpretados segundo os padrões
MEC e do diplomata Ernesto Araújo -PEDAGÓGICO éticos e metodológicos da esquerda.
ao Itamaraty. A atmosfera ideológica
do governo é formada por dois ele-
DISSEMINADO Interessa agora ao MEC a substitui-
ção da narrativa histórica, sempre su-
mentos principais: o antiesquerdismo, NA EDUCAÇÃO pondo que exista uma distinção entre
estendido às esquerdas de maneira ge- a veracidade objetiva da História e a
ral e ao lulopetismo em particular; e PÚBLICA. LOGO, interpretação mentirosa da esquerda,
um sincretismo político de correntes
conservadoras e liberais. Um desejo
REFORMULAR O pelo que devemos esperar mudanças
na bibliografia do exame. Podemos
dominante entre ministros e secretá- ENEM SIGNIFICA mapear algumas chaves temáticas
rios do governo é a extirpação do pa- que devem sofrer alterações nos pres-
GANHAR UMA supostos das questões. Do ponto de
2
O Liberalismo Clássico é uma filosofia política
e econômica cuja principal característica é a de- BATALHA NA 3
O gramscismo prega a mudança da cultura na
fesa da Liberdade Individual, com limitação do sociedade em direção ao socialismo ao invés do
poder do Estado e respeito aos Direitos Civis. GUERRA CULTURAL conflito político direto.
vista metodológico, a perspectiva AO CONTRÁRIO gosto público uma das formas mais an-
histórico-crítica, inspirada no mar- tigas do saber humano.
xismo, deve dar lugar ao positivismo- DAS ESCOLAS Ao contrário das escolas materialis-
-funcionalista4. tas da filosofia moderna, os bolsonaristas
MATERIALISTAS são adeptos de abordagens idealistas e
LINGUAGENS DA FILOSOFIA especulativas como a metafísica aristo-
Em questões de linguagens, é espe- télica ou a ética kantiana. Provavelmente
rado que o Marxismo e a Filosofia da MODERNA, OS a ética de Aristóteles apareça com maior
Linguagem de Mikhail Bakhtin5 ceda frequência, em função da perspectiva
lugar à filosofia de Gottlob Frege6 e
BOLSONARISTAS integracionista do filósofo de Estagira.
suas categorias analíticas de sentido e SÃO ADEPTOS DE Obras clássicas como a Ética a Nicômaco
referência. Não devemos esperar abor- e a Política sugerem o senso de pertenci-
dagens do idioma como criação coleti- ABORDAGENS mento à pólis como o ajustamento ético
va e dinâmica. Por isso, as questões de do indivíduo à comunidade, diferente-
linguagens devem entender a língua
IDEALISTAS E mente da perspectiva de colisão entre
como o código rígido de signos a ser ESPECULATIVAS classes adotada pela filosofia política de
assimilado por todos os brasileiros de- linhagem rousseauniana-marxista.
vidamente alfabetizados. COMO A Devemos esperar também questões
Uma consequência dessa opção que associem Platão a Agostinho, Aris-
metodológica é o abandono da análise
METAFÍSICA tóteles a Tomás de Aquino, comparan-
da realidade social por meio da inter- ARISTOTÉLICA OU do-se o medievo à idade antiga. Olavo
pretação textual. Se o ENEM de 2017 de Carvalho é um defensor da Filosofia
trouxe letras dos Racionais MC’s, com A ÉTICA KANTIANA Clássica no sentido amplo e seus segui-
o objetivo de incentivar o aluno a as- dores são geralmente católicos aprecia-
sociar a linguagem artística com a vida que talvez apareça em Literatura é José dores da escolástica. Antipático ao ilu-
suburbana descrita pelo rap, o mesmo Guilherme Merquior8. minismo francês que teria depreciado
não deve ocorrer no próximo exame. o cristianismo, Olavo rechaça nomes
Na última edição, criou-se polêmica FILOSOFIA como Voltaire e Diderot, que devem
sobre uma questão que tratou da língua Se o mentor intelectual do gover- ser retirados do exame. Quanto à filo-
pajubá, código interno da comunidade no Bolsonaro é um filósofo, é previsível sofia moderna do Estado, autores libe-
LGBT. Jair Bolsonaro, então candidato o peso atribuído à Filosofia pela nova rais como Locke e Montesquieu devem
à presidência da República, repudiou gestão do MEC. Disciplina obrigatória ofuscar Hobbes e Rousseau. Já a cidada-
publicamente a questão e afirmou que, em todas as escolas desde 2008, junta- nia, entendida como a participação po-
em seu governo, iria ler as provas antes mente com a Sociologia, a Filosofia é lítica dos indivíduos que compartilham
de sua aplicação aos estudantes. infelizmente depreciada como disciplina a vida em sociedade, deve ser abordada
Quanto à Literatura, é possível que secundária. Seu tratamento no ENEM com o Alexis de Tocqueville em sua De-
Otto Maria Carpeaux7 apareça em é importante porque pode reabilitar no mocracia na América.
questões sobre a história das letras no Outro tema caro à filosofia política
Brasil e no mundo. Carpeaux é autor do 8
Sociólogo e crítico literário. Autor de O Libera- moderna é o jusnaturalismo. O Direito
monumental livro História da Literatu- lismo antigo e moderno, entre outras obras. Natural é o fundamento das políticas de
ra Ocidental, recentemente reeditado. Direitos Humanos no mundo contem-
Outro nome à direita da crítica literária porâneo. Inicialmente concebido como
um esquema geral de direitos inaliená-
4
Para o positivismo-funcionalista as coisas veis de todo homem, a pauta dos Di-
que existem, como todos os fenômenos sociais, reitos Humanos teria sido sequestrada
apresentam uma função específica, um lugar pela esquerda identitária que estimulou
em uma ordem, de maneira que os fenômenos
um Direito Positivo para grupos mino-
socias são factuais. Essa corrente é marcada por
forte cientificismo. ritários supostamente ameaçados pela
maioria. Na visão liberal-conservadora,
5
Pensador russo marxista e filósofo da lin-
guagem. Segundo ele, as palavras são “signos a pauta deixou de se referir à humanida-
ideológicos”. de em geral e passou a privilegiar grupos
IMAGENS: SHUTTERSTOCK
6
Matemático e filósofo alemão. Sua filosofia da
menores cooptados por partidos de es-
linguagem privilegia a precisão lógica dos discursos. querda. Autores como Thomas Sowell9
7
Polímata austro-brasileiro. Autor da co-
letânea Ensaios Reunidos, organizada por 9
Economista, crítico social e filósofo norte-
Olavo de Carvalho. Gottlob Frege, pensador alemão (1848-1924) -americano. Autor de Intelectuais e Sociedade.
e Roger Scruton10 pregam o retorno à fator aglutinador da vida em sociedade, explicar por que o Brasil seria um país
universalidade do direito para prevenir e não como um mero código arbitrário subdesenvolvido. Esses autores devem
a tirania estatal e coibir a mobilização e coercivo de normas, pode aproximar o ser aproveitados tanto em relação à in-
autoritária de minorias. sociólogo da pretensão bolsonarista de terpretação sociológica do Brasil quanto
moralizar o ENEM. Os vestígios posi- sobre questões como o patrimonialismo
SOCIOLOGIA tivistas no pensamento de Durkheim o e a corrupção.
