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Artigo

Revista de Políticas Públicas e Gestão Governamental

A experiência brasileira de
cadastramento diferenciado
de grupos populacionais
tradicionais e específicos1, 2
Por Elaine Cristina Licio e Denise do Carmo Direito

Em 2015 o Cadastro Único para Programas Sociais continha informações de aproxi-


madamente 25 milhões de famílias, das quais 1,6 milhão pertenciam a um dos 16 grupos
populacionais tradicionais e específicos (GPTEs) identificados, tais como indígenas, qui-
lombolas, ciganos, extrativistas, pescadores, ribeirinhos etc. O presente artigo apresenta a
experiência brasileira de cadastramento diferenciado desses grupos, evidenciando que eles
apresentam menor escolaridade e maior dificuldade de geração de renda e acesso a servi-
ços básicos de infraestrutura quando comparados com o conjunto das famílias do Cadastro
Único. Partindo dessa constatação, discutimos alguns desafios para as políticas públicas
voltadas para os GPTEs.
POR QUE RECONHECER? Então qual a necessidade de se ter um cadastramento
diferenciado? Qual a necessidade de identificar algumas
O Cadastro Único tem a finalidade de obter famílias como pertencentes a determinados grupos
informações de famílias de baixa renda para que sejam tradicionais ou em situação específica? Não seriam elas
alvo de políticas públicas voltadas ao enfrentamento dos simplesmente vulneráveis/pobres?
fatores que levam a essa situação, sejam políticas de Ao longo dos anos, a dificuldade de romper com o
transferência de renda, sejam de formação profissional, ciclo da pobreza – que tende a perpetuar nas camadas
entre outras. Assim, o Cadastro já é um instrumento de menos favorecidas da população a impossibilidade
identificação de beneficiários em situação de pobreza. de gerar renda para subsistência e acessar serviços
21
Revista de Políticas Públicas e públicos básicos, como educação e saúde – foi analisada
Gestão Governamental sob várias abordagens: por uma perspectiva nacional
Vol. 15 no 2 do processo de colonização brasileiro que atuou em
Jul/Dez 2017 detrimento da cultura dos negros escravizados e ou
dos indígenas nativos (FREYRE, 1998; IANNI, 2004;
BASTOS, 2009; DANTAS, 2013); por abordagens
mais marxistas, em que o domínio e a consequente
A experiência brasileira de cadastramento exclusão/empobrecimento se dão pela detenção dos
diferenciado de grupos populacionais meios de produção/poder econômico (ARON, 2005);
tradicionais e específicos e por análises mais sociológicas que consideram a
desigualdade como indissociável da crença coletiva na
legitimidade (alto grau de desejabilidade coletiva) de um
objeto, de um saber ou de uma prática (ELIAS, 2000;
BOURDIEU, 2005; DUBAR, 2009).
No âmbito deste artigo interessa perceber a existência
de dois processos que convergem para a manutenção de
determinados grupos da sociedade na exclusão: a injustiça
econômica (invisibilidade determinada pela pobreza) e a
injustiça social (não reconhecimento das identidades pela
cultura hegemônica).
As injustiças econômicas estão relacionadas
à geração de renda, mas perpassam um sistema
produtivo que, por mais materialista que seja, acaba
sendo influenciado por aspectos culturais. De igual
forma, as injustiças sociais, vinculadas a aspectos
culturais, serão influenciadas pelo mundo da economia
no qual algumas práticas têm maior valoração do
que outras. Assim, gera-se um ciclo vicioso em que
práticas econômicas excludentes e práticas culturais
não hegemônicas estão interligadas e conspiram para
o desaparecimento/inviabilização ou exclusão de
determinados grupos populacionais.
A desigualdade do ponto de vista material é
evidente no Brasil de hoje. O hiato de renda do topo
da pirâmide em relação à base e a diferença na
capacidade de consumo dos diferentes extratos sociais
são marcantes, além de facilmente identificáveis por
meio da análise de dados estatísticos, tais como os do
Censo Brasileiro.
O processo de reprodução das exclusões do ponto
de vista social permite compreender que determinadas
características são mais valorizadas do que outras. Como
consequência, as oportunidades não são igualmente
distribuídas nem quando há situações semelhantes de
escolaridade, por exemplo, já que existem outros fatores
que influenciam as escolhas.

