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OS MODOS DE SUBJETIVAÇÃO MASCULINOS NO MUNDO

CONTEMPORÂNEO
Juliana Gama*1
Jorge Lyra**
Ana Paula Pimentel***
RESUMO

No intuito de contribuir para os estudos e pesquisas sobre homens e


masculinidades esta pesquisa, financiada pela CAPES, tem como objetivo
analisar os modos de subjetivação masculinos na contemporaneidade,
através de relatos de homens pernambucanos. Para tanto, conta com um
marco conceitual de gênero que dialoga com as concepções feministas, a
partir das quais se considera que não existe uma única masculinidade e que
não é possível falar em formas binárias que supõem a ‘di-visão’ entre formas
hegemônicas e subordinadas; visto que tais formas dicotômicas são
assumidas por homens particulares, que também desenvolvem relações
diversas com outras masculinidades (MEDRADO; LYRA, 2008). Assim,
partindo de um estudo qualitativo, que envolve como estratégia metodológica
a análise do discurso, esta pesquisa, tomando como referente a construção
da masculinidade, busca a investigação e a análise de como os homens vem
lidando com este processo e com suas transformações, sobretudo,
considerando-se a esfera do “maldito” imputada a estes. Este último fato
revela a importância de se refletir sobre as influências diversas que marcaram
e seguem marcando os processos de subjetivação; influências estas que, por
vezes, geram impasses ao processo identificatório e tornam possível a
conformação de características, comportamentos e papéis que não
necessariamente condizem com aquilo que os sujeitos almejam para si.
Concebe-se, portanto, no desenvolvimento deste trabalho, que investigar
sobre masculinidades significa não apenas apreender e analisar os signos e
significados culturais disponíveis sobre o masculino, mas também discutir
preconceitos e estereótipos e repensar a possibilidade de construir outras
versões e sentidos (MEDRADO; LYRA, 2008).

Palavras chaves: Gênero, homens e masculinidades, modos de


subjetivação.

1
** Graduada em Psicologia pela UEPB. Atualmente é mestranda em Psicologia pela UFPE,
em pesquisa que conta com financiamento da CAPES. E-mail: julianafgama@gmail.com
** Doutor em Saúde Pública pela FIOCRUZ e professor na graduação e pós-graduação em
Psicologia da UFPE. E-mail:jorglyra@gmail.com
*** Especialista em Psicologia e Direitos Humanos. Atualmente é mestranda em Psicologia
pela UFPE.E-mail: anapaula.pimentel82@gmail.com

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1. INTRODUÇÃO

A pesquisa “Os modos de subjetivação masculinos no mundo


contemporâneo”, que trazcomo objetivo geralanalisar e desenvolver uma
reflexão crítica - adotando a perspectiva feminista e de gênero -, dos
modos de subjetivação masculinos na contemporaneidade através de
relatos de homens pobres residentesem bairros de periferia
(microrregião 4.3) da cidade de Recife/PE, encontra-se, atualmente, em
processo de desenvolvimento.
Apesar disso, é possível afirmar que nosso percurso está sendo
pautado na constatação de que se faz relevante a realização de estudos
sobre homens numa abordagem feminista e de gênero, devido ao número
ainda reduzido de trabalhos que propõem uma análise crítica pautada
nopensar os homens e as masculinidades no que se refere a esfera pessoal,
tomando-a comofundamentalmente e constantemente atravessada pelo
social.
Assim, nossa proposta se ancora na constatação de Medrado; Lyra
(2008), de que, apesar de ter havido certa ampliação dos estudos acerca das
modalidades subjetivas masculinas na contemporaneidade, eles ainda são de
caráter restrito. Dessa forma, a justificativa desta pesquisa tem perpassado o
fato de que ela poderá contribuir para a reflexão acerca das complexidades
imanentes à contemporaneidade e às singularidades dos modos de
subjetivação masculinos.
Sobre os modos de subjetivação convém esclarecer que os
compreendemos como a forma através da qual cada sujeito reflete, delineia e
maneja suas questões em sua própria singularidade, ou seja, como os modos
através dos quais são compostas as maneiras de existir dos sujeitos.
Segundo Mansano (2009, p.113), tais modos de subjetivação podem tomar as
mais diferentes configurações, cooperando para produzir formas de vida e de
organização social diferenciadas, flexíveis e em constante transformação.