Entre os três autores clássicos da aproximam da mentalidade militar posi- Quanto à sociologia brasileira, de-
Sociologia, pode parecer evidente que tivista brasileira. vemos considerar o retorno de autores
Karl Marx será evitado. No entanto, é Quem deve aparecer mais forte- clássicos que foram paulatinamente
possível que seus textos menos pan- mente é o alemão Max Weber. As mar- retirados das bibliografias acadêmicas
fletários sejam tomados para análise a cantes diferenças teórico-metodológicas e do rol de referências do ENEM. É o
partir de questões temáticas, evitando entre Weber e Marx garantem ao pri- caso dos nacionalistas autoritários Oli-
que o panfletário comunista ofusque o meiro a posição privilegiada de autor veira Vianna e Alberto Torres, além do
filósofo e economista. O tema da re- individualista, em oposição ao coleti- ideólogo da democracia racial Gilberto
volução, por exemplo, aparece no texto vista. O individualismo metodológico Freyre. Os dois primeiros pertenceram
18 de Brumário de Luís Bonaparte, cujo de Weber toma a individualidade como à lavra de autores que colocaram o
foco analítico é mais histórico e menos a esfera primeira da ação social. Dado problema nacional em perspectiva au-
partidário. É possível que o texto seja que uma crítica recorrente ao marxismo toritária na primeira metade do século
comparado ao O antigo regime e a revo- consiste na suposta supremacia do co- XX. Já Gilberto Freyre ocupa posição
lução, de Tocqueville. letivo, é de se esperar que a abordagem privilegiada na galeria intelectual do
Já Émile Durkheim foi bastante vi- weberiana do indivíduo seja privilegiada. Brasil. Não há quem negue a relevância
sitado nas edições anteriores do ENEM. O ENEM deve retomar sua explicação e a originalidade de suas ideias quan-
O fundador da ciência dos fatos sociais da economia de mercado, exposta no to à relação interracial no país. Pela
recebeu tamanha atenção pelo fato de clássico A ética protestante e o espírito magnitude de sua obra, Freyre pode
ter reunido esforços no sentido de sis- do capitalismo. Weber oferece uma visão ser lido de diferentes perspectivas, in-
tematizar a Sociologia e instituciona- alternativa à tese marxista da posse au- clusive do ponto de vista conservador.
lizar o ensino e a pesquisa da ciência tocentrada dos meios de produção pela Segundo a leitura conservadora de
nascente. Suas noções de consciência classe burguesa. Freyre, ocorreu um ajustamento es-
coletiva, sua tipologia da solidariedade Além disso, o autor privilegia a cul- pontâneo entre as raças envolvidas na
humana, sua definição categórica sobre tura como o foco analítico de sua obra, escravatura, apesar do antagonismo
os fatos sociais, todo o edifício teórico opondo-se ao determinismo econômico entre senhores e escravos.
de Durkheim recebeu a atenção devida da obra de Marx. O tipo culturalista é
pelo INEP e deve marcar presença no a base de vários intelectuais brasileiros. HISTÓRIA E GEOGRAFIA
ENEM em 2019. É o caso de Raimundo Faoro e seu cé- A historiografia talvez seja o campo
As ideias de Durkheim não se filiam lebre Os donos do poder, uma explicação de batalha mais frequentado em qual-
diretamente a partidos políticos, tam- culturalista do problema brasileiro com quer guerra cultural, afinal revisar o pas-
pouco sua Sociologia está em oposição a elite no poder. Além dele, Roberto sado é um caminho para interpretar o
aos princípios morais enaltecidos pelo Damatta e Meira Penna11 também se presente. Ricardo Vélez já afirmou que
governo. Ao contrário, a tentativa do apropriaram do método culturalista para a nova geração de liberais havia se can-
autor em focalizar a Moral como um sado da “vulgata marxista”, isto é, da his-
11
José Osvaldo de Meira Penna, diplomata e en-
saísta. Publicou livros de psicologia social e história
tória contada nas escolas e reproduzida à
10
Filósofo conservador inglês. Autor de vários livros das ideias como Psicologia do Subdesenvolvimento, O exaustão nos livros didáticos.
sobre filosofia, política, estética e ambientalismo. espírito das revoluções e A ideologia do século XX. Quanto à história recente, temas
importantes como as manifestações de
2013, o impedimento de Dilma Rous-
seff, o Mensalão e a Lava Jato podem
ser abordados. Os escândalos de cor-
rupção revelados durante o governo
Lula e em meio à operação Lava Jato
são marcadores do debate historiográ-
fico. Logo, não há dúvida que tal tema,
assim como os protestos de 2013, me-
rece a atenção da academia e do INEP.
Podemos esperar uma abordagem da
corrupção com o viés liberal da crítica
ao patrimonialismo.
PROFESSOR DE
FILOSOFIA: EDUCADOR
OU LIBERTADOR?
Uma reflexão a partir da aproximação entre os
pensamentos de Max Stirner e Friedrich Nietzsche
A
tarefa de educar, em um tempo não o que vemos é uma sociedade individualista,
muito distante, era vista tanto por competitiva e agressiva.
professores e alunos, como algo de O filósofo-educador, assim como os profes-
pleno sentido. Muitos acreditam que foi sores de outras áreas, precisa enfrentar o desafio
assim ontem e continuará sendo para todo o de um mundo apressado, onde impera a into-
sempre. Estes são os que creem que a educa- lerância quase que absoluta entre as pessoas,
SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL DO AUTOR
ção é o melhor e principal instrumento para instalando-se na prática docente uma perspec-
que as pessoas possam se preparar para uma tiva incerta e por vezes desanimadora. É visto a
Leonor Gularte Soler/ vida plena, uma cidadania participativa e uma mínima importância que as famílias dão a educa-
PPGE-UFPel é aluna convivência um pouco menos conf lituosa. ção, usando as escolas como albergues, casas de
regular de Mestrado Ninguém diz que a educação é inútil. Porém, correção para aqueles que não conseguem ou
do Programa de Pós há uma proliferação de alguns, que asse- não sabem educar, como também, servindo de
Graduação em Educação guram que em meio a tanto desemprego e depósito de crianças enquanto os pais vão para
da Universidade Federal desigualdades, seria incoerente educar para o trabalho, em contrapartida o pouco ou quase
de Pelotas a convivência, visto que em torno da escola nenhum reconhecimento da profissão docente.
DESDE O SÉCULO XVII ATÉ NOSSOS DIAS, como um paciente que recebe os conheci-
mentos conteúdos-acumulados pelo sujei-
O QUE SE OBSERVA É UMA SUCESSÃO DE to que sabe e que são a mim transferidos.