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Inicialmente, deve-se avaliar como é construído o
processo de reconhecimento da identidade: Como eu
As injustiças econômicas
me reconheço na sociedade? Pertenço a algum grupo?
Como construo esse sentimento de pertencimento?
estão relacionadas à
A partir daí, é possível analisar o fato de que pertencer
a determinado grupo fará com que eu tenha mais ou
geração de renda, mas
menos oportunidades.
Axel Honneth parte dos escritos filosóficos de Hegel
perpassam um sistema
de que o reconhecimento próprio (de si) se dá a partir
do reconhecimento do outro; por meio desse processo
produtivo que, por mais
de reconhecimento recíproco e intersubjetivo de dois
indivíduos autônomos é que se chega à compreensão
materialista que seja,
de si mesmo e de seu papel social. O autor fará dialogar
o modelo conceitual hegeliano com a psicologia social
acaba sendo influenciado
de George Herbert Mead, que também procurou “fazer
da luta por reconhecimento o ponto referencial de uma
por aspectos culturais.
construção teórica que deve explicar a evolução moral da
sociedade” (HONNETH, 2003, p. 125).
Essa linha de pensamento defende que um indivíduo de ofender e atirar objetos, ela deixa de ser reconhecida
(sujeito) só adquire consciência de si mesmo à medida nos aspectos jurídicos a partir da perda da estima social,
que percebe a sua própria ação sob a perspectiva de uma passando a ser um não sujeito, um não cidadão.
segunda pessoa. É por meio da ampliação desse processo Essa perda de estima social externa – do outro para
de reconhecimentos, a um número cada vez maior de comigo – pode ou não se refletir no grupo. Por outro
parceiros de interação, que se constroem as normas lado, é reconfortante o sentimento de pertencimento e
sociais e o sujeito adquire a capacidade de se dirigir de aceitação da identidade no grupo. A forma de viver
legitimamente aos outros e assumir seu papel de cidadão daquele grupo é significante para os seus membros, é o
pleno com direitos e deveres. que os define como pessoas (identidade), fazendo com
Na análise de Honneth (2003, p. 227), a ideia que o grupo social seja uma proteção em relação ao
fundamental compartilhada pelos dois autores – Hegel “outro generalizado” (HONNETH, 2003, p. 203). Por isso,
e Mead – “é que a luta por reconhecimento, como força para compreender melhor o processo de valorização
moral, promove desenvolvimento e progressos na realidade de determinados grupos sociais em detrimento da
da vida social do ser humano”. Assim, por meio da interação desvalorização de outros é importante ampliar o quadro
com o outro, eu me reconheço e construo a minha analítico do indivíduo para o grupo.
individualização. É necessário um “outro generalizado” para Se o hegeliano Honneth entende o indivíduo como
que eu compreenda o “meu eu” como cidadão de direitos. unidade de ação, a teórica crítica Iris Marion Young vai
Há duas formas de reconhecimento que devem ser abordar a questão como estrutural, em que organizações
consideradas. A primeira é o reconhecimento jurídico, constroem símbolos e formas valorizadas e outras
propriedade universal que faz de cada indivíduo uma desvalorizadas. A autora parte do pressuposto de que
pessoa autônoma que reconhece seus deveres e direitos a unidade mínima de ação social está no grupo social,
jurídicos. A segunda é a estima social, relacionada com um sendo o conceito de grupo entendido como:
sistema referencial valorativo no interior do qual se pode
medir o valor das características individuais ou do grupo. Um colectivo de personas que se diferencia de
(HONNETH, 2003, p. 187). al menos outro grupo a través de formas culturales,
Assim, quando uma família cigana informa que tem prácticas o modos de vida[...] Los grupos son expresiones
vergonha de andar com a sua roupa tradicional porque “os de las relaciones sociales; um grupo existe solo en
relación com al menos outro grupo.(YOUNG, 2000, p. 77)
outros” – não membros do seu grupo – se sentem no direito

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Revista de Políticas Públicas e Indo em sentido semelhante ao de Honneth, Young
Gestão Governamental assegura que os grupos são mais do que simples
Vol. 15 no 2 associações de pessoas, são formadores das suas
Jul/Dez 2017 identidades. Há um sentimento de pertencimento
ao grupo que geralmente é entendido pelo indivíduo
como sendo a sua própria personalidade/identidade.
Assim, há uma construção em que o sujeito forma o
A experiência brasileira de cadastramento grupo, o qual define a identidade em um processo de
diferenciado de grupos populacionais interação permanente.
tradicionais e específicos Percebe-se que o conceito de grupo social para Young
é fundamental para compreender processos de opressão
e valorização e como isso afeta o desenvolvimento de
determinados grupos no contexto social.
Apesar dos dois autores – Honneth e Young –
adotarem diferentes pontos de partida para a análise
indivíduo vs. grupo, ambos convergem para o fato de
que a diferenciação e o reconhecimento da própria
identidade se dão a partir da existência e da percepção
do outro. Young aponta que se a opressão se desse em
relação aos indivíduos, bastaria que se garantissem as
liberdades individuais para que cada pessoa pudesse
escolher livremente sua forma de viver.
No entanto, devido à interdependência social e à
necessidade que as pessoas têm de se reconhecer como
parte de grupos – de mulheres, negros, homossexuais –
até mesmo para ter a sua identidade aceita – nem que
seja pelo próprio grupo –, é necessário garantir o respeito
às diferenças dos grupos para evitar várias formas de
opressão e suas consequências.
Young (2000) descreverá as cinco “caras” por meio
das quais a opressão geralmente se manifesta. De forma
bastante resumida, são elas:
• Exploração: conceito ligado à teoria
marxista, em que capital e trabalho têm diferenças
valorativas. O capital subjuga/explora o trabalho
e o trabalhador, ao se apropriar do seu excedente
de produção – a mais-valia. Young afirma que esse
mesmo processo de exploração se dá quando
há distribuição desigual de benefícios, com a
concentração cada vez maior em um grupo e a
limitação a outros.
• Marginalização: processo social que coloca à
margem do convívio social pleno determinados grupos
por suas características identitárias, seja pela idade,
pela raça, pelas opções sexuais etc.

