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CRÍTICA

marxista

COMENTÁRIOS
O enjeitado de 1913
INÁ CAMARGO COSTA*

O teatro era o jornal falado e dramatizado do povo.


Dario Fo, Mistero Buffo

Supressão da história sem vacilar a tese de que a arte moderna


Um crítico teatral americano, chegou aos Estados Unidos nesse mes-
mesmo cultivando fortes simpatias pelo mo ano com o Armory Show, uma expo-
teatro político, como é o caso de Eric sição de obras cubistas, futuristas e ou-
Bentley1, para tomar um dos nomes bem tros “ismos” em voga na Europa e trazi-
conhecidos no Brasil, dificilmente com- dos a Nova York por um grupo de artis-
preenderia um estudo sobre o teatro mo- tas e intelectuais afinados com a vanguar-
derno em seu país que começasse por um da nas artes. Mais que isso: até mesmo
acontecimento político-teatral de 1913. livros dedicados à história do teatro mo-
Mais precisamente, um espetáculo cria- derno registram como divisor de águas a
do para divulgar e dar apoio financeiro a exposição realizada no Arsenal do 69 o
uma greve. No entanto, todos aceitam Regimento de Nova York2 e não se refe-

*
Professora do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP.

1
Eric Bentley foi um dos mais respeitados críticos dos anos 50 e 60. Amigo pessoal de Brecht, até a
intervenção de John Willet foi tido como o grande brechtiano nos Estados Unidos e, pelo menos até
os anos 60, exerceu grande influência no Brasil. Veja-se o que ele escrevia em obra que, pelo título,
deveria funcionar como norte para a nossa pesquisa: “Fazendo um balanço do teatro norte-america-
no desde 1900, somos forçados a desejar peças melhores do que todas as que tenham surgido no
decorrer desse período. Afinal de contas, até 1918 a literatura dramática norte-americana caracteri-
zava-se pela sua quase debilidade mental”. (Eric Bentley. O teatro engajado. Rio de Janeiro, Zahar,
1969. p. 27, grifos nossos)

2
Cf. Gerald Bordman. American theatre. Nova York, Oxford University Press, 1995. p. 3. “O Armory
Show de 1913 chamou a atenção da América para as idéias revolucionárias na pintura.” Quanto ao
local da exposição, talvez seja uma reveladora ironia sobre os vínculos semânticos da arte de van-
guarda.

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rem ao espetáculo teatral dos trabalha- mais de mil pessoas. O público de mili-
dores, quando exatamente as mesmas tantes e simpatizantes socialistas e anar-
pessoas que promoveram o Armory Show co-sindicalistas de Nova York foi calcula-
realizaram (por assim dizer) no Madison do em cerca de quinze mil pessoas – na
Square Garden o espetáculo teatral cha- opinião de um comentarista mais exal-
mado Paterson Pageant: John Reed, tado, teria sido a única vez em que o ve-
Mabel Dodge, Hutchins Hapgood, lho Garden recebeu tanta gente.
Walter Lipmann, Ernest Poole e Robert Como sabemos, não há razão para
Edmond Jones, para citar os principais. supor que uma história do teatro escrita
Pela diferença de tratamento dos feitos, de acordo com os valores estéticos da
poderíamos inferir que, para os historia- classe dominante abra espaço para um
dores da cultura americana, não são as episódio de militância revolucionária.
pessoas que contam, o que seria uma Mas quando o historiador é claramente
promessa de critérios por assim dizer de esquerda4 e se comporta como o su-
objetivos. posto adversário ideológico, ficamos
Assumindo então um relativo subje- autorizados a supor que alguma coisa de
tivismo, registremos que John Reed di- muito mais grave que o Red Scare5 deve
rigiu o espetáculo, Robert Edmond Jones ter acontecido na vida americana. Ainda
cuidou dos cenários (e imediatamente supondo que os efeitos devastadores des-
após o pageant foi para a Europa fazer ta contra-revolução armada possam ex-
um estágio com Max Reinhardt 3 ) e plicar a falta de informações entre co-
Mabel Dodge – milionária excêntrica munistas dos anos vinte, eles não bas-
muito mais radical que a nossa Olívia tam para que se compreenda por que o
Penteado, por exemplo – foi uma espé- relativamente recente ensaio dedicado
cie de avalista do aluguel do Garden. Mas aos Estados Unidos numa coletânea de
estes são antes coadjuvantes, pois o espe- estudos sobre o teatro operário em todo
táculo teve a greve como matéria-prima, o mundo dedique ao nosso episódio tão
e como intérpretes os próprios grevistas somente as seguintes linhas:
e seus dirigentes da IWW, envolvendo um grande cortejo celebra as lutas dos

3
Sintomaticamente, esta informação a respeito de R. E. Jones, a saber, o estágio na Europa com
Reinhardt, aparece em todas as obras que tratam do teatro moderno. Parece que neste caso as pes-
soas contam.

