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Bruno NETTL

1995 Excursões Domésticas: reflexões etnomusicológicas sobre escolas de


música. [Tradução de Heartland Excursions: ethnomusicological re-
flections on schools of music. Urbana: University of Illinois Press.
171 pp.]

tradução não revisada, não autorizada, não publicada

É FAVOR NÃO CITAR

Música na Vida Norte-Americana

Consta uma lista ao fim deste livro com os livros da série.

Para Wanda,

senhora da minha vida,

para minha neta,

Natalie
Sumário

Prefácio iii
Introdução 1
1 / A Serviço dos Mestres 8
O Acadêmico Marciano
O Panteão
Variações Mitológicas
Dualidades, Doces e Laranjas: um scherzo
Episódios Orquestrais
Os Grandes Mestres e os Valores Culturais
2 / A Sociedade dos Músicos 30
Comunidades Musicais
As Principais Classes
Categorias de Musicalidade
A Importância da Herança
Uma Série de Conjuntos
3 / Um Espaço para Todas as Músicas? confronto e mediação 48
Um Ponto de Encontro
Trazendo o Passado para o Presente
Confronto: convergências e colisões
4 / Incursões no Repertório 66
O Formato da Música
As Principais Obras
Uma Sociedade de Músicas
Performance Cultural
Posfácio 85
Índice 87
Notas 89
Prefácio

Em aulas sobre as culturas musicais do Irã, do povo blackfoot e de Madras, fui me


habituando a traçar paralelos, como técnica pedagógica e ponto de partida, com a
cultura da música clássica ocidental, e assim pode ter-se feito inevitável que, em
algum momento, começasse a considerar a visão sobre outras culturas musicais
como uma tentativa de tomar uma nova perspectiva sobre a cultura da música
clássica hoje, nos Estados Unidos. A idéia dum livro sobre tal assunto veio primeiro
a mim quando, em 1984, Daniel Neuman sugeriu que apresentássemos, à maneira
de Huntley-Brinkley, um artigo a quatro mãos com o título de “O Estudo Etnomusi-
cológico da Cultura Ocidental”, e portanto quero manifestar meus agradecimentos
especiais a Dan, por chegar quase ao ponto de participar, de certa feita, da escrita
destes capítulos, daí me encorajando a prosseguir sozinho com um assunto que
muitos de meus colegas consideravam, no mínimo, excêntrico. Tive a oportunidade
de experimentar fragmentos dos capítulos em palestras para públicos diversos, e
recebi muitas reações solícitas e críticas. Alguns acharam que eu não estava levan-
do a coisa a sério, se lembrando bem como eu, num momento estratégico, jogava
na platéia uns pedacinhos dum doce delicioso de nome Mozartkugeln, ou bolinhas
de Mozart, ao passo que doutra feita supunham (com um certo prazer), que minhas
inclinações políticas faziam com que eu permanecesse do lado dos músicos tradi-
cionalistas. Não sem certa descrença, um colega me elogiou dizendo, numa univer-
sidade “é, ah, tão radical”, e noutra o meu anfitrião exclamou, consciente de que
eu poderia vir a ser controverso, ou mesmo difícil de engolir, “ah, se pelo menos
pudéssemos ter de vez em quando uma palestra de musicologia que alguém to-
masse por ofensiva!”.
Hoje, quase dez anos após o meu princípio deste projeto (que primeiro cres-
ceu para depois diminuir, em escopo e ambição), a maioria dos etnomusicológos
considera o estudo etnomusicológico da cultura ocidental como obviedade, passan-
do mesmo a não ser mais, para outros acadêmicos da música, algo excêntrico. A
minha meta não é, com certeza, ser radical ou ultrajante. Ao contrário, quero
prestar honras ao que considero como a minha própria cultura musical, e ao tipo de
instituição em que passei a maior parte de minha vida, ao estudá-las conforme
tentei estudar outros sistemas musicais que também admiro, e para ver se o que
aprendi noutras culturas pode me ajudar a entender a minha própria.
Sou grato a muitos pela ajuda que recebi ao longo da elaboração deste ma-
nuscrito — a mais que posso listar por ora. Mas preciso ao menos mencionar uns
poucos: Eugene Giles, Daniel M. Neuman, Ellen Koskoff, e Helen Myers leram o
manuscrito completo em várias etapas da redação. Muitos outros leram partes, ou
discutiram as questões comigo, ou se manifestaram em palestras sobre os temas
do livro e fizeram sugestões úteis; entre estes, quero agradecer a Carol Babiracki,
Paul Berliner, Steve Blum, Phil Bohlman, Charlie Capwell, Austin Clarkson, Rich
Crawford, Steve Fiol, Janet Keller, Tammy Livingstone, Vicki Levine, James Porter,
Melinda Russel, Zohreh Sullivan, Anne Swartz, Tom Turino, Larry Ward, Isabel
Wong e Chris Waterman. Serei incapaz de exprimir toda a minha gratidão pelos
conselhos e apoio de todos estes colegas.
[...]

iii
Agradeço por fim a minha editora, e amiga de longa data, Judy McCuloh; a
Tony Seeger, que leu o manuscrito para a Universidade de Illinois; e a minha espo-
sa Wanda, por seu apoio a mim em mais um projeto.

iv
Introdução

Etnomusicologia em Casa

Deixa eu ser bem pessoal. O que é que há na etnomusicologia, que me fascinou por
mais de quatro décadas? De início, era a oportunidade de investigar algo bem es-
tranho, de ouvir sons musicais em tudo surpreendentes, e experienciar idéias nada
familiares sobre música. Mais tarde, aprender a investigar qualquer das culturas do
mundo, e ouvir qualquer das músicas, sem julgamentos prévios. Mais adiante, a
noção de que era preciso procurar maneiras de compreender a cultura musical por
inteiro, identificar seus paradigmas centrais, e encontrar portas de entrada, ou tal-
vez pontos de apoio, para se apreender uma cultura ou compreender uma música.
E finalmente, tomando em consideração também o ponto-de-vista do nativo, inves-
tigar também o familiar como se este não o fosse, e a própria cultura, tal como um
estrangeiro o faria. É evidente que estes tópicos também fascinaram alguns de
meus colegas; eles parecem refletir, uma após o outro, algo da história da etnomu-
sicologia, desde 1950. Este livro pertence à última destas etapas.
Um dos principais tópicos numa importante conferência de etnomusicólogos,
em 1993, foi “etnomusicologia em casa”, indício de que os etnomusicólogos esta-
vam oficialmente prontos para se voltar para a reflexão acerca de suas próprias so-
ciedades. Mas este tópico não é tão novo. Afinal, acadêmicos que se identificavam
como etnomusicólogos, e eram africanos, indianos, índios americanos e indonésios,
vinham todos sempre a estudar a música de seus próprios rincões culturais. E há
algum tempo, o estudo das minorias urbanas nas cidades da América do Norte e
Europa, típicos locais de origem dos etnomusicólogos, vem constituindo uma ativi-
dade importante. Alguns etnomusicólogos também vieram (depois de décadas de
resistência, é certo) a aceitar o estudo da música popular, e o repertório vernacular
de suas próprias comunidades.
A etnomusicologia se define de diversas maneiras. Mas a maioria dos etno-
musicólogos vê o seu campo como capaz de lançar uma luz em todos os tipos e va-
riedades de música, vindo eles a ampliar pouco a pouco o seu escopo, de modo a
incluir, na prática assim como na teoria, um universo de repertórios e culturas e
subculturas, inclusive a etnomusicologia ‘caseira’. O que será exatamente o ‘casei-
ro’, numa sociedade complexa, e a medida em que a apreciação da cultura musical
dum indivíduo é mais que uma idiossincrasia, são questões abertas ao debate. Mas
nas duas últimas décadas, os etnomusicólogos finalmente estenderam os seus do-
mínios de modo a abarcar (com metáforas híbridas) o último bastião da cultura
musical fora do âmbito de estudo, a música clássica ocidental, sobretudo conforme
ocorre ela no mundo contemporâneo.
Fora do âmbito de estudo? Essa cultura musical que milhares de historiado-
res, críticos, sociólogos, e teóricos da música vêm examinando? Será possível que a
perspectiva da etnomusicologia irá acrescentar qualquer coisa de interessante?
Uma pequena parcela dos meus colegas (muitos dos quais podem mesmo não
querer que se os chame de etnomusicólogos) de fato fizeram contribuições tais. A

1
minha finalidade não é fazer uma resenha bibliográfica, mas entre aqueles cujos
trabalhos recentes vêm à lembrança estão Cristopher Small, Judith Becker, Cathe-
rine Cameron, Ruth Finnegan, Pierre Bourdieu e, de maior importância para este
estudo, Henry Kingsbury, cuja dissertação se baseia sobretudo em observações mi-
nuciosas acerca dum importante conservatório na Costa Leste1.
Pergunta-se de que modo a pesquisa destes autores se coaduna com o ar-
cabouço específico da etnomusicologia, o que fizeram eles que os acadêmicos de
outras disciplinas ou subdisciplinas não poderiam fazer. Os etnomusicólogos vêm
contribuindo para a compreensão da cultura da música clássica do nosso século de
diversas maneiras: procuram compreender a cultura musical através dum micro-
cosmo, oferecer uma avaliação equilibrada e sem julgamentos prévios, examinar o
melhor possível o familiar como alguém de fora o faria, ver o mundo da música
como um componente da cultura no sentido antropológico da palavra, e colocar a
sua própria música sob uma perspectiva global2.
Aqui espero participar desta vertente da aventura etnomusicológica através
da análise e do comentário, sob estas diversas perspectivas, de alguns aspectos
importantes da cultura da música artística ocidental. Venho tentando fazer ‘etno-
musicologia em casa’.

Escolas de Música Domésticas

Para mim, ‘lar’ são as escolas de música das universidades do midwest nor-
te-americano, sobretudo no seu trato meridional, nos Estados Unidos Doméstico,
como alguns dos habitantes a chamam. São estas as unidades constituintes das
suas instituições, que se costuma chamar de ‘escolas de música’, bem como às ve-
zes, porém, ‘departamentos de música’; os administradores que as costumam diri-
gir se colocam sob a autoridade geral da universidade, na pessoa de sub-reitores e
reitores. Isto elas têm em comum: em contraste com os departamentos de música
característicos das escolas de humanidades, que costumam ensinar apenas história
da música, teoria e composição, ao passo em que mantêm orquestra, banda e coro,
enfatizam elas o ensino da performance — instrumental e vocal — bem como a
composição e os aspectos pedagógicos e acadêmicos da música. Elas se concen-
tram não só na formação de especialistas em música, como também oferecem ins-
trução para estudantes de outras áreas, e concertos e música cerimonial para qual-
quer coisa, desde partidas de futebol americano e aulas inaugurais até concertos
formais. Mas a ‘música’ das escolas de música sempre significa, exclusiva ou pre-
dominantemente, a música clássica ocidental (que também se conhece por ‘música
artística’, ‘música canônica’, ‘música culta’, ‘música séria’, ou mesmo — cinica-
mente — ‘música de verdade’ e ‘música normal’). As escolas de música se costu-
mam dividir em unidades homogêneas. Às vezes só há duas — os departamentos
de estudos de performance, e os de estudos acadêmicos e composição. Ocorre mais
haver vários: cordas, sopros, piano, voz, musicologia, composição e educação mu-
sical, por exemplo. As maneiras nas quais se classificam os professores e estudan-
tes da escola constituem, em muitas escolas, uma das questões em pauta. Os prin-
cipais componentes de qualquer escola de música são os conjuntos que se apre-
sentam de tempos em tempos — a orquestra da universidade, uma ou diversas
bandas, coros, e por aí vai.
Parece oportuna a apresentação duma breve caracterização do tipo de ins-
tituição com que vou lidar, e que bem se faça maiores observações sobre a sua es-
trutura, as relações entre seus componentes, as regras e os costumes segundo os

2
quais ela vive. Não estou, contudo, a descrever escolas individuais em particular,
dentro dum grupo específico de escolas. Tentarei antes identificar, discutir e in-
terpretar alguns valores importantes e princípios de orientação no mundo da músi-
ca artística ocidental nos Estados Unidos, e na forma como se a ensina e transmite,
aproveitando um tipo de instituição como porta de acesso à cultura. Lançarei mão
de informações de várias fontes e de várias instituições ao longo dum período de
cinqüenta anos de estudo e ensino de música, no meio século que passei quase que
por inteiro em escolas de música do midwest. A maior parte de minha experiência e
observações vêm de desde os anos setenta — ainda que às vezes remonte às mi-
nhas primeiras observações, no fim dos anos quarenta — e as principais arenas
foram a Universidade de Illinois e a Universidade de Indiana. Em grau bem menor,
aprendi coisas na Universidade de Louisville, um pouco menos na Universidade de
Michigan e na Universidade Estatal de Wayne, e um pouco na Universidade de Mi-
llikin. E boa parte do que aprendi provém, também, dum grande número de outras
instituições importantes por todo o país, a maioria das quais são escolas de música
em importantes universidades estatais. Escritos em torno do tema da música na
educação superior, e estudos específicos de escolas individuais, tais como o de
Kingsbury, apresentam maiores informações e alguma corroboração.
Algumas de minhas reflexões resultam de muitos anos de observações em
concertos, ensaios e aulas; contando pessoas em platéias, gêneros de peças em
programas, e diversos tipos de corpos docentes em departamentos e instituições; e
mantendo, literalmente, milhares de conversas sobre as questões que aqui se apre-
senta, com centenas de músicos, professores e estudantes. Também supervisionei
a coleta sistemática de dados por alunos, em seminários3. Porém, além da coleta
sistemática de dados, de gravar, realizar entrevistas e contagens, o etnomusicólogo
faz muitas observações de campo através de contatos informais e aleatórios, con-
versas, notas e associações que sua mente delineia, e desenvolve, com uma tal
técnica talvez intuitiva, alguns dos aspectos mais significantes de sua percepção e
apresentação. Portanto, acredito que o mais importante seja o meu envolvimento
com as escolas de música, por mais de cinco décadas, um envolvimento que tam-
bém o informa a minha experiência entre outras culturas.
O meu propósito não é oferecer dados objetivos sobre currículos, perfor-
mances ou participantes. Ao invés, gostaria de exprimir minha compreensão e mi-
nhas reflexões pessoais sobre as impressões das relações internas a grupos de pes-
soas — e talvez a grupos de músicas — que constituem e povoam as escolas de
música. Me refiro sempre a uma ‘Universidade Doméstica’, uma combinação abs-
trata das instituições que mencionei acima. A fim de evitar ofensas aos muitos co-
legas, alunos e amigos de quem aprendi e a quem observei, tive o bom senso de
evitar, na maioria das vezes, a argumentação e menção acerca de universidades,
departamentos e indivíduos específicos, e procurei generalizar meus exemplos. Não
é esta uma etnographie à clef. Tampouco propõe ela uma cobertura abrangente de
uma etnografia tradicional, que se apoie na coleta de dados em momentos e locais
específicos, os quais se documenta para registro e verificação. Mas espero contri-
buir para a literatura etnográfica na tentativa de relacionar as escolas de música e
o complexo de estruturas e idéias que as governa, e a cultura da qual fazem elas
parte.

3
Quatro Perspectivas

Venho tentando examinar a escola (ou escolas) de música da Universidade


Doméstica através de quatro perspectivas. A primeira, “A Serviço dos Mestres” (ca-
pítulo 1), a vê como algo próximo a um sistema religioso ou sistema social, do qual
tanto os vivos quanto os mortos participam. Segundo minhas observações, se pe-
direm ao indivíduo médio da sociedade da escola de música que descreva a música
artística ocidental, é provável que diga ele que é a música dos grandes composito-
res — Beethoven, Bach, Mozart, Schubert — e que é, sobremaneira, as grandes
obras para execução em grande escala — óperas, concertos e sinfonias. Faz senti-
do, portanto, pensar na escola de música como uma sociedade sob o império de di-
vindades, com textos sacros, rituais, eventos cerimoniais e um sacerdócio.
A segunda perspectiva, “A Sociedade dos Músicos” (capítulo 2), investiga as
maneiras pelas quais os membros da sociedade da escola de música se organizam
em grupos de forças opostas: professores, estudantes e administradores; músicos
e acadêmicos; cordas e sopros; cantores e instrumentistas; e, mais importante, re-
gentes e regidos. As tensões e alianças entre esses grupos, e a importância das hi-
erarquias, manifestam características análogas às da sociedade norte-americana.
A terceira perspectiva, “Um Lugar para Todas as Músicas” (capítulo 3),
mostra a escola de música como um palco para o encontro potencial de todas as
músicas, discutindo as maneiras como elas se misturam, tal como num caldeirão
fervente, ou retêm as distintas identidades, tal como num mosaico, e traça parale-
los entre a correlação das músicas na escola de música e a interação das culturas
na sociedade global do século vinte.
A quarta perspectiva, “Incursões no Repertório” (capítulo 4), examina algu-
mas das maneiras através das quais a sociedade da escola de música interpreta o
corpus da música clássica ocidental com o qual opera. Examinarei o formato do re-
pertório ao buscar o que se pode instituir como um núcleo de canções cerimoniais,
ou cânone tradicional de obras-primas; ao sugerir que a sociedade da escola de
música encara o seu repertório musical como uma espécie de sociedade em si
mesma, com uma diversidade de funções e interações; e ao delinear um tipo de
evento cujo propósito parece ser o uso do som e do comportamento musicais, de
modo a definir conceitos como poder, arte e musicalidade. Em toda essa discussão,
procurei reter um traço da perspectiva comparativa intercultural que considero es-
sencial na etnomusicologia, e em parte o fiz através de comparações com outras
culturas das quais aprendi, sobretudo as do povo blackfoot, dos músicos de Teerã,
e da música dos mestres carnáticos em Madras.

Inspirações

Esta obra não se supõe antropológica, nem é ela, na realidade, tradicional-


mente etnomusicológica, mas na preparação dos seus capítulos tive grande influên-
cia e inspiração de certo padrão de literatura em antropologia e etnomusicologia, e
acho que uma relação dos trabalhos mais importantes pode ajudar o leitor a enten-
der, como se diz, ‘de onde venho’. Ora, há demasiados autores e publicações às
quais eu deveria prestar homenagem, mas listarei os mais essenciais. Foram ins-
pirações, mas não gostaria de sugerir que, ao seguir os seus passos, fui capaz de
exaurir a empresa.

4
No primeiro livro de antropologia que li, Patterns of Culture [Padrões de
Cultura] de Ruth Benedict, aprendi que uma importante maneira de se compre-
ender uma cultura é encontrar temas dominantes que se manifestem em diversos
domínios culturais e padrões de comportamento4. Estou a tentar encontrar tais te-
mas, por exemplo, quando sugiro que a oposição entre inspiração e trabalho metó-
dico é uma das forças motrizes das escolas de música. O trabalho de Bronislaw Ma-
linowski oferece um dos primeiros esboços de estudo etnográfico, e um dos mais
claros também, na sua exortação para que quem trabalha em campo — além de
relevar as estruturas formais (“comportamento habitual relativo a instituições no-
dais”) e textos (“corpus inscriptionum”) — faça observações bem minuciosas sobre
as maneiras nas quais as pessoas se comportam e interagem, e que assim tome
tento no que chama de “imponderabilia da vida cotidiana”5. Com freqüência, tais ti-
pos de observações valeram as considerações que mais me satisfizeram. Devo
também mencionar a clássica descrição de Clifford Geertz, da rinha de galos em
Bali, como a performance dum evento que releva muitos aspectos salientes e prin-
cípios cruciais da cultura balinesa6. Descrevo aqui alguns eventos que penso guar-
darem tal tipo de significação, tais como a colação de grau na escola de música,
mas o faço de maneira bem menos abrangente que Geertz. O uso do mito como um
‘ponto de apoio’ primordial na cultura vem à tona mais claramente nas diversas
obras de Claude Lévi-Strauss e, no caso da cultura musical, no trabalho de Steven
Feld com os kaluli7. Vejo a sociedade do departamento de música através de mitos
sobre os grandes compositores que a permeiam. O livro de Daniel Neuman, sobre
músicos em Deli8, oferece a significativa sugestão de que o estudo duma cultura
complexa, com um sistema de música clássica, poderia talvez se valer mais do
exame das relações sociais entre os músicos, e da maneira na qual estes transmi-
tem a música e seus valores. Também eu encaro a sociedade da escola de música
como um grupo de populações cooperantes e conflitantes.
Era natural que a literatura etnomusicológica apresentasse muitos modelos e
influências. Uma das mais importantes é a clássica etnografia musical de Alan Mer-
riam sobre os índios flathead, ainda um dos melhores tratamentos abrangentes da
cultura musical duma sociedade numericamente pequena, ainda que ali não se lo-
gre atingir uma das principais metas do seu autor, a conexão entre o estudo do
som musical e o estudo da música na cultura9. A insistência de Merriam, ao longo
de sua carreira, de estudar sociedades pequenas o suficiente para que uma com-
preensão global seja possível, proporcionou um fio condutor a inúmeros trabalhos,
entre os quais o de Anthony Seeger, Why the Suyá Sing [Por Que Cantam os
Suyá], o estudo duma sociedade de cerca de 150 pessoas, cuja cultura musical é
tão complexa que só é possível principiar a compreendê-la através da análise de
uns poucos aspectos marcantes10. Entendo a sociedade do departamento de música
como diminuta porém complexa, talvez um pouco como algumas sociedade tribais,
isoladas em alguns sentidos, em outros não.
James Clifford é feliz ao usar o termo musical polifonia para sugerir que a
correlação duma sociedade com a sua cultura deve ser descrita como uma varieda-
de de vozes, a refletir as visões diferenciais de observadores e participantes, e a
questionar a validade duma única autoridade, e de qualquer sistema coerente que
qualquer um possa impor sobre as inúmeras coisas que constituem a cultura11. Os
leitores podem se surpreender com a quantidade de grupos, o número de organiza-
ções, e a variedade de músicas que uma escola de música doméstica compreende.
Ainda que não costume fazer citações diretas das visões das pessoas com as quais
conversei e de quem aprendi, procuro sim mostrar que a sociedade do departa-
mento de música não é monolítica, e que uma melhor compreensão sua partiria de
pontos de observação vários. Procuro fazê-lo através de três vozes. Às vezes falo

5
como um mero etnomusicólogo a ensinar numa Universidade Doméstica, fazendo
um relato convencional. Costumo também ser o principal informante nativo, que vi-
veu na cultura da escola de música doméstica por muitos anos e que a conhece
muito bem, por dentro e por fora, tanto quanto qualquer um. Por fim, procuro ver a
escola de música como alguém de fora o faria, lembrando das minhas experiências
como um forasteiro noutras culturas, e das perguntas que fiz que me ajudaram a
obter esclarecimentos. Para tal, apresento o lendário ‘etnomusicólogo marciano’,
que chega às Terras Domésticas sem conhecê-las, experienciando tudo assim a
partir do nada. Não rotularei a abordagem que cada parágrafo ou seção adota, mas
espero otimizar a combinação e alternância de papéis entre estes três autores.