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Pensamos, então, que este ponto poderá trazer à tona elementos quepoderão
incrementar a discussão e a reflexão que vem sendo desenvolvida no campo
das teorias e relações de gênero, sobretudo, por partirmos da concepção de
gênero como uma “construção social e cultural do que é ser homem e do que
é ser mulher que afeta a vida de ambos” (PROMUNDO, 2009).
Neste caminho, e tocando a questão central da pesquisa, adentramos,
pois, nas bases teóricas. Acreditamos que “masculinidade e feminilidade não
são sobreponíveis, respectivamente, a homens e mulheres: são metáforas de
poder e de capacidade de ação, como tal acessíveis a homens e mulheres”
(ALMEIDA, 2008, p.2). Sendo assim, se pode e assim pretendemos,falar de
várias masculinidades e de transformações nas relações de gênero.
Pensando em consonância com essa colocação e juntoao contexto
contemporâneo e suas demandas imediatistas, chega-se ao entendimento de
que a proposta da pesquisa aqui delineada finda por ir ao encontrodas
possibilidades de processos de subjetivação e as diversas masculinidades
que contornam e caracterizam cada sujeito.
Mais especificamente, nos propomos a pensar o que a literatura tem
dito sobre as masculinidades e se o que tem sido dito faz sentido para os
homens a partir de seus processos de subjetivação. Pretendemos isso,dando
atençãoao que fora apontado por Villela (2005, p.31), de que têm surgido na
literatura feminista questionamentos em relação às perspectivas que tomam o
gênero a partir de uma dimensão binária, heterossexual, oposicional, sem
levar em conta os diferentes modos como cada sujeito vive a sua
“masculinidade” ou “feminilidade”.
Vamos considerar, portanto, para a concretização desses objetivos, a
noção que circula o posicionamento de Gomes, Rabello, Nascimento (2010,
p.96), de que a construção da masculinidade, a partir de um aspecto
hegemônico que perpassa o imaginário social, diz respeito à formação em
oposição ao feminino. No entanto, o masculino, assim como o feminino, é
aqui considerado como uma categoria que não se reduz ao corpoe as marcas
de diferenciação do sexo, antes, assume um caráter de fluidez. Pautando-

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nos, então, nessa noção de fluidez e subjetividade adotamosa proposta da
definição de gênero delineada por Lyra (2008) a partir da perspectiva de Joan
Scott (1995), de acordo com a qual as relações de gênero são uma tradução
do modelo binário e fixo arraigado na esfera social, embora o gênero
relacione-sea identidade subjetiva.
Detalhando esta colocação, temos queScott(1995) propõe uma
definição de gênero, como ela mesma aponta, contendoduas partes e várias
subpartes. O núcleo central da definição estariana conexão entre duas
proposições: “(1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais
baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma
forma primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p.21).
Com base nessas proposiçõese concordando com Scott (1995, p.23),
compreendemos gênerocomo“um meio de decodificar o sentido e de
compreender as relações complexas entre diversas formas de interação
humana”.Na busca por delinear de forma mais específica o percurso que
pretendemos, trazemos que a autora afirma que o gênero implicaria em
quatro elementos relacionados entre si, quais sejam: símbolos culturalmente
disponíveis que evocam representações múltiplas; conceitos normativos que
colocam em evidência interpretações do sentido dos símbolos; a tradução do
modelo binário e fixo de homem e mulher no nível institucional; e a identidade
subjetiva, atualização concreta das identidades de gênero.
De forma explicativa e crítica temos que, o primeiro elemento,
vinculado aos símbolos culturalmente disponíveis que evocam
representações simbólicas, pode trazer à tona noções estáticas
compartilhadas sobre o feminino e o masculino em uma cultura. Pode, então,
dar espaço a símbolos, respectivamente, de feminilidade e de masculinidade,
que frequentemente partem de uma contradição, como por exemplo, a ideia
de submissão e de delicadeza imputada às mulheres e de valentia e força
imputada aos homens,suspendendo as capacidades de cada sujeito per
si.Neste ponto, caberia o questionamento a respeito do que evoca as
representações simbólicas e qual o contexto em que isso ocorre.

