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Da redistribuição ao reconhecimento?

Dilemas
da justiça numa era “pós-socialista”

NANCY FRASER - TRADUÇÃO: JULIO ASSIS SIMÕES

A “luta por reconhecimento” está rapidamen- tural” e “reconhecimento”? Essa virada repre-
te se tornando a forma paradigmática de conflito senta um lapso de “falsa consciência”? Ou seria
político no final do século XX. Demandas por mais um meio de compensar a cegueira cultural
“reconhecimento da diferença” dão combustível de um paradigma marxista posto em descrédito
às lutas de grupos mobilizados sob as bandeiras pelo colapso do comunismo soviético?
da nacionalidade, etnicidade, “raça”, gênero e Nenhuma das duas posições é adequada,
sexualidade. Nestes conflitos “pós-socialistas”, a a meu ver. Ambas são demasiado abrangentes
identidade de grupo suplanta o interesse de clas- e sem nuanças. Ao invés de simplesmente en-
se como o meio principal da mobilização políti- dossar ou rejeitar o que é simplório na política
ca. A dominação cultural suplanta a exploração da identidade, devíamos nos dar conta de que
como a injustiça fundamental. E o reconheci- temos pela frente uma nova tarefa intelectual
mento cultural toma o lugar da redistribuição e prática: a de desenvolver uma teoria crítica
socioeconômica como remédio para a injustiça do reconhecimento, que identifique e assuma
e objetivo da luta política. a defesa somente daquelas versões da política
Claro que esta não é toda a história. Lutas cultural da diferença que possam ser combi-
pelo reconhecimento ocorrem num mundo de nadas coerentemente com a política social da
exacerbada desigualdade material – desigual- igualdade.
dades de renda e propriedade; de acesso a tra- Ao formular esse projeto, assumo que a jus-
balho remunerado, educação, saúde e lazer; e tiça hoje exige tanto redistribuição como reco-
também, mais cruamente, de ingestão calórica nhecimento. E proponho examinar a relação
e exposição à contaminação ambiental; portan- entre eles. Isso significa, em parte, pensar em
to, de expectativa de vida e de taxas de mor- como conceituar reconhecimento cultural e
bidade e mortalidade. A desigualdade material igualdade social de forma a que sustentem um
está em alta na maioria dos países do mundo ao outro, ao invés de se aniquilarem (pois há
– nos EUA e na China, na Suécia e na Índia, na muitas concepções concorrentes de ambos!)
Rússia e no Brasil. Ela também aumenta glo- Significa também teorizar a respeito dos meios
balmente, de modo mais dramático, do outro pelos quais a privação econômica e o desrespei-
lado da linha que divide norte e sul. to cultural se entrelaçam e sustentam simulta-
Como, então, devemos ver o eclipse de um neamente. Exige também, portanto, esclarecer
imaginário socialista centrado em termos como os dilemas políticos que surgem quando ten-
“interesse”, “exploração” e “redistribuição”? E tamos combater as duas injustiças ao mesmo
o que devemos fazer com a emergência de um tempo.
novo imaginário político centrado nas noções Meu objetivo maior é ligar duas problemá-
de “identidade”, “diferença”, “dominação cul- ticas políticas atualmente dissociadas; pois é
somente integrando reconhecimento e redis- interpretativas e representacionais autorizadas
tribuição que chegaremos a um quadro concei- da própria cultura); e o desrespeito (ser difa-
tual adequado às demandas de nossa era. mado ou desqualificado rotineiramente nas re-
[...] presentações culturais públicas estereotipadas
Para ajudar a esclarecer esta situação e as e/ou nas interações da vida cotidiana).
perspectivas políticas que ela apresenta, [...]