Não Esqueça: é a minha música

A questão central na etnomusicologia, a mim parece, é o porquê duma soci-


edade em particular ter a sua música e cultura musical particulares12. É uma ques-
tão que, em sentido geral, é de difícil abordagem, mas muita literatura et-
nomusicológica se a defronta, ao menos como implicação. Se há qualquer consenso
na comunidade acadêmica a este respeito, deve ser que há algo na natureza, no
caráter da cultura duma sociedade, que determina que tipo de música ela terá. Se-
ria tentador dizer que devemos buscar nos valores e princípios fundamentais da
cultura ocidental uma explicação para o grande valor que se atribui a grandes con-
juntos musicais, para a importância dos muitos aspectos hierárquicos do sistema da
música clássica, e para a ênfase na polifonia. A situação é por demais complexa
para que eu prometa sucesso, mas uma das minhas metas principais é contribuir
para o seu debate.
Entre os complicadores, constam aquelas questões que levantam Merriam e
Neuman. Neuman sugere que a música faz três coisas pelas culturas, ou antes, que
as sociedades usam a música para fazer três coisas para elas. Elaborando as afir-
mações de Neuman, a música é uma parte operante da cultura, um dos campos
que contribuem para o complexo cultural; é também um microcosmo da cultura
cujas estruturas, relações, e eventos ela manifesta13. Mas é ela também um co-
mentário sobre a cultura. Tomando a terceira dessas funções literalmente, podemos
ver que a vida e a estrutura musicais podem manifestar, contradizer, parodiar,
exagerar, suavizar e idealizar a substância da vida diária. Um sistema musical ma-
ravilhoso pode não corresponder a um sistema cultural maravilhoso, apenas ao de-
sejo de se ter um; um sistema musical com distinções sociais agudas pode refletir
um tal sistema social, ou pode apenas nos lembrar que o sistema social contém o
germe da desigualdade.
Merriam sugere que, em muitas culturas, incluindo a do século vinte nos
Estados Unidos, a música é (até certo ponto) o território da transgressão social, e
que portanto ocorre existir, por assim dizer, para contradizer o que a cultura está a
dizer de contrário14. Minhas próprias tentativas de relacionar estruturas culturais
com estruturas musicais, e destas, por sua vez, com estruturas da sociedade musi-
cal, devem ser vistas à luz das funções múltiplas ou contraditórias da música, e
com um forte ceticismo. ‘Não é forçoso que seja assim’. Portanto, repito: esta é a
minha visão, uma visão baseada na experiência e na abordagem musicológicas,
mas é a minha interpretação própria.
O leitor poderá achar que muito do que digo é explícita ou, mais provavel-
mente, implicitamente crítico. Criticar, no entanto, não é o meu objetivo. É certo
que, na minha experiência, em diversas sociedades, quando indivíduos se defron-

6
tam com uma análise acrítica de sua cultura, da parte dum forasteiro, tendem a
enxergar na análise um conteúdo crítico. Se eu motivar aqueles leitores que se
consideram participantes da minha mítica escola de música da Universidade Do-
méstica a buscar mudanças, que assim seja. Na minha vida cotidiana, eu seria um
deles. Porém, para os propósitos deste livro, quero me desinvestir deste papel, as-
sim como tentei permanecer neutro ao máximo nas minhas observações sobre ou-
tras músicas.
A música cuja cultura estou a discutir é a ‘minha’ música e a ‘minha’ cultura,
num senso mais estrito. É a primeira música que ouvi, a música com a qual cresci,
e que, ao fim e ao cabo, venho ouvindo com mais freqüência ao longo de minha
vida, e portanto estou de fato a fazer ‘etnomusicologia em casa’ num nível sem
precedentes, talvez. Acredito que a minha cultura musical pode tolerar, tal com o
pode a sociedade de suas escolas de música, algum debate analítico que pode ter
implicações críticas.
Ainda que eu possa argumentar acerca da música clássica ocidental — e a
subcultura que a pratica e ensina numa de suas arenas, no século vinte — apon-
tando com o dedo, fazendo figa, ou a torcer o nariz, e talvez com um quê de cinis-
mo ou sarcasmo, e ainda que ache que pode ela manifestar a estrutura cultural de
uma sociedade por vezes mesquinha e cruel, não consigo, não obstante, imaginar a
vida sem ela.

7
1

A Serviço dos Mestres

O Acadêmico Marciano

Um etnomusicológo extraterrestre, de Marte, chega à escola de música do midwest


norte-americano, e começa a trabalhar ouvindo conversas, lendo programas de
concerto, e se metendo em ensaios, aulas e performances. O E.T. se atordoa ao
ouvir uma quantidade enorme de nomes de pessoas, mas termina por perceber que
muitas dessas pessoas estão vivas, mas muitas outras não vivem mais e, no en-
tanto, figuram na retórica como se vivessem. “Vamos lá ouvir o George”, ouve ele
de passagem e, mais tarde, “vamos escutar Beethoven”. Doutra feita, “ninguém faz
um fraseio como Brahms”, mas também, “ninguém produz um som como a Srta.
Winter”. No dia seguinte: “esse ano foi fraco na carreira de Bruckner, mas mais
adiante volta ele a ser bem mais autêntico”, porém à tarde, “ouvi o último trabalho
do Sr. Farina, este ano ele está bem ativo”. Ele tende a se confundir com metáforas
banais, e tem a impressão que, no Departamento de Música, não é possível dizer o
que é o quê sem um roteiro.
O E.T. logo descobre que muitos tipos de figuras povoam a escola: estu-
dantes, professores, administradores, pessoas nas platéias, músicos que não estão
presentes mas são famosos, e um grande número de músicos que não estão vivos
mas que, em conversas, se trata como amigos. Eles constituem um panteão, o dos
compositores de quem é raro que se ouça jamais uma nota crítica. Dois deles
(bem, talvez só uns poucos mais) parecem receber maior atenção que os demais;
Mozart e Beethoven são seus nomes, os que parecem desempenhar o papel de di-
vindades principais.
O etnomusicólogo marciano percebe que uma maneira de entender a cultura
do Departamento de Música seria descobrir como os grandes compositores domi-
nam a cena, Mozart e Beethoven em particular, e que valores ou conceitos tal do-
minância sugere com respeito à sociedade. Ocorre que o alienígena baixou na terra
em 1991, de modo que a figura de Mozart, no bicentenário da sua morte, se desta-
ca. Se alguém perguntasse aos amantes de música do país qual o nome do compo-
sitor mais famoso, muitos diriam Mozart ou Beethoven. Se alguém pedisse aos mú-
sicos que pensassem bem, e daí nomeassem o compositor ocidental mais ‘normal’,
o mais paradigmático, é provável que dissessem Mozart. Mas se, ao contrário, a
pergunta fosse sobre os feitos monumentais que se realizou, a despeito de obstá-
culos insuperáveis, viria à mente Beethoven.
O meu propósito é examinar os grandes compositores, em primeiro lugar
Mozart, em segundo Beethoven, bem como outros. Mas não o Mozart do século de-
zoito, um homem que, conforme nos dizem suas biografias, tinha uma mente que
trabalhava a uma velocidade incrível, era um workaholic, e em sua época era tido

8
como um compositor cuja música era difícil de se compreender, que tinha uma per-
sonalidade volátil, e procurava inspiração onde quer que fosse; e não o Beethoven
do princípio do século dezenove, um homem difícil que queria, acima de tudo, al-
cançar um reconhecimento que o permitisse alcançar os meios para continuar a
compor, ao passo que enfrentava enormes problemas pessoais. Estamos a discutir,
ao invés, o Mozart e o Beethoven do presente, conforme os percebem os amantes
da música de hoje, enquanto figuras vivas na cultura musical contemporânea. O
meu propósito não é, entretanto, levar a cabo o que é o estudo, já de grande acei-
tação, da história da recepção, mas caracterizar a cultura da música artística hoje.
O mundo da música artística ocidental se volta, em grande parte, para composito-
res há muito mortos, para músicas há muito compostas, e para práticas de perfor-
mance que floresceram num passado distante, valorando suas realizações, em
grande medida, pela avaliação de suas relações com as figuras pretéritas que, por
conseguinte, mantêm uma existência significativa no presente.

O Panteão

Quais são os mecanismos pelos quais os grandes compositores governam a


sociedade do Departamento de Música, e o que exprime o Departamento de Músi-
ca, com a criação e manutenção do panteão? Muito disto tem a ver com a visão que
o Departamento de Música mantém acerca do seu repertório, conforme este se ba-
seia num cânone, e das relações das obras canônicas com as imagens dos compo-
sitores que a criaram. Na verdade, a colocação deste tipo de pergunta a outras
culturas também constitui uma convenção etnomusicológica.

A Sonhar com Canções


Como ponto de partida, começarei com uma breve incursão pelos povos
blackfoot, em Montana, parafraseado uma conversa que tive com um de meus
mestres blackfoot, quando fiz trabalho de campo entre eles. “Esta é o minha can-
ção”, me disse. “Fui eu mesmo quem sonhou essa canção”. Quando você a canta?,
queria eu saber. “Faz parte do cachimbo medicinal que meu tio me deu”, respondeu
ele, referindo-se à coleção de itens sacros, cada um dos quais contava com a seu
própria canção. A conversa descambou para a natureza daquela parafernália medi-
cinal, e para o fato de que, ao menos no passado, outros praticantes da medicina
blackfoot houveram parafernálias semelhantes ou idênticas. E descobri que o tio do
meu mestre também sonhara com uma série de canções que acompanhava as suas
bugigangas. “Mas essa canção, não”, sugeri eu. “Sim, ele também sonhou essa
canção, e eu o ouvi cantá-la mais tarde”. “Bem, como é que agora essa canção é
sua, agora que você a sonhou; afinal, o seu tio já a sonhara. A sua canção é igual
ou diferente?”. “Para você, é a mesma canção. Mas para nós, poderá não ser. Se eu
a sonhar, será uma canção diferente de quando ele a sonhou”. “Você quer dizer
que vocês dois cantaram a mesmo canção de modos diferentes?”. “Não, eu a cantei
tal e qual o meu tio. É o sonho que faz a diferença”. A música na cultura blackfoot
é, por um lado, a sua manifestação acústica, mas por outro, é o ato de criação, so-
nho ou visão no qual um anjo da guarda aparece e ensina uma canção ao mestre. A
canção é um ato importante de criação, que resulta do contato entre o humano e o
sobrenatural.

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Atos de Criação
No Departamento de Música, o ato da criação também fundamenta o con-
ceito de obra musical1. Uma vez, sentando-me com um grupo de acadêmicos de
música após um jantar, perguntei, “e se descobrissem que a Meistersinger não fora
composta por Wagner, mas por Herr von X? Seria ainda a mesma obra?”. “É claro
que não”, foi o consenso, tal como o reforçou com veemência um historiador da
arte (que se encontrava na roda), fazendo referência às obras de Leonardo ou Van
Gogh. O tema em debate era a identidade da obra de arte, e a questão era se, na
concepção acadêmica ocidental, seria ela um simples objeto físico — uma partitura,
ou uma pintura — ou se também fariam parte da obra a maneira como veio ela a
lume, a ordem em que se conformou as suas partes, a intenção do artista, a sua
relação com as demais obras do artista e o seu contexto cultural geral, e a identi-
dade do criador. Ao imaginar uma sinfonia escrita por dois compositores indepen-
dentes, meus colegas mantinham a mesma visão dos meus informantes blackfoot,
e descreviam o fenômeno como duas obras distintas.
A pessoa do criador e a autenticidade da criação, o seu tempo e espaço,
tudo é de grande importância para os membros da sociedade do Departamento de
Música, na sua percepção de sua música. A característica de maior importância
duma peça é a identidade do compositor, e o reconhecimento do compositor do que
se ouve ou se vê na partitura é a maneira mais segura de provar a afiliação à soci-
edade musical. Você liga o rádio e ouve o piano, e a primeira coisa que diz ao seu
companheiro amante da música é, “ah, é Chopin”.
A importância quintessencial da relação entre uma obra de arte e o seu cria-
dor é uma característica marcante da música clássica, literatura e arte ocidentais. É
esta ênfase, por exemplo, que fez da publicação das obras completas dum compo-
sitor, e de catálogos temáticos que resolvem questões de autoria de uma vez por
todas, algo tão central na musicologia de viés ocidental. Talvez a principal maneira
de conferir ao compositor o prestígio que se o crê merecedor seja publicar um ca-
tálogo temático. É preciso publicar um, se é para se o levar a sério, enquanto um
dos figurões. Não surpreende que tal questão de autenticidade e identidade seja
sobremaneira importante e ganhe carga emocional na obra dum pequeno número
de compositores, o grupo dos chamados grandes mestres, os membros do panteão.
Num artigo que analisa as questões de atribuição musical, e sua relação com
o valor, John Spitzer cita dois críticos respeitáveis acerca da Sinfonia Concertante
de Mozart, K.297b2. Virgil Thomson, crendo ter sido ela composta por Mozart, a ti-
nha por “melodiosa, talentosa, fantasiosa, soava como uma maçã, e monumental
tal como o pátio interno dum palácio”; Stanley Sadie — muito mais tarde — dizia,
“se a atribuiu a Mozart a partir da evidência mais débil, e jamais soou sequer pró-
xima a uma peça à qual colocaria ele seu nome, com sua invenção barata e repeti-
tiva”. Spitzer mostra que aqueles que achavam que era uma peça de Mozart gosta-
vam dela, e aqueles que não gostavam insistiam que não podia ser Mozart. Não
podia ter ele escrito uma peça tão ruim; ou, se Mozart a escreveu, deve ser ela
ótima, e somos nós que não a estamos entendendo. Muitos outros estudos, e mui-
tas evidências anedóticas mostram que a valoração duma peça por um conhecedor
de música artística varia substancialmente conforme quem a escreveu. “O que será
esta música cansativa?”, você poderia perguntar. “Mas é Schubert” é a resposta, e
você se sente vítima da maior humilhação.
Ouvir e ler fragmentos de estórias que apresentam Mozart e Schubert como
divindades acima do bem e do mal corrobora a interpretação da cultura da música
artística ocidental no mundo contemporâneo como uma espécie de sistema religio-
so. Os amantes da música artística ocidental não encaram a sua música necessari-

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amente com um espírito religioso, mas costumam dizer que estão trabalhando a
serviço da música, uma abstração cuja existência prescinde da intervenção huma-
na. Poderíamos dizer que a própria música é uma divindade, como sugeria o orador
duma colação de grau, ao dizer que “o que nos une aqui é que estamos todos a
serviço da música”. Mas é mais instrutivo examinar a imagem do divino no panteão
dos grandes mestres, os que têm as escrituras (os manuscritos, a edição acadêmi-
ca original, legítima, que remete às fontes mais antigas, e à performance autênti-
ca); os que gozam dos serviços dum clero de músicos e musicólogos; os que se
celebra em e graças a rituais tais como o concerto, o ensaio, a aula e a sessão de
estudo; e aqueles que se celebra nas controvérsias relativas à autenticidade dos
manuscritos, das cartas e dos retratos. Alguns acadêmicos que têm interesse nos
objetos pessoais, instrumentos e retratos dos grandes compositores, se referem a
eles como ‘sacras relíquias’ da história da música3. A necessidade de executar as
obras dos compositores como eles gostariam de tê-las ouvido (não tanto como eles
possam as ter de fato ouvido), e a insistência em que se identifique a grandeza
dessas obras, evitando o tratamento crítico ordinário que se aplica aos artistas co-
muns, são evidências deste caráter sacro.
Como os panteões antigos dos gregos, germânicos e africanos ocidentais, o
conjunto dos grandes compositores conforma uma sociedade própria, se relacio-
nando entre si como pessoas duma família, e desempenhando papéis em dramas.
O clero de músicos e acadêmicos dedicam muita energia ao estudo de suas correla-
ções, tais como a idéia dos compositores a escrever músicas ‘uns sobre os outros’,
por assim dizer, com citações, variações, dedicatórias e paródias; a mensuração de
similaridades e diferenças entre os estilos dos compositores; quem influencia quem,
e quem estava à frente de quem na evolução de estilos e gêneros; o conhecimento
dos compositores da música de cada um; e por aí vai. Os humanos que sustentam
a música deles se associam às divindades por diversos modos, manipulando-as e às
suas obras, se surpreendendo tanto por suas correlações como por seus contrastes
e muito fazendo, ao buscar emular as divindades, para se aproximar do status divi-
no.

Nomes na Pedra
A articulação da natureza do panteão é clara, por exemplo, no entalhe de
nomes nos prédios das escolas de música e nas salas de concerto. A despeito de
gostos cambiantes e idiossincrasias ocasionais de arquitetos e filantropos, o pante-
ão apresenta alguns deuses supremos, uma corte regular, e o emergente eventual,
cujo culto se torna relevante o suficiente para elevá-lo ao nível próprio. Na Univer-
sidade de Illinois em Urbana-Champaign, o Smith Hall (cuja construção data dos
anos 1920) mostra apenas quatro nomes: Bach, Beethoven, Haydn e Palestrina. Na
Universidade de Indiana em Bloomington, num edifício do final dos anos 1930,
consta uma versão muito mais extensa. Ao longo da fachada, os mais relevantes;
nos lados, um grupo que se teria por inferior:

Wagner, Haydn, Bach, Mozart, Beethoven


Mendelssohn Verdi
Schumann Handel
Brahms Sibelius
Saint-Saëns Chopin

Dentro do Recital Hall, nas paredes à esquerda e à direita, os nomes dos


compositores aparecem escritos, outrossim:

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Mozart Beethoven
Mendelssohn Wagner
Liszt Chopin

Todos se sobrepõem, mas os arranjos diferem. Do lado de fora do edifício de


Indiana, a estrutura parece manifestar grandeza ou significância. Não seriam mui-
tos a questionar a posição de Bach, à frente e no centro, ainda que pudesse haver
alguma discordância quanto ao lugar proeminente de Wagner. Mas parece ser si-
gnificativo que tal distinção (e é óbvio que ela lá se encontra, entre a grandeza ab-
soluta e o patamar um pouco inferior) tenha sido manifesta pelo idealizador em
Bloomington. Dentro, contudo, as divindades cumprem com papéis mais específi-
cos. A tradicional dualidade Mozart–Beethoven figura na frente, ao fitarem-se um
ao outro junto ao palco, o humano supremo e o “homem a quem amava Deus”. Há
o contraste dramático — conforme o século vinte o percebeu — entre Wagner e
Mendelssohn, conforme o mestre das maiores obras, pesado, em tudo alemão, por
vezes anti-semita, fita o judeu que viajou mundo afora e buscou influências no es-
trangeiro, parecendo (assim soa a sua música) não levar tão a sério a si mesmo, a
escrever obras curtas. Mas ao passo que há um predomínio dos alemães no pante-
ão, este ainda reluta, como o demonstra cada exemplo, em admitir uns poucos fo-
rasteiros, porquanto Liszt e Chopin, o húngaro e o polonês, mestres do piano, se-
guem os mestres da orquestra e da ópera.
Na Universidade de Harvard, dentro do auditório do Paine Hall (fora do ter-
ritório doméstico, é certo, mas talvez a manifestar os mesmos valores), os nomes
se configuram assim:

Handel, Bach, Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Chopin, Wagner, Schumann


Gluck Mendelssohn
Rameau Weber
Couperin Berlioz
Tartini Liszt
Scarlatti Verdi
Monteverde Grieg
Palestrina Tschaikowsky
Lasso Franck
Brahms

Em frente, constam os grandes alemães (mais Chopin), com as figuras me-


nores nos lados. Além do mais, há uma seqüência quase cronológica da esquerda
para a direita, como que a nos lembrar que a história existe, tendo o seu ponto
culminante nem no fim apoteótico, nem no princípio (após o que, tudo vai ladeira
abaixo), mas no centro da linha do tempo. A hierarquia se manifesta na curva pa-
rabólica da história4. Em contraste, o edifício que abrigou um dia uma escola de
música em Northampton, em Massachussets, apresenta na frente apenas dois no-
mes: Mozart e Handel.
A depreensão de valores ou princípios a partir desses entalhes (e de outros
conjuntos que se encontram em algumas outras instituições acadêmicas nos Esta-
dos Unidos, bem como em várias outras salas de concerto em cidades tais como
Boston, Nova Iorque e Dallas — e em muitas na Europa) seria um pouco como a
construção dum dinossauro a partir dum osso do rabo. Seria intencional a inclusão

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e colocação de compositores específicos, e seguirão elas padrões bem fundamenta-
dos? Será tudo isso um aspecto da cultura, no sentido de ser aceito por muitos in-
divíduos na sociedade, ou se tratará duma idiossincrasia? Tenho a tentação de
achar, mas só é possível a hipótese, que em cada caso o arquiteto ou designer, ou
a universidade, no seu papel de educadora dos estudantes e do público, haverá de
ter feito, com um propósito, um rol dos nomes nestes vários edifícios, decidindo a
sua ordem.
[...]
O ato da criação, a pessoa do criador da música, além da existência dum
cânone, são as ocorrências mais importantes no mundo da música clássica. O De-
partamento de Música em Bloomington de fato é, em primeiro lugar, a favor
Wagner, Haydn, Bach e os demais. Muitas coisas que se passam no edifício podem
mudar, mas este compromisso primeiro é imutável. E entretanto, quando muda a
essência do gosto musical, e se torna quase embaraçoso arrolar compositores que
já gozaram duma estima bem maior que hoje (vêm à lembrança Ambroise Thomas,
Christoph Willibald Gluck, e Orlando di Lasso), quando o gosto passa por uma mu-
dança radical e o mundo da música parece clamar, “estávamos errados”, os nomes
de certos edifícios desaparecem atrás de placas em branco.
Os nomes sob os tetos denotam os edifícios como santuários, a lembrar os
amantes da música de sua obrigação primeira, a de prestar homenagem aos gran-
des mestres, porquanto os departamentos de música são santuários para eles, e
para eles apenas — pois que músicos e amantes da música idolatram bem os com-
positores. Seus bustos jazem sobre os pianos; os instrumentos que possuíram são
ícones; e os relógios, óculos e leques que possuíram atingem preços exorbitantes
em leilões5. A autenticidade de madeixas de cabelo e pedaços de ossos é quase tão
significativa quanto a autenticidade das obras musicais6.

A Távola Redonda das Divindades


Para dar prosseguimento, um pouco mais além, à analogia dos panteões na
sociedade do Departamento de Música, a vida musical se constrói com grande arti-
culação a partir dum conjunto de crenças, sobretudo acerca dos compositores, e
estas têm algo a ver (mas não necessariamente muito) com a realidade histórica.
Há Mozart, o compositor da doçura, que era tão genial que nem precisava fazer
tentativas, mas morreu jovem, sendo visto, mesmo por aqueles que não se con-
formam à minha análise um tanto idiossincrática, como algo divino. É a visão que
vêm divulgando historiadores como Wolfgang Hildesheimer, ao descrever Mozart
como “o maior gênio no registro da história da humanidade”, ou como Alfred Eins-
tein, que o vê como o único compositor de fato universal7. Há citações de Rossini
(provavelmente apócrifas) dizendo que “Beethoven é o maior compositor, mas Mo-
zart é o único”8. Nicolas Slonimsky identifica Mozart como o “supremo gênio da mú-
sica”, enquanto Beethoven é (apenas) “o maior compositor alemão, representando
a maturidade plena das formas correlatas da sonata, do concerto, do quarteto de
cordas e da sinfonia”9.
Mozart representa a concepção do gênio que realiza sem esforço; Beethoven
— também genial, claro — simboliza contudo a grande realização humana que re-
quer um esforço enorme. São eles os dois lados da moeda corrente na cultura do
Departamento de Música, simbolizando uma dualidade importante e também um
conjunto de oposições no pensamento ocidental do século vinte — genialidade e
operosidade, o leve e o pesado, o doce e o salgado, bem como o divino e o huma-
no, Zeus e Prometeu.