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Sobre o segundo elemento – conceitos normativos que colocam em
evidência interpretações do sentido dos símbolos– Scott (1995, p.24) destaca
que muitas vezes tentam limitar e conter as possibilidades metafóricas. Essas
interpretações seriam “conceitos expressos, geralmente, nas doutrinas
religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas e tipicamente tomam a
forma de uma oposição binária que afirma de forma categórica e sem
equívoco o sentido do masculino e do feminino”. Além disso, esses conceitos
viriam e se consolidariam na história como um consenso social, pautado na
noção de fixidez e de permanência da representação binária dos gêneros.
O terceiro elemento, que diz respeito a tradução do modelo binário e
fixo de homem e mulher no nível institucional, toca os âmbitos político, social
e organizacional. Desenvolvendo este ponto criticamente, Scott (1995)
destaca que a construção do gênero se dá para além das relações de
parentesco, sendo igualmente afetada por outros níveis representados, por
exemplo, pela Igreja, pela escola, pelo governo, e que é preciso atentar para
essas esferas e suas determinações.
Por fim, o quarto elemento, sobre o qualrecairá nosso olhar, refere-se a
identidade subjetiva. Considerando este último aspecto e compreendendo
identidade como uma construção única de cada sujeito, deparamo-nos com
“homens e mulheres reais que não cumprem sempre, nem cumprem
literalmente, os termos das prescrições de suas sociedades ou de nossas
categorias analíticas’” (SCOTT apud LYRA, 2008). Este é, portanto, um
aspecto a partir do qual se olha para como as pessoas concretamente
elaboram e incorporam as prescrições sociais de gênero, o que podemos
nomear como o“íntimo do gênero”, atrelado a esfera do pessoal e do único.
É, então, com base nessa marca única trazida pela identidade
subjetiva, diretamente relacionada a noção de modos de subjetivação, que
tomamos a afirmação de Scott apud Lyra (2008), de que a “di-visão do
mundo”, baseadanas diferenças biológicas, operam como “a mais fundada
das ilusões coletivas”. Pensamos, portanto, que não se trata de uma divisão

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bio-logicamente estabelecida, mas de subjetividades que circulam e que vão
além do corpo, ou que o perpassam enquanto corpo material.
Vemos, por isso, um meio e seus sujeitosàs voltas com essas noções
restritivas de gênero. Sobre isso, temos com relação a atividade sexual, por
exemplo, sujeitos às voltas com o que o discurso social lhes impõe ao conferir
à mulher, com base em um ideário religioso e culturalmente enraizado, o lugar
da castidade edo dever deautopreservação vinculada a pureza e ao recato,
de forma que, ao não cumprir recebe-se um novo nome social, seja o de
“vagabunda”, “mulher fácil”, ou outros. Quanto aos homens, vemos surgir as
exigências de comprovação da virilidade através do desempenho quase
obrigatório de um papel ativo, devendo estar sempre disponível e disposto a
exercer o lugar de “macho”.
Contudo, se isto confere maior poder aos homens, nem todos os
homens vivem harmoniosamente, sem conflitos, sem contradição com esta
experiência (KAUFMAN apud LYRA, 2008). Este é o ponto em que nos
ancoramos, nos questionamos e a partir do qual pretendemos guiar esta
pesquisa, uma vez que, aderindo a estas imagens ou rejeitando-as, torna-se
possível a conformação de características e comportamentos que não
necessariamente condizem com aquilo que o sujeito almeja para si como
traço identificatório. Nesse sentido, a partir de uma dimensão relacional,
torna-se para nós relevante escutar e buscar refletir sobre os modos como os
homens entendem e expressam suas identidades de gênero e ainda, sobre a
forma como processam as imposições do imaginário social e constroem sua
própria masculinidade.
Para tanto, temos buscado identificar, a partir dos discursos de
homens, as concepções produzidas sobre homens e masculinidades na
contemporaneidade; investigar as implicações que as concepções vinculadas
ao modelo hegemônico de masculinidade têm nos discursos dos sujeitos da
pesquisa;e analisar como os homens vêm construindo as noções que
envolvem sua própria masculinidade frente ao que é concebido por
“masculino” na contemporaneidade.