proponho distinguir analiticamente duas Insistirei em distinguir analiticamente in-
maneiras muito genéricas de compreender a justiça econômica e injustiça cultural, em que
injustiça. A primeira delas é a injustiça pese seu mútuo entrelaçamento. O remédio
econômica, que se radica na estrutura para a injustiça econômica é alguma espécie de
econômico-política da sociedade. Seus reestruturação político-econômica. Pode en-
exemplos incluem a exploração (ser volver redistribuição de renda, reorganização
expropriado do fruto do próprio trabalho em da divisão do trabalho, controles democráticos
benefício de outros); a marginalização eco- do investimento ou a transformação de outras
nômica (ser obrigado a um trabalho indesejável estruturas econômicas básicas. Embora esses
e mal pago, como também não ter acesso a tra- vários remédios difiram significativamente
balho remunerado); e a privação (não ter acesso entre si, doravante vou me referir a todo esse
a um padrão de vida material adequado). grupo pelo termo genérico “redistribuição”. O
Teóricos igualitários empreenderam gran- remédio para a injustiça cultural, em contraste,
de esforço para conceituar a natureza dessas é alguma espécie de mudança cultural ou sim-
injustiças socioeconômicas. Suas concepções bólica. Pode envolver a revalorização das iden-
incluem a teoria de Marx sobre a exploração tidades desrespeitadas e dos produtos culturais
capitalista; a concepção de justiça de Rawls, dos grupos difamados. Pode envolver, também,
como justiça na seleção dos princípios que o reconhecimento e a valorização positiva da
regem a distribuição dos “bens primários”; a diversidade cultural. Mais radicalmente ainda,
visão de Amartya Sen, de que justiça implica pode envolver uma transformação abrangente
“capacidades de função” iguais; e a de Ronald dos padrões sociais de representação, interpre-
Dworkin, de que justiça implica “igualdade de tação e comunicação, de modo a transformar o
recursos”. Para meus propósitos neste trabalho, sentido do eu de todas as pessoas. Embora esses
porém, não precisamos nos comprometer com remédios difiram significativamente entre si,
nenhuma visão teórica em particular. Precisa- doravante vou me referir a todo esse grupo pelo
mos apenas subscrever uma compreensão geral termo genérico “reconhecimento”.
e rudimentar da injustiça socioeconômica in- [...]
formada por um compromisso com o iguali- Postas estas distinções, posso passar agora
tarismo. à questão seguinte: qual é a relação entre lutas
A segunda maneira de compreender a in- por reconhecimento, voltadas para remediar
justiça é cultural ou simbólica. Aqui a injustiça a injustiça cultural, e lutas por redistribuição,
se radica nos padrões sociais de representação, voltadas para compensar a injustiça econômica?
interpretação e comunicação. Seus exemplos E que espécie de interferências mútuas podem
incluem a dominação cultural (ser submeti- brotar quando os dois tipos de reivindicação são
do a padrões de interpretação e comunicação feitos simultaneamente?
associados a outra cultura, alheios e/ou hostis Existem boas razões para se preocupar
à sua própria); o ocultamento (tornar-se in- com essas interferências mútuas. Lutas de
visível por efeito das práticas comunicativas,
reconhecimento assumem com freqüência a As coisas ficam mais turvas, porém, à medi-
forma de chamar a atenção para a presumida da que nos afastamos das extremidades. Quan-
especificidade de algum grupo – ou mesmo do consideramos coletividades localizadas na
de criá-la performativamente – e, portanto, região intermediária do espectro conceitual,
afirmar seu valor. Desse modo, elas tendem encontramos tipos híbridos que combinam
a promover a diferenciação do grupo. Lu- características da classe explorada com carac-
tas de redistribuição, em contraste, buscam terísticas da sexualidade desprezada. Essas co-
com freqüência abolir os arranjos econômi- letividades são “bivalentes”. São diferenciadas
cos que embasam a especificidade do grupo como coletividades tanto em virtude da estru-
(um exemplo seriam as demandas feministas tura econômico-política quanto da estrutura
para abolir a divisão do trabalho segundo o cultural-valorativa da sociedade. Oprimidas
gênero). Desse modo, elas tendem a promo- ou subordinadas, portanto, sofrem injustiças
ver a desdiferenciação do grupo. O resultado é que remontam simultaneamente à economia
que a política do reconhecimento e a políti- política e à cultura. Coletividades bivalentes,
ca da redistribuição parecem ter com freqü- em suma, podem sofrer da má distribuição so-
ência objetivos mutuamente contraditórios. cioeconômica e da desconsideração cultural de
Enquanto a primeira tende a promover a di- forma que nenhuma dessas injustiças seja um
ferenciação do grupo, a segunda tende a de- efeito indireto da outra, mas ambas primárias
sestabilizá-la. Desse modo, os dois tipos de e cooriginais. Nesse caso, nem os remédios de
luta estão em tensão; um pode interferir no redistribuição nem os de reconhecimento, por
outro, ou mesmo agir contra o outro. si sós, são suficientes. Coletividades bivalentes
Eis, então, um difícil dilema. Doravante necessitam dos dois.