Nesta forma de compreender e de viver o
MÉTODOS DE ENSINO COM A PREOCUPAÇÃO processo formador, eu, objeto agora, terei
DE ATINGIR A MÁXIMA DE EFICIÊNCIA E a possibilidade, amanhã, de me tornar o
falso sujeito da formação do futuro obje-
CONSTRUIR UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA to de meu ato formador” (FREIRE,
2002,p.12).
A PARTIR DA IGUALDADE DE INTELIGÊNCIAS
Desde o século XVII até nossos
Nesse cenário caótico onde de um lado minados pelas instituições habilita- dias, o que se observa é uma suces-
vivemos um tempo de possibilida- das para isso. Sendo assim, o sentido são de métodos de ensino, todos com
des e conquistas na área da educação, de ensinar filosofia, redefine-se pelo a preocupação de atingir a máxima de
porém, de outro instala-se uma crise sentido institucional que se outorga a eficiência. A ideia comum que envol-
em diferentes dimensões. Consequen- esse ensino (p.13). veu a escola pública foi de construir
temente, a organização escolar é convi- A reflexão filosófica, sobre o senti- uma sociedade democrática a partir
dada a se ressignificar para que possa do da filosofia torna-se abreviada em da igualdade de inteligências. Siste-
enfrentar as barreiras impostas pela favor da introdução dos conteúdos ma esse, que segundo Gallo (2014), se
contemporaneidade. específicos. A questão o que se ensina? baseou na lógica da explicação de que
Há ainda aqueles que acreditam e como se ensina? muitas vezes conduz “alguém que não sabe só pode aprender
que para se instituir uma nova orga- o professor a uma espécie de senso quando outra pessoa, que sabe, expli-
nização social é necessária uma nova comum que se constitui em torno do ca,” o que contribui para manter a desi-
mentalidade, uma nova forma de vida, ensinar filosofia muito frequentemen- gualdade, afastando a possibilidade da
o que só é possível através da educa- te apenas na transmissão de qualquer emancipação intelectual. É preciso
ção. Essas ideias marcaram o princípio conhecimento. O que foi brilhante- “haver uma relação de igualdade entre
pedagógico da educação libertaria nos mente caracterizado por Paulo Freire quem ensina e quem aprende sem
séculos XIX e XX, delineados pela (1921-1997) em sua concepção bancá- submissão ou assimetria, uma relação
defesa da autonomia. ria de educação: na qual o aprendizado é uma conquis-
O propósito deste artigo é pensar a ta e uma realização de uma inteligên-
relação discente-docente no ensino de “(..) que se, na experiência de minha cia que é capaz por si mesma tendo no
filosofia a partir do pensamento de dois formação, que deve ser permanen- outro um parceiro e nunca um guia,
filósofos, embora de correntes opostas, te, começo por aceitar que formador é o ou uma muleta”(p.87). O processo de
com pensamentos tão próximos e tão sujeito em relação a quem me considero o aprendizagem vai muito além da assi-
atuais, Max Stirner e Friedrich Niet- objeto, que ele é o sujeito que me forma e milação de conteúdos. Aprendemos
zsche. A proposta inspira para que eu, o objeto por ele formado, me considero quando algo nos chama a atenção, nos
além da reflexão sejamos capazes de
nos deixar educar por eles no senti-
do de tomá-los como um exemplo e,
a partir dessa concepção repensar o
trabalho do professor de filosofia como
uma possibilidade constante de auto-
formação e transformação de si.
A filosofia, a partir da modernida-
de e da institucionalização do ensino,
passa a integrar os sistemas educativos,
ocupando um lugar de maior ou menor
importância, nos programas oficiais,
ou seja, o ensino de filosofia passa a ter
um caráter estatal. Segundo Cerletti
(2009), os mestres ou professores já
não transmitem uma filosofia, ou sua
filosofia, mas sim, embora tenham
um grau de liberdade para exercer essa
atividade, ensinam Filosofia confor-
me os conteúdos e os critérios deter-
sabemos que esta não é uma tarefa fácil, CERLETTI, Alejandro. O ensino de filosofia como problema filosófico. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2009.
muitos professores de filosofia não tem ENGUITA, M.F. Educar em tempos incertos. São Paulo: Ed. Artmed, 2004.
nenhum interesse em deixar a comodi- FERRER, C. Max Stirner, autor de um único livro. In: O falso princípio da nossa educação. São Paulo: Ed.
dade dos conceitos prontos, para refle- Imaginário, 2001.
tirem sobre os temas que vão trabalhar. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia.São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2002
Para Enguita (2004) é muito comum
GALLO, S. Anarquismo e educação: os desafios para uma pedagogia libertária hoje. Política & trabalho:
encontrarmos professores epimetéicos2, Revista de Ciências Sociais, n. 36, p.169-186,2012.
que só olham para trás, seja na forma
GALLO, Silvio. Metodologia do ensino de filosofia. São Paulo: Ed. Papirus, 2012.
de reação hostil, de falta de apoio ou de
GURSDORF, G. Professores, para quê? Santos: Ed. Martins Fontes, 1963.
simples indiferença que se chocam de
imediato com seu colega prometéico, NIETZSCHE, Friedrich N. Schopenhauer Educador, Terceira Consideração Intempestiva. São Paulo: Ed.
Escala, 2008.
que olha para frente, acompanhando
o ritmo da mudança, antecipando-se a . Escritos sobre educação: Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino. 5ª
edição. São Paulo: Ed. Loyola, 2011.
ela no sentido de prevê-la e tirar melhor
. Ecce Homo: De como a gente se torna o que a gente é. Porto Alegre. Ed. L&PM, 2012.
2
Os adjetivos prometéico e epimetéico fazem
STIRNER, M. O falso princípio da nossa educação. São Paulo: Ed. Imaginário, 2001.
referencia aos personagens mitológicos Prometeu
(aquele que pensa antes) e seu irmão Epimeteu SOBRINHO, Noéli C.M. Escritos sobre educação: Friedrich Nietzsche. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Puc-Rio;
(aquele que pensa depois). São Paulo: Ed. Loyola, 2012.
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FILO ORIENTAL por andré bueno
Dignidade
e paciência
O pior erro é não corrigir seus pró- sas atrozes de maneira inexpug- bedoria”. Ambos os trechos mos-
prios erros. (Confúcio) nável; de outras, revoltou-se de tram que o exercício da paciência
imediato com certos acontecimen- e da dignidade são práticas cons-
C
onfúcio levanta um tos. Há um padrão para lidar com tantes, e seu domínio procede de
problema sério para os problemas sem perder o contro- uma intensa, profunda e dedicada
qualquer buscador da le? E se existe, qual é? atenção. Elas procedem do desejo
sabedoria: quais os limi- Nas Conversas [Lunyu] de Con- de não buscar o conflito desneces-
tes da dignidade e da paciência? O fúcio está escrito: “Os discípulos de sário, de atentar ao conjunto das
mestre, por vezes, suportou ofen- Zixia perguntaram a Zizhang sobre possibilidades de resolução, e de
as relações sociais. Zizhang disse: ponderar corretamente, sem fazer
“O que Zixia vos disse?” Eles res- concessões levianas ou abandonar
ponderam: “Zixia disse: ‘Associai- o que é correto.