4
Para ficar só no exemplo mais radical, Ben Blake, em seu The Awakening of the American Theatre.
Nova York, Tomorrow Publishers, 1935, escrito no auge do teatro político, não faz qualquer referên-
cia a estes seus antepassados.

5
Trata-se, como a expressão indica (ameaça vermelha), de um surto de paranóia política que se
traduziu em perseguição a todas as organizações de trabalhadores nos Estados Unidos, iniciada
durante a primeira guerra e tornada oficial com o Spionage Act em 1917. Invasões de sedes de
partidos, sindicatos, prisões, deportações em massa, assassinatos, linchamentos, seqüestros e atenta-
dos de todo o tipo contra militantes de esquerda tornaram-se rotina, tendo como alvo privilegiado a
IWW, de que estamos tratando. O último capítulo desta guerra sem trégua foi a execução de Sacco
e Vanzetti em 1927.

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operários no Madison Square Garden em livro de memórias, no qual relata com
Nova York. No ano seguinte [1914], a inúmeros detalhes toda a história da gre-
IWW conta com grande número de ve em Paterson, nos anos cinqüenta,
adeptos.6 quando se encontrava na prisão por cau-
Um estudo mais recente das relações sa da perseguição macartista, assunto e
entre cultura e política propõe a seguin- período que interessam diretamente à
te explicação para o fenômeno: nos anos pesquisa de Denning, e não é sequer men-
trinta a esquerda teve um impacto cen- cionada em seu livro. A pergunta é: se uma
tral na cultura americana. Embora esta sobrevivente daquele “lendário” aconte-
esquerda exista desde o século XIX, teve cimento continuou na luta, por que não
pouca influência (cultural) até o início pode haver continuidade, pelo menos no
do século XX. Nos anos 10 houve algu- espírito (para não antecipar nada a respei-
ma aproximação entre intelectuais, ar- to da forma), entre o pageant e a luta cul-
tistas e esquerda, sobretudo envolvendo tural dos anos trinta? Ou, formulando de
a boemia de Greenwich Village e os mo- outra maneira: sem subestimar os efeitos
vimentos culturais do partido socialista e do red scare (não é demais insistir), por
dos wobblies. Dessa aproximação resulta, que tipo de ruptura na história cultural da
por exemplo, o “lendário pageant de ju- classe trabalhadora americana a própria es-
nho de 1913, que além dos grevistas da querda pode ter sido responsável?
indústria da seda de Paterson, reuniu es-
critores e artistas de Greenwich Village Digressão sobre a forma do pageant
no Madison Square Garden, inauguran- Dario Fo inicia seu Mistero buffo8
do uma nova relação entre a esquerda e explicando que mistério foi uma palavra
os produtores de cultura” 7. O fato de criada para designar um espetáculo sacro,
Michael Denning afirmar a inexistência do qual a missa católica ainda hoje é um
de continuidade entre esta experiência e bom exemplo (sobretudo o momento da
as dos anos trinta, mesmo que ampla- consagração) e são também os terços e
mente justificado pelo critério do impac- procissões da Semana Santa. Ele
to no mundo da cultura, indica a neces- exemplifica com os dizeres do celebran-
sidade de examinar muitos problemas, te: “No primeiro mistério contempla-
inclusive este critério. Apenas para adi- mos...”. Mistério bufo, por conseqüência,
antar uma objeção que aqui não cabe vem a ser um espetáculo grotesco, in-
desenvolver: Elizabeth Gurley Flynn, ventado pelo povo e, acrescentaríamos,
dirigente wobbly que foi uma das “estre- em chave de paródia das histórias do
las” do pageant, nos anos trinta fazia novo testamento. Era uma das formas
parte do Comitê Central do Partido Co- mais animadas de diversão popular por-
munista Americano. Ela publicou o seu que “para o povo, o teatro, especialmen-

6
Geneviève Fabre. “Love’s labour lost: luttes ouvrières et aventures theatrales (USA, 1911-1939)”. In:
L’ouvrier au théâtre. Cahiers, Théâtre Louvain, 1987.

7
Michael Denning. The cultural front: the laboring of american culture in the twentieth century.
Londres, Verso, 1996. p. 4. (Grifos nossos.)