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• Carência de poder: pessoas que não têm a HISTÓRICO DO CADASTRAMENTO DIFERENCIADO
“autoridade” e o status para defender as suas opiniões
e precisam provar sempre a sua “respeitabilidade” para No Brasil, a participação da sociedade civil organizada
serem ouvidas, influenciarem decisões e terem alguma toma corpo na década de 1980 com o processo de
autonomia decisória. transição da ditadura e uma abertura política “lenta e
• Imperialismo cultural: experiência em que gradual” para a democracia. A promulgação da Constituição
grupos dominantes tornam invisíveis as perspectivas de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, deu novo
de determinados grupos ou os estereotipam de forma folego ao anseio da sociedade civil de participar e influenciar
a torná-los “o outro não desejado”. nas decisões estatais, ao incluir mecanismos de participação
• Violência: aceitação de que determinados direta, como conselhos com paridade participativa de órgãos
grupos sejam alvo de violência física sistemática pelo governamentais e não governamentais.
fato de terem características identitárias rejeitadas Os anos posteriores continuaram a sedimentar esse
por grupos dominantes, como é o caso da violência caminho de abertura cada vez maior para um espaço
doméstica contra mulheres, violência contra os público não estatal. Entre os aspectos nacionais que
homossexuais, negros e minorias. contribuíram para ampliar essa participação estão: a
consolidação do processo democrático, com eleições
Sem nos aprofundarmos nos conceitos de justiça, diretas periódicas e garantias de liberdades individuais e de
é importante observar que, dentre as cinco formas imprensa; e um cenário internacional em que temas como
de opressão apontadas por Young, algumas estão meio ambiente, direitos humanos e governança da internet
relacionadas ao déficit de recursos econômicos e outras estão cada vez mais presentes, conformando redes de
ao déficit de reconhecimento, ou seja, de aceitação pelos defesa de diferentes valores e princípios e ampliando o foco
grupos sociais de maior projeção das características de de debates para além das fronteiras dos estados-nações
grupos minoritários. (KECK & SIKKING, 2000; GOHN, 2005; DIREITO, 2010).
Assim, observa-se que existe relação entre as lutas Com a chegada do governo do presidente Luiz
redistributivas – que tentam tornar as sociedades Inácio Lula da Silva, em 2003, ancorado no Partido dos
capitalistas mais igualitárias do ponto de vista da renda – e Trabalhadores, cuja base era parcialmente composta
as lutas por reconhecimento – que tentam reconhecer as por membros dos movimentos sociais e/ou com forte
diferenças de grupos de forma a torná-las valorativamente interlocução junto às organizações não governamentais, a
semelhantes. questão da participação desses atores no cenário político
Nancy Fraser, que ao longo da vida dialogou nacional se redimensiona, sobretudo no sentido da
incessantemente com Young e Honneth sobre a questão, ampliação dos espaços de interlocução, com a instituição
assegurou: “assumo o fato de a justiça requerer hoje tanto de conselhos e comissões para o debate e formulação de
reconhecimento como redistribuição” (FRASER, 2001, p. aspectos da política.
246). Para a autora, é bastante evidente que a injustiça Em 2004, foi instituída a Comissão Nacional de
econômica está imbricada com a injustiça cultural – Desenvolvimento Sustentável das Comunidades
aceitação das características identitárias – de modo que Tradicionais, cujo objetivo principal era estabelecer a
ambas se reforçam mutuamente gerando um ciclo vicioso Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável das
de subordinação/exclusão cultural e econômica. Comunidades Tradicionais, a qual teve a sua composição
A partir desse marco teórico é que podemos alterada pelo Decreto de 13/07/2006, quando se
compreender a importância da identificação de constituiu um fórum de 30 representantes permanentes,
determinados grupos populacionais tradicionais e equiparando a presença de órgãos do Governo Federal
específicos (GPTEs) no âmbito do Cadastro Único. a de atores/organizações não governamentais com 15
À luz dessa reflexão que traçamos um histórico do membros cada. Além disso, o termo “povos” foi incluído,
Cadastramento Diferenciado3. passando a chamar-se Comissão Nacional de Povos e
Comunidades Tradicionais (CNPCT).

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Revista de Políticas Públicas e Nesse período, a gestão do Cadastro Único começou
Gestão Governamental a traçar as bases do que passou a ser conhecido como
Vol. 15 no 2 Cadastramento Diferenciado4. Trata-se de um conjunto
Jul/Dez 2017 de estratégias de cadastramento de famílias que possuem
características específicas em relação ao modo de vida,
cultura, crenças e costumes, e ainda a contextos de
condições críticas de vulnerabilidade social. A abordagem
A experiência brasileira de cadastramento de alguns desses públicos deve ser realizada por meio de
diferenciado de grupos populacionais parcerias com outros órgãos e ações nas comunidades
tradicionais e específicos envolvendo lideranças comunitárias5.
O ano de 2004 marca o início do processo de
cadastramento de populações tradicionais, mais
especificamente, de comunidades remanescentes de
quilombos e povos indígenas. Nessa ocasião, foram
definidos padrões de preenchimento do formulário de
cadastramento, possibilitando a identificação desses
grupos familiares. A versão 6 do Sistema do Cadastro
Único, implementada em 2005, deu maior agilidade e
segurança às ações de tratamento dos cadastros pelos
municípios (BRASIL, 2005).
É importante observar que apenas com a publicação
do Decreto nº 6.040/2007, que instituiu a Política
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos
e Comunidades Tradicionais (PNPCT), os conceitos de
“povos e comunidades tradicionais” foram definidos no
âmbito da CNPCT:

Grupos culturalmente diferenciados e que se


reconhecem como tais, que possuem formas próprias
de organização social, que ocupam e usam territórios e
recursos naturais como condição para sua reprodução
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica,
utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados
e transmitidos pela tradição. (BRASIL, 2007)