-vos ao tipo certo de pessoas; evitai Porém, em situações extremas
aquelas que não são do tipo certo’”. não há nada o que fazer para al-
Zizhang disse: “Ensinaram-me algo terar o curso das coisas: pior, man-
um pouco diferente: um cavalheiro ter-se numa determinada posição
respeita os sábios e tolera os medí- pode mesmo significar um envol-
ocres, louva os bons e tem compai- vimento – ou compromisso – com
xão pelos incapazes. Se tenho uma a causa dos problemas. Nestas si-
vasta sabedoria, quem eu não tole- tuações, é melhor das às costas ao
raria? Se não tenho uma vasta sabe- mundo e seguir adiante. Se não se
doria, as pessoas me evitarão; com pode combater o problema frontal-
base em que deveria eu evitá-las?”. mente, e se a arte do indireto não
No livro Zhong Yong [A Justa Me- serve para a elucidação daqueles
dida] também se diz: “se alguém envolvidos no erro, então, pôr-se a
faz dez vezes o que outros fa- caminho não é covardia ou medo
zem um; se faz cem o que – é apenas a constatação de que
outros fazem dez; se faz mil nada pode ser feito, e a dignidade
o que outros fazem cem; é real consiste em conter-se e ausen-
esta atitude que leva a sa- tar-se do contexto em erro.
54 • ciência&vida
“AO FUGIR DE UM PAÍS PARA OUTRO,
CONFÚCIO E SEUS DISCÍPULOS PASSARAM
FOME E SEDE. ZILU, REVOLTADO,
PERGUNTOU A CONFÚCIO: ‘MESTRE,
UM CAVALHEIRO TEM QUE PASSAR POR
ESSAS INDIGNIDADES?’. CONFÚCIO
André Bueno é professor
RESPONDEU: ‘O QUE TORNA ALGUÉM UM adjunto na UERJ. Atua nos
temas: Pensamento chinês,
CAVALHEIRO É O MODO DIGNO COM QUE Confucionismo, História e
Filosofia antiga, diálogos
ELE ENCARA AS INDIGNIDADES’.” (CONFÚCIO) e interações culturais
Oriente-Ocidente. É
No hexagrama 61 do Yijing [Tratado excelência. A covardia só existe quan- membro da Ass. Europeia
das Mutações], analisa-se a “verdade do alguém pode, de fato, resolver uma de Estudos Chineses
interior”, a autenticidade realizante, questão mas se ausenta, seja por medo e da Ass. Europeia de
derivada da centralidade do indivíduo. ou por compromisso. Quando alguém Filosofia Chinesa; membro
do grupo Leitorado
A sexta linha, que é nove e conclui o desconhece a própria força, deve cui-
Antiguo [UPE]; membro
hexagrama, traz um comentário inte- dar-se para não confundir humilda- do Alaada; membro da
ressante: “o galo canta para o céu, mas de com indulgência perante os erros. Rede Iberoamericana
não voa”, o que significa; podemos A autoridade moral para enfrentar as de Sinologia [Ribsi];
IMAGENS: SHUTTERSTOCK/ARQUIVO PESSOAL
denunciar os crimes, mas se não po- indignidades é difícil de se obter, e a membro da International
Confucian Association;
demos voar, se não tivermos o poder paciência é confundida com covardia,
membro do
e a autoridade para corrigi-los, aca- mas o buscador da sabedoria deve ter Laphis/Unespar.
baremos só criando mais problemas. um compromisso, antes de tudo, com
Portanto, nestas horas, por mais certos o que é apropriado e consigo mesmo,
que estivermos, precisamos nos conter não temendo a reprovação alheia.
e praticar a paciência com dignidade. “Sem princípios comuns é inútil
Tolerar é uma virtude: comedir-se, uma discutir.” (Confúcio)
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EXISTÊNCIA/CAPA
BRASIL/CAPA
Nossa
FILOSOFIA
jabuticaba
IMAGENS: SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL
56 • ciência&vida
João de Fernandes
Teixeira é paulistano,
formado em Filosofia
na USP. Viveu e
estudou na França,
na Inglaterra e
nos Estados Unidos.
Escreveu mais de uma
dezena de livros sobre
Filosofia da Mente e
Tecnologia. Lecionou
na Unesp, na UFSCar
e na PUC-SP.
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BRASIL/CAPA
58 • ciência&vida
PUBLIC DOMAIN /WIKIMEDIA COMMONS
Não há dúvida de que ler as
histórias da filosofia tradicio-
nais, organizadas pelos crité-
rios de monumentalidade é um
grande prazer. Ler os textos dos
grandes filósofos também é um
grande prazer. Isso não seria
um problema se, ao fazê-lo, não
estivéssemos excluindo outras
possibilidades excluídas pela ide-
ologia da monumentalidade. A
ideologia da monumentalidade
exclui da história da filosofia as
ex-colônias e até países da pró-
pria Europa. Em países como
o Canadá, a Austrália e a Nova
Zelândia há produção filosófica,
embora eles, até agora, não te-
nham gerado novos paradigmas
na história do pensamento.
O eurocentrismo tem sido
fortemente abalado nos últimos
anos. Cada vez mais se confirma
que a razão e os problemas filosó- Tobias Barreto: clássico brasileiro pouco lido, assim como pensadores nacionais da Filosofia
ficos não têm nacionalidade. Já se
reconhece a existência de filosofia cujo único objetivo é aplainar as A cosmopolitização trouxe
nas ex-colônias, em geral traduzi- diferenças para compor um con- novos agentes para a história da
da para o inglês. A internet pro- sumidor-padrão, adaptado para filosofia que antes eram margi-
duziu muitos males, mas, um de desejar os mesmos produtos em nalizados. O estudo da filosofia
seus subprodutos altamente posi- toda parte do mundo. oriental, em especial na Índia
tivos é a cosmopolitização. A cosmopolitização significa e na China deixou de ser uma
A cosmopolitização não é a aprender que o mundo e as pes- mera incursão exótica no pen-
globalização. Globalizar signifi- soas são inevitavelmente diferen- samento do Oriente e há uma
ca impor os mesmos padrões e tes. Ela significa também perceber tendência para que eles sejam
os mesmos valores para todos, que os países se encontram em incluídos nos cursos de gradua-
um projeto que nunca poderia momentos diferentes da história e ção em filosofia na Europa e nos
dar certo. Sob a globalização se que não é possível sincronizá-los Estados Unidos. O mesmo está
oculta o projeto de padroniza- em um presente único que deve- acontecendo com a literatura e
ção e de pasteurização cultural, ria ser compartilhado por todos. com a filosofia africanas.
DOMAIN/WIKIMEDIA COMMONS
acontecesse com nossa maneira
de estudar a história da filosofia.
No entanto, existem circunstân-
cias históricas e políticas espe-
cíficas que ainda impedem o
desenvolvimento da reflexão fi-
BY
de inventar nenhum paradigma
BRÁS CUBAS
específico que qualifique uma
filosofia como sendo brasileira.