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A oposição entre Mozart e Beethoven pode ser o paradigma central do pen-
samento musical no mundo artístico musical da Universidade Doméstica. Mas ou-
tros compositores também apresentam personalidades únicas, tais como deuses,
ainda que a literatura a seu respeito, respeitosa e apreciativa, não costume colocá-
los no mesmo nível de Mozart e Beethoven. É tentador passar em revista o rol dos
grandes mestres e ver como se vê cada um como músico e pessoa, mas me con-
tentarei com dois breves exemplos, Wagner e Haydn.
Richard Wagner aparece como uma divindade malévola cuja habilidade mu-
sical — ou seja, seu poder sobrenatural — é inquestionável, ainda que às vezes sir-
va para fins maléficos. A sua imagem é a de desdém pelos demais humanos, do
nacionalismo sobrepujante, do desprezo pela lealdade pessoal, e da instabilidade
política e social. Associando-se a forças negativas — o nacionalismo alemão, a as-
censão final do nazismo e o anti-semitismo — ele suscita admiração, porém cria
desafetos, pois sua música, no seu som e contexto social e histórico, lida com
questões do mundo musical. As entrelinhas um tanto óbvias de sua ópera Meister-
singer são, afinal de contas, uma crítica à estrutura da vida e dos valores musicais
da época do próprio Wagner. Reconhecido como um grande inovador, o homem
que teve a última palavra na era da harmonia funcional, possivelmente suspeito por
não manter uma clara distinção entre a arte e a vida, é ele uma espécie de Shiva
musical, destruidor e criador ao mesmo tempo, ou de Loge, o mágico, o deus do
fogo, inteligente porém imprevisível, no seu próprio Anel dos Nibelungos.
Percebe-se Joseph Haydn com uma imagem bem oposta, como uma pessoa
modesta, obediente, que se chama de “Papa” em parte graças às suas inovações,
mas talvez mais por conta de sua natureza paternal. Não obstante o seu papel
como fomentador de muito do que veio a predominar no curso do século dezenove,
os músicos não falam dele com assombro, como o homem que fez as coisas acon-
tecerem. Ao invés, o público musical entende a sua música como bem-feita, pra-
zerosa, interessante, mas raramente como tocante ou instigante. Na távola redon-
da das divindades, ocupa ele uma posição de coadjuvante, aquele que ensinou Be-
ethoven e bem cedo reconheceu o talento de Mozart. Sem ser um personagem
exuberante, seu papel entre as divindades é relativamente anódino, uma espécie
de Apolo, o cara legal, previsível, do panteão Grego.
A percepção duma relação especial entre as imagens de Beethoven e Schu-
bert virtualmente data de sua própria época, e a ressaltou George Grove, autor de
importantes biografias suas nas primeiras edições do Grove’s Dictionary [Dicionário
Grove]10. Beethoven, intratável e duro, o complexo, intelectual, motívico e, enfim,
masculino (e portanto o representante do artifício humano, da cultura) contrasta
com Schubert, gentil e macio, o simples e direto, emotivo, melódico e, como era de
se esperar, feminino (e portanto mais próximo à natureza). Que seja provável que
estes adjetivos expliquem mal os métodos de trabalho destes compositores, ou as
percepções de suas platéias imediatas é, nesta discussão, irrelevante. Os rótulos
continuam a desempenhar uma função no pensamento e escrita musicais11.
A ligação entre as diferenças entre Beethoven e Schubert e orientações se-
xuais contrastantes é uma maneira de trabalhar as diferenças musicalmente im-
portantes entre eles em significantes vertentes do pensamento nos anos 198012.
Porém, no fim, a insistência de que Beethoven e Schubert (que num contexto da
música do mundo teriam, objetivamente, uma imagem bem semelhante) repre-
sentam os extremos opostos de alguma espécie de contínuo pode vir mesmo do
desejo, em nossa cultura, de encarar a música como um fenômeno essencialmente
dual, e da nossa tendência de pensar no mundo da música artística como estando
sob o governo dum grupo de divindades, possuindo cada qual uma identidade mu-
sical e biográfica distintiva.

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Na cultura musical da Escola de Música do midwest norte-americano, tais di-
vindades interagem de maneiras complexas. Os acadêmicos analisam e relevam o
uso reiterativo de certos motivos ou técnicas, por parte de vários compositores,
seja como ‘empréstimos’, seja como ‘comentários’ acerca um do outro13. Nas apos-
tilas, nas notas de programa e nas conversas entre os músicos, pode-se discutir
acerca dos compositores referenciando-os uns aos outros, como indivíduos em rela-
ção ao grupo. Os textos básicos também fazem muitas associações pessoais — o
louvor de Haydn a Mozart e sua familiaridade com Beethoven, as declarações de
Schubert junto ao túmulo de Beethoven, e a amizade entre Schumann e Brahms.
Tais associações pareceriam dar legitimidade ao panteão.
A idéia duma família mitológica extensa, divina, ou dum grupo fechado em
si, cada membro com uma função específica, sempre foi significativa no pensa-
mento simbólico europeu. Afora os panteões gregos, romanos e germânicos, há a
távola redonda arturiana (com um conjunto de heróis semelhante aos dos épicos
homéricos e dos eslavos meridionais), o gabinete de ministros de estado, a Con-
venção Constitucional Americana dos Heróis Revolucionários e, outrossim, a guilda
dos músicos em Wagner, no seu Die Meistersinger von Nürnberg, e o grupo de
cantores medievais no seu Tannhäuser. Os mestres compositores também são vis-
tos como personagens que desempenham papéis numa sociedade pequena, e se
relacionam na ficção por meio de suas personalidades, na verdade, através de sua
música.

Agentes do Sobrenatural?
O panteão grego, conforme nos dizem, consistia de alguns membros perma-
nentes e dominantes — Zeus, Ares, Possêidon e Afrodite — e outros cuja populari-
dade ia e vinha, ou cuja divindade era apenas parcial. Os cultos se desenvolviam
em torno de algumas divindades em certas épocas, e outros se associavam a loca-
lidades particulares. O clássico estudo sociológico de John Mueller, sobre o repertó-
rio sinfônico de orquestra, sugere que o panteão de compositores sustinha um tipo
semelhante de existência14. Tratando apenas de orquestras sinfônicas norte-
americanas e suas platéias, até 1945, Mueller mostra que, no repertório sinfônico
norte-americano, predominavam quatro compositores — Beethoven, Brahms,
Tschaikowsky e (a uma certa distância, em quarto) Mozart. A história do repertório
até por volta de 1950 compreende também um grupo de compositores que nele
mantiveram um perfil estável, porém discreto, alguns dos quais em fase ascen-
dente de apreciação (Bruckner e Mahler), outros numa fase descendente (Schubert
e Mendelssohn), e uns poucos cujos ciclos de vida pareciam findos, mal se os co-
nhecendo hoje em dia.
São vários os motivos por trás do tratamento diferencial a esses composi-
tores. Kingsbury descreve a importância das concepções de talento e genialidade —
dons do além, que não se pode adquirir — na cultura do Departamento de Música15.
Os grandes mestres são gênios; os demais têm talento, ou apenas trabalharam
bem. E quanto aos compositores que não fazem parte do círculo das divindades? A
retórica dos amantes da música na academia norte-americana toma como pressu-
posto, através da distinção acima, uma distinção clara entre os grandes mestres e
os demais. As discussões sobre música costumam centrar nos mestres e criam um
universo para eles, onde alguns são absolutos e outros de todo inaceitáveis, mas
inaceitáveis apenas no âmbito deste círculo de ‘grandes mestres’. Tipicamente, al-
guns compositores gozam de adoração especial, tais como Beethoven, Mozart, Bach
e Schubert. Alguns podem ser sujeitos a duras críticas — é o caso típico de Wagner,
Brahms, Mahler, Schumann e Handel — por razões tais como o tamanho excessivo

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de suas peças, e o conteúdo emocional excessivo de seu estilo, ou por pretensão,
pompa e redundância. Se, contudo, a conversa descambasse para compositores
‘menores’, tais como Jan Vaclav Tomášec e Jan Hugo Vořišec, compositores tchecos
contemporâneos a Schubert, ou para os contemporâneos de Mozart Giovanni Paisi-
ello e o anti-herói de Amadeus, Antonio Salieri, o tom seria paternalista, e se su-
bentenderia que estão noutro nível16. A alta admiração por Paisiello jamais sugere
que seja ele superior a Wagner, a quem o admirador pode ter acabado de desan-
car. Não há o que temer, pois nós (do Departamento de Música) somos capazes de
distinguir entre o primeiro time e os amadores, e a nossa retórica subentende tais
concepções. Na retórica da escola de música, costuma-se reservar o termo gênio
para artistas mortos, ao passo que os vivos são tidos mais como ‘talentosos’.
É interessante notar o quão presente constam no panteão os de etnia alemã,
e que, para músicos ou platéias, tal não faz muita diferença. Talvez se o considere
como pressuposto. Mas o contraste com os museus de arte, nos quais os artistas
costumam se identificar conforme a nação (mesmo quando isto mal se faz neces-
sário, como no caso de Leonardo ou Michelangelo), sugere uma diferença. Mozart,
Beethoven, Bach e o resto são, num certo sentido, supranacionais (no que toca as
platéias norte-americanas); quando você se torna uma divindade musical, pode vir
a perder a sua nacionalidade.
Esta sociedade, em essência secular, busca heróis culturais, originadores dos
tesouros essenciais da sociedade, e os cerca dos conceitos e da parafernália que,
uma dia, caracterizaram a própria religião. Os grandes compositores, com seu gê-
nio, misteriosamente criaram a grande música. Eles não são vistos como seres hu-
manos normais que realizaram algo e morreram, mas como se ainda estivessem vi-
vos. Assim, os professores costumam se referir aos desejos presumíveis dum com-
positor dizendo coisas como “’é assim que Bach quer isso aqui”, e “isso parece
mesmo Chopin tocando”. Na concepção da vida dos mestres, há uma confluência de
idolatria e historicismo — talvez dois lados da mesma moeda. Gostaríamos de tocar
Mozart conforme ele gostaria que nós tocássemos a sua música — ainda que seja
mesmo questionável que houvesse ele idéias tão precisas — e queremos reconstruir
o som, o ambiente, talvez mesmo aspectos do contexto cultural, das performances
do próprio Mozart17. Como historiadores da música, queremos saber exatamente
como se fazia; como músicos idólatras, queremos fazê-lo de tal modo também. As
duas atitudes podem não produzir o mesmo som, e os anais da história da música e
da crítica musical estão cheios de querelas sobre a necessidade de se tocar Mozart
(e os outros mestres) da maneira como a sua música soava no seu tempo, ou como
poderiam eles querer que ela soasse hoje, julgando as interpretações do alto dos
seus púlpitos, dos entalhes acima das janelas do terceiro andar18.
Atos especiais de idolatria, tais como a comemoração de aniversários, colo-
cando nomes em edifícios e bustos em pianos, esbanjando atenção para com as re-
sidências, os bens e, sobretudo, os manuscritos dos compositores — os textos sa-
cros — sugerem um comportamento que deriva dos costumes de vários sistemas
religiosos. Que Mozart — e os demais — são, num certo sentido, divindades vivas,
se o ilustra no debate entre acadêmicos e músicos sobre o mérito de se executar
todas as suas obras no Lincoln Center de Nova Iorque, em 1991, debate acerca do
quanto tal ritual ‘ajudaria’ Mozart19. A visão de nossa cultura musical como análoga
à religião pode oferecer esclarecimentos a respeito das mentes da sociedade da
música artística. Mas o sistema clássico não é a única música, nos Estados Unidos,
a ser passível deste tipo de análise — haja vista, para começar, Elvis Presley.

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Variações Mitológicas

O Mito do Castor
O trabalho de alguns antropólogos e etnomusicólogos sugere que a cultura
duma sociedade — o grande número de coisas e idéias nas quais consiste a cultura
— pode se resumir numa proposição única, um tipo de performance ou um mito,
por exemplo20. Se os grandes mestres são, de algum modo, as divindades dum
sistema de crenças da nossa cultura da música artística, seria de se esperar que
sejam eles assunto duma mitologia que explica essa cultura. Será que podemos en-
contrar a quintessência das nossas idéias sobre a música artística numa espécie de
duelo mítico entre Mozart e Beethoven, reproduzindo-se noutros níveis? Para de-
monstrar o que tenho em mente, é necessário apresentar um esboço dum impor-
tante mito do povo blackfoot, pois este me parece explicar as principais idéias dos
blackfoot acerca da música21.
A estória versa sobre a interação duma família humana com a figura sobre-
natural dum castor (que talvez se perceba como em parte humano, sendo assim
mais próprio chamá-lo de ‘homem-castor’), que desempenha o papel duma espécie
de senhor de parte do mundo subaquático22. Um grande caçador humano matou
uma espécie de cada animal e pássaro, decorando sua tenda com suas peles curti-
das. Enquanto está ele a caçar, o castor vem visitar sua esposa e a seduz, e ela o
segue debaixo d’água. Após quatro dias ela volta ao seu marido e, tempos depois,
dá à luz a um bebê-castor. O adultério era imperdoável na sociedade blackfoot,
mas o caçador continua a ser gentil com sua esposa e a criança. O castor, em visi-
ta, manifesta por isso o seu apreço e, como recompensa, se oferece para dar ao
caçador um pouco do seu poder sobrenatural. Eles fumam juntos, e daí o homem-
castor começa a cantar muitas canções, cada qual contendo uma solicitação a uma
pele de pássaro ou animal em particular. O caçador dá as peles, uma a uma, e re-
cebe, em troca, as canções do castor e o poder sobrenatural que as acompanha,
recebendo assim o principal ritual blackfoot.
Esse mito passa algumas coisas importantes acerca da música blackfoot: ela
provém do sobrenatural, as canções vêm como unidades inteiras, se as aprende
numa audição, e são elas objetos que se pode trocar por objetos físicos. O sistema
musical reflete o sistema cultural, e cada ser do ambiente circundante possui a sua
canção. A música manifesta e contém poder sobrenatural. É algo que apenas os
homens utilizam e realizam, mas as mulheres são decisivas para que ela venha à
luz. A música é uma dádiva aos humanos, os quais agem com moralidade, gentile-
za, e conforme um modo de civilidade. Ela constitui papéis e funções, e se a usa
num ritual prescrito. Surge ela como fruto dum período de convivência com o so-
brenatural, do que provém um aspecto importante da cultura, simbolizando ela as-
sim, de certa maneira, a humanidade e a condição de ser blackfoot.

Os Mitos de Mozart
A mitologia do Departamento de Música apresenta mais personagens, e fa-
tos e fantasia se imbricam nas suas estórias. Entretanto, tais estórias também são
mitos, porquanto explicam elas a realidade complexa numa suma, para os igno-
rantes e os jovens. Busquemos a mitologia de Mozart. Podem cumprir com tal fun-
ção os tipos de temas que se aborda em maior extensão em notas biográficas e de
programa, mais presentes nas crenças do público amante da música em geral, os
que mais se conta às crianças nas suas aulas de música23 .

17
Temos um menino pequeno com talento e habilidade incríveis; ninguém po-
dia explicar de verdade os seus feitos. Seu pai o levou para exibi-lo à realeza euro-
péia, mas ele parecia não apreciar tais vantagens e, por fim, teve sérios desenten-
dimentos com seu pai. Mais tarde, tentou ganhar a vida como compositor, mas
sempre foi pobre. Não o reconheciam na sua cidade natal de Salzburg, nem tam-
pouco em Viena; apenas em Praga, meio estrangeira, encontrou compreensão, e
desde a sua infância esteve sempre de mudança. Mais importante, talvez, é a cren-
ça de que Mozart conseguia compor sem experimentar, que a sua música surgia de
uma vez só na sua cabeça, só precisando ser escrita. Podia ele ouvir uma peça de
música e tocá-la em seguida sem erros, de ouvido, e era um sublime improvisador.
Seu estilo musical permaneceu essencialmente sem alterações por toda a sua vida.
Seu rival Salieri o odiava, e morreu muito jovem, duma morte misteriosa. Mas ha-
via nele qualquer coisa de infantil, sendo ele imprestável em assuntos terra-a-terra.
A questão principal é que ele nasceu gênio, uma noção essencialmente européia,
correlata, em tempos idos, à imobilidade social e à crença em elites. Exceto em
momentos tais como o bicentenário, Mozart goza duma estima ainda maior na Eu-
ropa que na América do Norte, e o seu tipo de personagem se coaduna melhor com
a velha noção européia de como a arte e a vida se relacionam. Nas suas lições, as
crianças aprendem primeiro sobre Mozart; se o considera como um compositor que
uma criança conseguiria entender, um homem que compôs quando era criança e
cuja natureza infantil nunca o abandonou de fato.

E de Beethoven
Na minha descrição do saber convencional, são típicos a comparação e o
contraste entre Mozart e um compositor cuja música, para as pessoas mais velhas,
é melhor: Beethoven, um caráter diverso de pessoa que, tal como sua música, foi
difícil, duro de se conviver — em muitos aspectos, justo o oposto de Mozart. Assim
como foi misteriosa a morte de Mozart, o foram as datas de nascimento de Beetho-
ven e seus descendentes. Ele tinha uma aparência sombria e pensativa, sofreu
muito, se frustrava com freqüência, jamais encontrou a mulher certa, e sofreu a
tragédia de sua surdez. Sua música não surgia fácil; dá para perceber que ele tinha
de se esforçar para escrevê-la, é preciso se esforçar para ouvi-la. Ela se alterou ao
longo de sua vida, suas primeiras obras são extremamente diferentes de suas
obras tardias. Não teve filhos, mas um sobrinho que mimava e que, no entanto, o
decepcionou. Teve uma vida difícil; sua surdez é dominante, na idéia que fazemos
dele; trabalhava, esboçava as suas obras por anos antes de tê-las prontas; e é
visto como um rebelde, um lutador contra muitos obstáculos. A estória apócrifa de
seu encontro com Goethe em Teplitz (onde desdenhou Goethe, por haver este ma-
nifesto um respeito excessivo ao imperador) é sintomática. Ele levou suas respon-
sabilidades artísticas a sério, abrindo mão de muita coisa em favor dos aspectos
espirituais de sua música. Genial, assim como Mozart, teve ele de trabalhar duro
para tal se tornar e sê-lo. Talvez não seja coincidência ter ele sido, para os norte-
americanos, o grande mestre quintessencial da música. Esta é, afinal, a cultura que
valoriza o trabalho duro acima de tudo, e recompensa o labor; você não nasceu
para a grandeza, mas se espera que lute para atingi-la.
Sabemos que as figuras históricas de Mozart e Beethoven não diferiam tanto
em suas atitudes para com a música e em seus hábitos de trabalho, que Mozart era
um workaholic, um tanto quanto rebelde, trabalhava com alguns esboços, e que,
durante a sua vida, foi visto como um compositor difícil, ao passo que Beethoven
teve uma vida plena, que abrangeu muito mais que a sua obra, enquanto compo-
sitor. A questão é que, ao olhar para as concepções corriqueiras entre músicos e
amantes da música, extraindo os mitos de diversas fontes, podemos aprender so-

18
bre a relação entre o sistema musical e o resto da cultura. Os dois compositores
representam valores opostos; eles estão em pólos extremos, num diagrama lévi-
straussiano. Também são eles paradigmas, no campo da música, de nossa tendên-
cia a encarar o mundo a partir de séries de oposições.
Assim como mito do castor dos blackfoot nos apresenta idéias importantes
sobre o modo em que o povo blackfoot concebe suas canções, as nossas idéias so-
bre Mozart e Beethoven revelam alguns dos nossos valores. Por exemplo, há um
conflito entre a inspiração e a operosidade. Há uma tendência para que os gênios
sofram. O grande compositor tem conexões sobrenaturais e pode ser um estranho.
A música é misteriosa; os seus grandes praticantes vêm, num certo sentido, de
fora da cultura — uma atitude ocidental para com a música que vários tipos de li-
teratura musical abordam. Os compositores são as principais unidades do pen-
samento e julgamento musicais. A sua configuração esclarece princípios estruturais
primordiais da música e da sociedade ocidentais, tais como hierarquia e dualidade,
estabilidade e progresso.

Dualidades, Doces e Laranjas: um scherzo

Podemos encontrar provas da importância do dualismo como valor central


no mundo da música artística ocidental em muitos rincões da vida musical, da cen-
tralidade do paradigma Mozart–Beethoven à significação das formas musicais, tais
como a sonata, mesmo na sociedade de hoje, na qual a dualidade é a força motriz,
e até na oposição de conceitos tais como realização humana e inspiração sobrena-
tural, da operosidade e da genialidade. O dualismo musical nos acomete, parece,
até quanto movemos os nossos braços ao som de belos discos, na privacidade do
nosso lar, ou quando lemos ficção científica ou comemos nossas sobremesas.

As Vantagens da Dualidade
A mim, um norte-americano, os músicos de Madras costumavam dizer, “nós
temos a nossa trindade de grandes compositores, Tyagaraja, Syama Sastri e
Dikshitar, assim como vocês têm a trindade de vocês”, querendo dizer Haydn, Mo-
zart e Beethoven. O número 3 é importante em nossa cultura, porém o dualismo,
na realidade, desempenha um papel maior no arcabouço conceitual da cultura da
música artística ocidental.
Deixe-me ilustrá-lo com uma certa trivialidade da história da musicologia,
uma obra de 1928 sobre o caráter do ritmo, de Gustav Becking, um hoje obscuro
musicólogo alemão morto em 1945, que se pode considerar como precursor dos et-
nomusicólogos norte-americanos que se interessam por tipos culturais24. Seu livro
promulga a teoria de que é possível entender e classificar peças, compositores, es-
tilos e períodos com base numa tipologia de fluxo rítmico conhecida como ‘curvas
de Becking’. Duas categorias principais são eleitas como exemplares, Mozart e Be-
ethoven, e ainda que se constitua uma terceira categoria mista em torno de Bach,
Becking tem uma clara preferência pela estrutura bipolar. Ele vê o sistema da mú-
sica clássica como, em essência, uma oposição entre o monístico e o dualista, o es-
piritualista e o materialista, o idealista e o naturalista.
Becking pode ter sido apenas idiossincrático, mas a nossa cultura de música
artística divide o mundo, em vários sentidos, em séries de dualidades. Há a díade
maior / menor, talvez o primeiro fragmento de teoria musical que se aprende,
quando se começa a aprender piano. A significação das formas binárias e dos seus

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derivativos como base dos gêneros quintessenciais dos períodos clássico e românti-
co; o contraste entre os dois temas principais da forma sonata; a importância da
forma sonata, cuja principal característica é a apresentação de oposições; o con-
traste entre ária e recitativo — tudo isso releva a força motriz do dualismo na músi-
ca mais corriqueira do mundo artístico-musical contemporâneo. De pronto, se não
sempre, as dualidades oferecem a músicos e estudantes uma orientação precisa
por entre os compositores: Leonin–Perotin, Ockeghem–Obrecht, Peri–Caccini, Ces-
ti–Cavalli, Handel–Bach, Haydn–Mozart, Schumann–Mendelssohn, Berlioz–Liszt,
Donizetti–Bellini, Verdi–Wagner (mas também Wagner–Brahms), Smetana–Dvořak,
Bruckner–Mahler, Bartók–Kodály, Schoenberg–Stravinsky, muitas das quais indi-
cam os mesmos tipos de contrastes que o paradigma Mozart–Beethoven25.

