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Depravação, Escatologia e Violência nos Contos de Rubem Fonseca


FELLIPE TORRES VERAS RODRIGUES1

RESUMO
A crueza retratada nos contos do escritor mineiro Rubem Fonseca (1925-2020) é analisada
neste artigo, com destaque para as tentativas de apreensão de uma realidade urbana e
periférica, por meio da menção a atos de violência e descrições escatológicas e depravadas. A
aposta nesses recursos linguísticos chegou a levar o autor a ser censurado, o que somente
atraiu mais atenção para a sua obra. O objetivo deste texto é mensurar, por meio da análise do
discurso, o refinamento literário existente por trás de livros supostamente vulgares, com
frequência enxergados por alguns críticos como “menores”. Para isso, serão esquadrinhados
contos de Feliz Ano Novo (1975), para analisar os choques entre classes sociais mediados
pela criminalidade, e os de Secreções, excreções e desatinos (2001), em que a escatologia é
explorada ao extremo. A escolha desse tema se justifica pela relevância de Rubem Fonseca no
cenário da literatura brasileira e mundial, em especial no desenvolvimento do gênero conto. O
objetivo é constatar como assuntos polêmicos e cenas chocantes alcançaram o grande público
a partir da obra do autor, cujos livros chegaram a ser censurados por serem “contrários à moral
e aos bons costumes”.

Palavras-chave: Escatologia; Depravação; Violência; Rubem Fonseca.

1. Considerações iniciais

Nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 1925, o escritor José


Rubem Fonseca entrou para o cânone literário brasileiro com uma obra
pujante e vigorosa, que, à semelhança do que pretendia o dramaturgo
Ariano Suassuna com seu Movimento Armorial, associa temáticas e
formatos populares a uma certa erudição. Ao mesmo tempo em que investe
em novelas policiais e narrativas protagonizadas por prostitutas e ladrões,
aposta em diálogos com autores como Gustave Flaubert, Edgard Allan Poe
e Conan Doyle.
Tal produção lhe rendeu, em 2003, aquele que é considerada a mais
prestigiada premiação para escritores em língua portuguesa, o Prêmio
Camões. Formado em Ciências Jurídicas e Sociais, seguiu carreira na
polícia do Rio de Janeiro, cuja rotina lhe iria reverberar muitos anos depois,
em seus contos e romances. Também cursou Administração na New York
University. Embora seus contos sejam uma espécie de marca registrada,
Rubem Fonseca tem incursões relevantes em romances cuja ficção é
1 Graduando do curso Licenciatura em Letras, pela Universidade Federal Rural de
Pernambuco, campus Recife. . E-mail: ftveras@gmail.com. Brasil.
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amalgamada a personagens e fatos históricos, como é o caso de O


Selvagem da Ópera, sobre o compositor Carlos Gomes, e Agosto, a
respeito de conspirações que envolvem o suicídio de Getúlio Vargas
(VIDAL, 2000).
Este artigo se debruça especificamente sobre a suposta “vulgaridade” de
boa parte dos contos escritos por Rubem Fonseca, em que são recorrentes
cenas gráficas, popularescas, de natureza escatológica e/ou violenta. Tal
investigação se deu a partir dos livros de contos Feliz Ano Novo e
Secreções, excreções e desatinos, que costumeiramente são lembrados
por tais características. O primeiro, vale ressaltar, chegou a ser censurado
durante o regime militar, em que pese Rubem Fonseca ter sido um
apoiados do golpe de 1964.

2. Desenvolvimento

Boa parte da obra do escritor mineiro Rubem Fonseca (1925-2020) é


construída a partir de pilares como a surpresa, o choque, a repulsa, a falta de
pudor, a ironia, o escândalo, o estranhamento, a ojeriza, o riso. Afinal, as mais
de 30 obras lançadas passeiam entre temas como o amor depravado, a miséria
extrema, a morte repetina, a opressão e a banalização da violência, de maneira
que se constituam em críticas ao capitalismo selvagem, à hipocrisia das
instituições, à lógica perversa das sociedades modernas, entre outras mazelas
contemporâneas, sobretudo referentes às grandes metrópoles (FIGUEIREDO,
1996). São recorrentes os palavrões, as marcas de oralidade, as descrições
escatológicas, as narrações de estupros e homicídios. Dessa forma, Rubem
Fonseca ataca o leitor na intenção de gerar desconforto e, possivelmente,
reflexões, a partir das ações de personagens tidos como “marginais”.