No entanto, o Decreto não enumerou de forma


ostensiva quais comunidades tradicionais haviam sido
reconhecidas. No ano de 2008, o Relatório de Gestão
da Secretaria Nacional de Renda de Cidadania, órgão
gestor do Cadastro Único, começa a apontar o maior
grau de vulnerabilidade que esses grupos enfrentam
(BRASIL, 2008).
Nesse mesmo ano é introduzido o Formulário
Suplementar 2 para captar de maneira mais eficiente as
pessoas/famílias em situação de rua, assim como algumas
de suas principais características. Esse grupo está em uma
situação específica porque o que o une não é uma cultura,
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uma ancestralidade ou conhecimentos transmitidos sobrepor-se, cabendo à família escolher em qual
pela tradição – a exemplo dos grupos tradicionais –, mas categoria deseja ser identificada.
uma situação conjuntural que os leva a ter vivências • Relação com o meio rural: famílias
semelhantes, seja de exclusão de direitos, seja de violência assentadas da reforma agrária, residentes em
ou de preconceitos. acampadas rurais, agricultores familiares, beneficiárias
Durante todo o ano de 2009, ações específicas do Programa Nacional de Crédito Fundiário.
voltadas ao cadastramento de povos e comunidades São grupos familiares que pleiteiam o acesso, a
tradicionais (quilombolas e indígenas) e de populações permanência, e o uso da terra, bem como acesso
específicas (em situação de rua) foram realizadas, a políticas públicas específicas, como crédito
dentre as quais destacamos a edição dos Guias de fundiário. Podem, eventualmente, estar organizadas
Cadastramento de Famílias Quilombolas, Indígenas e em movimentos sociais. Há ainda outros que já
Pessoas em Situação de Rua6. obtiveram regularização fundiária por meio do
No ano de 2010, começa a implantação de novas processo de reforma agrária, bem como aqueles que
versões do sistema de cadastramento e do formulário, exploram o imóvel rural para a criação de animais,
trazendo mais celeridade ao processo de inclusão produção de artigos agrícolas para consumo da
e atualização dos dados das famílias. Além disso, as unidade familiar e comercialização.
rotinas municipais de cadastramento passaram a ser • Situações conjunturais: famílias atingidas
feitas de forma on-line (versão 7). Neste momento, por empreendimentos de infraestrutura, de presos do
o rol de GPTEs identificados pelo Cadastro Único foi sistema carcerário, de catadores de material reciclável,
ampliado. Para simplificar o entendimento, os grupos aquelas compostas por pessoas em situação de rua.
familiares foram agregados considerando a semelhanças Por questões conjunturais entende-se situações em
nos modos de vida7: que a combinação de fatores diversos converge para
• Origem étnica: indígenas, quilombolas, construção de determinado estado por período de
ciganos, pertencentes às comunidades de terreiro. tempo limitado. Assim, foram agrupadas as famílias
Remete ao conjunto de famílias agrupadas de que podem estar momentaneamente em situação de
acordo com a autoconsciência de pertencerem a vulnerabilidade, mas que podem não mais pertencer
determinado grupo social dotado de organização ao grupo se determinada situação social mudar.
territorial, política, linguística, sociocultural, Portanto, diferentemente dos demais agregados –
econômica e histórica própria. Possuem costumes, rural, meio ambiente e étnico – este é caracterizado
tradições e modos de vida comunitários singulares, pela transitoriedade de sua condição.
transmitidos de geração para geração, que
os diferenciam de outros grupos. São grupos Ressalta-se que todas as famílias do Cadastro Único
populacionais que compartilham valores e práticas preenchem as mesmas informações cadastrais no
culturais diversas, fruto de processos civilizatórios formulário8, a única diferença é que as famílias de GPTEs
plurais e herdados. se identificam também em campos específicos.
• Relação com o meio ambiente: famílias Na sequência, analisamos os resultados já alcançados
extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhas. São na inclusão e identificação desses grupos familiares no
famílias que pertencem a comunidades tradicionais Cadastro Único.
cuja subsistência baseia-se no extrativismo de
recursos oferecidos pela natureza, seja nas florestas, RESULTADOS ALCANÇADOS9
rios, manguezais, mar e demais ambientes similares.
Complementarmente, essa população pode praticar Ao final de junho/2015, haviam sido identificadas
agricultura de subsistência e a criação de animais de 1,6 milhão de famílias GPTEs. A análise geral dos dados
pequeno porte, mas sempre em regime de economia demonstra que o crescimento de identificação dos
familiar. Devido a suas características comuns, os grupos tem se acelerado nos últimos anos, sobretudo a
grupos relacionados ao meio ambiente podem partir de 2013.

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Gráfico 1 – Evolução do total de famílias GPTEs no Cadastro Único
(junho/2010 a junho/2015)
1.800.000 1.692.135

1.500.765

1.267.642
1.350.000

1.021.731

900.000
677.427
536.283
366.405
450.000
239.199
114.791

0
Jun-14 Dec-15 Jun-16 Dec-16 Jun-17 Dec-17 Jun-18 Dec-18 Jun-19

Fonte: Cadastro Único, junho/2010 a junho/2015.

Entre 2014 e 2015, o total de GPTEs aumentou 33,5%,


um acréscimo de 424.493 famílias, conforme apresentado
no Quadro 1.

Quadro 1 – Evolução do número de famílias GPTEs no Cadastro Único


(junho/2014 a junho/2015)

Família GPTE Jun/14 Jun/2015 Crescimento % de Crescimento


Agricultores familiares 702.219 946.025 243.806 34,7%
Indígenas 124.082 143.110 19.028 15,3%
Quilombolas 114.368 137.313 22.945 20,1%
Pescadores artesanais 88.151 126.900 38.749 44,0%
Assentadas da reforma agrária 85.520 116.066 30.546 35,7%
Ribeirinhas 55.355 81.841 26.486 47,8%
Catadores de material reciclável 38.315 51.196 12.881 33,6%
Acampadas 27.367 44.147 16.780 61,3%
Em situação de rua 26.716 40.801 14.085 52,7%
Extrativistas 23.662 32.086 8.424 35,6%
Famílias de presos do sistema carcerário 7.467 10.965 3.498 46,8%
Atingidas por empreendimentos de infraestrutura 5.300 8.915 3.615 68,2%
Pertencentes a comunidades de terreiro 3.736 4.893 1.157 31,0%
Beneficiárias do PNCF 3.603 4.568 965 26,8%
Ciganas 2.831 3.860 1.029 36,3%

28
A ampliação da identificação dos GPTEs no Cadastro
Único vem ocorrendo, em boa parte, mais pela atualização
Um dos aspectos
de cadastros previamente realizados – no que se refere à
marcação dos respectivos campos de identificação como
impulsionadores do esforço
GPTEs – do que necessariamente pelo cadastramento de
novas famílias.
de inclusão e identificação
Ao longo do período analisado (junho/2014 a
junho/2015), 179,7 mil novas famílias foram incluídas
das famílias no Cadastro
e identificadas como pertencentes a algum grupo
populacional, perfazendo 24,3% do total de novas
Único é o uso que se pode
identificações. O restante dos cadastros, correspondente
a 75,7% das famílias (560,2 mil), resultou de atualizações
fazer dos dados coletados.
dos dados, ou seja, famílias que já estavam cadastradas,
mas não haviam sido corretamente identificadas nos
campos adequados. Único como um todo – sempre a última coluna dos
gráficos. As informações apresentadas são de famílias
PERFIL SOCIOECONÔMICO DAS FAMÍLIAS GPTES com dados cadastrais atualizados a menos de 48 meses.
A PARTIR DAS VARIÁVEIS DO CADASTRO ÚNICO Além disso, a sequência de gráficos apresenta variáveis
tanto de domicílio quanto dos Responsáveis pela Unidade
Um dos aspectos impulsionadores do esforço Familiar (RF). O RF é o membro que presta as informações
de inclusão e identificação das famílias no Cadastro da família ao Cadastro Único, com idade mínima de 16
Único é o uso que se pode fazer dos dados coletados. anos e, preferencialmente, do sexo feminino (Portaria
Essas informações possibilitam a análise do perfil GM/MDS n°177 de 16 de junho de 2011).
socioeconômico dos grupos. Em função das múltiplas variáveis que algumas
Não nos parece casual que o perfil dos GPTEs aponte das questões apresentam, e buscando viabilizar a
para uma maior vulnerabilidade quando comparado com análise desses quesitos, principalmente relacionados
o conjunto de famílias do Cadastro Único. Entendemos à escolaridade e infraestrutura do domicílio, as
isso como uma das consequências do duplo processo possibilidades de respostas foram agregadas,
de exclusão enfrentado pelas famílias, marcado tanto considerando que algumas apontam para maior
pela falta de acesso aos meios de produção (aspectos precariedade no acesso a determinadas políticas do que
econômicos/redistributivos) quanto pelo fato de não outras (Quadro 3).
compartilharem, de alguma forma, valores culturais não Fundamental salientar que nessa classificação há uma
hegemônicos e, assim, carecerem de reconhecimento da valoração que nem sempre encontra amparo na realidade,
sua identidade. no sentido de que nem sempre aponta efetivamente
Seria necessário, no entanto, aprofundar a análise para maior vulnerabilidade das famílias. Por exemplo,
do processo de reprodução das exclusões do ponto de muitas vezes, famílias indígenas aldeadas, que não
vista de cada um dos grupos identificados, de forma possuem acesso à água encanada, saneamento por rede
a compreender quais mecanismos e características coletora ou coleta de lixo, estão muito menos vulneráveis
socioculturais determinam sua maior dificuldade de e expostas à desnutrição e à escassez do que famílias
acesso a serviços, à educação e à geração de renda, indígenas que moram nas periferias das cidades e com
mesmo quando estão em situação semelhante à de acesso a tais facilidades.
outras famílias pobres. Portanto, trata-se de uma simplificação que pode
O perfil das famílias GPTEs10 foi extraído dos indicar uma possível maior vulnerabilidade, mas deve
respectivos cadastros, de forma a estabelecer sempre ser analisada considerando os outros aspectos
comparação com os dados das famílias do Cadastro culturais e sociais dos vários grupos familiares.