Uma Questão de Sinestesia


Alguns leitores podem entender os parágrafos precedentes como o scherzo
deste capítulo, e irão considerar a próxima seção, que nos leva a uma fase da et-
nomusicologia que ainda não se desenvolveu de todo, como o seu trio. Alan Merri-
am sugere, no seu influente livro The Anthropology of Music, que é possível apren-
der sobre as artes na cultura através do estudo da sinestesia, “a experiência de
uma sensação correlata quando se estimula um outro sentido” 26. Em outras pala-
vras, ver certas obras de arte pode lembrar certo odor, ou ouvir certos tipos de
música pode tornar visíveis certas combinações de cores, ou suscitar uma sensação
de gosto.
Mozart me parece ser visto, em geral, como ‘o compositor mais doce’. O
caráter infantil que se associa a ele pode ser em parte responsável, porém minhas
principais evidências têm a ver com a sua associação a alimentos doces. Num clás-
sico livro de receitas vienenses, de Alice Urbach, o nome de Mozart aparece com
um certo destaque; há dois tipos de tortas (Krapfen) com chocolate, marzipã e
pistácios. Hoje em dia, também, quase todo mundo já se deparou com um tipo de-
licioso de doce, as Mozartkugeln (bolinhas de Mozart)27. Na América do Norte, al-
gumas tardes na seção de catálogos telefônicos da biblioteca pública local revelam
cinco lojas de doces com o nome de Mozart— em Nova Iorque, Washington, São
Francisco, Toronto, Vancouver. (Há diversos cafés Mozart na Alemanha e na Áus-
tria). Há licores com o nome de Mozart, de sua famosa irmã e companheira musical
Nannerl, e de sua obra mais famosa, “Eine kleine Nachtmusik”; há também um vi-
nho suave da Califórnia com o nome de Mozart. Sem dúvida, mesmo antes do bi-
centenário em 1991, se desenvolvera uma espécie de indústria Mozart, e talvez isto
não tenha nada a ver com a cultura musical e seus valores. É significativo, contudo,
que não tenha adentrado ela pelos alimentos salgados, queijos, ou restaurantes de
carne com batata. Não há, por outro lado, quaisquer doces com o nome de Beetho-
ven, cujo nome figura apenas, na América do Norte, num restaurante em São Fran-
cisco, e enquanto símbolo do músico que trabalha duro, na Companhia de Mudan-
ças de Pianos Beethoven, de Nova Iorque.
A conexão de tipos de música com emoções, odores, cores, e gostos é um
fenômeno comum na música de todo o mundo. É bem famosa a associação dos ra-
gas com características tais como devoção, alegria, calma, cansaço, sedução e
peso; dos dastgahs persas com belicosidade, majestade, tristeza, e mesmo com o
gosto de sal28. A associação de Mozart com leveza e doçura, e de Beethoven com
dificuldade, e talvez mesmo com o sal, é análoga. De fato, no nosso mapa da músi-
ca clássica ocidental, os compositores talvez sejam análogos aos modos da Ásia
Meridional e Ocidental. Afinal, se você pedir que um músico indiano lhe diga em
que consiste a sua música, é provável que ele diga, “Ora nos ragas, claro”. E um

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músico clássico americano? Talvez dissesse, “Nos grandes compositores, claro, tais
como Beethoven, Bach, Mozart”.
Voltando ao clássico livro de receitas de Urbach, cuja especialidade parece
ser os pratos doces: por que nenhuma menção a Beethoven, nem a Haydn, e nem
sequer aos outros grandes músicos residentes em Viena, como Shoenberg, Brahms,
e os diversos Strauss? E a propósito, por que será que, em havendo uma indústria
Mozart em torno dos doces em Salzburg, seu local de nascimento, não há uma in-
dústria equivalente em torno de salgados, especiarias, e do complexo culinário que
provêm de Bonn, cidade natal de Beethoven, e nem para Haydn (focando, talvez,
em música ‘sensata’?), provindo da cidade em que o mestre residiu por longo tem-
po, Eisenstadt29? Será sobremaneira feliz a associação entre o doce e o que é fácil
na aparência?
Qualquer que seja a resposta, muitos amantes da música vêem Mozart como
o ‘compositor sem falhas’, porque nenhum outro segue tanto a mesma lógica ao
passar duma coisa a outra, sempre com uma facilidade que parece perfeita, uma
ausência completa de esforço ou labor. Em nossas metáforas, fica clara a homolo-
gia entre a ausência de esforço e a doçura. São os doces, e sobretudo o chocolate,
que ‘descem macio’, sem nenhum obstáculo, e a música de Mozart é fácil, flui na-
turalmente, e se movimenta sem obstáculos porque quem a fez foi um compositor
que, ao que parece, escrevia com facilidade e sem operosidade. As pessoas costu-
mam pensar que, para Mozart, compor era como ‘roubar um doce duma criança’,
‘sopa no mel’ ou, talvez, ‘mamão com açúcar’.
É instrutivo reparar em outro compositor a se coadunar com este modelo:
Franz Schubert, que, no livro de receitas de Urbach, figura em Schubertkrapfen
(tortas Schubert), levando o nome do artista que, conforme nos diz a lenda, adora-
va comer e beber, e de quem se diz que, de tão prolixo em idéias, compunha no
verso do cardápio enquanto esperava que o servissem. (Ou será que isto nos diz
mais é sobre a eficiência dos garçons vienenses em 1820?) Mas quanto a Mozart, é
o mito da personalidade, com o reforço da ‘doçura’ musical, que hoje nos permite
fazê-lo tema de paródias leves, porém admiráveis, tais como A Little Nightmare
Music [Uma Pequena Música de Pesadelo] e Stoned Guest [Convidado Doidão], de
P. D. Q. Bach / Peter Schickele, e fazê-lo indiretamente, como aquela à qual, sendo
predominantemente uma valsa, Stephen Sondheim dá o título inexplicável A Little
Night Music [Uma Pequena Música Noturna]. Mozart o fez consigo mesmo, em sua
“Brincadeira Musical”, em suas peças escatológicas em cânone, cinicamente citando
a si próprio e a outros em Don Giovanni, ao passo que, em geral, Beethoven pare-
cia muito mais sério, tendo por costume evitar fazer troça de si mesmo em sua
música.

O Dom do Sobrenatural
Mozart e Beethoven desempenham papéis em muitas obras de literatura, no
teatro e na cultura popular, sendo a sua representação objeto de análises minucio-
sas. Para uma amostra da polaridade em obra literária, considere-se contudo An-
thony Burgess, o romancista e compositor bissexto. Alex, o deplorável protagonista
de Laranja Mecânica, apresenta um lado curioso seu — seu amor pela música clás-
sica, sobretudo por ‘Ludwig van’, como chama ele o compositor, que por vezes res-
soa ao longo do livro (e ao longo do filme de Stanley Kubrick) com sua Nona Sinfo-
nia. Ao fim de outro romance de Burgess, The End of the World News [O Fim das
Novas do Mundo], quinze sobreviventes duma colisão interplanetária se projetam
para o futuro, numa nave espacial, ao som da Sinfonia ‘Júpiter’ em dó maior, nº.
41, de Mozart30. Muitos amantes da música, em se os pedindo que identificassem a

21
obra mais valiosa de Beethoven, indicariam a Nona Sinfonia, e Burgess e Kubrick a
usam para simbolizar valores da cultura ocidental que, na trama de A Clockwork
Orange, se encontram sob ameaça. Em certos sentidos, é também a maior obra de
Beethoven. Burgess apresenta a ‘Júpiter’, a maior realização sinfônica de Mozart,
como o clímax final da música mundial, literalmente. Para Burgess, assim como
para muitos, Beethoven é o ápice das realizações terrenas, e Mozart é o dom so-
brenatural.

Episódios Orquestrais

Um tema importante no discurso etnomusicológico é que valores funda-


mentais duma cultura são expressos na música desta. A literatura oferece copiosos
exemplos, mas posso, em caráter introdutório, fazer referência a duas de minhas
próprias experiências de campo. No Irã, o sistema de música clássica passou por
renovações antes e depois de 1900, mais ou menos, dum modo compatível e con-
trária, mas de certas maneiras semelhante, à música clássica ocidental31. Na vida
social iraniana, a importância do comportamento improvisatório, e o valor do indi-
vidualismo e da capacidade de surpreender as pessoas se torna logo evidente nas
improvisações da música clássica persa, e na centralidade em que estas figuram
em todo o sistema musical32.
Está claro que um sistema musical como este, ainda que muitos iranianos
não o entendam, poderá esmiuçar certos valores que são importantes para a cul-
tura como um todo: a hierarquia, a orientação que dimana duma autoridade central
imediata, que tem como contrapartida a importância da igualdade humana no islã,
o individualismo e os valores correlatos de surpresa e imprevisibilidade, e a impor-
tância do comportamento introdutório em eventos formais. Pode-se identificar va-
lores sociais pela ubiqüidade de certos padrões de comportamento, pelo caráter das
obras de arte que muito se admira e idealiza, e pela estrutura da sociedade, con-
forme a literatura antropológica a apresenta. A análise da própria música e o co-
mentário dos músicos sobre aquilo que nela é essencial provê a contrapartida musi-
cal. Ao abordar o mesmo tipo de questão na cultura dos índios das pradarias norte-
americanas, descobri que a importância do conceito do herói na cultura blackfoot se
exprime no som heróico da música, e nos riscos que se corre na sua aprendiza-
gem33.
Para a cultura da música artística ocidental, são inúmeras as possíveis ilus-
trações, e farei breve menção a algumas, me furtando a maiores detalhes ou dis-
cussões acerca da validade da metodologia34. A questão principal é se, no Depar-
tamento de Música, as grandes performances de grandes obras de grandes compo-
sitores e o maior conjunto — a orquestra sinfônica — dão maiores explicações so-
bre a importância do conceito do grande mestre, tanto para os nativos quanto para
o observador marciano. A questão pode se esclarecer com os comentários sobre a
taxonomia da música, conforme o vestuário o revela; naqueles sobre a orquestra
como metáfora para a fábrica, a organização política, e o império colonial; e na-
queles sobre o papel de grandes compositores, como Mozart, nos programas de
concerto.

O Hábito Faz o Músico


O E.T. descobre que as pessoas vestem tipos diferentes de roupas quando
tocam (ou escutam) diferentes tipos de música em público, e que uma boa maneira

22
de saber que tipos de música a sociedade do Departamento de Música pensa que
há está na observação do vestuário. O status relativo de repertórios e gêneros, e
de eventos musicais, se exprime, entre outras coisas, no vestido ou traje dos músi-
cos, e mesmo nos da platéia. A correlação entre traje e categoria musical é tão
forte que, ao reparar se os músicos usam smokings, blazers, golas rolê, longos, sá-
ris, indumentária elisabetana, camisetas com furos ou jaquetas de couro, uma pes-
soa com deficiências auditivas pode identificar com facilidade o estilo e a categoria.
Tudo isso será familiar para o leitor norte-americano, mas relembrá-lo nos ajuda a
discernir os limites e hierarquias da nossa taxonomia musical (capítulos 3 e 4).
A necessidade de se usar um uniforme é digna de nota por si só. O uniforme
consuma a despersonalização do indivíduo, dando à orquestra um caráter impesso-
al que comportamentos uniformes, tais como as mesuras à platéia, acentuam. Es-
pera-se que a platéia pense na orquestra como uma unidade, um organismo com
uma personalidade que transcende a do músico individual. Os uniformes sugerem
papéis culturais e sociais também. O seu uniforme diz às pessoas o que você de-
sempenha, e os uniformes musicais dizem que espécie de música os músicos ‘de-
sempenham’. E assim os uniformes dos vários tipos de músicos esclarecem aspec-
tos importantes da taxonomia musical. Eles identificam e separam as categorias de
música — clássica, rock, country, experimental e antiga — e também as associam a
outros aspectos da cultura. Assim, as vestes do coro sugerem a importância da
música sacra nos repertórios corais. Os uniformes de banda prestam testemunho
sobre a associação militar. O vestuário peculiar dos roqueiros traz à lembrança o
caráter transgressor do rock. É sintomático dos papéis dos gêneros na sociedade
norte-americana que esses uniformes derivem sobretudo de roupas masculinas,
que haja menos diferença entre as várias versões femininas daqueles, e que às ve-
zes as mulheres usem meras versões masculinas dos uniformes. As roupas dos mú-
sicos simbolizam as maneiras nas quais o sistema musical se subdivide; elas tam-
bém integram o campo da música na cultura como um todo.
A tendência na cultura ocidental dos músicos vestirem roupas diferentes da
sua indumentária cotidiana contrasta com o costume dos cantores de powwow dos
índios das pradarias, que vestem de maneira precisa e proposital o que poderiam
vestir em outras ocasiões — jeans, camisetas, e bonés de fazendeiros — a despeito
da natureza claramente extraordinária da performance musical. Talvez o façam
porque, virtualmente, todos os presentes — os dançarinos — se paramentam, e os
cantores desejem se separar deles. Ainda que esta explicação possa parecer, no
máximo, pouco convincente, permanece o fato de que os cantores de powwow
querem parecer diferentes dos dançarinos, que são a sua principal audiência.

Reflexos das Estruturas


As unidades da prática musical em todo o mundo se constituem de indivídu-
os, mas em muitas sociedades elas se combinam em conjuntos padronizados que
assumem identidades e personalidades próprias. Em lugar algum isso assume tanta
importância quanto na música clássica ocidental, quando de pronto se fala no Bu-
dapest Quartet, na Chicago Symphony e no Mormon Tabernacle Choir, normal-
mente sem que se saiba os nomes de nenhum dos seus membros. A existência im-
pessoal dos conjuntos enquanto unidades parece se relacionar a conceitos essenci-
ais numa indústria cultural, da qual a orquestra sinfônica é a pedra fundamental35.
Na história da música ocidental, a padronização, a maturidade e a expansão
final da orquestra sinfônica, bem como a sua organização interna, são correlatas ao
desenvolvimento da industrialização européia e o desenvolvimento de entidades
igualmente artificiais, as corporações de negócios e a indústria. A orquestra sinfôni-

23
ca de Haydn e Mozart coincide com os começos das fábricas. Ao passo que o siste-
ma industrial cresceu, do fim do século dezoito até o vinte, também se expandiu a
orquestra, tipicamente ao adotar primeiro as clarinetas, daí os trombones, as tubas
e o piccolo, o corne inglês, o clarone, o saxofone, o eufônio, o piano, o órgão, uma
ampla variedade de percussões, e seções de cordas em divisões. Adotou-se a práti-
ca da arcada em uníssono, e outros tipos de uniformidade, sob a marcação do an-
damento dum regente que não estava também a tocar um teclado ou o primeiro vi-
olino.
Uma subestrutura hierárquica se desenvolveu; é suposto que o terceiro vio-
lista seja melhor que o músico que se senta atrás dele(a), ou que seja ele(a) mais
experiente. Os primeiros instrumentistas dos naipes são como que chefes de de-
partamento. E o primeiro violino, cujo papel visível principal é presidir à afinação
cerimonial da orquestra (que quem guia, na realidade, é o primeiro oboé) é uma
espécie de subgerente de fábrica, que mantém as coisas em ordem para a gerên-
cia. Há também a questão da especialização da orquestração, uma prática cres-
cente até 1890-1910, quando orquestras enormes estavam em voga, mas com to-
dos ou a maioria dos instrumentos tocando juntos apenas durante pequenos perío-
dos. É notável a relação trabalho–gerenciamento entre o regente e a orquestra,
com a gerência permanecendo numa relativa invulnerabilidade a tudo, exceto às
revoluções. Seria possível levar bem adiante tais paralelos, mas há muitas manei-
ras de interpretá-los. Todavia, é instigante pensar na orquestra como uma espécie
de fábrica de fazer música, adotando pouco a pouco os refinamentos e a eficiência
que o mundo industrial desenvolveu.
Um paralelo ulterior provém da contrapartida colonialista da revolução in-
dustrial — os bóias-frias da orquestra sob a direção dum capataz nativo, sob as or-
dens da gerência estrangeira, talvez se relacionem ao emprego difuso de regentes
estrangeiros entre o fim do século dezenove e o início do dezoito. A orquestra é
também uma espécie de exército, e reflete uma estrutura que se encontra no cam-
po militar da cultura, que reflete partes importantes da estrutura social com preci-
são. O maestro é o general, a ‘batuta’, de origem militar36. O maestro leva as hon-
ras das vitórias, aparece nos créditos das capas dos discos, se curva à platéia, mas
não se o escuta, arriscando ele pouco, portanto. (As ‘tropas’ alistadas contam pia-
das: “Você já ouviu a batuta dum regente desafinar?”) Os primeiros instrumentistas
são oficiais que mantêm uma certa autoridade sobre as suas tropas, cuja principal
tarefa é marchar — ou seja, tocar com arcos e dedos — em uníssono, sobretudo
em prol duma aparente disciplina. Há pouco debate democrático. O maestro pode
ser comparado a muitos generais do século dezoito ou dezenove (que com freqüên-
cia eram, mundo afora, alemães) e é a amostra mais eficaz da tradição ocidental do
músico enquanto forasteiro cultural ou racial. Costuma-se permitir, ou mesmo es-
perar que os maestros sejam excêntricos; têm cabelos longos, vestem-se esquisito,
falam com sotaque estrangeiro; e levam uma vida estranha. É um padrão que con-
tinua a se manter, a despeito do alto índice de mudança cultural, ao longo de mui-
tos séculos passados, no mundo ocidental.

Notação, a Linguagem Universal


Na sociedade norte-americana ou européia, a noção de alfabetização é uma
metáfora para a compreensão duma cultura, ou dum campo cultural. Nos últimos
anos, essa metáfora levou mesmo a justaposições curiosas, tais como a noção de
alguém que é ‘letrado em televisão’, alguém que seja capaz de, sem ler, captar
uma mensagem televisiva fundamental. A ‘alfabetização cultural’ se tornou um có-
digo para o conhecimento e compreensão dum cânone central, e seria de se espe-

24
rar que o conceito de ‘alfabetização musical’ sugeriria a compreensão da música de
Bach, Mozart e Beethoven37. Mas se a cultural musical acadêmica norte-americana
aceitou esta extensão metafórica de ‘alfabetização’, também foi rápida em associá-
la à sua definição mais explícita, à capacidade de ‘ler’ música. As aspas servem
para lembrar ao leitor que ler música significa tudo que há desde olhar para uma
partitura, compreendendo por alto as suas características, até ser capaz de execu-
tar uma peça ao olhar pela primeira vez para a partitura, tal como se lê em voz
alta, à primeira vista, uma passagem verbal.
Para a sociedade do Departamento de Música, o conceito de notação musical
tem uma importância enorme. Talvez por se esquecerem que aprenderam suas
primeiras canções através da audição, muitos dos habitantes não conseguem con-
ceber uma cultura musical que não use a notação, sendo que até pouco tempo
muitos de meus colegas tendiam a se maravilhar com meus relatos sobre músicos
indianos fazendo interessantes improvisos por uma hora, ou sobre os índios
blackfoot mantendo um repertório com centenas de canções, mantendo-as distintas
e sabendo qual deveria se encaixar em quais rituais, sem qualquer artifício mne-
mônico visual. Entre as muitas estórias lendárias sobre Mozart, há duas — sua ex-
celência como improvisador e sua habilidade na escrita e performance de música
para teclado que ouvira, mas não vira — que testemunham a favor do seu caráter
quase sobrenatural, pois mostram o quão pouco era ele dependente da notação.
Música, na sociedade do Departamento de Música, é música em notação. A
homologia entre as palavras — ‘música’ enquanto conceito nodal, e ‘música’ en-
quanto corpus de notações — é ilustrativo, assim como o é a má vontade de pro-
fessores e administradores em misturar alunos de graduação em música numa
turma com outros alunos que, presumivelmente, não lêem música. Ao mesmo tem-
po, os músicos clássicos distinguiam de pronto entre as ‘notas’ e a ‘música’, dizen-
do a seus estudantes, por exemplo, “Você está a tocar apenas as notas, mas não a
música”38. Mas a cultura musical acadêmica norte-americana se converte de imedi-
ato à prática acadêmica de usar a extensão metafórica da alfabetização para indicar
a compreensão duma cultura; é difícil que os professores de música aceitem que é
possível entender de música sem o uso da notação.
A maneira como uma sociedade transmite a sua cultura, como um sistema
musical se transmite, é de enorme importância para o entendimento do caráter da
sociedade39. O conceito de transmissão é um assunto complexo. Olhando para a
música européia sob do prisma da tecnologia, encontramos pelo menos quatro tipos
de transmissão: oral ou auditiva (aprende-se a música ao ouvi-la numa performan-
ce ao vivo, e duas performances irão, muito provavelmente, diferir um pouco — ou
muito); escrita (aprende-se a música duma versão singular, em notação, que pode
diferir de cada outra cópia nesta notação, e cada pessoa que aprender tal peça
pode fazê-lo a partir duma cópia diferente e ligeiramente variável); impressa (todos
que aprendem a peça podem aprendê-la numa notação idêntica); e por gravação
(você aprende a peça ao ouvi-la, mas pode fazê-lo da mesma maneira a cada
vez)40. De certo modo, as tradições orais e escritas são iguais, assim como o são as
impressas e as em gravações.
Mas o que se transmite, então? A resposta depende das maneiras em que se
percebe cada música. Deveríamos certificar se há uma demanda para que o intér-
prete toque a peça exatamente como ele(a) a aprendeu, se as mudanças são líci-
tas, se há escolhas interpretativas, ou mesmo se há uma demanda para que a peça
sofra uma alteração a cada vez que se a interpreta. As culturas do mundo variam
muito em suas respostas a estas questões, e uma história da música européia, sob
a perspectiva etnomusicológica, as levaria mais em consideração do que vem
ocorrendo normalmente.

25
A posição central da notação na música ocidental tem muitas causas. A no-
tação é necessária para a coordenação de forças em conjuntos complexos, essenci-
al para o desenvolvimento de relações musicais complexas. É também um fator im-
portante da diferenciação, ou separação entre as músicas e os músicos e suas pla-
téias. Por um lado, é uma metalinguagem para os músicos, que de certo modo são
estranhos ao resto da sociedade porque lêem música (ao passo que não músicos
declaram ser ignorantes, analfabetos em música porque não possuem esta espécie
de capacidade de leitura); é uma metalinguagem porque vários músicos podem se
comunicar uns com os outros e tocar na mesma orquestra, mesmo quando não fa-
lam a mesma língua. É também um mecanismo de separação no sentido de que
permite que músicos individuais em orquestras e bandas toquem as suas partes
sem saber que som vai sair ou como a obra inteira irá soar. A notação tornou pos-
sível a produção de música com estruturas e relações importantes, as quais a pla-
téia não pode ouvir ou perceber, mas que só se as verifica através da análise visual
da obra.
Numa cultura que costuma querer gozar o melhor dos dois mundos, a or-
questra, que produz os sons mais amáveis e prestigiosos, é — na sua dependência
total da partitura, com as suas limitações e complexidades — o fenômeno musical
mais distante e misterioso. Mas Mozart, amável e misterioso entre os compositores,
é visto até certo ponto como o ‘gênio supremo da música’ por ter sido capaz de se
libertar destas limitações e fazer uma música que saía de sua mente de imediato
para o teclado, mostrando que, caso necessário, podia jogar tudo para o alto e pro-
duzir sua música sem notação.

Padrões em Programas
Se a orquestra é uma espécie de fábrica ou plantação, a produzir música
grandiosa, ou um exército a exibir a perfeição em paradas militares, é porque é a
serviço dos grandes mestres. O conteúdo e a estrutura dos programas lança luz so-
bre a significação da hierarquia e hegemonia dos grandes mestres. A ordem das
peças num programa de concerto se determina em parte pela natureza do repertó-
rio. Os concertos de quartetos de cordas, que é forçoso que consistam em várias
peças de tamanho mais ou menos igual, são inevitavelmente diferentes dos con-
certos de orquestra, que se espera que tenham várias peças de tamanhos bem di-
versos. A estrutura do programa também é, substancialmente, uma questão de
preferência pessoal dos regentes e empresários. Ainda assim, é possível identificar
padrões. Num concerto da London Philarmonic Society [Sociedade Filarmônica de
Londres], em 1820, cada metade começava com uma sinfonia e terminava com
uma abertura; as seções centrais compreendiam árias, um concerto, um violino
obbligato e um quarteto de cordas. Não obstante o quão grande pudesse ser a va-
riedade de programas nos Estados Unidos, esta estrutura parece totalmente ex-
temporânea dentro do período de 1950 a 1990. Quase tão estranha seria a forma
dum concerto em 1884, que se realizou em Kassel, começando com quatro obras
de Louis Spohr, incluindo quatro sinfonias inteiras, três aberturas de óperas, um
concerto, e as “Variações sobre um Tema de Haydn”, de Brahms. As aberturas co-
meçam e concluem o evento, ladeando as sinfonias, com o resto da música de
permeio, tudo num concerto bem mais longo que aquilo que, nos anos 1990, as
platéias norte-americanas tenderiam a tolerar41.
O exame duma grande amostra de programas de concerto, dos anos 1930
aos 1980, coloca em relevo um padrão principal e vários secundários. Na primeira
parte do período, os padrões norte-americanos em concertos de orquestras e reci-
tais solo eram bem regulares; desde então, se atingiu uma maior variedade, talvez

26
sob a impulso de valores concorrentes. Mas na metade do século, o programa de
concerto típico duma orquestra sinfônica tinha (1) uma abertura ou peça introdutó-
ria, possivelmente dum compositor barroco, normalmente com uma versão menor
da orquestra; (2) a peça de resistência, uma sinfonia dum grande mestre; (3) fle-
xibilidade depois do intervalo, numa peça de música do século vinte ou, possivel-
mente, um concerto; e (4) um número ou conjunto mais ligeiro. As subversões de
tais padrões parecem ter vigorado mais nas melhores orquestras, bem como nos
conjuntos acadêmicos de menor renome, havendo uma regularidade maior no en-
tremeio42. Parece claro que o espaço após a abertura tem maior exposição, pois os
atrasados perderiam a abertura; o intervalo, um evento obrigatório e essencial-
mente social, sem o qual dificilmente se agüentaria um concerto clássico, marcaria
o princípio duma conclusão. As variações sobre o padrão são comuns e costumam
se deixar determinar por certos critérios regulares, tais como o valor da cronologia,
o grau no qual o regente quer enfatizar um interesse em música nova, o prestígio
dum solista no violino ou piano, e a complexidade — tanto para orquestra quanto
para platéia — duma obra maior (tal como uma sinfonia de Mahler ou Bruckner), o
que talvez faz com que ela ocupe toda a segunda metade. Mas é significante o fato
de que há um padrão bem corrente, assim como o é a própria existência de pa-
drões de programa com base em valores tais como hierarquia, dualidade, a impor-
tância duma taxonomia um tanto rígida, e a tensão entre o gênio sobrenatural e a
façanha humana.
Noutras culturas, as tradições de concerto — para não falar nos rituais reli-
giosos e sociais que requerem música — têm os seus padrões próprios, que suge-
rem igualmente princípios de orientação musical e social. Num concerto de música
clássica no Sul da Índia, a peça em múltiplas seções de nome ragam–tanam–pallavi
começa logo após o ponto central, ainda que não costume haver intervalo. Na mú-
sica clássica persa, o improvisado Åvâz, a seção conceitualmente central e mais
prestigiosa, aparece bem no meio da performance completa.
Conforme esboça John Mueller, em seu famoso livro sobre a orquestra sin-
fônica norte-americana, que analisa os programas de concerto de vinte orquestras
ao longo de várias décadas, os “quatro grandes” (Beethoven, Brahms, Tchaikovsky,
e Mozart), cuja obra ocupa cerca de 40 por cento do tempo de performance sinfôni-
ca, eram quase que invariavelmente os compositores das peças de resistência43.
Não há números precisos para as décadas recentes, e ainda que não haja dúvida
que o grau de padronização mencionado vem diminuindo na América do Norte, vem
se mantendo a estrutura hierárquica dos programas, e os grandes mestres estão no
topo (o espaço após o intervalo), fornecendo também as peças ‘grandes’ (as mais
longas).