8
Cf. Dario Fo. Le commedie di Dario Fo. Torino, Einaudi, 1977.

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te o grotesco, sempre foi o meio primor- palanques (palcos) com cenário próprio
dial de comunicação, de expressão, de para um ou mais episódios. Cada episó-
provocação e agitação das idéias. O tea- dio, chamado pageant, era da responsabi-
tro era o jornal falado e dramatizado do lidade de uma guilda profissional ou reli-
povo”. giosa e os “artistas”, acompanhados do
Embora nas considerações de Dario público, que os seguia a pé, se dirigiam
Fo já estejam os principais elementos que de uma estação a outra em carros (palcos
nos interessam aqui, vale a pena esten- móveis, decorados para a finalidade) tam-
der a digressão para o pageant, que foi o bém chamados pageants. Com o tempo, a
nome dado pelos ingleses às suas repre- palavra passou a substituir play para de-
sentações dos mistérios nas festas de signar o ciclo como um todo12.
Corpus Christi9. Depois que o teatro foi Abandonada na era moderna, tal prá-
expulso do interior das igrejas (justamen- tica foi ressuscitada na Inglaterra do iní-
te por causa dos ingredientes grotescos10) cio do século XX, começando pela cida-
e ganhou as ruas, as encenações foram de de Sherborne em 1905, já numa clara
se ampliando – no conteúdo, na forma, tentativa, por parte dos religiosos, de re-
no espaço e no tempo – a tal ponto que conquistar o terreno perdido para os es-
não seria demais dar o nome Deus e sua petáculos do mesmo tipo (em formatos
época ao conjunto das mistery plays en- similares) mas de natureza civil e em al-
cenadas na cidade de York, uma vez guns casos abertamente política que tam-
que a primeira trata do Gênesis e a últi- bém levavam o nome de pageants. Com
ma, do Juízo Final. Conforme a explica- estes novos conteúdos (históricos, sociais
ção dos pesquisadores11, originalmente e políticos), tal prática existe nos Esta-
o ciclo como um todo (aproximadamen- dos Unidos desde pelo menos a Indepen-
te 50 peças, variando entre dez e qua- dência.
renta minutos cada representação) se O fato de teóricos e historiadores do
chamava play e cada uma das peças se teatro não acatarem esta forma épica
chamava pageant, palavra proveniente do como relevante para se pensar o próprio
latim que significa página. Sua represen- fenômeno teatral, limitando o conceito
tação tinha caráter processional, haven- ao que se convencionou chamar “teatro
do as estações quando se montavam sério” ou, acompanhando os italianos,

9
Conforme recomendava o Concílio de Trento (1545-1563), que as oficializou, tratava-se de fazer
demonstrações públicas e ruidosas da fé.

10
Cf. M. Berthold Historia social del teatro. Madri, Guadarrama, 1974. v. 1.

11
Cf. Richard Beadle, et alii. The Cambridge Companion to Medieval Theatre. Cambridge, Cambridge
University Press, 1996, idem. York mistery plays. Cambridge, Cambridge University Press, 1995; e
MUIR, Linette. The biblical drama of medieval Europe. Cambridge, Cambridge University Press, 1995

12
Cf. Meg Twycross. “The teatricality of medieval English plays”. In: The Cambridge companion to
medieval theatre, op. cit.
13
Cf. Renzo Vescovi. “Reflexão sobre o teatro e seu espaço”. In: Fabrizio Cruciani e Clelia Falletti.
Teatro de rua. São Paulo, Hucitec, 1999.