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Quadro 2 – Critérios de classificação das variáveis de escolaridade e infraestrutura do domicílio

Variáveis Menor precariedade Maior precariedade


Escolaridade fundamental completo ou maior sem instrução ou fundamental incompleto
Material das paredes alvenaria/tijolo ou madeira aparelhada taipa, madeira aproveitada, palha ou outro
externas material
Forma de abastecimento rede geral de distribuição poço ou nascente, cisterna ou outra forma
de água
Escoamento sanitário rede coletora de esgoto ou pluvial ou fossa rudimentar, vala a céu aberto ou
fossa séptica direto para rio, lago ou mar
Destino do lixo coletado diretamente ou queimado ou enterrado na propriedade,
indiretamente jogado em terreno baldio, logradouro, rio,
lago ou mar ou outro destino
Forma de iluminação elétrica com medidor próprio ou óleo, querosene, gás, vela ou outra forma
comunitário ou sem medidor

Ao contrário da maioria das famílias do Cadastro Único, de material reciclável. Quanto aos catadores há uma
que se localizam predominantemente na área urbana relação clara entre produção de resíduos e concentração
(78%), as famílias dos GPTEs concentram-se no meio rural populacional, sendo que os maiores depósitos de resíduos
(68,1%). Esse perfil rural é semelhante na maior parte dos sólidos estão localizados nas periferias dos centros
grupos, com algumas exceções (Gráfico 2). urbanos de médio e grande porte.
No caso daqueles de origem étnica se destacam A informação de local do domicílio não foi analisada
como predominantemente urbanos os ciganos e os para famílias em situação de rua porque esta variável
pertencentes à comunidade de terreiro. Nessa situação não é preenchida para essas famílias. Todavia, é possível
também estão todos aqueles alcançados por situações considera-las como urbanas visto que a situação de
conjunturais – atingidos por empreendimentos de rua é um fenômeno social que ocorre, sobretudo, nas
infraestrutura, presos do sistema carcerário e catadores grandes cidades.

30
Gráfico 2 - Famílias GPTEs por local do domicílio
100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%

C. de Terreiro

Total
Assentadas

Ribeirinhas

Quilombolas

PNCF

Agricultores

Acampadas

Extrativistas

Indígenas

Pescadores

Atingidas

Ciganas

Catadores

Família de

Total GPTEs
Urbanas Rurais

Fonte: Senarc/MDS, a partir dos microdados do Cadastro Único de junho/2015.

VARIÁVEIS SOCIOECONÔMICAS de origem étnica (indígenas, quilombolas e ciganos), os


Faixa de renda mensal per capita11 grupos relacionados ao meio ambiente (extrativistas,
pescadores e ribeirinhos), bem como as famílias em
A maior parte das famílias dos GPTEs (69,3%) está situação de rua e de agricultores familiares.
em situação de extrema pobreza, com renda per capita Um fenômeno que merece ser investigado,
declarada inferior a R$ 77,00 (Gráfico 3), configurando inclusive sob a perspectiva regional e geográfica,
um perfil ainda mais vulnerável que o das famílias do consiste na menor proporção relativa de famílias
Cadastro Único como um todo, cuja proporção de acampadas – conceito que engloba tanto os
extrema pobreza é de 47,4%. acampados rurais como os urbanos, em luta por
Os grupos com percentual de extremamente pobres moradia – em situação de extrema pobreza em
acima da média dos GPTEs são em grande parte aqueles relação aos demais grupos.

31
Gráfico 3 – Famílias de acordo com renda per capita mensal
100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
P. Situação de Rua

Ribeirinhas

Extrativistas

Indígenas

Ciganas

Agricultores

PNCF

Total GPTEs
Quilombolas

Pescadores

Catadores

C. de Terreiro

Família de Preso

Assentadas

Atingidas

Acampadas

Total CadÚnico
Até R$77,00 De R$77,01 até R$154,00
De R$154,01 até R$394,00 Acima de R$394,00

Fonte: Senarc/MDS, a partir dos microdados do Cadastro Único de junho/2015.