vou chamá-lo dilema da redistribuição-reco- Gênero e “raça” são paradigmas de coleti-
nhecimento. Pessoas sujeitas à injustiça cul- vidades bivalentes. Embora cada qual tenha
tural e à injustiça econômica necessitam de peculiaridades não compartilhadas pela outra,
reconhecimento e redistribuição. Necessitam ambas abarcam dimensões econômicas e di-
de ambos para reivindicar e negar sua especifi- mensões cultural-valorativas. Gênero e “raça”,
cidade. Como isso é possível? portanto, implicam tanto redistribuição quan-
[...] to reconhecimento.
As coisas são bem claras nas duas extremi- O gênero, por exemplo, tem dimensões
dades de nosso espectro conceitual. Quando econômico-políticas porque é um princípio
lidamos com coletividades que se aproximam estruturante básico da economia política. Por
do tipo ideal da classe trabalhadora explorada, um lado, o gênero estrutura a divisão funda-
encaramos injustiças distributivas que precisam mental entre trabalho “produtivo” remune-
de remédios redistributivos. Quando lidamos rado e trabalho “reprodutivo” e doméstico
com coletividades que se aproximam do tipo não-remunerado, atribuindo às mulheres a
ideal da sexualidade desprezada, em contraste, responsabilidade primordial por este último.
encaramos injustiças de discriminação negativa Por outro lado, o gênero também estrutura a
que precisam de remédios de reconhecimento. divisão interna ao trabalho remunerado entre
No primeiro caso, a lógica do remédio é acabar as ocupações profissionais e manufatureiras de
com esse negócio de grupo; no segundo caso, ao remuneração mais alta, em que predominam
contrário, trata-se de valorizar o “sentido de gru- os homens, e ocupações de “colarinho rosa” e
po” do grupo, reconhecendo sua especificidade. de serviços domésticos, de baixa remuneração,
em que predominam as mulheres. O resultado nalizantes, objetificadoras e humilhantes na
é uma estrutura econômico-política que en- mídia; o assédio e a desqualificação em todas
gendra modos de exploração, marginalização as esferas da vida cotidiana; a sujeição às nor-
e privação especificamente marcados pelo gê- mas androcêntricas, que fazem com que as mu-
nero. Esta estrutura constitui o gênero como lheres pareçam inferiores ou desviantes e que
uma diferenciação econômico-política dotada contribuem para mantê-las em desvantagem,
de certas características da classe. Sob esse as- mesmo na ausência de qualquer intenção de
pecto, a injustiça de gênero aparece como uma discriminar; a discriminação atitudinal; a ex-
espécie de injustiça distributiva que clama por clusão ou marginalização das esferas públicas
compensações redistributivas. De modo muito e centros de decisão; e a negação de direitos le-
semelhante à classe, a injustiça de gênero exi- gais plenos e proteções igualitárias. Esses danos
ge a transformação da economia política para são injustiças de reconhecimento. São relati-
que se elimine a estruturação de gênero desta. vamente independentes da economia política
Para eliminar a exploração, marginalização e e não são meramente “superestruturais”. Por
privação especificamente marcadas pelo gênero isso, não podem ser remediados apenas pela
é preciso abolir a divisão do trabalho segundo redistribuição econômico-política, mas preci-
ele – a divisão de gênero entre trabalho remu- sam de medidas independentes e adicionais de
nerado e não-remunerado e dentro do trabalho reconhecimento. O androcentrismo e sexismo
remunerado. A lógica do remédio é semelhante predominantes exigem a mudança dos valores
à lógica relativa à classe: trata-se de acabar com culturais (assim como de suas expressões legais
esse negócio de gênero. Se o gênero não é nada e práticas) que privilegiam a masculinidade e
mais do que uma diferenciação econômico- negam respeito às mulheres. Exigem o descen-
política, a justiça exige, em suma, que ele seja tramento das normas androcêntricas e a revalo-
abolido. rização de um gênero desprezado. A lógica do
Isso, no entanto, é apenas uma parte da remédio é semelhante à lógica relativa à sexu-
história. Na verdade, o gênero não é somen- alidade: conceder reconhecimento positivo a
te uma diferenciação econômico-política, mas um grupo especificamente desvalorizado.