Falar de uma filosofia especifica- Brás Cubas: estudantes brasileiros não leem autores nacionais
mente brasileira e lamentar que
ainda não a temos é um equívo- nas do ponto de vista de nossos cunaíma de Mário de Andrade.
co. Não precisamos participar da “descobridores” e colonizadores. É difícil imaginar Macunaíma
história monumental das ideias Seria algo comparável a um pas- fazendo algo sério, muito menos
para desenvolvermos pensamen- seio de jipe na favela da Rocinha, escrevendo sistemas filosóficos.
to filosófico. algo para que os europeus se di- Ansiamos por um país monu-
Buscar uma filosofia especi- vertissem, ou se penalizassem. mental que tenha uma filosofia
ficamente brasileira ou sistemas Uma espécie de filosofia-suvenir, monumental. Grande parte da
filosóficos canibais, como fez o uma filosofia jabuticaba. população acredita que se ainda
antropólogo Eduardo Viveiros Uma filosofia monumental não somos um grande país, isso
de Castro, pode ser interessante brasileira seria um paradoxo. Em se deve à mediocridade de nossos
para a antropologia, mas não para um país com um passado de es- governantes, que não souberam
a filosofia. Uma filosofia especifi- cravidão, ignorância e opressão, até agora tirar proveito de nossa
camente brasileira, com a preten- seus heróis teriam de ser anti- exuberância tropical e não inves-
são de expressar nossa identidade -heróis. O anti-herói é o palhaço tiram adequadamente em educa-
nacional através do pensamento triste, é o deboche da pretensa ção e saúde. Em outras palavras,
corre o risco de produzir um sis- sociedade institucional que se se existe pobreza, desigualdade
tema de ideias exóticas, ou seja, instaurou nas colônias. Em pou- extrema, e se somos um país in-
de produzir algo interessante ape- cas palavras, ele é como o Ma- capaz de pensar a si mesmo e de
SIGNIFICA APRENDER
QUE O MUNDO
E AS PESSOAS SÃO
INEVITAVELMENTE
DIFERENTES. ELA
SIGNIFICA TAMBÉM
PERCEBER QUE
OS PAÍSES SE
ENCONTRAM
EM MOMENTOS
DIFERENTES
DA HISTÓRIA
cultura colonialista que ainda
predomina na área de ciências
humanas. Nas culturas pós-colo-
niais, há uma forte autocensura
que é inversamente proporcional
à criatividade. Para tudo que se
afirma na periferia é preciso que
exista o aval dos mestres que es-
tão nos centros. Essa situação afe-
ta o próprio perfil psicológico do
professor universitário na área de
ciências humanas, que nunca está
definir seu destino histórico, isso mito da invenção de um paradig- à vontade.
não se deve à nossa própria inca- ma filosófico inteiramente novo O caso da filosofia é estudado
pacidade, mas à corrupção e à má que teria o papel de expressar pelo professor Paulo Arantes no
administração do país, ao “embar- nossa identidade nacional. É o seu livro Um departamento fran-
go à educação”. Essa maneira de mito da filosofia brasileira. cês de ultramar. Ele assinala: “A
pensar não mudou muito em rela- colonialidade pode ser entendida
ção ao que Darwin escreveu sobre CULTURA como a continuação das relações
o Brasil há quase 200 anos. COLONIALISTA coloniais após o fim do colonialis-
Essa crença talvez explique Mas se não teremos um Des- mo através das relações de poder
a grande sedução que a política cartes ou um Hegel, por que até e econômicas que mantém a sub-
exerce sobre a maioria dos in- agora não temos um Dennett, um jugação dos povos colonizados,
telectuais brasileiros. Faz par- Agamben ou um Alan Badiou? pois o subdesenvolvido e subal-
te dessa crença a grande aposta Uma das razões, talvez a prin- terno continua coincidindo com
no futuro de que falava Stefan cipal, se deve ao fato de estarmos o ‘outro lado da linha’: o lado do
Zweig. Com ela, vem também o mentalmente confinados a uma colonizado”. A colonialidade ou
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BRASIL/CAPA
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PUBLIC DOMAIN /WIKIMEDIA COMMONS
BRASIL/CAPA
Uma família brasileira no Rio de Janeiro, obra de Jean Baptiste Debret, 1839.
incapacidade que bloqueou a ou- dialética do iluminismo de Max Com a tradição marxista veio
sadia filosófica. O pano de fundo Horkheimer. Paradoxalmente, o também o sentimento de que
continua sendo o autoritarismo. marxismo seguiu o movimento da gostaríamos de ser colonizados
Como se fossem pacotes ide- razão que, inicialmente como luz, pelos franceses, criar uma França
ológicos importados, a filosofia foi se tornando, aos poucos, uma tropical, quando o francês já es-
colonialista e neocolonialista, racionalidade esclerosada, em um tava se tornando apenas a língua
tanto nas suas vertentes tomis- movimento que a razão faz contra utilizada pelos correios. Como
tas como marxistas se transfor- si mesma, que impediu o desen- diz Antonio Trajano Arruda, na
mou em dogma, não em luz. A volvimento de uma reflexão filo- missão francesa que veio ao Bra-
história da filosofia brasileira, sófica que não estivesse atrelada a sil nos anos 1930 e fundaram a
nas últimas décadas, ilustra a um academicismo sufocante. USP, não vieram filósofos para
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BRASIL/CAPA
66 • ciência&vida
Húmus
Autor: Raul Brandão
Editora: Relógio D’água
192 páginas
Para a eternidade:
Húmus
FILOSOFIA, LITERATURA E ESTÉTICA
O que é um clássico? Estrita- vadores para dar conta das grandes no sentido restrito, enfim, é uma
mente uma obra que resiste ao transformações da época. Ou seja, obra literária. Mas uma obra di-
tempo. Resiste aos pretensos de- precisava, em especial na literatura, ferente. Que se quer diferente tal
terminismos históricos e a tantos fazer jus a uma era que apontava qual a liberdade conquistada (assim
outros dos quais não podemos para as velocidades em grande es- como a autonomia) de um escritor
escapar. Mas as grandes obras ul- cala e a necessidade imediata de que consegue enxergar, de longe e
trapassam todos os limiares e cami- novas formas de escrever, respirar, de perto, as aberturas, as linhas de
nham com altivez pelas memórias dar vazão a gritos sufocados, entre fuga, por uma vez mais lembrar de
de cada etapa da humanidade. outras coisas, pelas academias em nosso sublime Deleuze.