Essas figuras aparecem imersas num mundo sem Deus, sem ética,
sem moral. São figuras degradantes e irreverentes que marcam essa
narrativa que, com apurada técnica cinematográfica, reinventa uma
literatura capaz de conduzir o leitor a uma desmistificação da violência,
que reina operante. Nesse entorno, a presença do outro é rechaçada, e
o individualismo e a solidão apresentam-se como rota de fuga. (SILVA,
2017, p.469)
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Por esses e outros motivos, Alfredo Bosi classifica o autor mineiro como
“brutalista” (LAFETÁ, 2000). Observando-se os livros de contos de Rubem
Fonseca, destaca-se a obra Feliz Ano Novo, em que a violência gratuita salta
aos olhos. Os contos reunidos espelham, de alguma forma, uma realidade que
assola algumas capitais brasileiras, em especial o Rio de Janeiro, que serve de
palco para muitas das narrativas do escritor mineiro.

Nesse horizonte, a obra do escritor Rubem Fonseca é uma boa fonte


para análises do tema. Dono de uma prosa clara e direta, sem muitas
descrições, o autor de Feliz Ano Novo, entre outros livros, expõe a
violência das grandes cidades de maneira cortante há cerca de
quarenta anos, exatamente à época em que ela, a violência, começava
a impressionar pelo aumento de sua agressividade. A referida obra,
publicada em 1975 e censurada um ano depois pela ditadura, possui
contos que chocaram pela crueza; sua censura não foi gerada apenas
pelos palavrões utilizados nos textos, mas pela exposição gritante da
realidade. A meu ver, entretanto, o que está em jogo ali não é apenas a
denúncia social grave, mas a tentativa de evidenciar o problema
através da comicidade, do ridículo (FRIZON, 2005, p.2).

Por ser supostamente subversivo, Feliz ano novo chegou a ser


censurado no Brasil pelo regime militar, em 1975, na mesma época em que era
publicado livremente em países como França e Espanha. No conto que
empresta título à obra, três homens famintos decidem invadir uma festa de ano
novo da alta sociedade carioca. Com o desenrolar do plano, acabam
assassinando três pessoas e estuprando uma menina. Após o sucesso do
ataque, o trio comemora a passagem do ano novo.

Como é seu nome?

Maurício, ele disse.

Seu Maurício, o senhor quer se levantar, por favor? Ele se levantou.


Desamarrei os braços dele. Muito obrigado, ele disse. Vê-se que o
senhor é um homem educado, instruído. Os senhores podem ir
embora, que não daremos queixa à polícia. Ele disse isso olhando para
os outros, que estavam quietos apavorados no chão, e fazendo um
gesto com as mãos abertas, como quem diz, calma minha gente, já
levei este bunda-suja no papo.

Inocêncio, você já acabou de comer? Me traz uma perna de peru


dessas aí. Em cima de uma mesa tinha comida que dava para
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alimentar o presídio inteiro. Comi a perna de peru. Apanhei a carabina


12 e carreguei os dois canos.

Seu Maurício, quer fazer o favor de chegar perto da parede?

Ele se encostou na parede.

Encostado não, não, uns dois metros de distância. Mais um pouquinho


para cá. Aí. Muito obrigado.

Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele


tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede.
Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele
tinha um buraco que dava para colocar um panetone (FONSECA,
1975)

Outro viés importante da obra fonsequiana é a recorrência de cenas


escatológicas, notadas particularmente no livro de contos Secreções, excreções e
desatinos, que reúne histórias curtas escritas entre 1992 e 2006. Os textos evidenciam
questões biológicas e anatômicas do homem e sugerem, grosso modo, que as secreções
e as excreções norteiam a existência humana. São contos sobre tumores, urina, fezes,
esperma,  saliva, menstruação e outros elementos que, de alguma forma, relembram a
condição animal do leitor. Em Cropomancia, por exemplo, o protagonista é obcecado
por analisar os próprios dejetos.