também uma diferenciação de valoração cul- O gênero é, em suma, um modo bivalente de
tural. Como tal, ele também abarca elementos coletividade. Ele contém uma face de economia
que se assemelham mais à sexualidade do que política, que o insere no âmbito da redistribui-
à classe, e isso permite enquadrá-lo na proble- ção. Mas também uma face cultural-valorativa,
mática do reconhecimento. Seguramente, uma que simultaneamente o insere no âmbito do re-
característica central da injustiça de gênero é conhecimento. Naturalmente, as duas faces não
o androcentrismo: a construção autorizada de são claramente separadas uma da outra. Elas se
normas que privilegiam os traços associados à entrelaçam para se reforçarem entre si dialetica-
masculinidade. Em sua companhia está o se- mente porque as normas culturais sexistas e an-
xismo cultural: a desqualificação generalizada drocêntricas estão institucionalizadas no Estado
das coisas codificadas como “femininas”, para- e na economia e a desvantagem econômica das
digmaticamente – mas não só –, as mulheres. mulheres restringe a “voz” das mulheres, impe-
Essa desvalorização se expressa numa variedade dindo a participação igualitária na formação da
de danos sofridos pelas mulheres, incluindo cultura, nas esferas públicas e na vida cotidiana.
a violência e a exploração sexual, a violência O resultado é um círculo vicioso de subordi-
doméstica generalizada; as representações ba- nação cultural e econômica. Para compensar a
injustiça de gênero, portanto, é preciso mudar a e “supérfluo” que não vale a pena ser explorado
economia política e a cultura. e é totalmente excluído do sistema produtivo.
Mas o caráter bivalente do gênero é a fonte O resultado é uma estrutura econômico-políti-
de um dilema. Uma vez que as mulheres sofrem, ca que engendra modos de exploração, margi-
no mínimo, de dois tipos de injustiça analitica- nalização e privação especificamente marcados
mente distintos, elas necessariamente precisam, pela “raça”. Essa estrutura constitui a raça como
no mínimo, de dois tipos de remédios analiti- uma diferenciação econômico-política dota-
camente distintos: redistribuição e reconheci- da de certas características de classe. Sob esse
mento. Os dois remédios pendem para direções aspecto, a injustiça racial aparece como uma
opostas, porém, e não é fácil persegui-las ao espécie de injustiça distributiva que clama por
mesmo tempo. Enquanto a lógica da redistri- compensações redistributivas. De modo mui-
buição é acabar com esse negócio de gênero, a to semelhante à classe, a injustiça racial exige
lógica do reconhecimento é valorizar a especifi- a transformação da economia política para que
cidade de gênero. Eis, então, a versão feminista se elimine a racialização desta. Para eliminar a
do dilema da redistribuição-reconhecimento: exploração, marginalização e privação especifi-
como as feministas podem lutar ao mesmo tem- camente marcadas pela “raça” é preciso abolir
po para abolir a diferenciação de gênero e para a divisão racial do trabalho – a divisão racial
valorizar a especificidade de gênero? entre trabalho explorável e supérfluo e a divisão
Um dilema análogo aparece na luta con- racial dentro do trabalho remunerado. A lógi-
tra o racismo. A “raça”, como o gênero, é um ca do remédio é semelhante à lógica relativa à
modo bivalente de coletividade. Por um lado, classe: trata-se de fazer com que a “raça” fique
ela se assemelha à classe, sendo um princípio fora do negócio. Se a “raça” não é nada mais do
estrutural da economia política. Neste aspec- que uma diferenciação econômico-política, a
to, a “raça” estrutura a divisão capitalista do justiça exige, em suma, que ela seja abolida.