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teatro declamado13, faz parte do nosso tas, assim como relatam um ou outro
problema. O curioso é que esses mesmos episódio em que os caminhos de mili-
historiadores reconhecem nas festas tantes e artistas se cruzam naquela espé-
dionisíacas gregas a matriz do teatro oci- cie de “território livre” de Nova York.
dental, mas não acolhem festas con- Apenas devemos notar que essas relações
temporâneas de tipo dionisíaco (desfiles aparecem como inconseqüentes, fican-
de carnaval, pageants, entre outras) como do mais ou menos implícito que a arte
manifestações teatrais tão importantes moderna não tem nada a ver com políti-
quanto qualquer espetáculo “sério”. ca, ao menos com a mais radical. Já o
aparecimento da IWW requer algumas
Industrial Workers of the World – considerações, ainda que breves.
IWW e os Wobblies Restringindo-nos a aspectos análogos
Para se entender o significado políti- ao que se passa com a economia mundial
co e artístico do Paterson Strike Pageant, nestes tempos da chamada globalização,
é necessária uma digressão, mesmo li- naquele começo de século a economia
geira, sobre a história social americana (e por conseqüência a sociedade) ameri-
do início deste século. Trata-se de expli- cana passava por uma radical transfor-
car ao menos duas coisas interligadas: o mação, produzindo de um lado as gran-
aparecimento em 1905 da organização des corporações da indústria pesada (U.S.
anarco-sindicalista IWW, com sede em Steel, por exemplo) que, além das novi-
Chicago, e as relações entre seus militan- dades técnicas, adotavam os métodos
tes e dirigentes, conhecidos como fordistas de redução de custos e ganhos
wobblies, e os artistas, intelectuais e socia- de produtividade e, de outro, as grandes
listas da boemia de Greenwich Village. massas de desempregados ou de traba-
Sobre esta segunda parte não há mui- lhadores temporários, tornados “obsole-
to mistério, uma vez que, além do que já tos” pela “revolução tecnológica”14. Com
se sabe das relações entre arte moderna, uma quase centenária tradição de lutas
boemia e política radical na Europa de (basta lembrar que no mundo inteiro co-
meados do século passado, todos os li- memora-se o Primeiro de Maio em ho-
vros que tratam dos inícios da arte mo- menagem aos mártires do massacre de
derna nos Estados Unidos registram a Haymarket em Chicago)15, os trabalha-
curiosidade de intelectuais e boêmios em dores americanos não tardaram em fun-
relação às idéias socialistas e anarquis- dar a Industrial Workers of the World
14
”Revoluções tecnológicas”, como a que assistimos nos últimos tempos, têm como efeito básico a
redução do número de postos de trabalho nos setores “revolucionados”. Empresas do mesmo ramo
que não se “revolucionem” normalmente vão à falência e seus empregados, bem como os demitidos
pelas que sobrevivem, são jogados na miséria, sem nenhuma perspectiva de participação na econo-
mia em “novo patamar”. A necessidade da “revolução tecnológica” tem uma relação de determina-
ção recíproca com uma das leis inelutáveis do capitalismo, também conhecida como lei da “queda
tendencial da taxa de lucro”, examinada por Marx em detalhes (e com abundante descrição das
misérias que provoca em populações inteiras) no terceiro volume de O capital.

15
A história do socialismo nos Estados Unidos é quase tão antiga quanto na Europa. O marxismo lá
aportou logo após 1848 e o primeiro texto de um marxista americano é de 1860. Cf. Paul Buhle.
Marxism in the United States. Londres, Verso, 1991. p.10.

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(IWW) no bojo da “revolução fordista” aplicava às mulheres, que pelas mesmas
para lutar por direitos, inclusive o de razões também não deveriam trabalhar e
sindicalização, e para dar apoio aos de- muito menos participar das lutas sindicais.
sempregados, que circulavam em levas A IWW, como resposta ao conservado-
por todo o país em busca de trabalho rismo e racismo da AFL, não apenas teve
temporário. A mesma onda de greves e uma mulher entre seus fundadores (Mother
tumultos, que na Rússia levou à Revolu- Jones), mas ainda se apresentou como o
ção de 1905 (ensaio para a de 1917, se- instrumento de organização e luta dos tra-
gundo Trotsky) e na Alemanha levou balhadores imigrantes, dos desquali-
Rosa Luxemburg a escrever Greves de ficados, das mulheres e dos itinerantes
massa, partido e sindicatos, produziu nos (aqueles miseráveis que migravam de ci-
Estados Unidos esta interessante organi- dade em cidade em busca de trabalho por
zação anarco-sindicalista, particularmen- um ou poucos dias).
te notável, aos olhos de hoje, por seu em- Com o início da guerra de 1914, a
penho em organizar também os excluídos. IWW assumiu uma clara posição paci-
De acordo com os historiadores da ficista, chegando mesmo a organizar gre-
esquerda americana no período, a razão ves entre os trabalhadores da indústria
política mais forte para a fundação e o bélica americana. Não demorou para que
rápido crescimento da IWW encontra- o governo federal votasse as leis que com-
se nas próprias organizações de esquer- batiam esses “atos de traição”, sobretudo
da existentes à época. Para nos restringir depois que os Estados Unidos entraram na
à American Federation of Labor (AFL), Guerra. Depois da revolução soviética, a
vinculada à Segunda Internacional, esta guerra contra estes “inimigos da pátria”,
era então a maior e mais poderosa cen- conhecida como Red Scare, tornou-se ain-
tral sindical que na crise assumira uma da mais violenta, como ficou referido aci-
perigosa posição defensiva em relação ma, de modo que em poucos anos a orga-
aos trabalhadores de origem americana nização estava praticamente extinta (mas
e detentores de qualificações que a “re- sobreviveu e ainda existe).
volução técnica” estava tornando obso- Em decorrência da perseguição de
letas. Os sindicatos vinculados à AFL, para que a IWW foi vítima, a maior parte dos
proteger os interesses destes trabalhado- registros de sua história foi destruída
res, combatiam energicamente a sindi- pelos agentes do Red Scare, mas nem por
calização de imigrantes (de toda a Euro- isso é impossível reconstituir os princi-
pa) e a contratação de trabalhadores “não pais momentos de sua atuação. Neste
qualificados”, alegando que estes faziam sentido, entre obras de memórias de seus
concorrência desleal aos qualificados, já veteranos e de história social norte-ame-
que aceitavam condições degradantes de ricana, o livro de Patrick Renshaw, The
trabalho e salários muito mais baixos Wobblies16, é um marco histórico na pes-
(qualquer semelhança com histórias recen- quisa sobre as lutas daqueles revolucio-
tes de protestos contra imigrantes não é nários de todo o mundo nos Estados
mera coincidência). A mesma coisa se Unidos. Não por acaso, foi publicado em