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2. SOBRE HOMENS E MASCULINIDADE NA HISTÓRIA DO BRASIL

“Os homens não são objeto de estudo original, pois toda a história
da humanidade, até período recente, foi escrita por eles. Mas é de
homens sexuados e não universais que vamos tratar” (PRIORE;
AMANTINO, 2013, p.10).

Iniciamos nossa argumentação com essa afirmação das historiadoras


Mary Del Priore e Marcia Amantino (2013) para chamar atenção para nossa
proposta de pesquisa, ou melhor, para o ponto que queremos problematizar
em nosso estudo:como podemos pensar os homens e as masculinidades
como sujeitos de gênero?É, portanto, na esfera do processo de constituição
do sujeito que temos trabalhado.
Para delinear o trabalho etornar possível o estudo sobre como
oshomens produzem sentidos acercadas masculinidades,consideramo-la não
como de caráter natural, mas sim como um contorno construído sócio
historicamente, que nos leva ao encontro de uma história plural, na qual a
masculinidade representa uma “variável edificada de acordo com as
diferentes temporalidades, áreas geográficas, diferenças de classe, religião e
orientação sexual de cada um” (PRIORE; AMANTINO, 2013, p.10).
Propomo-nos,então,a tratar da masculinidade confrontada com os
padrões fixos e determinantes do comportamento e, assim, das
representações do que era e do que parece “ser homem” para a sociedade
ocidental. Tomando a história dos homens nesta sociedade e em especial a
história dos homensno Brasil, vê-se que o percurso das masculinidades vem
acompanhado por signos e símbolosconstruídos sócio-culturalmente, que
vêm determinandoo que é ser homem e o que é ser mulher e afetando a vida
dos sujeitos.
Observamos, por exemplo, que ao longo dos anos foi sendo delineada
a exigência da virilidade a estes homens a partir de suas masculinidades, o
que implicavanecessariamente em uma iniciação sexual precoce e uma

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prática de “fazer”2 filhos, aliada a consolidação da ideia de que o homem tem
que ser “corajoso, heroico, forte” e de que tem que evidenciar esses traços
por meio da modelagem e do adestramento dos seus corpos.
Questionamo-nos frente a essas determinações históricas tão
largamente conhecidaso quena história dos homens e das masculinidades
torna esse objeto de estudo relevante.E assinalamos que relevante é ver que
na história dos homens e das masculinidades, mesmo parecendo confortável
a posição de poder e de destaque que lhes era e é conferida, não se pode
falar de ausência de tensões subjetivas decorrentes desse lugar, que,
certamente, não reflete o contorno da masculinidade própria de cada sujeito,
atravessado por exigências sociais, exigências dos pares, e por seus próprios
desejos.
Tratar da história dos homens é tratar, portanto, de uma história
mesclada e entrelaçada por conflitos subjetivos e sociais, relações de
dominação e, muitas vezes, de violência. Contudo, assim como a história das
mulheres, esta conta também com afetos, atos de coragem e negociações
interessantes, que nos levam ao encontro de homens e homens que entram
em cena.
Sobre essas cenas, já no século XVII vemos adentrar e tomar
destaqueos símbolosmais ferrenhos da masculinidade, resvalados sobre os
homens até os dias atuais. Neste tempo, o duelo e a iniciação sexual ainda na
tenra idade faziam a passagem do homem para o mundo adulto, tornando-o
“macho”. Apesar da sobrecarga desse rótulo, a legitimidade masculina fazia
necessárias outras marcas sociais, levando os jovens ao domínio público da
interação e do exercício do mando, onde aprendia-se a se fazer obedecer
através do uso da ordem e da autoridade máscula3.