Grau de instrução em melhor condição, são os de famílias pertencentes


à comunidade de terreiro, de pescadores artesanais,
Este é outro quesito no qual as famílias dos GPTEs atingidas por empreendimentos de infraestrutura, em
estão em pior situação em comparação à média das situação de rua e de presos do sistema carcerário. Todos
famílias inscritas no Cadastro Único. Para as famílias os demais estão em pior situação.
identificadas como pertencentes a algum GPTE, 20,1% O grupo com maior proporção de RF sem escolaridade
possuem responsável pela unidade familiar (RF) sem é o de ciganos (47,6%). Além do preconceito sofrido
escolaridade, enquanto no perfil do Cadastro Único essa pela grande maioria dos ciganos quando da tentativa
proporção cai para 14,2% (Gráfico 4). de frequentar a escola, a falta de instrução entre eles é
Os grupos que apresentam perfis de grau de instrução reforçada pela tradição cultural do grupo de excluir as
mais próximos do perfil do Cadastro Único, portanto mulheres do processo educacional formal.

32
Gráfico 4 – Famílias GPTEs por grau de instrução da/o responsável pela unidade familiar12
100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%

C. de Terreiro
Ciganas

Indígenas

Extrativistas

Agricultores

Família de

Total GPTEs

Total
Quilombolas

Ribeirinhas

Catadores

Assentadas

PNCF

Acampadas

Atingidas

Pescadores

P. Situação de
Sem instrução Fundamental incompleto Fundamental completo ou maior

Fonte: Senarc/MDS, a partir dos microdados do Cadastro Único de junho/2015.

Cor/raça permite dupla marcação dos grupos indígenas/ribeirinhos


e extrativistas, sendo absolutamente compatível a forma
Na população brasileira, os negros (compostos de viver das populações indígenas com as atividades
pela somatória dos que se declaram pretos e dos extrativistas e a forma de viver dos ribeirinhos, e assim tem
que se declaram pardos) representam 54,1% do total sido revelado pela própria população cadastrada.
de habitantes13. No Cadastro Único, o mesmo grupo Um aspecto curioso é o fato de que o grupo com
representa 68,9% do total de RFs, deixando evidente maior proporção de brancos seja o de famílias com presos
que, no Brasil, raça/cor e pobreza estão estreitamente do sistema carcerário (38,8%). O percentual de brancos
relacionadas. Observa-se que a proporção de negros nesse grupo é maior, inclusive, que no Cadastro Único
dentre os GPTEs (73,3%) é muito próxima daquela como um todo (29,9%). As 10.965 famílias de presos
encontrada no perfil do Cadastro Único (Gráfico inseridas no Cadastro Único até junho de 2015 são, no
5).Interessante constatar que a cor/raça indígena entanto, apenas uma pequena amostra da população
extrapola o respectivo grupo étnico e também está carcerária brasileira, que perfazia, em 2012, cerca de 548
presente em proporções importantes em grupos mil brasileiros14. Assumindo-se que cada pessoa presa
relacionados ao meio ambiente, especialmente dos represente uma família, o Cadastro Único identificou
extrativistas (24,3%). Necessário lembrar que o Cadastro apenas 1% dessa população até o momento.

33
Gráfico 5 – Famílias GPTEs por cor/raça da/o responsável pela unidade familiar
100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
C. de Terreiro

Agricultores
Quilombolas

Pescadores

Ribeirinhas

Atingidas

Assentadas

Ciganas

Catadores

Extrativistas

Acampadas

PNCF

P. Situação de Rua

Família de Preso

Indígenas

Total GPTEs

Total CadÚnico
Negra Branca Indígena Amarela

Fonte: Senarc/MDS, a partir dos microdados do Cadastro Único de junho/2015.

Sexo do responsável pela unidade familiar

Assim como no público do Cadastro Único, a ampla


maioria dos GPTEs tem a mulher como responsável
familiar. No entanto, nota-se um percentual um pouco
mais elevado de RFs do sexo masculino dentre os GPTEs
(17,6%) em relação ao público do Cadastro Único (12,7%).
Os grupos rurais de forma geral, também apresentam
um percentual maior de responsáveis familiares do sexo
masculino, em especial os acampados, em que essa
proporção chega a 40,1% (Gráfico 6).

34
Gráfico 6 – Famílias GPTEs por sexo da/o responsável pela unidade familiar
100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
Família de Preso

Resgatados

Extrativistas

Trabalho infantil

Pescadores

Agricultores

Atingidas

Indígenas

Ribeirinhas

C. de Terreiro

Quilombolas

Ciganas

Catadores

Assentadas

PNCF

Acampadas

P. Situação de Rua

Total GPTEs

Total CadÚnico
Feminino Masculino

Fonte: Senarc/MDS, a partir dos microdados do Cadastro Único de junho/2015.

Merece destaque também a questão dos moradores


em situação de rua que apresentam elevado percentual
de responsáveis familiares (88,4%) do sexo masculino,
sendo que, em sua maioria, formam uma família
unipessoal (Gráfico 7).

35
Gráfico 7 – Famílias GPTEs por sexo das pessoas
100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
P. Situação de Rua

Acampadas

PNCF

Assentadas

Agricultores

Pescadores

Ribeirinhas

Indígenas

Ciganas

Extrativistas

Quilombolas

Família de Preso

Catadores

Atingidas

C. de Terreiro

Total GPTEs

Total CadÚnico
Masculino Feminino

Fonte: Senarc/MDS, a partir dos microdados do Cadastro Único de junho/2015.

VARIÁVEIS DE INFRAESTRUTURA DO DOMICÍLIO Abastecimento de água

A seguir analisamos as variáveis relativas aos serviços Os dados do Gráfico 8 demonstram que enquanto no
de infraestrutura disponíveis nos domicílios. Importante Cadastro Único o percentual de famílias com acesso à
destacar que, em relação às famílias em situação de rede geral de distribuição é 74,5%, dentre os GPTEs esse
rua, essa análise fica prejudicada, pois, dada a situação percentual é bem inferior (40,6%).
precária onde residem, as variáveis de domicílio não são Verificamos que essa é uma variável bastante
preenchidas no cadastramento. associada com a localidade do domicílio. Geralmente
aqueles situados na área rural têm menor acesso
à rede geral de distribuição. De fato, os grupos
predominantemente urbanos (todos os em situações
conjunturais e pertencentes à comunidade de terreiro)
são os que possuem melhores percentuais de acesso à
agua por rede de distribuição.