16
Patrick Renshaw. The wobblies. Garden City, Anchor Books, 1968.

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1968, ano em que a New Left reivindi- que mais bem expressou o espírito
cava seu direito de manifestação e par- wobbly19. Como outras cidades daquele
ticipação nos destinos políticos do país, e estado, Paterson desenvolveu uma por-
ano também em que a guerra do Vietnam tentosa indústria têxtil e os então habi-
mostrava até para os mais distraídos o pa- tuais enfrentamentos patrões-emprega-
pel americano na história contemporânea. dos, justamente na fase da “otimização
No livro de Renshaw encontra-se uma pre- de custos” – isto é, imposição de maior
ciosa reconstituição analítica da história produtividade aos operadores de teares,
da IWW, dos principais feitos e persona- seja por operação de mais teares por tra-
gens de destaque, como um capítulo in- balhador, seja por aceleração do ritmo
teiro sobre Joe Hill, o lendário herói-com- das máquinas, sem qualquer elevação dos
positor dos wobblies que, condenado à salários –, deram lugar a todos os tipos
morte em julgamento suspeitíssimo, dei- de organização sindical e partidária na
xou como mensagem de adeus aos com- região, como a AFL, o Labor Party e
panheiros o famoso don’t mourn, organi- outros. A IWW ali chegou por volta de
ze (não guardem luto, organizem)17. 1907 e em pouco tempo passou a liderar
Como nosso caso não é reconstituir as mais importantes reivindicações. As-
esta história18, passemos a seu momento sim, na greve de 1913, por oito horas de
de maior presença nas lutas sindicais – trabalho e um aumento salarial propor-
as greves dos trabalhadores das indús- cional ao aumento verificado na produ-
trias têxteis da região de Nova Jersey, das tividade, que se arrastou por quase todo
quais Paterson, a “capital americana da o ano, os wobblies foram a principal li-
seda”, foi, segundo Paul Buhle, uma das derança dos tecelões de Paterson20.
17
Veteranos dos anos 60 hão de se lembrar da canção Joe Hill, composta por um militante dos anos
30, Earl Robinson, e divulgada no Brasil em gravação de Joan Baez, cujo refrão insiste: I never died,
says he. Em número recente, a revista Cultura Vozes publicou uma pequena antologia de textos de
Joe Hill.

18
Uma análise crítica de maior interesse sobre a atuação, o arco de inimigos e a derrota final dos
wobblies no período do red scare encontra-se em Buhle (Marxism in the... op. cit.). Interessados na
formação da classe trabalhadora americana encontrarão excelentes análises na segunda parte de
Stanley Aronowitz. False promises - the shaping of american working class consciousness. Durham,
Duke University Press, 1992.

19
Para dar apenas uma amostra desse espírito, acima de tudo irreverente e bem humorado, a própria
palavra wobbly foi usada primeiro pela imprensa burguesa (a partir de uma piada infame) para
designá-los, com a conotação de vagabundos, desordeiros etc. A anedota, com forte apoio na expe-
riência, como todas são, conta que em San Francisco a IWW fez um convênio com um restaurante
chinês onde seus militantes receberiam desconto. Fiel ao trato, a cada cliente o chinês perguntava
em seu sotaque peculiar: “Are you IWW?” (você é militante da IWW?), soando mais ou menos assim:
“All loo eye wobble wobble?” Os “IWWs” rapidamente se apropriaram do termo e passaram a usá-
lo abundantemente em canções (de preferência paródias de hinos religiosos e temas conhecidos)
conclamando os trabalhadores a se tornarem wobblies e a lutarem contra as injustiças do sistema
capitalista (cf. Renshaw, op. cit.).

20
Não deve ser por coincidência que a revolução na dramaturgia moderna européia, por assim
dizer, começa com uma peça de Hauptmann chamada Os tecelões.