2
O uso da denominação “fazer” liga-se ao que Bauman (2004) colocou como a era do “amor líquido”,
pautada no aqui e no agora, no aceleramento e na superficialidade das relações, onde não se “tem”
filhos, mas se “faz” filhos.
3
Vale destacar que estamos falando da história das masculinidades brancas. Contudo, na busca por
referências para nossos estudos iremos futuramente à procura também da história das masculinidades de
homens negros, que tiveram os sentidos históricos do seu lugar de origem “roubados” por nossa

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Com a chegada do século XVIII, a masculinidade dita através de sinais
externos adquiriu uma representação social ainda maior. Para ser
considerado na roda social, que simbolizava não só o poder já imputado aos
seres masculinos, mas a nobreza era preciso vestir-se de forma específica e
portar espadas. Neste tempo, as masculinidades fortemente marcadas já não
podiam abrir espaços para questionamentos ou dúvidas. Essa“era uma
sociedade em que o pai informava não o nascimento de um menino, mas sim
que havia nascido um macho. Uma sociedade em que as mães de meninos
com muito orgulho diziam ‘prendam suas frangas que o meu galo está solto’”
(SCHNOOR, 2013, p.95). No exercício da masculinidade, então, cabia falar,
impor, possuir seres e ter status social.
Na passagem do século XVIII para o XIX, o que se vê é uma
estagnação das noções de masculinidade. Com a proclamação da
independência em 1822, iniciaram-se no Brasil longos debates em prol da
construção de uma identidade nacional, que tocavaa discussão sobre
estratégias destinadas a forjar o corpo e o espírito do brasileiro. Nessas
discussões, e adotando inspirações europeias, passou-se, progressivamente
à valorização do tipo físico forte e dominador.
Com esta valorização no século XIX,começou a se estabelecer no
Brasil novas obrigatoriedadescom relação a performance dos homens a partir
de suas masculinidades. Essas performances masculinas rotularizadas e
rotinizadas, segundo Melo (2013), começaram a ultrapassar a esfera da
interação social, e a estruturar o nexo exigido entre o físico e o social. Com
isso, as práticas corporais começaram a englobar a ideia de masculinidade,
que deveria dar provas de heroísmo e de valentia.

As práticas corporais institucionalizadas ofereceram para os homens


como poucas outras atividades, a alternativa de exercitarem
simultaneamente o autocontrole corporal e a demonstração pública
de desempenho, resultados de um processo de disciplina e de
submissão a condições de privação, que estabelece não só
parâmetros de diferença com as mulheres, como também de

sociedade escravocrata, que lhes outorgou única e exclusivamente um corpo forte para o trabalho e um
corpo reprodutivo de nova mão de obra escrava.

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identificações intrínsecas ao mundo dos machos (afinal, boys don’t
cry): “Não é somente no contraste com o corpo feminino que a
masculinidade é elaborada, mas no contraste com os outros homens,
outros corpos, a partir de parâmetros tidos (e negociados) como
masculinos” (MELO, 2013, p.130).

Com a chegada do século XX e seu contexto envolto por guerras, vê-


se acrescer e serem forjados ainda mais fortemente padrões masculinos
pautados na coragem e na bravura como regras. Exige-se, mais do que
nunca, um homem viril e igualmente incansável, sem falhas, veloz e bem-
sucedido socialmente.O medo continua sendo reforçado como um sentimento
não masculino.
Com o passar dos anos, veio o impacto da imprensa, meio fundamental
para agregar novos caracteres aos seres e as masculinidades, trazendo para
a pauta um“novo homem”. Ganhou força o movimento gay e os
metrossexuais se apresentaram, junto a lançamentos de revistas masculinas
e a ampliação da oferta de serviços que se propunham a cuidar do corpo
masculino. Isso tudo afetou não apenas o físico, mas todo um imaginário
social, que, como colocam Priore, Amantino (2013, p.13), multiplicarama
preocupação com a diversidade e trouxeram a questão:“quantos homens
cabem num só?”.
Há, portanto, sempre um padrão de masculinidade em jogo: um
conjunto hegemônico de compreensões sobre os papeis sociais masculinos,
correspondentes ao homem branco e burguês como um modelo ideal, e as
masculinidades marginalizadas, que não se adaptam e que são tidas como
“não-masculinidade”.Parte-se, então, do pressuposto de que há um modelo
hegemônico de masculinidade e que este requer muitas vezes que o homem
se molde às regras normativas impostas pela cultura.
O ponto de partida é, conforme Lyra (2008), que não existe uma única
masculinidade, visto que, apesar de existirem formas hegemônicas, baseadas
no poder social dos homens, construído e solidificado sócio-historicamente,
existemtambémaquelas assumidas de modo complexo por homens
individuais. Concebemos assim, que o poder imputado aos homens foi e vem