36
Gráfico 8 – Famílias GPTEs por forma de abastecimento de água
100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
Assentadas

Ribeirinhas

Extrativistas

Quilombolas

PNCF

Agricultores

Indígenas

Acampadas

Pescadores

Atingidas

Ciganas

Catadores

C. de Terreiro

Família de Preso

Total GPTEs

Total CadÚnico
Poço, nascente, cisterna ou outra forma Rede geral de distribuição

Fonte: Senarc/MDS, a partir dos microdados do Cadastro Único de junho/2015.

Escoamento sanitário (todos em situações conjunturais e os pertencentes à


comunidade de terreiro) são os que possuem percentuais
Essa é uma das variáveis que apresenta maior variação de acesso por rede coletora maiores que os percentuais
entre os GPTEs entre si e seu conjunto, comparado ao do Cadastro Único.
perfil do Cadastro Único como um todo. Enquanto no Outro aspecto mais desfavorável para os GPTEs,
Cadastro Único o percentual de famílias com acesso em parte explicado pelo domicílio predominante na
à rede coletora de esgoto ou a fossa séptica é 64,4%, área rural, é o alto percentual de famílias que utilizam
dentre os GPTEs esse percentual cai pela metade (29,2%), fossa rudimentar, vala a céu aberto ou despejo direto
conforme observado no Gráfico 9. em rios e lagos (70,8%, contra 35,6% no Cadastro
Assim como no abastecimento de água, o Único em geral). Todos os grupos relacionados ao meio
escoamento sanitário está bastante associado à ambiente (ribeirinhos, extrativistas e pescadores), os
localidade do domicílio. Ou seja, grupos que residem na grupos relacionados ao meio rural (agricultores familiares,
área rural possuem menor acesso a escoamento sanitário assentados, e beneficiários do PNCF), indígenas e
adequado (rede coletora e fossa séptica). Com exceção quilombolas possuem pelo menos metade de suas famílias
dos ciganos, os grupos predominantemente urbanos utilizando formas precárias de escoamento sanitário.

37
Gráfico 9 – Famílias GPTEs por forma de escoamento sanitário
100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
Ribeirinhas

Extrativistas

Atingidas

Ciganas

C. de Terreiro

Catadores

Família de Preso

Total GPTEs
Assentadas

Agricultores

Quilombolas

Indígenas

Pescadores

PNCF

Acampadas

Total CadÚnico
Rede coletora de esgoto ou pluvial ou fossa séptica
Fossa rudimentar, vala a céu aberto ou direto para rio, lago ou mar

Fonte: Senarc/MDS, a partir de microdados do Cadastro Único de junho/2015.

Coleta de lixo Verifica-se alto percentual de famílias GPTEs que


queimam, enterram, ou o jogam os dejetos nos espaços
No Cadastro Único, o percentual de famílias com lixo públicos (64%, contra 21,7% no Cadastro Único em
coletado direta ou indiretamente é de 78,3%. Já dentre os geral). A maior parte dos grupos relacionados ao meio
GPTEs esse percentual cai para 36% (Gráfico 10). Assim rural (agricultores familiares, assentados e beneficiários
como as demais variáveis relacionadas ao domicílio, do Programa Nacional de Crédito Fundiário - PNCF),
a forma de coleta de lixo está bastante associada à ribeirinhos, extrativistas, indígenas e quilombolas possuem
localidade; ou seja, grupos que residem em sua grande mais de 60% de suas famílias utilizando essas formas de
parte na área rural possuem menor acesso à coleta de lixo descarte de lixo.
adequada (direta ou indireta).

38
Gráfico 10 – Famílias GPTEs por forma de coleta de lixo
100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%

Agricultores
Assentadas

Ribeirinhas

Extrativistas

Quilombolas

Indígenas

PNCF

Acampadas

Pescadores

C. de Terreiro

Atingidas

Ciganas

Catadores

Família de Preso

Total GPTEs

Total CadÚnico
Coletado diretamente ou indiretamente
Queimado, enterrado, jogado em terreno baldio, rio ou mar ou outro destino

Fonte: Senarc/MDS, a partir de microdados do Cadastro Único de junho/2015.

Tipo de iluminação

O Gráfico 11 demonstra que a maior parte das famílias


GPTEs acessa serviços de iluminação elétrica, por qualquer
das suas formas de medição (87,4%), ainda que em menor
proporção que as famílias do Cadastro Único como um
todo (95,6%).
Fogem desse perfil as famílias ribeirinhas. Esse grupo é o
que apresenta pior situação nesse quesito. Somente metade
das famílias ribeirinhas (51,7%) possui acesso a iluminação
elétrica, por qualquer das formas de medição analisadas.

39
Gráfico 11 – Famílias GPTEs por tipo de iluminação
100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
Ribeirinhas

Extrativistas

Indígenas

Acampadas

Pescadores

Assentadas

Quilombolas

Agricultores

Ciganas

PNCF

Catadores

C. de Terreiro

Família de Preso

Atingidas

Total GPTEs

Total CadÚnico
Elétrica com ou sem medidor próprio ou comunitário
óleo, querosene, gás, vela ou outra forma

Fonte: Senarc/MDS, a partir de microdados do Cadastro Único de junho/2015.

Acesso simultâneo a serviços de infraestrutura A partir da análise, verificou-se diferença


significativa entre percentual de famílias GPTEs que
Para verificar de forma mais abrangente a situação contam com esses serviços (12,5%) e a média de
vivenciada pelas populações, em relação aos serviços acesso das famílias do Cadastro Único em geral
públicos, observou-se, conforme demonstra o Gráfico 12, (49,4%). Os dados reforçam, mais uma vez, que os
o acesso simultâneo aos quatro serviços básicos avaliados: grupos populacionais tradicionais e em situações
abastecimento de água por rede geral de distribuição; específicas são expressivamente mais vulneráveis e
escoamento sanitário por rede coletora de esgoto ou têm mais dificuldade que a população de baixa renda
fossa séptica; coleta de lixo; e iluminação elétrica. em geral de obter os serviços públicos.

40
Gráfico 12 – Número de famílias com domicílio com acesso simultâneo a serviços básicos por GPTEs
100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
Assentadas

Ribeirinhas

Extrativistas

Quilombolas

PNCF

Indígenas

Agricultores

Pescadores

Acampadas

Ciganas

Atingidas

C. de Terreiro

Catadores

Família de Preso

Total GPTEs

Total CadÚnico
Não tem os 4 serviços Tem os 4 serviços

Fonte: Senarc/MDS, a partir de microdados do Cadastro Único de junho/2015.