Referimo-nos à grandiosidade toda sua extensão. Ao ler Húmus, pensa-se, num
de Húmus do escritor português A obra em questão seria, num primeiro momento, estar-se diante
Raul Brandão, editora Relógio primeiro momento, integrante de um diário. Há datações como se,
D’Água, Lisboa, Portugal. Obra ino- daquelas que não possuem uma realmente, fosse um diário. Mas não
vadora quando lançada pela pri- classificação tradicional. Não se é. Nas palavras do autor: “As paixões
meira vez em 1917. Um período encaixa em nenhuma tipologia por dormem, o riso postiço criou cama,
em que o mundo precisava, acima lembrar de nosso lúcido Blanchot. as mãos habituaram-se a fazer todos
de qualquer coisa, de sopros reno- Não é um romance, não é poesia os dias os mesmos gestos. A mesma
teia pegajosa envolve e neutraliza, e
só um ruído sobreleva, o da morte,
AO LER HÚMUS PENSA-SE, NUM PRIMEIRO que tem diante de si o tempo ilimi-
MOMENTO, ESTAR-SE DIANTE DE UM tado para roer. Há aqui ódios que
minam e contaminam, mas como
DIÁRIO. HÁ DATAÇÕES COMO SE, o tempo chega para tudo, cada ano
REALMENTE FOSSE, MAS NÃO É. VEMO-NOS minam um palmo. A paciência é
infinita e mete espigões pela terra
DIANTE DE UM ESCRITOR, COM VOZ dentro: adquiriu a cor da pedra e
UNIVERSAL, QUE QUESTIONA, DE FORMA todos os dias cresce uma polegada.
A ambição não avança um pé sem
IMPIEDOSA, OS VAZIOS DA EXISTÊNCIA ter o outro assente, a manha anda
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PARA REFLETIR
e desanda, e, por mais que se escu- QUALQUER nos proporcionar. Somos seres in-
te, não se lhe ouvem os passos. Na sondáveis. Sujeitos a perplexidades
aparência é a insignificância a lei da PREVISÃO ACERCA de que jamais, muitas vezes, nos
vida; é a insignificância que governa DE NÓS MESMOS damos conta. “Todos nós somos ár-
a vila”. Estas e outras reflexões presi- vores. Há tempos que deitamos flor
dem a obra que mostra, entre tantas SERIA MERA pelo lado de dentro. Fomos sempre
outras coisas, a finitude, a mesmice,
o tédio. Tudo numa atmosfera em
FUTUROLOGIA. construções vivas, árvores estranhas
que bracejavam para o interior do
que os intervalos e espaços poéticos SOMOS SERES tronco, ramos e tinta, mais ramos
dão uma exatidão e precisão sem
precedentes. Vemo-nos diante de
IMPREVISÍVEIS. desmedidos e tinta, revestidos de
casca pelo lado de fora. Foi por
um escritor, com voz universal, que TODOS NÓS. UMA dentro que crescemos, e só por
questiona, de forma impiedosa, os dentro nos era lícito crescer, cada
vazios da existência, sem deixar de
CONDENAÇÃO, vez mais alto até a morte intervir”.
lado um doloroso exercício de pen- PARA O BEM E PARA O fragmento exposto, seguramen-
samento que conduz às mais diver- te, metaforiza, a unidade recorren-
sas misérias humanas. Aquelas que
O MAL, HUMANA. te deste belo livro. Belo porque
insistimos (e muitas vezes resistimos) PURAMENTE profundo. Belo porque expõe, sem
em não enxergar e que, no entanto, pena, a fragilidade humana. Eter-
se mostram a todo mundo. Em nos- HUMANA. AS na. Sempre surpreendendo. Existe
so universo, seja ele qual for. A es- AFLIÇÕES DA uma vida oculta dentro de nós a
pacialidade neste livro não está em que jamais teremos acesso. Mui-
jogo. Está em jogo, seguramente, a LUCIDEZ tas vezes tal vida oculta se mostra
miséria humana desaguando para a plena de realizações, sonhos e pro-
incrível insignificância humana. tou pronto!”. Observe-se as lentes jetos. Em outros momentos vazia,
Mas a obra não dá fôlego, como lúcidas do escritor ao colocar que provisória e apontando rumo, sem
toda obra que se pretende uma somos plurais. Ao colocar que nun- piedade, à incontornável finitude.
verdadeira literatura. Nessa medi- ca estamos no mesmo estado de Desta não há ser vivo que escape
da, transbordam diálogos em busca espírito por lembrar de Bergson. Ao impune. O que somos? O que fo-
de estratos profundos de interiori- mesmo tempo o recado metafórico mos? O que seremos?
dade: “Há em mim várias figuras. do autor: o quanto somos vários. E
Quando uma fala a outra está cala- mal damos conta de tal processo.
da. Era suportável. Mas agora não: Não há linearidade ao tratarmos
agora põem-se a falar ao mesmo do ser. Além disso, qualquer pre-
tempo. Sentiste-o avançar, pouco e visão acerca de nós mesmos seria
pouco, no silêncio? Sentiste o teu futurologia. Somos seres imprevisí-
pensamento disforme avançar mais veis. Todos nós. Uma condenação,
um passo no silêncio? É porventu- para o bem e para o mal, humana.
ra possível que o que se passa no Puramente humana. As aflições da
mais recôndido do teu ser, alguém lucidez. As amarguras concedidas
o pressinta e ouça avançar no si- a quem realmente precisa explo-
lêncio? Perpétuo combate a quem rar interioridades, subjetividades.
quero pôr termo e que só tem um Lembrando que tais explorações
IMAGENS: DIVULGAÇÃO E ARQUIVO PESSOAL
termo - a cova. Eu e o outro - eu conduzem, a nós leitores, a exa- Ana Maria Haddad Baptista
e o outro...E o outro arrasta-me, mes profundas acerca de nosso eu. (A. M. H. B.) é mestra e doutora
leva-me, aturde-me. Perpétuo de- Exames interiores que nos afetam e em Comunicação e Semiótica.
bate a que não consigo fugir, e de podem nos mudar, transformar, e, Pós-doutora em História
que saímos ambos esfarrapados, à acima de tudo, olhar para dentro da Ciência. Pesquisadora e
espera que recomece - agora, logo, de nossa subjetividade com mais professora da Universidade
daqui a bocado - porque só essa clareza. A clareza cristal que so- Nove de Julho. Escreve sobre
luta me interessa até ao âmago...Es- mente os signos artísticos podem Literatura nestas páginas.
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Pontilhismo,
pixel, e quantum
ARTES VISUAIS
Após a batalha dos impres- Essa ideia seria levada às suas últi- -se, inclusive, o índice ASA que
sionistas que desferiu o primeiro mas consequências pelo pontilhis- media a sensibilidade do filme
golpe contra a arte acadêmica e mo que se seguiria a este primeiro à luz. Quanto maior este índice,
seus cânones, seguida mais tarde impressionismo. A radicalização mais sensível o filme seria à luz que
pela grande revolução moderna pontilhista iria trabalhar a tela incidisse sobre ele. Na fotografia
nas artes, colocando definitiva- com pequenos pontos de cores digital, esta escala de sensibilida-
mente o academicismo como justapostos. De certo modo, eles de passou a ser chamada de ISO,
uma página virada na história estão colocando “grãos” de cores substituindo a terminologia ASA,
da arte (sem anular seus grandes para obter suas imagens à maneira mas trata-se da mesma escala de
méritos) seria interessante revisi- que a fotografia analógica coloca- sensibilidade da fotografia tradi-
tar um desdobramento peculiar ria grãos de luz nos negativos. Eles cional, embora as câmeras digitais
do impressionismo que, geral- inauguram um mundo pictórico respondam de modo diferente da
mente, é catalogado como um com a qual a fotografia já estava a película fotográfica analógica, uma
“pós-impressionismo”. Estamos trabalhar por seus próprios meios. vez que não trabalha mais com um
falando do movimento pontilhis- O princípio das duas técnicas, negativo fotoquímico sensível à
ta, classificado também como na verdade, é muito semelhante. luz, mas sim com PIXELS a partir
“impressionismo científico”, que Ambas estão a serviço de uma de um chip próprio. O termo pixel
radicalizou as propostas dos pri- imagem granulada. refere-se ao menor ponto que for-
meiros impressionistas. E o que O grão ou granulação de um ma uma imagem digital.