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sendo construído nas instituições, mas também ganha contornos e se
particulariza nas formas como estes homens interiorizam e reforçam ou não
este poder, a partir de seus modos próprios de subjetivação.
Tomando, enfim, a chegada do século XXI, em que nos deparamos
com a era da liquidez sócio relacional, encontramo-nos com a hipótese
lançada por Lyra (2008), de que a vulnerabilidade de alguns homens estaria
mais aguda, ou intensa, ou generalizada neste momento atual em quese vê
um poder masculinoser questionado. A associação da masculinidade ao
poder e à violência não é mais única. Percebeu-se, ainda conforme Lyra
(2008), que ela é construída e que se reproduznas relações sociais, históricas
e culturalmente datadas, na divisão social do trabalho, na socialização da
família, ou seja, a partir de diversas formas que são, em certa
medida,exigidas para que haja socialização e interação.
O que percebemos é que ser homem ou tornar-se homem
corresponde, com base em um imaginário socialconstruído ao longo dos
anos, a saber, quais comportamentos adotar no tempo em que se está
inserido. Assim, historicamente falando, mesmo que haja um conjunto de
delegações majoritárias, convém falar em masculinidades, que convivem e
que têm pontos de divergência e que são afetadas pela construção social de
gênero.

Optamos por nos referirmos a homens e masculinidades no plural por


que existem diferentes masculinidades que se vinculam a diferentes
formas de ser homem, e que constituem ao mesmo tempo uma
experiência subjetiva e uma experiência social e culturalmente
construída. Esta pluralidade não se refere somente a possíveis
diferenças individuais, mas particularmente a diferentes categorias de
masculinidade [...] Algumas masculinidades se sobrepõem a outras.
[...] Dessa maneira, entendemos a masculinidade como uma
construção social, permeada por códigos, valores e simbolismos,
atrelada a outras dimensões da vida social como classe, raça/etnia,
geração, orientação sexual, e reproduzidos e reconstruídos por várias
instituições sociais como a família, a escola, o Estado, o local de
trabalho, entre outros. (PROMUNDO, 2009).

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Em nosso trabalho, portanto, da condição de autores4 da história,
como colocam Priore, Amantino (2013), os homens passaram a atores da
história. Mudanças quanto ao seu papel na família, no exercício do trabalho,
da paternidade e da sexualidade os interpelam e requerem uma reflexão,
sobretudo se pensarmos que muitos destes homens enfrentam, como já dito,
dificuldades e trazem em si outros desejos que não aqueles determinados
pelo modelo hegemônico de masculinidade.
São essas posições tantas vezes hierárquicas e desfavoráveis que nos
mostram a relevância que representa esta proposta de pesquisa. Um dado
que corrobora para essa afirmação é o fato de que apenas no final do século
passado é que o gênero masculino foi transformado em objeto científico,
chegando a adquirir visibilidade, portanto, apenas nas últimas décadas.

Os homens – organismos, comportamento e valores socialmente


atribuídos ao gênero masculino – foram capturados pela especulação
científica. Até recentemente, tudo se passava como se os homens, na
qualidade de representantes do indivíduo universal, fossem seres
humanos não marcados por quaisquer atributos de gênero. E por isso
aparentemente menos “objetificáveis”. [...] É possível postular a
correlação entre a emergência do masculino como objeto de reflexão
das ciências humanas e a dissolução de alguns dos privilégios sociais
que a identidade de gênero historicamente assegurava aos homens.
Provável reflexo de uma suposta “crise” imposta à identidade
masculina a partir dos anos 60, provocada pela segunda voga
feminista e pela emergência do movimento homossexual. [...] A
masculinidade começa a ser mais claramente percebida como
culturalmente específica, variando entre distintas sociedades e no
âmbito de um mesmo contexto social, segundo diferentes períodos de
sua história. (HEILBORN, 2010, p.109-110)