Os Grandes Mestres e os Valores Culturais

A estrutura e a função da música artística no Departamento de Música são


passíveis de diversas interpretações. Ela reflete não apenas uma elite econômica e
política, por ser a música de tal segmento da sociedade, mas também por ali pre-
dominar, graças à sua complexidade estrutural e sofisticação, em detrimento de
outras músicas. É o componente musical ‘natural’ duma cultura onde, outrossim, a
tecnologia e a complexidade dominam. Acompanha uma cultura (a despeito da au-
sência de respeito pela improvisação) na qual a realização individual, e a superação
da dificuldade têm grande apreço e recompensa. A taxonomia das músicas, na qual
ela se coloca, reflete a taxonomia da sociedade. É a música ‘étnica’ dum setor da

27
população, mas é, sob outros aspectos, uma música que não possui um ambiente
étnico, uma música antiga que a ama uma população que pouco sabe, por outro
lado, sobre o seu próprio passado.
A interpretação do mundo do Departamento de Música como análogo a um
sistema religioso parece sugestiva em virtude da dominação, naquele mundo, de
um panteão semelhante aos de certos sistemas religiosos. As divindades nos ofere-
cem orientação em princípios musicais e comportamentais. Os rituais dominam a
sociedade e não requerem a melhor música, mas antes a mais famosa. O que essa
sociedade mais almeja é consumir grandes quantidades de bens e serviços, e um
complexo mecanismo para viver e se entreter, e assim os melhores compositores
gozam de maior respeito quando produzem obras musicais de sofisticação, comple-
xidade e tamanho quase inacreditáveis.
Os etnomusicólogos vêem a música como parte constituinte da cultura, com
reflexos, homologias e símbolos. Em muitas culturas, a música funciona para asso-
ciar os humanos com o sobrenatural, e virtualmente todos os sistemas religiosos a
têm como componente principal. A comunidade do Departamento de Música vê a
música como uma força sobrenatural a se idolatrar, e também como um sistema
cujas divindades reinam e requerem obediência. Numa escola de música doméstica
onde ensinei, cada ano acadêmico começava com uma pequena cerimônia que fin-
dava com uma espécie de hino, com a canção de Schubert An die Musik (À Música).
Ainda que esta atitude de adoração para com o fulcro da música clássica seja obri-
gatória do Departamento de Música, aqueles que estão fora dele (tais como os que
assistem propagandas de vinho, de mobília de grife, ou café caro) também a ado-
tam, ao perceber que ela encarna, assim como a religião, e de forma exagerada
talvez, certos princípios de orientação na sociedade: hierarquia, especialização,
tendência à complexidade, tensão entre inspiração e operosidade, conformidade, e
por aí vai. Mas tal como certas forças supernaturais, ela também suscita temor e,
portanto, sofre de marginalização, se a considerando inteligível só para o especia-
lista.
No panteão, no repertório central, e enquanto encarnação de mitos que do-
minam o Departamento de Música, a figura de Mozart é o paradigma central, repre-
sentando para muitos músicos um divisor das águas do melhor e também do mais
‘normal’, aquilo a partir do que se olha para o passado e para o futuro. A compre-
ensão de Mozart, não da figura histórica mas do herói da mitologia musical do sé-
culo vinte, é fundamental para que se compreenda os meandros da mente na soci-
edade do Departamento de Música.
Uma razão importante para a proeminência de Mozart é a sua identificação
com a concepção do gênio, uma concepção que representa uma forma extrema da
noção de ‘talento’ que é, conforme tanto ressalta Kingsbury, tão essencial à exis-
tência do sistema da música artística ocidental, associando este, apesar da preva-
lência de sua natureza secular, ao divino. O Mozart da biografia do século vinte, o
Mozart do mito, é o homem a quem Deus ama, Amadeus — conforme o chama o
dramaturgo Peter Schaffer, com um codinome que veio a gozar de ampla vigência
no final dos anos 1980 — quase uma figura sobrenatural44. É preciso tocar a música
de Mozart conforme ele próprio o desejaria, e a transgressão das supostas normas
do século dezoito é vista, por alguns amantes da música, como uma traição —
muito em contraste com os diversos estilos, interpretações, e figurinos do mundo
da performance de Shakespeare, no século vinte. Porém o mundo do Departamento
de Música de hoje não aceita que um compositor componha seriamente ao estilo de
Mozart, não porque as pessoas não gostem mais deste tipo de música, mas porque
os humanos mortais deveriam emular, não imitar as divindades. A despeito da raci-
onalidade analítica, e da abordagem freqüentemente positivista dos acadêmicos, a

28
música, mais que as outras artes, é tida por inexplicável na sociedade do Departa-
mento Doméstico de Música, e o mestre da música é uma pessoa estranha, um es-
trangeiro, uma figura sobrenatural com uma relação especial com Deus, ou em
conluio com o demônio.
Ao contrário do Mozart do século dezoito, que escrevia música para patrões
e ocasiões, a maioria dos que vivem no Departamento de Música tende a ver a sua
música como ‘arte pela arte’, e não como parte da vida cotidiana. Mas para os et-
nomusicólogos que analisam a sua própria cultural musical sob a perspectiva de al-
guém de fora, da perspectiva convencional de sua disciplina, a música artística oci-
dental não é, de modo algum, distinguível do seu contexto. Enquanto sistema de
inter-relações de obras e práticas musicais, comportamento social, e idéias sobre
música, se estrutura ela através do uso de princípios que se baseiam nas mesmas
dimensões que estruturam a sociedade ocidental em geral. A identificação de al-
guns desses princípios torna clara a natureza culturalmente local da grande tradição
da música artística ocidental.
Neste sistema da cultural ocidental, que produz música maravilhosa, quais
são os princípios e valores que se expressa e a subjazem? Lá estão conceitos intri-
gantes como genialidade, disciplina, eficiência, a pirâmide hierárquica de músicas e
compositores, o músico como estrangeiro e forasteiro, as maravilhas da complexi-
dade, o estímulo para a inovação e a música como algo grande, portadora de impli-
cações metafóricas. Mas também é forçosa a nossa sugestão de ditadura, confor-
midade, uma estrutura rígida de classes, super-especialização e um amor pela
mera grandiosidade, coisas para as quais há louvação explícita ou implicação. Por-
que será que os habitantes do Departamento de Música tanto amam um tipo de
música que provém de princípios que é provável que recusem, pois que caracterís-
ticos de uma sociedade injusta? Alguém poderá contrapor que a análise é falha,
que em lugar de conformidade há cooperação, em lugar de autoridades há líderes.
Ou argumentar que o tipo de estrutura social descrita, apesar de todos os seus as-
pectos indesejáveis, é essencial para a interpretação correta da música dos grandes
mestres, que para que se crie e interprete a música de tais figuras de primeiro es-
calão, como as de Mozart e Beethoven, é necessário que se sacrifique a indepen-
dência e a opinião pessoal, que se adote um grau absurdo de disciplina e se aceite
os ditames duma classe superior, para onde que elas forem. E, no entretanto, o et-
nomusicólogo marciano levantou questões, mas está longe de ter respostas defini-
tivas.

29
2

A Sociedade dos Músicos

Comunidades Musicais

O grande cantor carnático e seus acompanhadores — no violino e, talvez, em ins-


trumentos de percussão — transitavam por seu concerto com uma suavidade quase
incrível. Cada músico cumpria um papel, e a interação era perfeita. Mas sob a su-
perfície, poderá lhe dizer o nativo de Madras, é tudo competição, e mesmo confliti-
vo. Musicalmente, o cantor é supremo, a cantar canções compostas ou a improvisar
em sua interpretação, e conta ele com o acompanhamento específico do tambor de
duas cabeças, o mridangam, com o qual às vezes compete. Outrossim, tem ele
também o acompanhamento de outro competidor, o violinista, cuja excelência se
mede por sua capacidade de seguir e repetir as frases de improviso do cantor com
a maior precisão. Mas quando sola, o violino tem o acompanhamento do ghatam,
instrumento de percussão em barro de cerâmica, e os solos de mridangam têm
também o acompanhamento do ghatam. Este disputa, com o violino, o papel de
primeiro acompanhador. A tamboura, o grande alaúde que toca o bordão, tem sta-
tus inferior, mas é, musicalmente, da maior importância.
Não há dois intérpretes com o mesmo status musical. Nem serão estes mú-
sicos iguais em suas vidas extra-musicais, pois diferenças de castas, status profis-
sional, e gênero, tudo constitui aspectos importantes. Os cantores, quase sempre,
são brâmanes de casta alta, os violinistas e tocadores de mridangam o são com
menor freqüência, e os outros músicos serão, com maior probabilidade ainda, das
castas mais baixas. As mulheres às vezes cantam, menos freqüentemente são vio-
linistas, e quase nunca percussionistas, porém, em todo caso, é certo que os acom-
panhantes homens acham que não é lá muito correto acompanhar uma mulher. Às
vezes, o percussionista de casta baixa goza dum reconhecimento inconteste, e o
público lhe dá um status anômalo, acima do cantor de casta alta. Ou talvez o reles
tocador de ghatam seja filho ou aluno duma imponente personagem musical,
membro duma grande linhagem de músicos, subvertendo o sistema ainda doutra
maneira. Ao fim do concerto, o convidado de honra distribui guirlandas entre os
músicos. Em que ordem? Tal não costuma constituir um problema, mas às vezes
deverá ele lidar com considerações sobre o padrão da estrutura musical, a posição
social, a reputação musical e o gênero, e concluir que não há como ser justo; há
critérios conflitantes por demais, demasiados níveis de interação1.
Os habitantes da escola de música da Universidade Doméstica também se
relacionam entre si e interagem de diversas maneiras2. Meu propósito é observar as
relações sociais entre alguns dos muitos grupos que sua população compreende —
estudantes e professores e administradores, principiantes e iniciados, instrumen-
tistas e cantores, cordas e sopros, homens e mulheres, maiorias e minorias, re-
gentes e regidos — tanto enquanto membros da sociedade norte-americana e da

30
sociedade acadêmica em geral, quanto nos seus papéis enquanto agentes na pro-
fissão musical. A mim me parece que uma série pequena e específica de princípios
de organização social rege as relações entre as pessoas no Departamento de Músi-
ca, em seus contatos cotidianos, e que esses mesmos princípios regem as suas re-
lações em seus papéis enquanto músicos, sobretudo em conjuntos. Outrossim, es-
ses princípios também ajudam a esclarecer a associação entre componentes estru-
turais da música artística ocidental, tais como a ordem dos eventos em concertos, a
relação entre as partes nos conjuntos, e a dos conjuntos entre si. Conforme se su-
gere adiante, no capítulo 4, a sociedade do Departamento de Música, até certo
ponto, percebe o seu repertório, e as relações entre seus componentes, tais como
obras e gêneros, de maneiras que provêm de sua concepção de sociedade humana.
Os habitantes do Departamento de Música vêem a si próprios, e ao seu trabalho,
nos termos de certos valores e, tais como os músicos de Madras, nos das tensões
entre princípios opostos.
Sugiro que tal perspectiva tem uma longa história na etnomusicologia. Dani-
el Neuman também abordou o entendimento das músicas clássicas indianas com a
sugestão de que importantes características da sociedade indiana — relações e
competição entre grupos de casta e outras subdivisões da sociedade, a importância
da família nuclear e da extensa, a significação da obrigação e da troca, a relação
entre grupos etários e de gênero — nos dizem muito a respeito da vida e do estilo
musicais3. As características particulares duma ‘comunidade de jazz’, enquanto
aquela onde as inter-relações sociais e musicais se entrecruzam, foram assunto de
calorosos debates nos primórdios da etnomusicologia. Alan Lomax procurou de-
monstrar que a natureza das inter-relações entre as pessoas numa sociedade se
reflete nas inter-relações dos componentes de seus conjuntos musicais. Anthony
Seeger examinou as maneiras pelas quais a estrutura social influencia diretamente
a estrutura musical numa pequena sociedade tribal, ao passo que Christopher Wa-
terman analisou as maneiras em que a música juju da Nigéria reflete aspectos im-
portantes da organização social iorubá e da sua dinâmica. No meu trabalho no Irã,
procurei demonstrar que relações típicas e ideais entre diversos tipos de indivíduos
mantêm paralelos com a relação entre os componentes dum sistema de música
clássica4. Assim, a minha investigação no Departamento de Música da Universidade
Doméstica é, na verdade, parte duma tradição etnomusicológica bem estável.

As Classes Principais

Estudantes, Professores e Administradores


É provável que as pessoas que passam seus dias úteis no Departamento de
Música considerem a si mesmos como membros de diversos grupos populacionais,
e como nódulos em diversos tipos de relações humanas. Porém, em primeira ins-
tância elas se identificam, tipicamente, como membros de uma destas três classes:
estudantes, professores e administradores. Para um bom número de pessoas, estas
categorias são claras e fáceis de estabelecer, mas há também sentidos significati-
vos em que os limites demarcatórios são vagos. Algumas pessoas compartilham de
duas ou mesmo de três das funções, tanto oficialmente quanto em suas percepções
pessoais. Os professores vêem a si mesmos com eternos estudantes e acadêmicos
e, mais que em outros departamentos universitários, talvez os mais jovens tenham
mesmo sido alunos dos mais velhos. Os alunos progridem gradualmente do estudo
exclusivo para o ensino parcial. Alguns se tornam alunos-professores em escolas

31
públicas, outros auxiliam professores na escola de música, mesmo durante a gra-
duação, e muitos se tornam professores auxiliares na pós-graduação. A idade pode
tomar parte na auto-percepção e auto-classificação. Na música, mais que noutros
campos acadêmicos, os universitários costumam se tornar professores universitári-
os efetivos enquanto estão ainda a concluir seus estudos. Mesmo assim, o agrupa-
mento tripartite é o mais importante, aquele que mais determina as formas de
comportamento e influi em outros componentes da taxonomia social do Departa-
mento de Música.
As três categorias e suas relações refletem, em substância e forma, estru-
turas significantes da organização social que se encontra por toda a sociedade
norte-americana: o sistema tripartite de classes socioeconômicas que se usa na
terminologia informal; a separação entre gestão, trabalhadores e clientela em em-
presas e na indústria; e as hierarquias das organizações militares e atléticas. De
igual importância, ainda que com menor precisão, são elas paralelas à organização
dos conjuntos, da orquestra, do coro e da banda de música ocidental. As três cate-
gorias — administradores, professores e estudantes — são naturalmente as princi-
pais também na academia norte-americana. Mas a separação entre administrador e
professor é maior no campo da música, e as associações entre professor e aluno
são mais próximas do que as que se encontra na educação superior em geral. A or-
ganização social da escola de música tende mais que o resto da academia a refletir
as normas das estruturas sociais, governos, corporações e exércitos norte-
americanos (na realidade os europeus, mais antigos).
Começarei comentando sobre a relação entre as classes do departamento de
música e as classes socioeconômicas, conforme se as descreve, convencional e in-
formalmente5. Oficial e formalmente, os administradores (a quem chamarei, alter-
nativamente, de “decano”, “diretor” ou “chefe”, refletindo a terminologia múltipla
das universidades) são meros professores que assumiram papéis de liderança, às
vezes apenas por um tempo. Alguns continuam de fato a ensinar enquanto execu-
tam trabalhos administrativos, ou então fazem música ou publicam. Em todo caso,
nos inevitáveis momentos de adversidade, poderão se consolar com o pensamento
de que irão retornar ao ‘ensino em tempo integral’ ou mesmo, através do recebi-
mento de bolsas ou buscando qualificações ulteriores, a uma vida na qual possam
se dedicar ao estudo, à pesquisa ou à composição.
Na verdade, uma vez que se estabelecem em suas posições, poucos admi-
nistradores de música voltam a ensinar, e quando o fazem, por imposição ou esco-
lha, tal é visto como um rebaixamento. De fato, as pessoas do departamento de
música têm uma concepção monolítica da carreira profissional modelar. Em termos
mais gerais, vislumbram elas uma seqüência que provém dos ideais da cultura
norte-americana: de estudante a professor, de professor a administrador. Sendo
uma seqüência que a sociedade abrangente tem por bastante normal, corre ela em
paralelo ao progresso dum aprendiz a trabalhador especializado, e do trabalhador a
integrante do grupo gestor, e por fim, talvez, dono duma empresa. Ao mesmo tem-
po, essa concepção da carreira ideal parece vigorar menos nos outros campos aca-
dêmicos. O professor de história ou sociologia típico espera passar do estudo ao en-
sino e lá ficar, progredindo na profissão ao se tornar um acadêmico famoso e ocu-
par cátedras remuneradas, recebendo encargos de ensino em que se ensina relati-
vamente pouco, ou talvez chegando a ‘professor pesquisador’. Numa típica faculda-
de de letras e artes, os professores se tornam chefes de departamento ou decanos
por alguns anos, e daí costumam ‘retornar ao ensino e à pesquisa’, sem que o con-
siderem como um rebaixamento. Está claro que alguns professores que não de mú-
sica entram no baixo escalão administrativo é lá permanecem, mas tais cargos não
costumam ser trampolins para a administração mais alta.

32
[...]
Entre as três classes, é possível supor que a mais alta, a dos administrado-
res, tem interesse na manutenção da estrutura de classe, e assim encoraja o con-
ceito de classes entre o resto da população. Eles podem encorajar, ou mesmo re-
querer de seus subordinados uma maior adequação aos princípios da pirâmide aca-
dêmica. Enquanto membro dum comitê universitário de promoções, me pergunta-
vam insistentemente por que a escola de música nunca recomendava os professo-
res mais novos para ‘promoção precoce’. Para os estudantes, o sistema de pré-
requisitos do currículo, de requisitos a serem satisfeitos numa ordem, e do conceito
de admissão para estudantes com ‘deficiências’ pode ter a ver, em parte, com a
importância de haver classes.
Também mais que no restante da academia, há uma crença difusa nas es-
colas de música de que as carreiras exigem um movimento ascendente através
duma série de degraus relativamente distintos. Ao contrário da imagem popular de
músicos como pessoas que dão pouca atenção às convenções sociais, vivem apenas
para a arte, ou são rebeldes que simbolizam este papel com desleixo no vestir e
cabelos longos, os músicos da academia costumam mais enfatizar a importância
das categorias sociais como indicadores de status e de estágios numa ordem de
eventos. Afinal, a importância da ordem cronológica é importante para os músicos
de diversas maneiras: eles identificam a música pela época em que foi composta,
se preocupam com a ordem nos programas, ensaios, aulas, e costumam parecer
acreditar que a seqüência dos eventos e uma concepção temporal correta podem
ser fatores importantes no planejamento e devir duma carreira na escola de músi-
ca.
Conforme sugeri, a importância da estrutura de classes nas escolas de músi-
ca (em comparação com outros campos acadêmicos) pode ser fruto duma estrutura
corporativa na qual cada empregado(a) vê a si mesmo(a) numa pirâmide, onde se
pode galgar os degraus numa seqüência. É concebível que isso possa ter a ver com
a importância do conceito de progressão cronológica na educação dos músicos clás-
sicos, um sistema no qual se pode aprender as coisas numa ordem particular, e no
qual a ordem das partes de eventos tais como concertos, ensaios e seções de estu-
do podem ser rigorosamente prescritas.
Se a ordem correta costuma ser essencial no mundo da música clássica,
pode ela se referir a uma ordenação em termos cronológicos, ou em termos de va-
lor. Idealmente, o músico passa de estudante iniciante a intermediário, estudante
avançado, profissional iniciante, profissional pleno, mestre e astro. Poucas pessoas
seguem esta seqüência com exatidão; alguns passam de profissionais a professores
que não fazem música, e poucos chegarão algum dia ao estrelato. Mas muitos as-
pectos dos comportamentos musical e social relevam a existência deste contínuo,
pelo qual as pessoas vão passando aos poucos. Aqueles que passam pela seqüência
rapidamente, que se tornam astros na tenra idade recebem especial atenção, e
aqueles que a abreviam ou ignoram, passando, tal qual Mozart, de menino prodígio
a astro, por vezes têm um tratamento tal como se de fato os seus dons proviessem
do além.
A ênfase numa ordem na qual os praticantes dum sistema musical aprendem
os seus componentes se encontra em muitas culturas. Um caso a propósito é a ne-
cessidade de aprender certas canções quando se é jovem, e outras em idade avan-
çada, em algumas sociedades aborígenes australianas, tal como o é, entre os nati-
vos de Yirkalla, a importância de se aprender a tocar o didjeridu enquanto se é
solteiro6. Mais próximo ao sistema clássico ocidental é a aprendizagem do radif na
música persa, um repertório canônico de cerca de trezentas peças, cujas partes

33
constituintes e subdivisões se as deve aprender numa ordem específica, em pri-
meiro lugar o de nome Shur, pois é o mais importante e o mais característico da
música persa.
[...]