trabalho. Ela estrutura a divisão dentro do Entretanto, a raça, como o gênero, não
trabalho remunerado, entre as ocupações de é somente econômico-política. Ela também
baixa remuneração, baixo status, enfadonhas, tem dimensões culturais-valorativas, que a
sujas e domésticas, mantidas desproporcional- inserem no universo do reconhecimento. As-
mente pelas pessoas de cor, e as ocupações de sim, a “raça” também abarca elementos mais
remuneração mais elevada, de maior status, de parecidos com a sexualidade do que com
“colarinho branco”, profissionais, técnicas e ge- a classe. Um aspecto central do racismo é o
renciais, mantidas desproporcionalmente pelos eurocentrismo: a construção autorizada de
“brancos”. A divisão racial contemporânea do normas que privilegiam os traços associados
trabalho remunerado faz parte do legado his- com o “ser branco”. Em sua companhia está
tórico do colonialismo e da escravidão, que o racismo cultural: a desqualificação genera-
elaborou categorizações raciais para justificar lizada das coisas codificadas como “negras”,
formas novas e brutais de apropriação e explo- “pardas” e “amarelas”, paradigmaticamente
ração, constituindo efetivamente os “negros” – mas não só – as pessoas de cor. Esta depre-
como uma casta econômico-política. Atual- ciação se expressa numa variedade de danos
mente, além disso, a “raça” também estrutura sofridos pelas pessoas de cor, incluindo re-
o acesso ao mercado de trabalho formal, cons- presentações estereotipadas e humilhantes na
tituindo vastos segmentos da população de cor mídia, como criminosos, brutais, primitivos,
como subploretariado ou subclasse, degradado estúpidos etc; violência, assédio e difamação
em todas as esferas da vida cotidiana; sujei- classe, que ocupa uma das extremidades do es-
ção às normas eurocêntricas que fazem com pectro conceitual, e da sexualidade, que ocupa a
que as pessoas de cor pareçam inferiores ou outra, gênero e “raça” são bivalentes, implicados
desviantes e que contribuem para mantê-las ao mesmo tempo na política de redistribuição e
em desvantagem mesmo na ausência de qual- na política do reconhecimento. Ambos, conse-
quer intenção de discriminar; a discriminação qüentemente, enfrentam o dilema da redistri-
atitudinal; a exclusão e/ou marginalização buição-reconhecimento. As feministas devem
das esferas públicas e centros de decisão; e a buscar remédios que dissolvam a diferenciação
negação de direitos legais plenos e proteções de gênero, enquanto buscam também remédios
igualitárias. Como no caso do gênero, esses culturais que valorizem a especificidade de uma
danos são injustiças de reconhecimento. Por coletividade desprezada. Os anti-racistas, da
isso, a lógica do remédio também é conceder mesma maneira, devem buscar remédios eco-
reconhecimento positivo a um grupo especifi- nômico-políticos que dissolvam a diferenciação
camente desvalorizado. “racial”, enquanto buscam também remédios
A “raça” também é, portanto, um modo culturais que valorizem a especificidade de co-
bivalente de coletividade com uma face eco- letividades desprezadas. Como podem fazer as
nômico-política e uma face cultural-valorativa. duas coisas ao mesmo tempo?