DESAFIOS PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS não tenhamos abordado um amplo debate sobre justiça,
VOLTADAS PARA OS GPTES adotamos o entendimento de John Rawls de que há
uma distribuição natural de talentos que não é justa ou
Sabe-se que as famílias inseridas no Cadastro Único, injusta, e que da mesma forma não é justa ou injusta a
até pela condição de baixa renda, possuem condições posição social que uma determinada pessoa ocupa na
socioeconômicas bem inferiores em relação à média sociedade. “O que é justo ou injusto é a maneira como
brasileira (CAMARGO et al., 2013). No entanto, o presente as instituições lidam com esses fatos.” (RAWLS apud
perfil deixa bastante evidente que as famílias pertencentes SANDEL, 2011, p. 204)
aos grupos populacionais tradicionais e específicos Assim, a partir da situação de diferenças sociais
(GPTEs), predominantemente residentes em áreas rurais, constatada, interessa refletir sobre o que deve ser feito
enfrentam, de modo geral, ainda maior insuficiência de pelas instituições para eliminar ou reduzir as injustiças
renda, menor grau de escolaridade e menor acesso a sociais a que essas famílias estão submetidas.
serviços de infraestrutura em seus domicílios. Como dito São necessárias políticas públicas que levem em
anteriormente, são grupos populacionais que sofrem uma consideração os vários aspectos de exclusão, ou seja,
dupla exclusão, “são coletividades ‘ambivalentes’ ao serem iniciativas que incentivem ou possibilitem a redistribuição
diferenciadas tanto na estrutura político-econômica como de renda ou geração adicional de renda, mas que
na cultural valorativa” (FRASER, 2001, p. 259). ao mesmo tempo reconheçam as diferenças dessas
A partir dessa afirmativa e da análise dos dados, fica populações tanto no desenho da política – considerando
a questão de como tratar de forma mais justa esses a diversidade na sua forma de acesso – quanto em ações
grupos populacionais. No âmbito deste artigo, ainda que de revalorização de sua cultura.

41
Em suma, para além da constatação da maior Cadastro Único para 2015 evidenciam que as ações em
vulnerabilidade dos GPTEs, fica evidenciado que um curso, ainda que tenham avançado bastante no período
próximo passo para lidar com essa situação é a promoção recente15, devem ser aperfeiçoadas para alcançar esse
e articulação de ações que lidem com as especificidades segmento da extrema miséria no Brasil.
culturais e socioeconômicas dessas famílias. Os dados do

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42
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Notas

1
As autoras agradecem a José Roberto Alvarenga Frutuoso e a Akina Sakamori pelo apoio na geração dos dados e produção dos
gráficos.
2
Esse artigo é uma versão revisada e atualizada do trabalho apresentado no “XIX Congresso Internacional do CLAD sobre a Reforma
do Estado e da Administração Pública”, ocorrido em Quito, Equador, 2014.
3
Vale ressaltar que foge ao escopo desse artigo identificar como cada um dos GPTEs conquistou o direito de estar no Cadastro.
O próprio fato de terem direito a uma identificação específica significa que eles estão em luta por reconhecimento, que se
mobilizaram para reafirmar a sua identidade.
4
Para Cadastramento Diferenciado ver Portaria GM/MDS nº 376 de 16/10/2008, substituída pela Portaria GM/MDS n° 177, de 16 de
junho de 2011.
5
Texto disponível em: http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/cadastrounico/gestao-municipal/processo-de-cadastramento/
cadastramento-diferenciado. Acessado pela última vez em 05/06/2014.
6
Guias disponíveis em http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/cadastrounico/gestao-municipal/processo-de-cadastramento/
cadastramento-diferenciado. Acessado pela última vez em 05/06/2014.
7
Para conhecer mais sobre a identificação dos GPTEs no formulário do Cadastro Único, consultar a obra “Cadastramento
diferenciado. Diversidade no Cadastro Único – Respeitar e Incluir” (BRASIL, 2014).
8
Para conhecer os formulários do Cadastro Único acesse: http://www.mds.gov.br/falemds/perguntas-frequentes/bolsa-familia/
cadastro-unico/gestor/cadunico-formularios
9
Para saber mais sobre os resultados do cadastramento diferenciado para cada grupo, consultar “Cadastramento diferenciado.
Diversidade no Cadastro Único – Respeitar e Incluir” (BRASIL, 2014).
10
Vale ressaltar que a forma estabelecida para a marcação dos GPTEs permite que algumas famílias se identifiquem como
pertencentes a dois grupos diferentes, que não representem realidades excludentes (ex.: podem ser indígenas e extrativistas). Essa
possibilidade de dupla marcação ocorre entre os grupos que estão identificados no formulário principal – quilombola/indígena – e no
formulário suplementar 2 – pessoa em situação de rua – com os outros grupos que são identificados no formulário suplementar 1.
11
Conforme Decreto nº 5.209, de 17 de setembro de 2004 – e respectivas atualizações – a renda per capita para acesso ao
programa Bolsa Família é de R$ 154,00, e considera-se em extrema pobreza aquela população com renda familiar per capita mensal
de até R$ 77,00. O salário mínimo vigente à época de extração dos dados era de R$ 798,00.

43
12
Apesar de o responsável familiar ter, no mínimo, 16 anos, o grau de instrução foi contabilizado apenas para os RFs maiores de 25
anos, pois esses já passaram da idade regular de completar as fases de ensino.
13
Segundo a PNAD de 2014.
14
Segundo dados de dezembro de 2012 do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (InfoPen), do Ministério da Justiça.
Disponível em: http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE-3C7D-437A-A5B6-22166AD2E896%7D&Team=&params=itemI
D=%7BD82B764A-E854-4DC2-A018-450D0D1009C7%7D;&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D
15
Neste sentido, destacamos o Programa Brasil Sem Miséria, cujas estratégias e principais resultados estão descritos na publicação “O
Brasil sem Miséria” (BRASIL, 2014a).

44

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