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O Pageant bloqueio das comunicações através do
As informações mais minuciosas so- pageant, que adicionalmente poderia
bre toda a empreitada, incluindo uma produzir alguma entrada financeira para
lúcida avaliação política, encontram-se o fundo de greve. Submetida aos grevis-
no livro de Elizabeth Gurley Flynn – ati- tas, a proposta foi aprovada.
va participante da IWW, da greve e do John Reed seguiu imediatamente para
pageant. Trata-se de I speak my own Paterson, onde tratou do planejamento e
piece, cuja primeira edição é dos anos dos ensaios para o espetáculo. A defini-
50 e que a partir da primeira reimpressão ção do roteiro e do elenco (mais de mil
teve o título mudado para The Rebel Girl, pessoas) foi feita pelos próprios grevis-
em retribuição à homenagem que Joe Hill tas, que também decidiram quais os
fizera à autora compondo uma canção episódios mais eloqüentes a serem
militante com este nome21. O espetáculo reconstituídos. John Reed convidou seu
também foi reconstituído por wobblies ex-colega de Harvard, Robert Edmond
como Big Bill Haywood e Ralph Chaplin Jones, para cuidar da cenografia e, em
em seus livros de memórias 22. Mabel Nova York, Mabel Dodge e um grupo de
Dodge, um pouco porque reivindica a aproximadamente cem pessoas (sobretu-
autoria da proposta, e muito porque tal- do mulheres, militantes da IWW) cuida-
vez fosse a única em condições de reali- ram da produção – aluguel do Garden,
zar o trabalho, reproduziu quase todas cenários e adereços (como as sempre-
as matérias publicadas na imprensa ra- vivas e os cravos vermelhos) –, bem
dical à época23. No que segue, procura- como da divulgação e venda de ingres-
mos incorporar essas informações, to- sos. Na semana que antecedeu o dia 7 de
mando por base o resumo analítico de junho de 1913, o letreiro luminoso da
Renshaw. IWW foi instalado nos quatro lados da
A greve já se arrastava havia algum torre do Garden e à noite podia ser visto
tempo, assumindo características de de qualquer ponto da cidade.
impasse e a maior preocupação dos diri- Marcado para as nove da noite, o
gentes wobblies estava ligada ao verda- Pageant teve um atraso de meia hora,
deiro pacto de silêncio da quase totali- porque as filas, que chegaram a mais de
dade da imprensa a respeito, inclusive a vinte quarteirões, ainda não tinham aca-
socialista. Numa reunião em Nova York bado de entrar. Consta que muita gente
entre dirigentes e simpatizantes da cau- ficou de fora. O “elenco” atravessou o
sa, para a qual foram convidados Mabel rio Hudson e, após o desembarque, se-
Dodge e John Reed, que até então não guiu em passeata pela Quinta Avenida
se conheciam, surgiu a idéia de furar o até o Madison Square.

21
Cf. Elizabeth Gurley Flynn. The rebel girl: an autobiography. 4a ed. Nova York, International
Publishers, 1979.

22
Cf. William D. Haywood. Bill haywood’s book. Nova York, International Publishers, 1929 e CHAPLIN,
Ralph. Wobbly. Chicago, The University of Chicago Press, 1948.

23
.Cf. Mabel Dodge Luhan. Movers and shakers. Nova York, Harcourt, Brace and Company, 1936. p.
186-210.