O Modelo Industrial
A comparação com indústrias ou corporações se torna sugestiva na descri-
ção da relação entre os três grupos principais. Os administradores (o decano ou
diretor, e também os decanos associados e assistentes, com freqüência juniores em
relação aos professores, e com poucas realizações profissionais) têm a tarefa de le-
vantar fundos (a partir de mecenas ou da legislação), ir a um mercado de clientes
(atraindo alunos e fazendo propaganda), e contratar trabalhadores. Os professores
são a mão-de-obra. Estes podem ter altas qualificações, especializações e influên-
cia, mas no fim é aos administradores que cabe a atribuição de atividades, e são
eles que determinam a sua remuneração. É verdade que, nos seus detalhes, estas
atividades acabam, em grande medida, nas mãos daqueles. Os métodos de ensino
dos professores não têm supervisão, eles selecionam o repertório de suas próprias
performances e de seus alunos, e o horário diário fica amplamente a seu critério.
Mas há uma expectativa bem menor de que eles façam face ao mundo exterior em
benefício da instituição que os administradores, e não se envolvem eles tanto na
conquista de clientes. Ao fim e ao cabo, são os administradores, por exemplo, que
decidem quantos estudantes, e quais deles, poderão entrar, e que tipos de profes-
sores serão contratados.
No modelo industrial, os estudantes são clientes, bem como produtos. En-
quanto clientes, compram eles educação e títulos, e determinam que educação e
que títulos comprar, em termos de custo relativo e qualidade. O custo inclui não
apenas as taxas mas também — e talvez até mais — o volume de esforço e tempo
que se deve gastar. Os pré-requisitos — requisitos curriculares e de recitais, obri-
gações de residência, e graus de dificuldade nos exames — todos figuram no cál-
culo do ‘preço’ que se deve pagar pelo título. Antes que alguém ingresse num pro-
grama universitário, se os discute com o corpo docente e os administradores, muito
como o comprador e o vendedor discutem as qualidades duma casa ou dum carro.
Contatos com ‘clientes satisfeitos’, tais como alunos mais velhos e ex-alunos, cum-
prem com um papel na conquista. Uma vez na escola, muitos alunos acham que,
afinal de contas, não estão a receber o tratamento de clientes especiais da parte
dos trabalhadores ou da gerência; na verdade, contudo, a sua sensibilidade é ob-
jeto de atenção. É uma questão de determinar a natureza da transação. As taxas
pagam a educação, mas são sobretudo os professores, a ‘pagar’ pelo estudo e
cumprimento dos deveres de casa, que irão comprar o título.
A escola de música da Universidade Doméstica possui também outras cate-
gorias de clientes: as platéias das performances; o corpo acadêmico, que necessita
de música para santificar os seus rituais de graduação, vestibular e atletismo; e a
administração da universidade, que usa a escola de música como uma de suas
atrações para o corpo discente mais valioso, como professores de engenharia e ci-
entistas, pessoas cuja capacidade de conseguir fundos é essencial para a saúde
econômica da instituição.
E quanto aos produtos da escola de música, se a encararmos como uma or-
ganização industrial? Em parte, ela produz performances: recitais, concertos e
óperas, e composições, teses e trabalhos acadêmicos inéditos também. Entre as
instituições musicais na sociedade, são as únicas a conceber os produtos das esco-
las de música como bacharéis com uma boa formação. Os administradores de mú-

34
sica falam de ‘produzir bons alunos’, e a noção do termo ‘vender’ cumpre um papel
no uso da propaganda em revista e jornal, quando se tece loas a professores famo-
sos que podem (ou não) ter sido os mentores dos ‘produtos’, nas intermináveis
tentativas de colocar o nome da instituição na imprensa de todas as maneiras pos-
síveis, ao se encorajar o comparecimento de alunos e professores em conferências
profissionais ou acadêmicas de modo a encontrar ‘clientes’ em potencial, e em
muitas outras atitudes que se coadunam com técnicas tradicionais de comércio. Tal
como numa organização de vendas, a escola de música permite que seus adminis-
tradores, a tropa do colarinho branco, realize a maior parte das vendas, ou ao me-
nos as supervisione. A tarefa da escola é demonstrar que os diplomas são de gran-
de valia na hora do aluno procurar um emprego, uma atividade para a qual não se
dedica pouco esforço.
[...]

Três Tipos de Moeda


Cada uma das três classes tem suas funções no sistema musical e educacio-
nal da escola, e toda a empreitada é cooperativa, mas os estudantes, professores e
administradores também fazem manobras pelo poder, selando alianças ocasionais,
dois contra um, em oposições orwellianas que não são ocorrem apenas em ‘1984’.
Assim, estudantes e professores se mancomunam para pressionar os administra-
dores por favores especiais — uma van da universidade para ir a um concerto fora
da cidade, instrumentos novos, maiores salários para professores e assistentes,
mas dinheiro para bolsas de estudantes. Professores e administradores, por sua
vez, podem pressionar os alunos por maiores taxas, porém é mais típico que se
unam sob uma outra bandeira, o incremento no papel dos estudantes numa empre-
sa comum cuja quintessência são os concertos. Assim, podem eles requerer que os
estudantes toquem (talvez impondo os ditos requisitos de prática de conjunto, que
obrigam os estudantes a se engajarem em conjuntos ao longo do curso de seus
estudos) e que integrem platéias (impondo um ‘requisito de recital’ semelhante).
Os administradores e os estudantes, por sua vez, às vezes também se ali-
am. Eles podem tentar motivar os professores a darem mais atenção a suas ativi-
dades de ensino, e a estarem mais disponíveis. Às vezes pressionam os professores
para que permitam exceções ao código de normas acadêmicas, tais como um rela-
xamento nos requisitos. Um graduando em canto cuja boa voz seja essencial nas
produções de ópera, menina-dos-olhos do decano mas sem talento para estudar
teoria, pode ganhar uma nota maior em teoria graças a uma sugestão do adminis-
trador. Estas interações emprestam um certo equilíbrio aos três grupos, num sis-
tema de ajustes e balanceamentos.
O fator mais importante a separar os três grupos, contudo, é um sistema de
recompensas que usa dinheiro convencional, bem como a moeda acadêmica e a
musical. Os estudantes, enquanto clientes principais, pagam para tomarem parte
na empresa; ou o pagamento é feito por seus representantes, pais ou legisladores
do estado. Mas eles são pagos, também, de maneiras que são óbvias, mas é útil
explicá-las como parte das relações recíprocas entre as três classes.
Quando pagos em moeda corrente, como no caso de professores assisten-
tes, ajudantes de biblioteca, ou contra-regras, a remuneração é bem menor que a
dos professores (ou bibliotecários ou contra-regras profissionais), mesmo quando
as suas atividades são idênticas. Mas os estudantes também podem ser pagos em
moeda corrente por excelência na performance — normalmente na performance
musical em sentido literal, ou seja, para tocar e cantar — através de bolsas e
eventuais cachês de concerto.

35
Os administradores são aqueles que mais recebem em moeda corrente, sen-
do mais bem pagos que os professores e recebendo bônus; por exemplo, se os co-
bre mais os gastos em viagens e entretenimento. Alguns deles pensam — e algu-
mas das demais classes podem compartilhar desta percepção — que eles ‘são’ a
instituição, em nível maior que os professores ou o corpo discente. São eles quem
controla o mundo financeiro das escolas e definem orçamentos, salários e despe-
sas. Normalmente também se os contrata para trabalhar ao longo de todo o ano,
ao passo que os professores podem ou não receber encargos no verão. Os admi-
nistradores de música, em conversas entre si, costumam fazer referências como
“meu professor de oboé”, e “meu etnomusicólogo”, numa retórica que lembra a de
empresários de negócios ou times esportivos.
Quando se trata da moeda acadêmica, as escolas de música são como as
demais unidades da Universidade Doméstica. Departamentos tais como o de histó-
ria ou língua inglesa consistem num corpo docente que dá aulas, orienta disserta-
ções e demais pesquisas independentes de alunos, e se engajam na pesquisa, co-
municação de artigos e escrita. Sua posição na hierarquia se determina pela quan-
tidade e significância de sua pesquisa, a excelência ou popularidade do seu ensino,
seus serviços ou liderança em assuntos acadêmicos, conforme o demonstra o tra-
balho dos comitês, e sua aceitação de tarefas administrativas. As recompensas
acadêmicas são títulos (tais como o de “professor titular” ou “acadêmico universi-
tário”), cátedras remuneradas, títulos honoríficos, auxílios para viagens, tempo de
licença e promoções. As recompensas podem redundar em dinheiro, mas está claro
que elas têm valor em si. Contemplá-las está, em grande medida, nas mãos dos
administradores (é certo, conquanto se requeira a indicação, mas nem sempre o
consentimento, dos comitês docentes). Os estudantes têm um papel pequeno na
determinação do quanto se contemplará os professores, mas a moeda acadêmica é
muito importante para eles; são menções e títulos tais como summa cum laude.
Nas escolas de música, o sistema de recompensas inclui também algo que
poderíamos chamar de ‘moeda musical’, na qual se paga professores e administra-
dores e, de fato, aos estudantes. Conversível em moeda acadêmica e na corrente,
têm ela, não obstante, uma existência própria, porquanto há, na concepção dos
habitantes da escola de música, uma certa ambivalência acerca da medida na qual
os artistas deveriam se deixar levar pelos parâmetros da sociedade norte-
americana ordinária. Sob um aspecto psicológico seu, os músicos querem ser bem
pagos, ganhar dinheiro, mas podem também achar que estão um tanto fora do
mundo material e que a oportunidade de fazer música, este dom sobrenatural, tem
suas próprias recompensas. O conceito se o exprime em afirmações tais como o
famoso discurso de colação de grau do músico, o qual se destinava sobretudo a di-
zer aos bacharelandos que eram estes os mais afortunados dos mortais; da boa
vontade dos músicos de tocarem sem pagamento em dinheiro; e o propósito explí-
cito da profissão musical como sendo aquele cujo serviço não se faz bem em prol
dos humanos, mas dum conceito abstrato (e talvez sacro) de música.
O que isto redunda, em termos práticos, é em na permissão para tocar, ou
numa demanda para que se toque. Em geral, os músicos querem tocar, de modo
que ter oportunidades de tocar ou cantar (ou de que toquem as suas composições,
ou talvez que publiquem seus artigos) é a remuneração normal. Os artistas de ou-
tros campos — pintores, atores, dançarinos e escritores — vivem em sistemas se-
melhantes. Mas na música há também uma recompensa (ou paga) mais alta, a qual
gira em torno de valores do sistema musical clássico, e do papel duplo da escola de
música como instituição de ensino e instrumento de entretenimento da universida-
de. A recompensa é a indicação para posições de comando na organização musical

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e no sistema hierárquico que aquelas representam, pois a recompensa mais alta
em moeda musical é a permissão para reger a prática musical de outrem.

Categorias de Musicalidade

Quem Pode, Faz: professores e acadêmicos


Os integrantes da sociedade da escola de música identificam e classificam a
si e às personagens do seu mundo de diversas maneiras. Na seção anterior, repre-
sentei a principal taxonomia como uma espécie de pirâmide. Para outros aspectos
do sistema, a oposição entre centro e periferia funciona melhor. Assim, há tipos
centrais e periféricos de música no repertório da escola de música (Mozart vs. Kurt
Weill), instrumentos centrais e periféricos (piano vs. violão), tipos de atividade (to-
car música vs. falar sobre música), e talvez mesmo títulos (B.M. [Bacharel em Mú-
sica] vs. A.B., o título do intérprete estrito em oposição ao título dos diletantes ou
dos estudantes que se encaminham para uma carreira acadêmica). Entre as ativi-
dades, a performance é vista como central na sociedade da escola de música, e há
aqueles que tocam e aqueles que não o fazem. A polarização e status se resume a
uma máxima que se ouve com freqüência: “Quem pode, faz; os demais ensinam
[ou escrevem livros]”.
[...]
Há bastante conflito e competição entre os músicos — docentes e discentes
— e o resto. É óbvio que os intérpretes vêem a si mesmos como o trato central da
escola, e que a administração da escola compartilha desta visão. Há uma expectati-
va de que os não músicos assistam a concertos e recitais de estudantes e profes-
sores intérpretes, mas tipicamente não se instiga os intérpretes a que assistam a
concertos de música nova ou palestras e apresentações acadêmicas, ou a ler suas
publicações. O público universitário, como um todo, vê os intérpretes como a quin-
tessência da escola. Os intérpretes são também a maioria.
Contudo, há maneiras pelas quais os não músicos, enquanto grupo, mantêm
posições de poder consideráveis. Assim, há uma demanda para que estudantes de
performance façam cursos de teoria, história da música, e, em alguns currículos,
cursos de métodos em educação musical; de fato, todos os estudantes da escola
devem fazer alguns cursos que não são de performance. O inverso também é ver-
dadeiro, ainda que em menor grau: os alunos que entram na pós-graduação em
performance devem demonstrar formação e capacidade em matérias acadêmicas,
mas os especialistas em história da música e educação musical não precisam se
provar intérpretes. (É discutível se há ou não razões substantivas que não tem
nada a ver com relações de poder, mas a diferença de tratamento costuma trazer
incômodos entre os docentes e discentes em performance que, vendo a si como
centrais, no entanto se sentem, com a percepção desta desigualdade, lesados em
seus direitos). Da mesma forma, os doutorandos em performance devem levar
avante uma pesquisa acadêmica; seus comitês de doutoramento devem incluir do-
centes entre os acadêmicos. Mas os doutorandos em áreas acadêmicas não preci-
sam demonstrar sua capacidade de tocar, e não constam docentes em performance
em seus comitês. É verdade que os estudantes de fora das áreas de concentração
em performance têm requisitos de performance tais como participação em conjun-
tos, mas para impô-los, os docentes em performance vêm tendo de alegar a im-
portância da escola como fonte de entretenimento para a comunidade.

37
Assim, os músicos vêem os musicólogos como uma espécie de polícia, a im-
por requisitos de história da música aos seus alunos, fazendo-os prestar exames de
admissão, ou então forçando-os a ultrapassar obstáculos de natureza (assim pen-
sam eles) em essência irrelevante, em defesa dum cânone obsoleto e efêmero. Eles
poderão ver pouca necessidade dos seus alunos saberem sobre música medieval ou
renascentista, ou sobre a música da Índia ou da China.
Assim, os dois grupos lutam pela hegemonia, que se pode expressar na
identidade e formação do decano ou diretor. É ele(a) um(a) intérprete e, se o é, fez
um doutoramento? Ou é um acadêmico, mas com as credenciais dum intérprete?
Eventualmente, ao fazer uma contratação, a administração superior procura en-
contrar pessoas que possam representar uma ‘dupla ameaça’, e que o demonstrem
em público. Assim, numa famosa escola de música (não doméstica), o novo admi-
nistrador teve uma cerimônia inaugural na qual leu um texto acadêmico, tocou pia-
no e regeu uma orquestra. Noutras escolas, as credenciais acadêmicas do diretor
de performance ganham relevo através da insistência que se o(a) chame de “dou-
tor(a)”.
Dentro dos grandes grupos de intérpretes e acadêmicos, há subdivisões que
competem por controle e prestígio, normalmente num contexto de substancial co-
legialidade. Dentro da vertente acadêmica, a luta costuma ser entre os historiado-
res da música e os educadores musicais, mais uma vez sob a rubrica, mais ou me-
nos, do parâmetro do “quem pode, faz”. Muitos educadores de música encaram a si
mesmos como profissionais pragmáticos, procurando realizar um trabalho que a so-
ciedade requer. Eles aprenderam o que é necessário e têm pouco tempo para as
preocupações esotéricas dos historiadores, e têm uma expectativa menor de tra-
balhos de cursos em história da música para os seus alunos do que ocorre em ou-
tros currículos. Quando os educadores solicitam a ajuda dos musicólogos para solu-
cionar seus problemas, sempre encontram frustração na má vontade dos historia-
dores em ensinar bem e na pouca atenção que dão à qualidade do ensino, acusan-
do a eles de levar seus próprios pós-graduandos para longe dos cursos de educação
musical, onde estes poderiam aprender algo sobre o ensino. Ao nível da pesquisa,
os educadores musicais encaram a si mesmos como cientistas que, com o uso de
técnicas das ciências sociais e da psicologia, aprendem o que é preciso para resol-
ver problemas práticos. Também eles encaram os musicólogos como uma espécie
de polícia a impor requisitos de curso, os quais às vezes combatem, através do es-
tabelecimento dum grau de autonomia acadêmica.
Alguns musicólogos, por sua vez, encaram os educadores musicais como fi-
listeus que não querem ensinar a melhor música e os valores mais altos a seus alu-
nos, que ignoram os muitos tipos de coisas que os musicólogos os poderiam ensi-
nar, e que não têm um interesse real pela música em si. Em algumas instituições,
os musicólogos relevam que o comparecimento de educadores musicais — docentes
e discentes — em concertos locais é menor que a de qualquer outro campo da mú-
sica. Entra em jogo a baixa valorização geral da profissão do educador nas escolas
públicas dos Estados Unidos. A menor quantidade de cursos nas humanidades e re-
quisitos de língua nos currículos de educação musical recebem a crítica de serem
incompatíveis com as metas da universidade como um todo.
Cada grupo — educadores de música e musicólogos — toma eventual parti-
do dos intérpretes e busca o seu apoio. Nos últimos tempos, os professores de mú-
sica da Universidade Doméstica passaram para o lado dos intérpretes, impondo a
participação em conjuntos de câmara aos alunos. Mas os musicólogos vêm se jun-
tando aos músicos regularmente, ao aprovarem requisitos de língua estrangeira
que não são atinentes à educação musical. Há uma competição contínua dentro do
grupo ‘acadêmico’, sem que haja um resultado hierárquico consistente. Entretanto,

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na universidade como um todo, conforme atestam critérios tais como afiliação em
comitês universitários, verbas para pesquisa, ou títulos honoríficos, parece haver
uma tendência, a partir dos anos 1950, de que a liderança se desloque da educação
musical para os campos da musicologia e da composição. A mudança pode se rela-
cionar a mudanças no papel do ensino em nível superior, e à mudança no equilíbrio
entre ensino e pesquisa enquanto conceitos na sociedade norte-americana.

“O Que Você Toca?”: cantores e instrumentistas


Se a luta entre musicólogos e educadores musicais é paradigmática na aca-
demia, e previsível na esfera acadêmica do Departamento de Música, outras lutas
menos óbvias dentro da esfera do estudo e ensino da performance são talvez mais
significativas, nas perspectivas que relevam sobre o caráter da cultura da música
artística ocidental, dentro do âmbito da interpretação. Primeiro, há os cantores e os
instrumentistas.
[...]
No sistema de crenças dos instrumentistas (bom, de certos instrumentistas),
os cantores podem ter lindas vozes naturais, mas não precisam ter uma grande
inteligência; ainda que seja necessário desenvolver a voz, os cantores não precisam
aprender habilidades manuais. Na minha experiência, é verdade que os cantores
costumam serem piores (e com exceções significativas) que os instrumentistas em
matérias acadêmicas, seja pela tendência a se selecionar cantores pela qualidade
da voz, sem atentar para outros talentos musicais ou acadêmicos, seja pela auto-
imagem intelectual que os cantores adquirem no curso de seus estudos. Um bom
número de pós-graduandos com especialização em canto, pessoas que têm vozes
excelentes, têm um mau desempenho em qualidade em seus trabalhos acadêmicos
— teoria e história da música — e precisam lutar para conseguir entrar nos pro-
gramas de pós-graduação da escola. Eles contam com o apoio de professores de
canto e diretores de ópera, em oposição aos docentes de musicologia ou teoria,
uma espécie de força policial a proteger os padrões acadêmicos, numa relação pa-
ralela à que o mundo da música mantém com os músicos que trabalham em educa-
ção superior. As vozes naturais dos cantores pode garantir o seu progresso, mas
para os instrumentistas eles podem ter talento, habilidade não.
Pelo menos num certo senso, o sistema de instrução vocal na escola de mú-
sica dá fundamento a esta interpretação. Tipicamente, o aluno instrumentista
aprende com o(a) professor(a) a tocar o instrumento, e como a sua música deveria
soar — um tratamento equânime a técnica e repertório. O mesmo costuma se dar
no adestramento da voz, mas alguns professores dão ênfase à técnica do canto e
ao desenvolvimento vocal, deixando o estudo de música e repertório vocais para os
outros — o pessoal da ópera e co-repetidores de lieder, ou professores de co-
repetição (que, na realidade, funcionam como acompanhadores e co-repetidores).
Além disso, tal como os outros departamentos de performance, o departamento vo-
cal tem um curso em ‘literatura vocal’, que esboça e exemplifica o repertório.
[...]

Arcos e Sopros
A estrutura hierárquica e as lutas por hegemonia também desempenham um
papel entre os instrumentos e as famílias de instrumentos. Primeiro há a questão
da primazia acadêmica: ensina-se um grande número de instrumentos, e o(a) es-
tudante pode tê-los como especialização, e há muito entre eles se inclui o piano e o
órgão, os instrumentos modernos de arco, as madeiras e o trompete, a trompa e o

39
trombone. Mais recentemente, juntaram-se a estes a tuba, a percussão e o saxofo-
ne. Ensina-se alguns outros instrumentos, mas a maioria das escolas de música
não os inclui como especialização. Destes o mais relevante é o violão, que se ensi-
na como ‘violão clássico’, não se incluindo estilos de música folclórica e popular.
Pode-se ensinar outros instrumentos — tais como as violas-da-gamba ou o cravo,
para a música antiga européia, e certos instrumentos não ocidentais — mas repre-
sentam poucos créditos e não há especialização, ao passo que um outro grupo ain-
da, incluindo o bandolim e o banjo, não possui representantes. A definição geral do
que se ensina é ‘instrumentos de orquestra’, e ainda que a designação não seja de
todo correta, o termo deriva da importância fulcral da orquestra na instituição.
[...]
É possível atribuir tais diferenças em grau e tipo de prestígio ao repertório,
já que as principais obras para instrumentos de corda e arco se associam mais de
perto aos grandes compositores do panteão, e assim o respeito que se devota aos
violinistas e violoncelistas é, em parte, o prestígio de Mozart, Beethoven, Schubert
e Brahms. Até certo ponto, as madeiras, a clarineta e a flauta em particular, com-
partilham dessa herança principal, mas tal não se aplica tanto aos metais. A hierar-
quia do repertório bem poderia ser muito diferente em se levando em consideração
a música do século vinte, ou se dessem a ela um grau razoável de atenção. Mas o
fato do líder da orquestra ser o primeiro violinista, e que o segundo músico na hie-
rarquia do conjunto musical (conforme indicam símbolos tais como apertos de mão
dos regentes ao fim dos concertos) seja o primeiro violoncelista, sugere uma he-
gemonia das cordas no âmbito da ‘arte pura’. O panteão dos mestres do fim do sé-
culo dezoito e do século vinte impera, e os músicos e instrumentistas que a ele se
associam estão numa posição artisticamente vantajosa.

É o Piano o Rei?
Se o fulcro da escola de música é o grupo de instrumentos de orquestra e a
própria orquestra, o papel especial, e em certos sensos dominante que o piano de-
sempenha, a despeito dos valores orquestrais, pode ser um emblema dos mais evi-
dente do Departamento de Música e de sua cultura. Num sistema musical onde a
monofonia é uma clara exceção, os instrumentos de teclado são os únicos que têm
repertórios solo substanciais. O órgão, ‘o rei dos instrumentos’, não teve a flexibili-
dade suficiente, e se associou por demais à religião para se tornar ubíquo, ainda
que muitas universidades e faculdades mantenham uma posição especial para o
‘organista da universidade’, o que remonta a suas associações tipicamente religio-
sas, aquando de sua fundação. Mesmo assim, o piano, em associação com o re-
pertório principal desde meados do século dezoito, compreende o sistema sob di-
versos aspectos. É o único instrumento com um grande repertório solo cujo estilo
se coaduna com as expectativas duma platéia que tem raízes nos períodos clássico
e romântico. Sendo o instrumento acompanhador costumeiro, pode ele desempe-
nhar funções na música de câmara, tem força o suficiente para se sustentar em
contraste com uma orquestra, e sendo assim é o veículo preferível para o gênero
do concerto, e veio a ter funções de destaque no jazz, no ragtime e, por muito
tempo, nas músicas populares. Não surpreende que a configuração de teclas pretas
e brancas do teclado se tornou uma metáfora visual importante para a música clás-
sica.
[...]