Suas duas faces se entrelaçam para se reforça- Até aqui, apresentei o dilema da redistri-
rem uma à outra, dialeticamente, ainda mais buição-reconhecimento de uma forma que
porque as normas culturais racistas e eurocên- parece completamente intratável. Assumi que
tricas estão institucionalizadas no Estado e na os remédios redistributivos para a injustiça eco-
economia, e a desvantagem econômica sofrida nômico-política sempre diferenciam os grupos
pelas pessoas de cor restringe sua “voz”. Para sociais. Da mesma maneira, assumi que os
compensar a injustiça racial, portanto, é preci- remédios de reconhecimento para a injustiça
so mudar a economia política e a cultura. Mas, cultural-valorativa sempre realçam a diferen-
como ocorre com o gênero, o caráter bivalen- ciação do grupo social. Diante dessas posições,
te da “raça” é a fonte de um dilema. Uma vez é difícil ver como feministas e anti-racistas po-
que as pessoas de cor sofrem, no mínimo, de dem buscar redistribuição e reconhecimento ao
dois tipos de injustiça analiticamente distintos, mesmo tempo.
elas necessariamente precisam, no mínimo, de Agora, porém, quero complicar essas po-
dois tipos de remédios analiticamente distin- sições. Nesta seção, vou examinar concepções
tos: redistribuição e reconhecimento, que não alternativas de redistribuição, de um lado, e
são facilmente conciliáveis. Enquanto a lógica concepções alternativas de reconhecimento, de
da redistribuição é acabar com esse negócio de outro. Meu objetivo é distinguir duas grandes
“raça”, a lógica do reconhecimento é valorizar abordagens para corrigir a injustiça que atraves-
a especificidade do grupo. Eis, então, a versão sam o divisor da redistribuição-reconhecimento.
anti-racista do dilema da redistribuição-reco- Vou chamá-las de “afirmação” e “transforma-
nhecimento: como os anti-racistas podem lu- ção”, respectivamente. Após apresentá-las gene-
tar ao mesmo tempo para abolir a “raça” e para ricamente, mostrarei como cada uma opera em
valorizar a especificidade cultural dos grupos relação à redistribuição e ao reconhecimento.
racializados subordinados? Por fim, a partir dessa base, vou reformular o
Gênero e “raça” são, em suma, modos di- dilema da redistribuição-reconhecimento para
lemáticos de coletividade. Diferentemente da uma forma mais aberta a uma resolução.
Vou começar por uma breve distinção entre do substantivo, muito semelhante à etnicidade
afirmação e transformação. Por remédios afir- (ou à visão de senso comum desta). Assume-se
mativos para a injustiça, entendo os remédios que essa positividade subsiste em si e de si mes-
voltados para corrigir efeitos desiguais de arran- ma, necessitando somente de reconhecimento
jos sociais sem abalar a estrutura subjacente que adicional. A política queer, em contraste, trata
os engendra. Por remédios transformativos, em a homossexualidade como um correlato cons-
contraste, entendo os remédios voltados para truído e desvalorizado da heterossexualidade;
corrigir efeitos desiguais precisamente por meio ambas são reificações da ambigüidade sexual
da remodelação da estrutura gerativa subjacen- e são co-definidas somente uma em relação à
te. O ponto crucial do contraste é efeitos ter- outra. O objetivo transformativo não é conso-
minais vs. processos que os produzem – e não lidar uma identidade gay, mas desconstruir a
mudança gradual vs. mudança apocalíptica. dicotomia homo-hétero de modo a desestabili-
Pode-se aplicar essa distinção, primeira- zar todas as identidades sexuais fixas. A questão
mente, aos remédios para a injustiça cultural. não é dissolver toda a diferença sexual numa
Remédios afirmativos para tais injustiças são identidade humana única e universal; mas sim
presentemente associados ao que vou chamar manter um campo sexual de diferenças múl-
“multiculturalismo mainstream”. Essa espé- tiplas, não-binárias, fluidas, sempre em movi-
cie de multiculturalismo propõe compensar mento.
o desrespeito por meio da revalorização das As duas abordagens são de considerável
identidades grupais injustamente desvalori- interesse como remédios para a ausência de
zadas, enquanto deixa intactos os conteúdos reconhecimento. Mas há uma diferença con-
dessas identidades e as diferenciações grupais siderável entre elas. Enquanto a política de
subjacentes a elas. Remédios transformativos, identidade gay tende a realçar a diferenciação
em contraste, são presentemente associados à de grupo sexual existente, a política queer tende
desconstrução. Eles compensariam o desrespei- a desestabilizá-la – no mínimo, ostensivamen-
to por meio da transformação da estrutura cul- te e no longo prazo. A observação vale para os
tural-valorativa subjacente. Desestabilizando as remédios de reconhecimento, de modo geral.