CRÍTICA MARXISTA • 115


A diretriz de John Reed para o cená- bricas mortas: silêncio e luzes apagadas.
rio foi tomada ao pé da letra: “Fábricas É o dia seguinte, dia do piquete. Em for-
vivas, trabalhadores mortos – fábricas mação compacta, os trabalhadores can-
mortas, trabalhadores vivos!”. Robert tam as canções de greve. Policiais infil-
Edmond Jones trabalhou com uma imen- trados, sem aviso prévio, começam a
sa cortina de seda, telões e blocos de bater com seus cassetetes. (Os trabalha-
madeira para armar o cenário de um pal- dores que fizeram os papéis de policial
co onde deveriam estar mais de mil pes- pediam desculpas por isso à platéia.) Ou-
soas em diferentes composições. Sobre vem-se tiros, um trabalhador cai morto,
o fundo de seda vermelha, o telão apre- outro sai mancando. O mártir (Mo-
sentava a figura heróica de um trabalha- destino) é carregado até sua casa pelos
dor, sobreposta a fábricas e chaminés. companheiros. (Consta que a viúva, num
Acima dele, o letreiro da IWW. Os blocos dos camarotes para os convidados espe-
imensos tinham um importante dispo- ciais, teve uma crise histérica durante a
sitivo interno de iluminação e sonoplas- cena.)
tia, porque representavam as fábricas, O segundo episódio reconstitui o fu-
vivas ou mortas conforme a atuação dos neral do trabalhador assassinado. Pelo
trabalhadores. corredor central do auditório é carrega-
O primeiro episódio, dividido em do o caixão em cortejo, e de todas as alas
duas cenas, apresenta o contraste fábri- seguem trabalhadores em direção ao cen-
ca viva-fábrica morta. Com as fábricas tro do palco, onde o caixão é deposita-
vivas, em funcionamento, luzes saem por do. O tempo todo canta-se a Marcha
centenas de aberturas e, ao toque da fúnebre russa. Dois a dois, os trabalha-
sirene, começa o ruído ensurdecedor no dores depositam sempre-vivas e cravos
ritmo dos teares. Os trabalhadores, desfi- vermelhos sobre o caixão, formando as
brados, desanimados, arrastam-se pelas flores uma “montanha de sangue” e os
alas do auditório em direção a seus lo- trabalhadores, um grupo compacto por
cais de trabalho sozinhos, em duplas ou trás dessa montanha. Big Bill Haywood,
grupos, alguns cantarolando canções, e Carlo Tresca e Elizabeth Gurley Flynn,
todos levando o almoço em bolsas ou os dirigentes mais ativos da greve, repe-
pacotes. As “ruas” ficam desertas, só se tem os discursos que fizeram por oca-
ouvem os chiados, batidos e estampidos sião do enterro em Paterson. Os três, di-
dos “teares”. Depois de um tempo, ouve- rigindo-se ao auditório, conclamam à
se o grito de guerra: “Greve! Greve!”. continuidade da luta até a vitória.
Os trabalhadores saem das “fábricas” na O episódio seguinte relata o envio das
maior confusão, eufóricos, e começam a crianças a outras cidades. Segundo a aná-
cantar A Internacional. (A platéia se as- lise de Renshaw, o show chegou a seu
sociou a todos os cantos a partir deste clímax nesta cena24. Para as crianças, tan-
momento). A cena dois apresenta as fá- to no palco quanto na platéia, foi uma

24
Em notável demonstração de criatividade na batalha para ganhar o apoio da opinião pública, e
diante do sofrimento (fome e frio) dos filhos dos grevistas, numa greve imediatamente anterior, em
Lawrence, os wobblies criaram um movimento de solidariedade de amplo alcance: conclamaram
simpatizantes do movimento em todo o país a receberem aquelas crianças em suas casas enquanto

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cena emocionante de devoção familiar, O MAIOR ELENCO JAMAIS VIS-
mostrando as razões humanas da greve. TO EM NOVA YORK ENCENA SEU
Algumas delas haviam até mesmo feito PRÓPRIO ESPETÁCULO – A GREVE
greve na escola em protesto contra pro- DA SEDA NO MADISON SQUARE
fessores que acusaram seus pais de “anar- GARDEN.
quistas e estrangeiros imprestáveis”. Elas Descontados os entusiasmos militan-
partem cantando Bandeira vermelha e tes e o empenho no registro do aconteci-
vão se encontrar com os simpatizantes da mento, a bem da verdade histórica, não
greve que as acolherão como “pais-adoti- pode passar em branco o balanço de
vos-da-greve” até que a luta termine. Elizabeth Gurley Flynn: o espetáculo
No episódio final foi reconstituída a provocou ciumeira entre os que não pu-
maior assembléia de Paterson. Agora, os deram participar, prejudicou o andamen-
grevistas vêm novamente pelos corre- to da greve por ter retirado da luta, ainda
dores mas, ao invés de ocupar o palco, que por pouco tempo, mais de mil dos
sentam-se no chão, em volta dele e de cos- melhores ativistas e, para piorar as coi-
tas para a platéia, transformando-a assim sas, deu prejuízo. No capítulo do prejuí-
em parte da assembléia. Desta vez, ape- zo financeiro, Mabel Dodge conta que
nas Big Bill Haywood fala. Usa de toda a ele serviu para os jornais burgueses e
sua eloqüência e sinceridade, sabendo que socialistas lançarem uma (felizmente
“prega a convertidos”. A resposta, que curta) campanha de difamação dos líde-
encerrou o pageant, foi todos ficarem de res da IWW, enquanto Bill Haywood
pé para cantar A Internacional. explica que um número muito grande de
ingressos foi distribuído gratuitamente
Repercussão política entre os simpatizantes da greve e seus
Vamos nos limitar aqui a reproduzir familiares.
algumas manchetes reunidas por Mabel
Dodge: Nenhuma repercussão artística
PAGEANT DE PATERSON LOTA O Os historiadores ortodoxos do teatro
GARDEN – OPERÁRIOS INVESTEM americano não hesitariam em qualificar
A MAIOR PARTE DOS 6.5OO DÓLA- este acontecimento teatral grandioso,
RES NECESSÁRIOS À PRODUÇÃO – capaz de matar de inveja até a um Max
A SALA SE INFLAMA COM O VER- Reinhardt – o diretor alemão do início
MELHO E FERVE DE ENTUSIASMO do século mundialmente famoso por suas
PELA “CAUSA”. encenações, nessa mesma linguagem
A GREVE DA IWW REÚNE 15 monumental, de tragédias gregas e ou-
MIL – ENCENA OS INCIDENTES DE tros textos menos votados –, de simples
PATERSON NO MADISON SQUARE ato político, indigno de figurar numa his-
GARDEN, INCLUSIVE O FUNERAL tória do teatro feita por gente séria, que
DE MODESTINO. sabe do que está falando. E para demons-