40
A Importância da Herança

Num concerto de música indiana, a apresentação dos músicos pelo mestre


de cerimônias ou em notas de programa costuma enfatizar as linhagens de trans-
missão artística dos artistas. É feito um rol das identidades dos professores, talvez
dos professores dos próprios professores, e das associações com as gharanas, ou
escolas de música, e ocorre haver tentativas de relacionar o intérprete principal da
ocasião, através de genealogias, às grandes figuras da música de antanho, tais
como o venerável Tansen, o mítico herói cultural e fundador da música hindusta-
ni16. A questão da descendência musical enquanto maneira de aduzir legitimidade e
autoridade também é relevante alhures, e cumpre com uma função substancial na
música clássica ocidental. É menos os músicos que a platéia que deve se convencer
da ‘pertença’ do intérprete à elite musical, numa relação biológica real ou artificial.
As linhagens desempenham um papel no Departamento de Música em dois senti-
dos, na identidade do seu professor e na sua afiliação a uma ‘família musical’.
A afiliação ou não a uma família musical é apenas um fator menor na vida
cotidiana do Departamento de Música Doméstico. A tendência dos norte-
americanos é realçar a independência dos pais, e seu desejo de que se os julgue a
partir dos seus próprios feitos os impede de exaltar demais os seus pais ou paren-
tes musicais. E no entanto, em situações públicas ou formais, a genealogia musical
vem à tona sim, e isto vale tanto para estudantes e professores vivos quanto para
compositores e intérpretes de antanho. O fato de alguém ser integrante duma fa-
mília de músicos tem chances se vir à tona de diversas maneiras. Sempre há, por
exemplo, celebrações especiais da extensa família musical dos Bach. Biografias
concisas de compositores mencionam pais compositores e podem observar, com
um quê de surpresa, a ausência de profissionais da música na genealogia dum
mestre. Entre os vivos, em cerimônias de prêmios ou banquetes, os estudantes têm
a chance, ao conhecer amigos ou em performances, de ouvir mencionar os feitos
musicais de seus pais ou demais parentes, se os há. O vínculo de famílias inteiras à
universidade (“Ele representa a terceira geração de ex-alunos”, se entusiasma o
diretor de captação de fundos) cumpre com um papel especial na escola de música.
Este conceito de famílias musicais desempenha uma função maior na sociedade
norte-americana que em famílias de empresários, médicos ou cientistas. O dese-
quilíbrio pode ter a ver com o conceito de talento, que se acredita ter componentes
genéticos, e se associa mais com a música que com aqueles outros campos (é raro
que se ouça que alguém é um “médico talentoso”). Talvez haja conexão com a no-
ção dos músicos como forasteiros culturais, uma sociedade em si mesma.
Mais importante na estrutura social dos músicos que a família biológica, é a
unidade quase familiar que se constitui entre professor e alunos. Na escola de mú-
sica, tal unidade se costuma chamar de “estúdio”, referindo-se ao espaço onde o
professor dá aulas. O currículo do músico, professor ou aluno dá destaque a uma
lista dos ‘com quem’ a pessoa estudou em sua especialidade na graduação, e isto é
válido mesmo se o curso dos estudos foi breve ou não teve muito sucesso. Tal
como em concertos indianos, esta genealogia pode também constar em notas de
programa.
Certas linhagens ganharam uma importância particular na Europa e Améri-
cas do século vinte, com um papel social (ainda que, provavelmente, não musical)
paralelo ao das gharanas indianas. Uma dos mais famosas se situa em torno de
Theodor Leschetizky (1830–1915), que se arrogava autoridade por ter sido aluno
de Carl Czerny (1771–1857), um aluno particular de Beethoven. Leschetitzky foi
um professor de muito sucesso, podendo contar entre seus alunos alguns grandes
como I. Paderewkski, O. Gabrilowitsch e A. Schnabel, bem como um grande nú-

41
mero de alunos bem menos importantes17. Durante os anos 1930 e 1940, muitos
alegaram terem sido alunos seus, e a afiliação em tal grupo poderia granjear alguns
pontos a mais em coquetéis em festas de músicos. De fato, após a sua morte, se
estabeleceu uma grande Sociedade Leschetitzky, com filiais na Europa e nos Esta-
dos Unidos, na qual se admitia os seus alunos particulares apenas.
Se a herança de Beethoven cumpria — por razões óbvias — com um papel
importante, a de Franz Liszt se tornou igualmente proeminente. Um de seus alunos
famosos e influentes foi Moritz Rosenthal, cujo aluno Ernst Hofzimmer se tornou
professor de piano numa Universidade Doméstica, formando muitos professores de
piano que traçam até si próprios, assim, a herança de Liszt. Em meados dos anos
1940, Hofzimmer estava a deixar o seu cabelo crescer, e emulava a maneira liszti-
ana na aparência aliás, e insistindo em certos procedimentos de estudo, fazia refe-
rência a torto e a direito a Rosenthal. De modo algo semelhante, muitos violinistas
na primeira metade do século vinte, europeus e norte-americanos, se orgulhavam
por terem sido alunos de Leopold Auer (1985–1930), que era famoso sobretudo
como pedagogo, contando-se entre seus alunos Mischa Elman, Efrem Zimbalist e
Jascha Heifetz, incluindo também muitos intérpretes e professores bem menos fa-
mosos que, através de sua associação a Auer, se aproximavam a Elman e Heifetz.
Mais tarde, Ivan Galamian (1902–) assumiu o papel de principal professor de mui-
tos violinistas proeminentes, entre eles Pinchas Zukerman, Jaime Laredo, Itzhak
Perlman, Paul Zukofsky e Michael Rabin18.
Esses professores não tinham fama como intérpretes, mas como pedagogos;
não há dúvidas sobre o valor substantivo de sua instrução. Mas uma vez que se
estabelece, a ‘escola’ — o conjunto dos alunos, e talvez seus alunos também — de
tal professor confere crédito e estima a seus integrantes. A distinguem abordagens
peculiares à música e à técnica. Ser capaz de afirmar ter sido aluno dum grande
professor dá evidências do talento que uma autoridade reconhece. Ter sido bom o
suficiente, ou promissor o suficiente, para ser aceito por um certo professor pode,
por si só, ser prova de suas qualificações. No mundo da música artística, a identi-
dade do professor e a afiliação a uma escola costumam ter um papel pelo menos
marginal na carreira do aluno, bem para além do valor substantivo da instrução
dum professor famoso.
O conceito de escolas e a identidade do professor da pessoa têm um papel
significante noutros lugares da sociedade ocidental. Na vida acadêmica norte-
americana convencional, sua contrapartida é a universidade, ou faculdade ou de-
partamento. Os acadêmicos das disciplinas das humanidades ou das ciências sociais
são famosos, em certa medida, por seus principais professores, sobretudo pelos
orientadores de seus trabalhos de dissertação. Mais tipicamente, se os associa a
departamentos e universidades. Assim, se na apresentação dum pianista num re-
cital consta que ele foi aluno do famoso Maestro X, apresenta-se um palestrante
em história ou antropologia como “com formação em Harvard”, ou como “tendo
feito o seu doutoramento na Northwestern University”. A solidariedade entre alunos
e ex-alunos dum estúdio é algo semelhante à solidariedade entre os ex-alunos dum
departamento de musicologia19.
Dentro da estrutura social do Departamento de Música, o conceito de ‘estú-
dio’ é muito mais personalista que o de ‘departamento’20. O(a) aluno(a) se identifi-
ca como pertencente ao estúdio dum professor específico. Em cerimônias de entre-
ga de prêmios, se costuma identificar os intérpretes como ‘aluno do Professor X’, o
qual pode também compartilhar da glória dum prêmio, sendo o apresentador ou, de
quando em vez, o co-recipiente. Em contraste com a vida acadêmica em geral, na
qual o aluno faz disciplinas com muitos professores, e pode ter orientadores dife-
rentes para teses de conclusão de curso, de mestrado e de doutorado, o(a) alu-

42
no(a) de canto ou instrumentos costuma permanecer com um professor ao longo
do curso de seus estudos na universidade. Ocorre de não haver escolha; é provável
que o Departamento de Música tenha apenas um professor de órgão, oboé, trom-
bone ou viola, mas em tais casos a identidade do professor costuma determinar
qual escola de música ou departamento o aluno irá escolher.
[...]

Uma Série de Conjuntos

O Papel Social dos Grupos Musicais


Alguns integrantes da sociedade doméstica vêem a escola de música basi-
camente como um prédio; para outros, pode ser ela um grupo de professores, um
corpo discente, ou uma série de cursos e um currículo. Mas muitas pessoas do pú-
blico acadêmico de amantes da música parecem ver a comunidade universitária
fundamentalmente como uma série de conjuntos musicais. São estes os emblemas
pelos quais se reconhece a universidade. Na Universidade de Illinois, em 1914, já
se reconhecia a centralidade dos conjuntos, e o propósito da escola de música de
fornecer serviços cerimoniais essenciais, quando o reitor da universidade, ao ofere-
cer a vaga de diretor da escola de música, deixava claro que a principal função do
cargo seria muito mais a de fornecer performances que a de ensinar ou administrar
o trabalho de outros professores.

O Diretor deverá ser responsável pela gestão da escola, em todos os senti-


dos. Ele irá também supervisionar os interesses musicais da universidade.
Deverá ele desenvolver e manter uma sociedade coral, assegurando que uma
orquestra eficiente se mantenha em plena operação...
Ele deverá assegurar a realização de recitais públicos, com a partici-
pação dos alunos da escola de música e dos membros do corpo docente da
escola de música, assegurando, conforme as circunstâncias o permitirem, a
organização e realização destes outros concertos...
...você será o responsável pela música em todas as ocasiões públicas,
seja sob a forma de quarteto, octeto ou canto solista, com estudantes ou
professores, ou de órgão, ou produções orquestrais, ou banda. Seja qual for
a colaboração de seus colegas, tal contará muito a seu favor. Em última aná-
lise, se você não a obtiver de seus colegas, deverá fazê-lo você mesmo21.

Mesmo hoje, as faculdades e universidades que não possuem departamento


de música costumam manter coros, orquestras e bandas; alguns departamentos de
música se organizaram, originalmente, em torno de tais grupos. O papel destes
grupos dentro duma escola de música é sobretudo educativo; mais ainda, são eles
parte da seção de entretenimento da universidade, uma função que compartilham
com departamentos de teatro, dança e belas artes, com séries de palestras e atle-
tismo.
O propósito de ir para a faculdade é a educação, mas tal acaba por se tornar
um modo de vida. A universidade satisfaz quase que todas as necessidades do es-
tudante, e a educação não se restringe à sala de aula e às disciplinas. A universida-
de oferece um grande número de atividade opcionais que combinam educação com
entretenimento. Aqui se incluem peças, concertos, palestras, eventos de atletismo,

43
museus, e a biblioteca, porquanto se a usa para leituras recreativas. Tudo isto pode
ser posto em vários contínuos, e em duas categorias — aquilo que exige a compra
dum ingresso, e aquilo que é grátis. O que é pago inclui jogos de futebol, concer-
tos, ópera, teatro e performances de dança; palestras, museus universitários, e a
biblioteca são grátis.
[...]

O Poder da Batuta
Além das funções educativas e de entretenimento, os conjuntos musicais
cumprem com um papel importante quanto à maneira como funcionam as relações
de poder entre as três classes que constituem o Departamento de Música. Este ca-
pítulo começou com considerações sobre as classes sócio-musicais do Departa-
mento de Música, classes que diferem nos quesitos atividades, função e tempo.
Descrevi então alguns dos demais modos — sobretudo os musicais — conforme os
quais os habitantes do Departamento de Música se agrupam, por tipo de instru-
mento, nível de envolvimento com a performance, associação com professores e,
ocasionalmente, com os conjuntos musicais. Para que se estabeleça uma correlação
entre estruturas sociais, socioeconômicas e musicais, é preciso que se discuta e
correlacione os dois principais centros de poder da escola de música: o gabinete do
decano, chefe ou diretor, e a batuta do regente. Para tal, é necessário retornar à
significância da cronologia das carreiras, pois tal como a norma da academia de
música é que o aluno chegue a professor e a decano, o destino final dum músico
clássico típico é reger.
Quase todo mundo (e isto inclui alguns que o negariam) quer reger, e isto
inclui decanos e professores. É a meta da maioria dos intérpretes de sucesso, dos
compositores, e mesmo dos acadêmicos e educadores de música clássica, um de-
vaneio último de poder. Um dos aspectos importantes dos conjuntos na escola de
música é que, via de regra, todos os intérpretes são estudantes, ao passo que os
regentes são quase sempre professores. Esta relação dá suporte à significância da
distinção de classe entre estudantes e docentes, ou entre docentes e administra-
dores, e à homologia das relações de poder em política e educação. Tal leva tam-
bém à sugestão de que, no mundo musical, o grande conjunto é o modelo para a
organização social do Departamento de Música.
No mundo musical não acadêmico, a condição de excelente instrumentista é
um caminho normal para a regência e, no caso da música coral, talvez a de cantor,
mas se os instrumentistas às vezes se tornam regentes corais, cantores quase nun-
ca se tornam regentes de orquestra. Bons violinistas (tais como Zubin Mehta) e vi-
oloncelistas (tais como Arturo Toscanini) vêm à mente, e mesmo instrumentistas
de valor excepcional, tais como Mstislav Rostropovich, Alexander Schneider e Pablo
Casals, passaram para a regência num momento posterior de suas carreiras. Os
compositores às vezes se voltam para a regência (por exemplo, Gustav Mahler e
Pierre Boulez), e é evidente que alguns, tais como Bruno Walter e Fritz Reiner, se
firmam como regentes bem cedo em suas carreiras22.
[...]
Há um conjunto dicotômico de relações entre a estrutura de classes da es-
cola de música e o conceito de conjunto na música artística ocidental, entre os ad-
ministradores e regentes da escola de música, enquanto fato e enquanto noção. O
regente / professor dum conjunto é ‘decano por um instante’, ou decanos ou chefes
podem às vezes atuar como regentes. Na maioria das universidades, os chefes ou
decanos dos departamentos exercem o ensino ou a pesquisa junto com a adminis-
tração, permanecendo temporariamente na chefia, ou trabalham conforme uma

44
estrutura essencialmente democrática. Nas escolas de ciências humanas, os deca-
nos podem ser professores de sociologia, história ou francês, e não desempenham,
nem talvez possuam um papel relevante no mundo exterior. O decano que vem da
sociologia não age como um funcionário do governo no Departamento de Saúde e
Serviço Social, e o professor / decano de Francês não emula Jean-Paul Sartre. O
diretor da escola de arte não tem em mente o modelo do diretor como pintor na
oficina renascentista, mas o paralelo existente na música é óbvio. O típico diretor
de escola de música que decidiu ‘virar administrador’ ascendeu da classe trabalha-
dora, não espera voltar jamais, e tende a desempenhar a função com as técnicas
dum ditador benevolente. É digna de nota a quantidade de administradores de es-
colas de música que passam para a administração geral, nos níveis mais altos da
universidade.
Os professores da escola de música têm uma tendência geral a aceitar um
estilo um tanto paternalista de administração, enquanto que os músicos aceitam a
ditadura do regente. Como prova, cito a sua tendência a eleger seus chefes de de-
partamento para outros tipos de cargos de responsabilidade, tais como comitês
gerais da universidade, e para participarem em conselhos de sociedades profissio-
nais. Exceto em casos óbvios de abuso, parecem eles aceitar a estrutura de classes
e do sistema do ‘decano forte’. Não será coincidência, provavelmente, que a escola
de música da Universidade Doméstica tenha sido uma das últimas unidades acadê-
micas a estabelecer estatutos para a sua administração.
Se o modelo para a administração duma escola de música é a função de re-
gente e o poder e prestígio que ela representa, uma das conseqüências disso é que,
nas escolas de música, se almeja a regência com maior avidez ainda que no mundo
da música em geral. ‘Ganhar’ um conjunto para dirigir costuma ser motivo para
congratulações — mais ainda que receber o encargo dum interessante curso novo;
no mínimo, é um gesto de confiança. Professores que recebem ofertas de cargos
noutras instituições são encorajados a ficar com uma série de propostas convencio-
nais, tais como aumentos de salário, ascensão funcional e promessas de licenças
para pesquisa; para os músicos, é possível que se inclua a promessa duma oportu-
nidade para reger. Além disso, ao reger um conjunto musical, um docente num
cargo tido como desvantajoso pode compensar a perda de status.
Não há dúvida de que as mulheres têm representação desproporcional nas
diretorias de escolas de música e entre regentes. O mesmo vale, talvez ainda em
maior grau, para afro-americanos e outros integrantes de minorias. Mas a situação
está mudando. Nos anos 1950, seria praticamente inconcebível a candidatura de
mulheres ao decanato em grandes escolas de música. Que às vezes fossem elas
chefes de pequenos departamentos de música, é uma relíquia da época em que o
próprio ensino da música era visto como uma profissão feminina. Evidências ane-
dóticas sugerem que estas administradoras mulheres tendiam a ter personalidades
impositivas. Ainda é rara a regência de mulheres, sendo mais comum na área coral
que orquestral, e ainda mais rara em bandas. O sistema de classes que culmina na
decania ou regência sofre a influência da tradição norte-americana geral de discri-
minar mulheres e integrantes de minorias.
A atribuição de regências a professores é uma prerrogativa do chefe ou de-
cano. A regência constitui, basicamente, uma posição de poder; num certo sentido,
os regentes não são técnicos especialistas tais como os instrumentistas e composi-
tores devem ser. Virtualmente, todos os regentes também são — ou já foram —
algo mais. Assim, instrumentistas, compositores, mesmo cantores e, às vezes,
também os musicólogos tendem a se sentir aptos para reger. Ainda que haja, é
claro, bons e maus regentes, o mundo musical tende a selecioná-los conforme o
seu prestígio enquanto instrumentistas ou compositores. No mundo musical aca-

45
dêmico, às vezes é menos a capacidade de tocar e compor, e mais a influência e o
prestígio geral da pessoa, o seu poder político, que determina se irá compor ou
não. E daí que o decano de música possa premiar professores ao ‘dá-los’ conjuntos,
tornando-os assim algo como decanos-mirins23.
Pode parecer lógico que administradores universitários e docentes de música
encarem os regentes como líderes acadêmicos naturais de escolas de música. Se
um regente pode ser ‘decano por uns instante’, esse regente pode também se tor-
nar decano para sempre. O catálogo de departamentos e escolas de música que a
College Music Society [Sociedade das Faculdades de Música] publicou revela um
número algo desproporcional de regentes que são chefes de departamento24. Cerca
de 13 por cento do corpo docente constam como regentes de conjuntos em seus
departamentos (isto inclui departamentos pequenos com bem poucos conjuntos),
mas cerca de 25 por cento dos chefes de departamento constam como regentes re-
gulares.
Estaria claro que os docentes, e talvez a alta administração da universidade,
percebem a homologia entre a administração musical e a acadêmica. Tornar-se re-
gente é tanto uma questão de ter um grupo de músicos que alguém possa reger,
quanto de capacidade técnica, daí que os administradores tenham a prerrogativa de
designar um regente, e possam designar a si mesmos. É bem possível que haja ra-
zões substantivas; o regente deve ter algum talento administrativo para gerir a coi-
sa e também algum carisma de liderança, e os docentes de música podem querer a
regência de alguém que esteja apto tanto a conduzir o departamento quanto a mú-
sica. O paralelo é claro e significativo para todas as partes. A regência, o mais alto
dos encargos musicais, e a administração, o mais alto dos acadêmicos, são linhas
de trabalho para as quais a formação de especialista não costuma se encontrar dis-
ponível, e não necessariamente se a requer. Em todo caso, não há uma tradição
consistente de ensino e prática como há para instrumentistas e cantores, ou entre
professores e acadêmicos.
É instigante observar quais são os demais tipos de docentes que costumam
se tornar chefes de departamentos de música, e especular sobre os motivos. Com
freqüência são musicólogos, e talvez tal venha ocorrendo porque estes tendem a
ter a titulação mais alta nos departamentos de música e, mais que os demais músi-
cos, têm uma formação e experiência condizente com a dos acadêmicos mais típi-
cos, com os quais têm um diálogo fácil. Os chefes de departamento costumam ser
também compositores, produtores de música num sentido mais estrito; costumam
também ser professores de educação musical, cujos currículos às vezes compreen-
dem disciplinas sobre administração de departamentos de música. Boa parte dos
chefes ou decanos dos departamentos são professores de performance (ou ‘música
prática’, como se diz no jargão da escola de música). Entre eles, é freqüente que
professores de instrumentos de sopro sejam chefes de departamento. É difícil en-
contrar pianistas, organistas, vocalistas e, mais notadamente, professores de cor-
das. A maior freqüência de instrumentistas de sopro tem a ver com a associação
dos sopros com o poder político e ritual na cultura ocidental. Assim parece que as
relações entre arte e ritual, entre arte e poder político, têm um peso na seleção dos
administradores das escolas de música.
A organização social e sócio-musical complexa, e talvez bizantina, das esco-
las de música resulta duma combinação de fatores: a transferência do modelo in-
dustrial das corporações e mercados ao ambiente educacional; o papel da música
na sociedade ocidental, e na norte-americana em particular, mais uma vez se
transferindo ao arcabouço acadêmico; os papéis simbólicos de vários instrumentos,
do canto e da regência, e suas correlações com as funções de vários grupos na so-
ciedade; a hegemonia de grandes conjuntos musicais como metáforas musicais de

46
grandes organizações, de sucesso, nas quais cada integrante cumpre com uma fun-
ção especial; a imposição da taxonomia de raças e gêneros no cenário musical e
educacional; o conceito de talento e o pressuposto da associação dum músico com
outros, vivos ou mortos; o conceito de genialidade, em associação com um panteão
de compositores que não vivem mais; e a inclinação dos músicos da sociedade da
música artística a manipular relações, de maneiras tais que evocam processos polí-
ticos e sociais que não seriam aceitos de imediato em outras áreas da real cultura
norte-americana moderna.

47
3

Um Espaço para Todas as Músicas? confronto e mediação

Um Ponto de Encontro

Centro e Periferia
Música ‘Boa’ e o Resto. As instituições que venho investigando têm o nome oficial
de ‘Escola de Música’ ou ‘Departamento de Música’, mas é evidente que não se de-
dicam ao estudo, e com certeza não à defesa de qualquer música. São elas, está
claro desde o início, escolas de música artística ocidental, mas o etnomusicólogo
alienígena visitante deverá se surpreender ao se dar conta de que, quando se che-
ga a incluir outras músicas, tal só acontece sob certas contingências. Mesmo os vá-
rios tipos de música ocidental podem não tomar parte nela sob as mesmas condi-
ções. Na verdade, a escola funciona, de várias maneiras, quase que como uma ins-
tituição para a supressão de certas músicas. A sua biblioteca pode evitar a compra
de música popular, e em décadas passadas os decanos de música proibiam aos
alunos que tocassem música popular ou jazz nas suas horas vagas; até hoje, al-
guns professores de canto desencorajam os seus alunos a cantar jazz ou música
não ocidental, porque tal poderia prejudicar as suas vozes.
A seleção dum léxico ou material canônicos próprios para o estudo sempre
foi um tema em debate na educação superior, sobretudo nos últimos anos. Por
muito tempo, foi ambivalente a reação à inclusão da ‘música popular’ no currículo
dos departamentos de história, da arte comercial nos de história da arte, ou mesmo
da cultura das comunidades mestiças nos departamentos de antropologia que se
dedicavam a culturas puras. Diz-se que a qualidade e significação intrínsecas (da
pessoa, do evento, do trabalho) determinam a inclusão. Para os professores de
história, é crucial decidir se far-se-á a história a dos feitos dos grandes vultos, a da
interação de movimentos impessoais, ou a da descrição de mudanças na vida coti-
diana. Mas na seleção dos cânones, há uma diferença qualitativa para com estas
outras disciplinas. Ao criticar um aluno por ler sobre um decênio numa aldeia dos
Bálcãs ao invés das batalhas de Napoleão, um professor de história poderia dizer
que ele está a perder seu tempo. Mas alguns professores de história da música
acusariam os alunos que ouvem Elvis Presley não só de desperdiçar o tempo que
deveriam dedicar a Brahms, mas também de se contaminar. No seu julgamento so-
bre as correlações entre as músicas na sua comunidade, a escola de música se pre-
ocupa muito com a noção de contaminação. Pelo menos até o fim dos anos 1980,
parte do esforço da escola de música doméstica se destinava a proteger os alunos
da música ruim, e a promulgar o que costuma se rotular como música ‘séria’ (ou o
que se chama seriamente de ‘música boa’) ou, de maneira não tão espirituosa, de
música ‘de verdade’1.