Não obstante minha reação inicial de repugnância, eu


observava minhas fezes diariamente. Notei que o formato, a
quantidade, a cor e o odor eram variáveis. Certa noite, tentei lembrar as
várias formas que minhas fezes adquiriam depois de expelidas, mas
não tive sucesso. Levantei, fui ao escritório, mas não consegui fazer
desenhos precisos, a estrutura das fezes costuma ser fragmentária e
multifacetada. Adquirem seu aspecto quando, devido a
contrações rítmicas involuntárias dos músculos dos intestinos, o bolo
alimentar passa do intestino delgado para o intestino grosso. Vários
outros fatores também influem, como o tipo de alimento ingerido.
No dia seguinte comprei uma Polaroid. Com ela, fotografei
diariamente as minhas fezes, usando um filme colorido. No fim de um
mês, possuía um arquivo de sessenta e duas fotos — meus intestinos
funcionam no mínimo duas vezes por dia —, que foram colocadas num
álbum. Além das fotografias de meus bolos fecais, passei a acrescentar
informações sobre coloração. As cores das fotos nunca são precisas.
As entradas eram diárias (FONSECA, 2001).

3. Metodologia

Este artigo tomou como amostra do conjunto da obra de Rubem Fonseca os


livros Feliz Ano Novo e Secreções, excreções e desatinos, cujos contos são
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representativos no que tange à presença de cenas de violência e descrições


escatológicas, além de depravações sexuais. Foram analisadas a linguagem
empregada nos textos, a presença da oralidade e de palavrões, dos recursos
utilizados pelo autor para interagir com o leitor, sempre com lastro na
bibliografia existente a respeito da obra fonsequiana.

4. Conclusão e considerações finais

A partir da análise dos contos reunidos em Feliz Ano Novo e Secreções,


excreções e desatinos, percebe-se a engenhosidade do escritor mineiro
Rubem Fonseca na construção dos textos, que se valem de escatologias, atos
de violência e depravações como recursos linguísticos poderosos, que só
confirmam o refinamento literário do autor. Por trás da aparente baixeza das
narrativas, há propostas sofisticadas de reflexão a respeito de mazelas sociais,
fenômenos socioeconômicos e interpessoais. Em trabalhos futuros, pode ser
interessante ampliar o escopo da pesquisa para os romances de Rubem
Fonseca, que sabidamente empregam outro tom, outra linguagem, e têm
propostas bastante distintas dos contos “sujos” do autor.

REFERÊNCIAS

BOSI, A. (2006). Situações e formas do conto brasileiro contemporâneo. In


O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix

FIGUEIREDO, Vera Follain de. A cidade e a geografia do crime na ficção de


Rubem Fonseca. Revista Literatura e Sociedade. v.1. n.1. p.88-93, São
Paulo, 1996

FONSECA, Rubem. Feliz Ano Novo. Rio de Janeiro: Arte Nova, 1975.

FONSECA, Rubem. Secreções, excreções e desatinos, Companhia das


Letras, 2001.
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FRIZON, Marcelo. Rubem Fonseca: violência e comicidade em Feliz Ano


Novo. Nau literatura, 2005.

LAFETÁ, J. L. Rubem Fonseca, do lirismo à violência. Literatura e Sociedade,


[S. l.], v. 5, n. 5, p. 120-134, 2000.

SILVA, Emília Rafaelly Soares. MENDES, Algemira de Macedo. A plasticidade


da contística brutalista de Rubem Fonseca: a estética da violência e da solidão
na pós-modernidade. In O conto: o cânone e as margens. 2017.

VIDAL, Ariovaldo José. Roteiro para um narrador: uma leitura dos contos
de Rubem Fonseca. Ateliê Editorial, 2000.

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