durasse a greve. A solidariedade foi organizada a partir de Nova York (mulheres socialistas, princi-
palmente) e o embarque das centenas de crianças (em andrajos, esquálidas) acabou provocando
uma espécie de comoção nacional, pois obteve a cobertura de toda a imprensa. Cf. Gurley Flynn,
op.cit.

CRÍTICA MARXISTA • 117


trar que eles não têm preconceitos quan- tamente após o pageant, Robert E. Jones
to à forma, também não hesitam em co- seguiu para a Alemanha para estudar com
locar Max Reinhardt no panteão dos gran- Max Reinhardt. Por outro lado, é preciso
des criadores da linguagem do teatro mo- calcular o peso intelectual da corrente que
derno. John Reed, Robert E. Jones e seus aqui estamos chamando ortodoxa na defi-
companheiros wobblies não podem entrar nição dos valores que nortearam o próprio
nesta história porque suas finalidades eram conceito americano de teatro moderno26,
estritamente políticas (já as de Max cujas simpatias pela teoria francesa (ou
Reinhardt não eram e, para melhor asse- franco-inglesa) são bastante visíveis.
gurar a convicção, seus admiradores con- Trocando em miúdos: a história real
venientemente se esquecem de sua mili- do teatro moderno norte-americano ain-
tância no Teatro Livre alemão25 – Freie da não foi escrita, pois a “corrente orto-
Bühne). doxa” de críticos e historiadores só re-
Com este capítulo suprimido da his- gistra episódios e dramaturgos que de
tória do teatro americano moderno, que alguma forma chegaram à Broadway, isto
não fica devendo nada à experiência eu- é, conseguiram passaporte para entrar na
ropéia, surge um problema de ordem his- mainstream. Mesmo os mais progressis-
tórica e conceitual que no momento só tas – como é o caso de Eric Bentley, ami-
poderemos indicar. Uma das hipóteses go pessoal de Brecht –, tratam de igno-
para enfrentá-lo depende de melhor co- rar ou minimizar o peso das lutas dos
nhecimento da profundidade dos laços trabalhadores na própria constituição da
político-teatrais franco-americanos: não se fisionomia desse teatro. A conseqüência
pode, por um lado, desprezar o possível principal é uma dupla perda: por um lado,
conhecimento que John Reed e compa- inúmeros episódios, como este do
nheiros como Bill Haywood poderiam ter pageant, são suprimidos da história ofi-
das experiências equivalentes de Romain cial; por outro, mesmo os dramaturgos
Rolland, uma vez que o fato de no mais prestigiados, como é o caso de
Paterson Pageant os trabalhadores ame- Arthur Miller, são vítimas das mais va-
ricanos terem cantado A Marselhesa é riadas incompreensões porque são cor-
uma forte pista, assim como não se pode tados os seus vínculos com a história real
desprezar a informação de que, imedia- das lutas dos trabalhadores.

25
O movimento dos teatros livres na Europa de fins do século XIX foi majoritariamente impulsionado
por trabalhadores interessados em fazer teatro que não tinham cacife para integrar o show business.
Na Alemanha, recebeu apoio militante do Partido Social Democrata. Max Reinhard começou a fazer
teatro nessa organização.

26
Nossa hipótese adicional é que a intelectualidade americana passou por processo semelhante ao
brasileiro, descrito em primeira aproximação no capítulo “A resistência da crítica ao teatro épico” do
livro Sinta o drama (Petrópolis, Vozes, 1998). Em poucas palavras: empenhados em dotar seu país de
um “melhoramento da vida moderna”, no caso o teatro, adotando o figurino da crítica francesa
devidamente adaptado pelos críticos ingleses mais prestigiados, os americanos não viam o que acon-
tecia debaixo de seus narizes. É claro que para entender essas “relações perigosas” é preciso ter em
vista que, pelo menos até a segunda guerra mundial, os Estados Unidos também eram “periferia”
tanto do ponto de vista econômico quanto cultural.

118 • O ENJEITADO DE 1913


COSTA, Iná Camargo. O enjeitado de 1913. Crítica Marxista, São Paulo, Boitempo, v.1, n.
13, 2001, p. 108-118.

Palavras-chave: Teatro; Arte; Greve; Trabalhadores; 1913.

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