interessaria nessa reconsideração filme fotográfico é próprio da solu- Na verdade estamos falando o
do pontilhismo? ção fotoquímica dos negativos em tempo todo de granulação. O que
Sem dúvida, justamente, esse preto e branco. Cristais de prata nos leva das aventuras óticas do
seu caráter intitulado de “cientí- são expostos à luz por uma peque- pontilhismo, passando pela granu-
fico”. Desde o primeiro impres- na fração de tempo e são sensibi- lação fotográfica analógica e dos
sionismo já ficara evidente que lizados por ela. Para interromper pixels das imagens digitais para a
esses pintores estavam preocu- essa reação, o negativo precisa ser questão de que a matriz da reali-
pados com a questão da luz e fixado, quando então essa reação dade seja, ela mesma, granulada.
da cor. Uma fisiologia da visão já fotoquímica é anulada. Nos tem- Sim, estamos aqui no domínio da
estava implícita nas experiências pos da fotografia analógica criou- física quântica. Desde que o físico
impressionistas desde o início ao
perceberem que contrastes de luz
e sombra eram melhores obtidos, DEVEMOS RENDER NOSSAS
não pela mistura das tintas previa-
mente na paleta do pintor, mas HOMENAGENS À AVENTURA PONTILHISTA
deveriam ser aplicadas puras e se-
paradas em pequenas pinceladas
QUE, NA HISTÓRIA DA ARTE, FOI A
nas telas. Com isso, deixavam por PRIMEIRA A TER A INTUIÇÃO DE
conta do olho do observador que
se misturassem de acordo com as
UMA REALIDADE IMAGÉTICA PRODUZIDA
leis das cores complementares. A PARTIR DE PONTOS DISCRETOS
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PARA REFLETIR
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PARA REFLETIR
camente, seu valor nas Bolsas de mantidos ocultos nos seus bas- o equivalente à iluminação de
Valores, arrastando muitas outras tidores. Um deles é a crescente uma cidade como Los Angeles.
e criando um caos econômico. O necessidade energética criada Recentemente, esses servidores
problema não é apenas de segu- pela expansão da internet. Pou- foram acomodados no fundo do
rança nacional, mas de seguran- cos de nós sabemos que a neces- oceano, como uma tentativa de
ça financeira internacional. Uma sidade de recarregar as baterias diminuir os custos de refrigera-
amostra do que pode ocorrer foi de um único smartphone con- ção e aumentar sua segurança.
o episódio das fake news na últi- some, anualmente, o equivalen- A chegada da IoT ou internet
ma eleição presidencial nos Esta- te em eletricidade para manter das coisas vai exigir uma nova
dos Unidos. duas grandes geladeiras domés- expansão da internet e mais gas-
Essas empresas enfrentam ticas permanentemente ligadas. tos com eletricidade, que levará
uma série de problemas que, Manter os servidores da Google a um aumento da emissão de di-
até agora, têm sido habilmente ligados e resfriados consome óxido de carbono na atmosfera,
72 • ciência&vida
na rede. Mas ninguém está dis- MUITAS PESSOAS
posto a estabelecer esse tipo de
restrição, sobretudo depois que ESTÃO,
se descobriu o papel fundamen- VOLUNTARIAMENTE,
tal das imagens na propaganda.
As imag ens também induzem ABANDONANDO
o fanatismo político e religioso AS REDES SOCIAIS
com mais facilidade. O resultado
de uma web cada vez mais ima- E PROCURANDO
gética é a enxurrada de poluição
mental, a nova invenção do sécu-
NOVAS FORMAS DE
lo XXI. Mas, haverá como rever- AGRUPAMENTO
ter essa situação?
O primeiro passo consiste em
E DE CONVIVÊNCIA.
percebermos que não depende- ISSO INCLUI
mos inteiramente dessas tecno-
logias. Elas são importantes, mas
A RETOMADA
talvez não sejam prioritárias para DA LEITURA,
a organização das sociedades. Em
outras palavras, a vida é possível
DO SILÊNCIO E
sem elas. Da mesma forma que já DA SOLIDÃO,
ocorreu na indústria alimentar, é
possível traçar caminhos alternati- ATUALMENTE
vos. Nas últimas décadas, muitas ABANDONADOS
pessoas se inclinaram a rejeitar
a comida industrializada e opta- PELA NECESSIDADE
ram pela volta dos alimentos or- DE RESPONDER A
gânicos. É possível que o mesmo
ocorra com as tecnologias digitais ESTÍMULOS DIGITAIS
e, novas formas de organização
das sociedades e das comunica-
INCESSANTES
ções, menos totalizantes, come-
cem, pouco a pouco, a substituir
o império da digitalização.
Muitas pessoas estão, volunta-
riamente, abandonando as redes
ARQUIVO PESSOAL E SHUTTERSTOCK
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ATUALIDADE
A educação
VEGANA
O pioneirismo das
escolas brasileiras
em trabalhar o tema
“veganismo”, com
base em Filosofia,
e as vertentes
por detrás desse
Leon Denis é formado
movimento
em Filosofia, membro
pesquisador do
Laboratório Ousia do
IFCS-UFRJ. Pioneiro no
ensino de Direitos Animais,
Ética Animal e Veganismo
em escolas públicas no
Brasil. Membro fundador
da Sociedade Vegana no
Brasil, da Liga Animalista
e da EBRAV – Educadores
Brasileiros Abolicionistas
Veganos.