identidades e diferenciações grupais existentes, Enquanto os remédios de reconhecimento afir-
esses remédios não somente elevariam a auto- mativos tendem a promover as diferenciações
estima dos membros de grupos presentemente de grupo existentes, os remédios de reconhe-
desrespeitados; eles transformariam o sentido cimento transformativos tendem, no longo
do eu de todos. prazo, a desestabilizá-las, a fim de abrir espaço
Para ilustrar a distinção, vamos considerar, para futuros reagrupamentos.
mais uma vez, o caso da sexualidade despreza- [...]
da. Remédios afirmativos para a homofobia e Distinções análogas valem para os remédios
o heterossexismo são presentemente associados para a injustiça econômica. Os remédios afir-
com a política de identidade gay, que visa a re- mativos para essas injustiças estão associados
valorizar a identidade gay e lésbica. Remédios historicamente ao Estado de bem-estar liberal.
transformativos, em contraste, são associados à Eles buscam compensar a má distribuição ter-
política queer, que se propõe a desconstruir a minal, enquanto deixam intacta a maior parte
dicotomia homo-hétero. A política de identi- da estrutura econômico-política subjacente. As-
dade gay trata a homossexualidade como uma sim, eles aumentariam a parte de consumo dos
positividade cultural, com seu próprio conteú- grupos economicamente desprivilegiados, sem
reestruturar o sistema de produção. Remédios e generosidade imerecida. Assim, uma abor-
transformativos, em contraste, são associados dagem voltada para compensar injustiças de
historicamente ao socialismo. Eles compen- distribuição pode acabar criando injustiças de
sariam a distribuição injusta transformando a reconhecimento.
estrutura econômico-política existente. Rees- Em certo sentido, esta abordagem é inter-
truturando as relações de produção, esses re- namente contraditória. A redistribuição afir-
médios não somente alterariam a distribuição mativa, em geral, pressupõe uma concepção
terminal das partes de consumo; mudariam universalista de reconhecimento, a igualdade
também a divisão social do trabalho e, assim, de valor moral das pessoas. Vamos chamar
as condições de existência de todos. isso seu “compromisso formal de reconheci-
Para ilustrar a distinção, vamos considerar, mento”. Entretanto, a prática da redistribui-
mais uma vez, o caso da classe explorada. Re- ção afirmativa, reiterada ao longo do tempo,
médios de redistribuição afirmativos para as tende a pôr em movimento uma dinâmica se-
injustiças de classe freqüentemente incluem cundária de reconhecimento estigmatizante,
transferências de renda de dois tipos distintos: que contradiz seu compromisso formal com
programas de seguro social dividem parte dos o universalismo. Essa dinâmica secundária,
custos de reprodução social dos empregados estigmatizante, pode ser entendida como o
formais, os chamados setores primários da clas- “efeito de reconhecimento prático” da redis-
se trabalhadora; programas de assistência públi- tribuição afirmativa.