Ao nos depararmos com a literatura, vemos que foi apenas na década


de 60 que se abriu um primeiro espaço para pensar, compreender e
interpretar a dinâmica que envolve as relações entre o masculino e o
feminino, e assim, as relações de gênero.É entãoneste tempoque os estudos
sobre masculinidade ganham, segundo Gomáriz (1992),uma maior ênfase.
Apesar disso, Lyra; Medrado (2008) apontam que, os estudosque trazem as
masculinidades como objeto de estudo propriamente dito tiveram início

4
Grifo nosso.

2841
apenas no final da década de 1980. E apenas mais recentemente, a partir da
segunda metade da década de 1990, é que teriacomeçado a busca por
sistematizar as produções já realizadas sobre Homens e masculinidades.
Nesse sentido, portanto, atentamos para as transformações que
certamente ocorreram tanto no âmbito social, quanto cultural, individual e
relacional ao longo da história e que possibilitaram o espaço que a temática
“Homens e masculinidades” vem adquirindo nas pesquisas. É por esse
caráter flexível evidenciado nas transformações históricas, que concordamos
com Lyra (2008) quando aponta que, as definições de masculinidade estão
mudando constantemente, sobretudo por não sera masculinidade um código
genético, ou algo que flutua em uma corrente do inconsciente coletivo, mas
algo que se constrói socialmente e que é subjetivado por cada um.
Diante dessas considerações, destacamos que falar sobre
masculinidades é uma tarefa, antes de tudo, complexa, uma vez que, como
aponta Lyra (2008), investigar sobre este tema “significa não apenas
apreender e analisar os sentidos disponíveis sobre o masculino no imaginário,
mas também discutir preconceitos e estereótipos e repensar a possibilidade
de construir outras versões e sentidos”.
É com esta constatação que temos nos ligado, dialogando com um
projeto mais amplo intitulado “Paternidade e cuidado nos serviços de saúde”,
desenvolvido através da parceria entre o Núcleo de Pesquisas em Gênero e
Masculinidades (GEMA), da Universidade Federal de Pernambuco, e o
Instituto PAPAI, a abordagem qualitativa. Esta abordagem, segundo Minayo
(2007), corresponde àquela que trabalha com o universo dos fenômenos que
envolvem os significados, os motivos, as aspirações, as crenças, os valores e
as atitudes, fenômenos estes que são qualitativamente compreendidos como
parte de uma realidade social, sobre a qual é possível trabalhar no âmbito
profundo das relações, dos processos e dos próprios fenômenos.
Vale assinalar que não buscamos com nosso estudo uma
representatividade das falas dos homens e sim um diálogo teórico-conceitual-
metodológico e político sistemático com o projeto mais amplo. Para tanto,

2842
utilizaremos os mesmos marcadores a serem definidos e temos nos dedicado
a realizaçãode uma revisão bibliográfica sistemática sobre os temas que
envolvem a pesquisa.
Paralelamente a isso, temos adentrado no desenvolvimento de duas
outras etapas. São elas: observação no cotidianoe entrevista em
profundidade. Na etapa de observação temos vislumbrado uma inspiração
etnográfica, com base na qual buscamos a compreensão das produções
sobre as masculinidades sob o ponto de vista dos homens em seu próprio
contexto (MEDRADO et al, 2010).
Convém destacar, por fim, que a pesquisa está sendorealizada em
conformidade com os aspectos éticos que ancoram o projeto mais amplo.

3. CONCLUSÃO

Embora a pesquisa ainda esteja em fase de desenvolvimento, temos


constatado no processo de observação, que tem dado suporte a construção
de nossa relação com o campo e com os colaboradores da pesquisa, que o
trabalho com a subjetividade, de fato, traz consigo uma enorme
complexidade.
Depararmo-nos com cenários reveladores de tal complexidade refletida no
estudo da temática, evidencia cada vez mais a necessidade de se deter sobre
as articulações entre homens e masculinidades na dimensão única do sujeito,
parando para escutá-los e buscando compreender aquilo que os rodeia e
delineia.

REFERÊNCIAS

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