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IMAGENS: SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL
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ATUALIDADE
D
efinimos no Brasil Machines” de 1964, os membros
www.portalespacodosaber.com.br •
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ATUALIDADE
o fato de que o Estagirita era um é o documentário chamado “Não que não podem ser citados, indi-
vivissector e anatomista, foto com- matarás: os homens e os animais cados como leitura extraclasse. A
provado pelos detalhes com que nos bastidores da ciência”, que escolha normalmente é feita tendo
descreve as composições dos ani- conta com a participação de dois em mente os filósofos da chamada
mais em seus tratados biológicos. importantes filósofos dos direitos Ética Animal ou dos Direitos Ani-
Em seu longo tratado, Historia animais: a brasileira Sônia Felipe e mais. Por exemplo, Peter Singer,
Animalium, encontramos as bases o estadunidense Tom Regan. autor de duas obras fundamentais
do que denominamos hoje de Psi- A educação vegana pode ser dentro da perspectiva utilitarista,
cologia Comparada, assim como, desenvolvida nas aulas de filosofia que são: Libertação Animal e Éti-
da Etologia Cognitiva. E como fa- pela terceira via, a apresentação de ca Prática. Singer desenvolveu o
lar da experimentação animal sem alguns filósofos. Devido ao pouco
passar pelo “pai” da filosofia mo- tempo de aula de filosofia nas es-
PUBLIC DOMAIN /WIKIMEDIA COMMONS
derna: René Descartes? As aulas colas, infelizmente, a escolha acaba
podem ser ilustradas com um óti- privilegiando uns e deixando ou-
mo recurso cinematográfico que tros de fora, o que não quer dizer
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OS PENSADORES NEOARISTOTÉLICOS TAMBÉM
PODEM SER USADOS PARA QUE OS ALUNOS VEJAM
A AMPLITUDE DE PERSPECTIVAS EM DEFESA DA
EXPANSÃO DO CÍRCULO MORAL HUMANO
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FILO NA WEB
O poder
e a autoridade
Existe poder sem autoridade? Aprenda o que os prin-
cipais pensadores escreveram sobre o tema nas dicas do
Plantão Enem. O assunto pode estar na sua prova de filo-
sofia. O Plantão Enem é uma iniciativa da Secretaria de
Estado de Educação de Minas Gerais e da Rede Minas de
Televisão. Para saber mais, visite o site.
http://www.plantaoenem.com.br
De Platão
a Judith Butler
A empresa especializada em educação onli-
ne Macat produziu uma série de animações
curtas sobre as principais teorias relacionadas a
pensadores da humanidade. Ao todo, são 136
vídeos, com duração de aproximadamente três
minutos cada. Todos eles foram disponibilizados
gratuitamente no canal da instituição no Youtu-
be. Os temas abordados são bem amplos,
contemplando desde Filosofia clássica, com
os pensamentos de Platão e Aristóteles, até a
Filosofia moderna, de Michel Foucault e Judith
Butler. As animações abordam, ainda, os prin-
cipais pensamentos de Charles Darwin, em A
Origem das Espécies; Sun Tzu, Arte da Guer-
ra; Aristóteles, Política; Henry David Thore- Aulas
au, A Desobediência Civil; Sigmund Freud, A
Interpretação dos Sonhos; Virginia Woolf, Um
selecionadas
Teto Todo Seu; Max Weber, A Política como Vídeo Curso de Filosofia apresenta aulas seleciona-
Vocação; Thomas Hobbes, Leviatã; Immanuel das, destacando conteúdos relevantes para a matéria de
Kant, Crítica da Razão Pura; Friedrich Hegel, Filosofia e Sociologia dirigidos ao Ensino Médio. A ideia é
Fenomenologia do Espírito; Levy Strauss, Antro- preparar para provas, exames e concursos. A matéria de
pologia Estrutural; Karl Marx, O Capital; Frie- Filosofia é muito importante para os estudantes em fase de
drich Nietzsche, Para Além do Bem e do Mal; Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), de vestibular e
Hannah Arendt, A condição humana; Simone concursos. Cada vez mais as provas e exames estão exigin-
de Beauvoir, O Segundo Sexo; entre outros. Os do conteúdos e matérias relacionados à Filosofia. Portan-
vídeos estão disponíveis em inglês, mas é possí- to, é importante usar a internet para ficar por dentro da
vel acionar o serviço de legendas automáticas disciplina que provoca reflexões e desperta conhecimento
IMAGENS: DIVULGAÇÃO
do Youtube, que pode ser ativado no canto sobre o amor pela sabedoria, segundo Pitágoras.
inferior direito da tela de reprodução. https://vestibular1.com.br/video-aulas/video-cursos/
https://www.youtube.com/channel/UCIdMu- curso-filosofia/
FFD42OKezEDsxzYqcA
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LIVROS FILOSOFIA CIÊNCIA E VIDA é uma publicação mensal da EBR
_ Empresa Brasil de Revistas Ltda. ISSN 1809-9238. A publicação
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OLHO GREGO por renato janine ribeiro
O poder
da mentira
S
aímos de um processo qualquer absurdo, desde que ele,
eleitoral fortemente de alguma forma, pareça conver-
marcado pelas fake gir com seus preconceitos. Um
news, que não são ódio cresceu, tão grande, que ele
nada mais que mentiras. O então avaliza tudo o que possa ser dito
presidente do Tribunal Superior sobre um inimigo. Sim, porque
Eleitoral chegou a dizer que can- dessa forma o divergente é con-
didatos eleitos com base nelas vertido em inimigo. Repetindo o
teriam o mandato cassado, ame- básico da vida social: só temos morada, gente que é a negação
aça ou alerta que resultou em inimigos na guerra. Na política e de nossa suposta simpatia – para
nada. Um resultado claro disso na vida social, temos adversários, que possamos dar certo.
é a decisão do deputado Jean divergentes, pessoas que não Há algo terrível ni sso. No fun-
Wyllys de se exilar do país, de- pensam como nós – e a quem do, acreditamos bem pouco em
pois de ter sua vida infernizada respeitamos, com quem dialo- nós, naquilo que alguns chama-
por mentiras deslavadas, como gamos. Na hora em que cessa o ram de “civilização brasileira”.
a de que defenderia a pedofilia. respeito, o diálogo, acabou a paz, Nos momentos difíceis, recorre-
Como esse é um dos crimes mais a vida social. Estamos em guerra. mos a todos os meios da guer-
odiosos aos olhos da opinião pú- O que levou o país a essa ra. Ora, se uma coisa podemos
blica, associar – ainda que falsa- guerra verbal, ainda que não ar- afirmar, é que isso não dá, não
mente – um parlamentar a ele é mada? Por que um país célebre dará certo. Ou aprendemos a
incitar seu assassinato. pelos afetos, pela cordialidade, dialogar, a não mentir, a ser ci-
O que levou tantas pessoas pela amizade, está-se tornando a vilizados, ou não teremos futuro.
a mentir de forma tão vil e ou- pátria do ódio? Acreditar que a mentira, a fake
tras, a acreditar em mentiras tão Sugiro uma hipótese. O Brasil news, a destruição do outro nos
sórdidas? Gente com alguma so- se gaba de ser um país do cora- farão bem é a maior das ilusões.
lidez intelectual ou moral teria ção. Contudo, ao mesmo tempo, Sair dessa não ai ser fácil. Mas
duvidas, antes de dar crédito a tem uma forte convicção de que não há outra saída. Precisamos
algo tão chocante – e imprová- deu errado. Assim como na peça reaprender a dialogar, o que sig-
vel. Porque pode alguém imagi- de Brecht A alma boa de Setsuã, nifica: a escutar.
nar que um candidato vá defen- em que uma patroa boa tem que
der o abuso sexual de menores? se alternar com um capataz cruel
IMAGENS: SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL
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Um Diário que era
como sua melhor amiga...
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