ca oferecem auxílios “focalizados” ao “exército Vamos, agora, contrastar essa lógica com
de reserva” de desempregados e subemprega- os remédios transformativos para as injustiças
dos. Longe de abolirem a divisão de classes per distributivas de classe. Remédios transformati-
se, esses remédios afirmativos sustentam-na e vos comumente combinam programas univer-
moldam-na. Seu efeito geral é desviar a atenção salistas de bem-estar social, impostos elevados,
da divisão de classes entre trabalhadores e capi- políticas macroeconômicas voltadas para criar
talistas para a divisão entre as frações empre- pleno emprego, um vasto setor público não-
gadas e desempregadas da classe trabalhadora. mercantil, propriedades públicas e/ou coletivas
Programas de assistência pública “focalizam” os significativas, e decisões democráticas quanto
pobres não só por auxílio, mas por hostilidade. às prioridades socioeconômicas básicas. Eles
Tais remédios, com certeza, oferecem a ajuda procuram garantir a todos o acesso ao empre-
material necessitada. Mas também criam dife- go, enquanto tendem também a desvincular a
renciações de grupo fortemente antagônicas. parte básica de consumo e o emprego. Logo,
A lógica aqui se aplica à redistribuição afir- sua tendência é dissolver a diferenciação de
mativa em geral. Embora essa abordagem vise a classe. Remédios transformativos reduzem a
compensar a injustiça econômica, ela deixa in- desigualdade social, porém sem criar classes es-
tactas as estruturas profundas que engendram tigmatizadas de pessoas vulneráveis vistas como
a desvantagem de classe. Assim, é obrigada a beneficiárias de uma generosidade especial. Eles
fazer realocações superficiais constantemente. tendem, portanto, a promover reciprocidade e
O resultado é marcar a classe mais desprivile- solidariedade nas relações de reconhecimento.
giada como inerentemente deficiente e insaci- Assim, uma abordagem voltada a compensar
ável, sempre necessitando mais e mais. Com o injustiças de distribuição pode ajudar também
tempo essa classe pode mesmo aparecer como a compensar (algumas) injustiças de reconhe-
privilegiada, recebedora de tratamento especial cimento.
Essa abordagem é internamente consisten- des do espectro conceitual. Contrastamos os
te. Como a redistribuição afirmativa, a redistri- efeitos divergentes dos remédios afirmativos e
buição transformativa em geral pressupõe uma transformativos para as injustiças distributivas
concepção universalista de reconhecimento, a de classe, enraizadas economicamente, de um
igualdade de valor moral das pessoas. Diferen- lado, e para as injustiças de reconhecimento da
te da redistribuição afirmativa, contudo, sua sexualidade, enraizadas culturalmente, de ou-
prática tende a não dissolver essa concepção. tro. Vimos que remédios afirmativos tendem,
Assim, as duas abordagens engendram diferen- em geral, a promover a diferenciação de grupo,
tes lógicas de diferenciação de grupo. Enquan- enquanto remédios transformativos tendem a
to os remédios afirmativos podem ter o efeito desestabilizá-la ou embaçá-la. Vimos também
perverso de promover a diferenciação de classe, que os remédios de redistribuição afirmativos
os remédios transformativos tendem a embaçá- podem engendrar um protesto de menosprezo,
la. Além disso, as duas abordagens engendram enquanto os remédios de redistribuição trans-
diferentes dinâmicas subliminares de reconhe- formativos podem ajudar a compensar algumas
cimento. A redistribuição afirmativa pode es- formas de não-reconhecimento.
tigmatizar os desprivilegiados, acrescentando o Tudo isso sugere um meio de reformular o
insulto do menosprezo à injúria da privação. dilema da redistribuição-reconhecimento. A
A redistribuição transformativa, em contraste, pergunta que pode ficar é: no que diz respeito
pode promover a solidariedade, ajudando a aos grupos submetidos aos dois tipos de injus-
compensar algumas formas de não-reconheci- tiças, qual será combinação de remédios que
mento. funciona melhor para minimizar, senão para
O que devemos concluir, pois, desta dis- eliminar de vez, as interferências mútuas que
cussão? Nesta seção, consideramos somente os surgem quando se busca redistribuição e reco-
casos típico-ideais “puros” nas duas extremida- nhecimento ao mesmo tempo?

traduzido de
FRASER, Nancy. 2001. “From redistribution to recognition? Dilemmas of justice in a
‘postsocialist’ age”. In: S. Seidman; J. Alexander. (orgs.). 2001. Me new social theory
reader. Londres: Routledge, pp. 285-293.
Outra versão do artigo foi publicada na New Left Review (212: 68-93, 1995).

tradutor Julio Assis Simões


Professor do Departamento de Antropologia / USP

Recebido em 30/09/2006
Aceito para publicação em 30/11/2006

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