48
Pode-se por certo dizer que, para cada tipo de música — clássica, jazz, indi-
ana, africana — há tanto da boa quanto da ruim. Às vezes acontece de ouvirmos
afirmações auto-suficientes, de atribuição apócrifa a vários compositores, de que só
há dois tipos de música, a boa e a ruim. Mas o fato de que algumas estações de rá-
dio que se especializam em música artística ocidental chamam a si mesmas de “rá-
dios de música boa” demonstra as atitudes genéricas do establishment clássico. A
hierarquia das músicas e a evitação de contaminação da boa música e dos seus
executantes pelas outras — por evitação, ou pelo que se poderia chamar de rituais
de purificação — constituem aspectos importantes da vida da escola de música.
Dois tipos de ritual de purificação vêm à mente: (1) a performance de músi-
ca em — espera-se — concordância perfeita com as ‘intenções’ do compositor, em
instrumentos autênticos e com uma prática performática legítima; e (2) a perfor-
mance de todas as obras dum compositor ou das obras dum compositor para uma
formação particular, tal como, por exemplo, uma série de concertos apresentando
todos os quartetos de cordas de Beethoven, todos os mais de seiscentos Lieder de
Schubert (algo que uma Universidade Doméstica fez ao longo dum período de seis
anos), ou todas as obras de Mozart em uma estação.
Pode-se configurar um cânone de diversas maneiras. No sistema da educa-
ção musical, pode ele consistir num número limitado de obras, ou em todas as
obras dum grupo de compositores ao qual se presta loas, ou mesmo num grupo es-
pecífico de gêneros ou estilos. As fronteiras podem ser claras ou tênues, estritas ou
amplas. Mas no Departamento de Música as pessoas falam de obras, não de inter-
pretações, de compositores, não de intérpretes2. As diversas iniciativas em direção
ao estabelecimento de cânones na música artística ocidental giram em torno da
obra musical como unidade fundamental.

Círculos Concêntricos. Uma maneira de compreender a taxonomia e o valor relativo


das músicas no Departamento de Música é através do uso do conceito de círculos
concêntricos (com o cânone ao centro). Esta estrutura descreve tanto a relação
entre os repertórios quanto um aspecto importante da organização social da escola.
O centro é a música clássica ocidental (quase que exclusivamente a música
européia), composta mais ou menos entre 1720 e 1930. Não há um único termo
aceito a representar este setor da música artística, mas a comunidade musical
costuma usar música da prática comum ou música padrão. É o que a escola de mú-
sica considera como sendo a música por excelência, conforme o sugere a maneira
pela qual a biblioteca a trata na organização dos títulos por assunto, ou o faz a ins-
tituição, em seus programas e horários curriculares.
Torna-se necessário designações especiais fora do repertório central, pois há
cursos de ‘jazz’, ‘música folclórica’, ‘música popular’ e ‘música étnica’. No âmbito da
música artística, emprega-se os termos música antiga e música contemporânea
para separar a música ‘normal’ das demais. Está implícito que ‘música normal’
(mesmo na América do Norte) significa música européia, ao passo que outros tipos
de música, tanto na faculdade quanto nos catálogos das bibliotecas, ganham rótu-
los conforme a nação ou região: “música norte-americana”, “música — Índia”, e
“índios da América do Norte — música”, por exemplo. Há também um grupo espe-
cial cujo estilo se situa na esfera da música ‘de verdade’, mas se a tem como algo
um tanto fora do seu escopo: música de mulheres (de compositoras, mas talvez
também aquela atinente a funções que se associam à mulher), música norte-
americana, música artística latino-americana, e música para percussão. Estas po-
dem ser periféricas, pois seus repertórios incluem algum material em estilos que

49
não o central. Em ocasiões sociais, estas músicas requerem atenção especial, e a
sua existência suscita às vezes um pouco de humor.
[...]
A organização social da escola de música se associa de diversas maneiras à
coexistência e correlação entre diversos estilos e repertórios musicais nestas insti-
tuições. Os grupos sociais se relacionam aos repertórios: as associações pessoais
dum professor ou aluno à escola são determinações parciais do repertório musical
com o qual ele ou ela se identificam. Os executantes e as platéias lidam com clas-
ses, tipos e gêneros de músicas como se fossem uma sociedade que refletisse a so-
ciedade dos humanos (capítulo 4). As músicas (e as sub-músicas, conforme o caso)
se associam com respeito a valores musicais — complexidade, relação ao repertório
central, e inovação — bem como a nacionalidade e classe social. É instrutivo pensar
as escolas de música das grandes universidades norte-americanas como locais onde
muitas músicas convergem e se confrontam, tal como fazem, em maior escala, as
culturas. A música que mais se estuda se encontra claramente no fulcro da forma-
ção, teoria, e do panorama musicais, circundando-a o resto da música artística e,
mais para além, na periferia, a maioria da música não ocidental e popular. Entre-
tanto é justo encarar as escolas de música como organizações polimusicais por ex-
celência, nas quais muitas músicas se encontram e interagem, mantendo muito
mais contato que em outras arenas culturais nos Estados Unidos Doméstico e, nes-
se aspecto, que em outras partes do país e na Europa.

Um Pouco de História Recente. A polimusicalidade nem sempre foi a regra; o mun-


do das músicas nas escolas de música de 1950 era substancialmente diferente e
terminantemente unimusical. Não obstante o fato de muitas escolas não serem tão
menores do que hoje são, professores e alunos se dedicavam quase que o tempo
todo ao estudo e à propagação da música clássica por excelência. Havia, claro, al-
gum interesse pela música ‘nova’, colocando compositores tais como Schoenberg,
Bartók, Hindemith e Copland na crista da onda, mas a tendência era encarar essa
música recente não como uma linguagem distinta, nova, mas integrá-la ao arca-
bouço musical e sociocultural clássico, incorporando-a ao arcabouço e ao repertório
canônico da performance. Assim, às vezes se executava obras de Bartók, Stra-
vinsky e Webern em concertos junto com música mais antiga. (É interessante com-
parar os concertos exclusivos de música nova que organizações tais como a Socie-
dade Americana de Música Contemporânea patrocinava, para o público mundial de
música, em cidades como Nova Iorque.) Em torno de 1950, a idéia nas escolas de
música domésticas era não definir uma categoria de música nova em separado,
para uma linguagem musical recentemente definida, mas expandir o âmbito da no-
ção do clássico por excelência.
[...]

O Mundo das Músicas, Bimusicalidade e Polimusicalidade. Os musicólogos (incluindo


os etnomusicólogos) têm visto o mundo musical típico como um conjunto de de-
terminadas músicas, cada qual com uma estrutura, proveniência e relação com a
sociedade, quase que tais como as da língua. A sociedade é, afinal, um grupo de
pessoas com um cultura distinta, normalmente com uma língua também, o tipo de
unidade que o senso comum chama de ‘grupo étnico’ ou ‘nacionalidade’. O pressu-
posto básico que orienta a etnomusicologia é que cada sociedade tem uma música,
ou pelo menos uma música principal, que consiste num conjunto de regras e princí-
pios que regem as idéias a respeito da música, do comportamento e do som musi-
cais, e que compreende um repertório com um certo grau de coerência e uma hie-

50
rarquia de fenômenos centrais e periféricos. Há música italiana, música chinesa,
música arapaho e música ewe. Esta congruência entre sociedade e música com
certeza acarreta uma simplificação exagerada, passível de crítica imediata sob di-
versos aspectos, mas é um ponto de partida. Na esteira de Slobin, é importante
que se admita que a afiliação a culturas musicais individuais vem se tornando mais
uma questão de interesse e competência que de identidade étnica5. Entretanto as
músicas individuais, ainda que não se correspondam a sociedades e subculturas, se
mantêm como unidades distintas na taxonomia da vida acadêmica norte-
americana.
[...]
Um homem blackfoot que conheci sustentava ter dois tipos de música cen-
trais em sua vida — o repertório do powwow intertribal das culturas dos índios das
pradarias, e a música country e western que tocava numa pequena banda num bar.
Estava ele também a tentar aprender, ainda que aos poucos, alguma música mais
antiga e explicitamente blackfoot. Tocava trompete na banda da escola média e
aprendia o repertório típico de tais instituições (marchas e alguma música de con-
certo para banda), freqüenta uma igreja metodista e sabe cantar vários hinos de
cor, e — sendo uma pessoa um tanto curiosa — havia visto duas produções de
ópera ou comédia musical numa faculdade vizinha. Tal estrutura, com um centro
dual, tem características em comum com o formato do círculo concêntrico, e cos-
tuma ocorrer entre os integrantes das minorias norte-americanas.
Este tipo de personagem musical vem se tornando cada vez mais a norma
nas culturas pelo mundo. Slobin sugere que a cultura musical no ocidente consiste,
ao menos na segunda metade do século vinte, numa série daquilo que chama de
“micromúsicas”, unidades interativas algo equivalentes às ‘músicas’ deste capítulo,
e às músicas que Finnegan identifica como coexistentes numa comunidade peque-
na, relativamente homogênea6. Em cada análise, o indivíduo típico é multimusical.
Se um dia já houve em que o indivíduo típico da maioria das sociedades tinha aces-
so a um tipo de música apenas, a música da cultura homogênea, a situação atual é
virtualmente o oposto. Mas se hoje as pessoas costumam ser polimusicais, as ins-
tituições e os contextos de performance musical do qual participam podem ser
tanto unimusicais quanto polimusicais. Os seguintes exemplos são todos de institui-
ções que são sobretudo unimusicais: o powpow dos blackfoot; o Metropolitan Opera
House; a Primeira Igreja Luterana; o grupo de oito ou dez homens de classe média
no norte de Teerã que se dedicam à música clássica persa; Sastri Hall, o lar dos
concertos carnáticos, no distrito Mylapore de Madras; o bar Rose Bowl de Urbana,
Illinois (o lar da música country nos anos 1950); a estação de rádio típica de jazz,
heavy-metal, rock dos anos 1960, rap, música de igreja ou música clássica; e
mesmo, supostamente, a aula de violino ou o ensaio da organização das big bands
de jazz. (Jamais ouvi falar de professores de música clássica para violino, incluindo
a música para violino country e western, jazz, ou carnático, manipulando seus pla-
nos de aula).

Mediadores
Se as organizações e instituições musicais existem tipicamente para a pro-
pagação duma música, há também aquelas cuja função, e talvez cujo objetivo, é
realizar a mediação entre as músicas. Nas histórias da música de algumas socieda-
des, tais unidades — concertos, gravações e escolas de música — parecem ter
crescido pouco a pouco em significância.

51
Concertos. Pouco a pouco, o concerto público europeu (e, sem dúvida, com exce-
ções, desvios e retrocessos) transitou da apresentação de música num estilo, ou
dum compositor, para algo que pedia diversidade e síntese. Muitos concertos em
cidades da Europa Ocidental, em torno de 1820, consistiam em música do presente
e do passado imediato (e.g., um concerto de diversas obras de Beethoven7). Hoje,
representativos concertos de orquestra incluem música dum gradiente de duzentos
anos, e muitos concertos corais apresentam material desde o princípio do século
dezessete até fins do vinte. Mesmo assim, esses concertos não são mediadores en-
tre músicas num sentido amplo; eles ainda compreendem apenas música artística
central. Podem eles, contudo, apresentar uma combinação de materiais que, um
dia, foram vistos como incompatíveis.
A introdução do concerto público ao estilo ocidental em outras sociedade
teve, de maneira mais enfática, um efeito semelhante. Os concertos de música car-
nática que acontecem em Madras nas tardes e noites da ‘estação musical’, em de-
zembro e início de janeiro, consistem em canções e improvisações em tudo que é
tipo de raga, sendo, alguns destes, ragas tradicionais de inverno ou verão, ou ragas
da manhã ou da tarde, todos na mesma época e estação e justapostos de novas
maneiras. Ou ainda, uma performance persa tradicional, que costuma acontecer
mais em espaços privados, consistiria numa longa exposição dum único dastgah
(modo), mas apresentações modernas em público, em salas de concerto, à noite,
com programas impressos e intervalos, ofereceriam pequenas performances de
quatro ou cinco dastgahs. Ou, indo mais fundo na síntese e combinação, um con-
certo do Teatro de Dança Indígena Norte-Americano combina vários tipos de músi-
ca e dança indígenas — material de diversas áreas culturais, de diversas épocas, e
com vários graus de fantasia e ocidentalização. Em si, o concerto pode ser visto
como uma instituição de mediação entre culturas musicais. Não obstante, nas es-
colas de música domésticas, os concertos mantêm uma distinção entre as músicas,
ao invés de propor uma síntese.

Gravações. A existência e pronta disponibilidade de gravações vêm ampliando a


experiência musical de muitos milhões de indivíduos, transformando lares privados
em espaços para o encontro de culturas musicais. Porém, na realidade, as lojas de
discos são ambientes de mediação mais óbvios na América do Norte, assim como
em cidades indianas, e mesmo nas reservas indígenas norte-americanas. A loja de
discos típica vende música de diversos gêneros. Numa loja de discos em Teerã, por
volta de 1970, encontrar-se-ia (em seções distintas) música popular iraniana; mú-
sica popular ocidental; alguma (é certo, pouca) música da Índia, do Afeganistão, e
de nações árabes; alguma música clássica persa; sermões islâmicos e leituras al-
corânicas; e música clássica ocidental. Em Madras, uma cidade na qual os patroci-
nadores da música ao vivo concentravam na música carnática e nalguma música de
cinema que se tocava em casas noturnas, certas lojas de discos teriam também
música hindustani, uma grande quantidade de música de cinema em várias línguas
e de vários lugares da Índia, e uma pequena quantidade de música de fora da Ín-
dia8.
As lojas de discos norte-americanas têm seções distintas: rock, pop, soul,
rhythm and blues, country, folclórica, clássica e ‘internacional’. Nas reservas indí-
genas, as lojas que vendem discos — normalmente aquelas que também vendem
outros tipos de artigos especificamente indígenas — oferecem gravações musicais
de diversos povos indígenas, em vários estilos e com níveis variáveis de moderni-
zação, e música em estilos totalmente ocidentais. na interpretação de índios. Pare-
ce não haver bibliografia sobre as maneiras pelas quais os clientes das lojas de dis-
cos interagem nas lojas, e em que medida há estímulo para que eles permitam que

52
diferentes músicas se encontrem na sua experiência, mas pelo menos essas lojas
oferecem oportunidades para que as culturas musicais se encontrem9.

Por Fim, as Escolas de Música. Há outras instituições mediadoras: certos filmes e


tradições de música para cinema (por exemplo, o repertório para cinema em múlti-
plos estilos da indústria cinematográfica indiana), estações de rádio (mas não as
estações de rádio típicas norte-americanas, que se especializam num repertório es-
pecífico), bibliotecas, festivais, e espaços centrais tais como certas áreas urbanas
ou, mais recentemente, os centros de artes da performance10. Um escola de música
da Universidade Doméstica, no período entre 1980 e 1990, também estava entre as
instituições que mediavam entre diversas músicas, ao abrigar vários gêneros dife-
rentes no âmbito de suas atividades; ao apresentá-las numa taxonomia e possibi-
litar que elas interagissem; e, por fim, ao oferecer papéis e funções a elas e aos
seus adeptos para apresentá-las numa hierarquia e sugerir maneiras pelas quais as
mais altas pudessem se servir das demais.

Uma Taxonomia de Concertos


Ao tentar justificar a descrição da escola de música como uma instituição
cujos habitantes a pensam como um território para músicas diversas, estabelecen-
do fronteiras entre estas, o etnomusicólogo marciano há de perguntar se a taxo-
nomia algo vaga e ampla, com base em questões de estilo e som, comuns à termi-
nologia dos cidadãos da escola, se reflete alhures. Um tipo de resposta provém do
exame de aspectos do concerto que não têm nada a ver com o som musical, tais
como as vestes dos intérpretes e as interações entre estes e destes com a platéia.
Mencionei o tema da vestimenta dantes, dizendo que “o hábito faz o músico”, mas
posso extrapolar mais a partir de padrões típicos de comportamento.

O Centro. Na música clássica de 1720 a 1920, ou um pouco após (o já dito reper-


tório ‘clássico central’, o qual o interpretam homens envergando smokings, e mu-
lheres em vestes de gala modestamente formais), os músicos interagem de acordo
com a prescrição dum ritual formal, ou não interagem de todo11. Por exemplo, ao
subir num palco, o regente (normalmente vestido de maneira algo diversa, de
modo a mostrar que ele(a) é duma classe diferente) aperta a mão do spalla e pede
à orquestra que se levante para agradecer os aplausos. A interação com a platéia é
semelhantemente formal. Os músicos não falam à platéia exceto talvez para anun-
ciar o bis, e mesmo isto pode ser feito com algum embaraço visível. Ao invés, a in-
teração se dá através de aplausos e mesuras, no máximo chegando até gritos de
“bravo!” e oferecimentos de flores no palco. As vestes da platéia são relativamente
formais; vê-se muitos homens de ternos, e alguns poucos sem gravata. Há um
grau de correlação entre a formalidade das vestes da platéia, o preço dos ingressos
e o tamanho da produção. Assim, as vestes mais formais se encontram em platéias
de ópera, às quais se segue as da orquestra sinfônica, de música de câmara e, por
fim, dos recitais de piano solo.

Música Nova. O conjunto dum concerto de música nova, que na maioria das vezes
se distingue por seu estilo experimental, procura não aparecer em perfeita unifor-
midade e portanto se veste informalmente, freqüentemente com calças largas e
camisas de gola rulê, tanto com como sem paletó. A relação entre músicos e platéia
costuma ser tão formal quanto nas performances da música clássica central, ainda
que algumas das peças admitam ou mesmo requeiram informalidade e proximida-
de, ou mesmo a participação da platéia. Em contraste com a música central, as

53
partituras de música nova às vezes trazem instruções neste sentido, cuidando, de
outras maneiras, de aspectos não sônicos da música, tais como a medição do piano
com uma fita métrica, por parte do solista, no “Concerto para Piano” de John Cage.
As platéias de concertos de música nova se vestem informal, mas não ordi-
nariamente; na verdade, muitas pessoas se vestem tal como os músicos, e ainda
que haja muita variedade, esta similaridade pode manifestar o desejo da platéia de
se identificar com os músicos, exprimindo solidariedade com o que se considera, às
vezes, como um setor do mundo musical que é vítima de opressão e negligência.
Aliás, os compositores, intérpretes e ouvintes dos concertos de música nova são,
em maior grau que noutros gêneros, os mesmos. Mesmo quanto tal não ocorre, a
impressão de unidade entre intérpretes e audiência em concertos de música nova é
notável e comparável à dos concertos étnicos.

Jazz na Universidade. Ainda que o tipo de jazz que se toca na universidade não
corresponda de fato aos gêneros importantes de jazz que se ouve no mundo musi-
cal real, o jazz é visto como uma categoria distinta. Na escola de música, é raro
que se ouça performances em solo ou pequenos conjuntos; normalmente, é o jazz
das big-bands. A ambivalência acerca do lugar do jazz dentro da taxonomia da mú-
sica se reflete numa certa ambivalência nos códigos de vestimenta. Os músicos po-
dem se vestir com uniformidade, ainda que costumem envergar vestes tais como
calças que não combinam e paletós esportivos ou blazers. Mas às vezes se apre-
sentam em smokings ou ternos formais. Em geral, as performances são formais, e
as roupas e o comportamento dos músicos têm características em comum com os
de seus colegas que vestem smokings. Contudo, o líder ou regente se dirige à pla-
téia, anunciando as peças (não há programa impresso), retratando algo do con-
texto de músicos e obras individuais, relatando turnês recentes e vindouras do gru-
po, e mesmo fazendo algumas brincadeiras. Depois da peça, o líder chama os so-
listas pelos nomes, que se levantam ou vão adiante para fazer mesuras. Durante a
peça, os solistas podem sair dos seus lugares e andar defronte ao conjunto, se
voltando para a platéia enquanto tocam. A platéia se veste com informalidade, e as
crianças vão mais a concertos de jazz do que a eventos da música central ou da
nova. Muitos homens de suéter poderiam ser vistos usando ternos no concerto
sinfônico da noite anterior.

Eventos Étnicos. Há uma categoria para a qual usarei o termo concertos étnicos,
alguns dos quais os realizam os integrantes da escola, e outros o fazem pessoas
que se traz para educar e entreter. Aqui se incluem eventos tais como recitais de
canções folclóricas, performances duma orquestra folclórica russa residente, com a
participação de americanos, um coro de afro-americanos (e outros mais) de nome
“Coro Negro”, e um coral visitante de cantores gospel. No que toca os concertos
étnicos, o que há de único é uma real, ou pelo menos pretensa, identificação dos
músicos e de sua música com a platéia, não só no aspecto musical, como também
em aspectos social e cultural. O pré-requisito básico é que o concerto étnico se di-
rija a uma platéia particular, composta por integrantes dum grupo étnico ou racial
ou dum movimento social ou político, ao menos de modo que assim o percebam
muitos participantes e forasteiros, para os quais esta associação se torna a princi-
pal causa da abstinência destes.
Tipicamente, as roupas dos músicos são de algum modo simbólicas do grupo
étnico em questão. São comuns as vestes tradicionais do folclore rural, mas tam-
bém se pode vestir roupas contemporâneas, túnicas corais em cores brilhantes, ou
camisetas com padrões uniformes. O líder do grupo costuma se dirigir à platéia

54
antes da performance e nos intervalos entre as peças, usando um tom que pressu-
põe que os músicos e a platéia constituem um grupo exclusivo, sendo o evento
uma conspiração contra a ordem estabelecida. Os comentários não costumam ser
explicações sobre a música, a apresentar as pessoas, a mergulhar (normalmente
por implicação) em suas vidas e atitudes pessoais, o que talvez implique anedotas,
e podem ser levemente depreciativos — com uma piscadela — da música que se
está a interpretar. Há expressões e brincadeiras ‘internas’, que se tem por compre-
ensíveis apenas para um público étnico. No geral, em contraste com o concerto
clássico predominante, que mantém uma distância entre intérpretes e audiência, as
pessoas que vão a concertos étnicos parecem se sentir conformes a um grupo mais
homogêneo. A vestimenta informal da platéia é característica — jeans, jaquetas de
couro, sem gravatas, ou às vezes, por contraste, vestes explicitamente formais.

O Recanto Exótico. Os concertos de música não ocidental, sobretudo os de grupos


de estudantes tais como o gamelão, os de docentes locais como o professor de si-
tar, ou de grupos visitantes tais como um conjunto clássico japonês, têm caracte-
rísticas em comum tanto com os concertos étnicos, quanto com os clássicos12. As
platéias incluem muitas pessoas da nacionalidade cuja música se está a executar, e
para estas, se trata mesmo dum evento étnico. Para as demais pessoas na platéia,
tais concertos costumam ser experiências mais educacionais do que estéticas.
[...]

Música Antiga. A música antiga — medieval, renascentista, e do alto barroco —


ocorre em concertos especiais, com conjuntos que se chama genericamente de co-
llegia musica. O corpus dessa música costuma se manter à parte do repertório clás-
sico central. Instrumentos especiais (ainda que este repertório antigo se o possa
realizar com instrumentos comuns), vestes especiais que se costumam basear na
vestimenta da Inglaterra elisabetana, e tentativas parciais de transformar estes
eventos em eventos educativos, associam os concertos de música antiga àqueles
da música não ocidental. Os dois gêneros têm também em comum padrões de au-
diência, e relações entre intérpretes e platéia.
Um tipo de evento musical que se tornou comum em faculdades e universi-
dades, bem como em escolas secundárias nos anos 1960 e 1970, e ainda ocorria
eventualmente durante os anos 1980, é o jantar madrigal. Ocorrendo antes do
Natal, é um mero jantar formal (para o qual se compra ingressos), após o qual um
grupo coral, envergando vestes elisabetanas, canta música vocal dos séculos de-
zesseis e princípios do dezessete, sobremaneira secular e predominantemente do
repertório da dita escola inglesa de madrigais, em torno de 1580–1640. Às vezes os
músicos servem também o jantar. Não costuma prevalecer muito o espírito natali-
no, mas de certa maneira o conceito de música antiga se aproximou do de Natal, e
do duma refeição festiva onde, com certeza, há uma ênfase na carne vermelha.

Os Intocáveis. Os tipos de performances musicais que se descreveu até agora dão


conta da maioria dos concertos no Departamento de Música, mas a vida musical na
universidade abrangente e na comunidade local inclui também outros tipos de mú-
sica e contextos sociais. Primeiramente, são estes o rock e os gêneros correlatos, e
a música country e western que se realiza em bares e casas noturnas. Aqui, tam-
bém, os músicos vestem roupas tradicionais, ainda que estas não sejam previsí-
veis. O aspecto principal dos grupos de rock é que não há dois participantes a se
vestirem igual, e algumas roupas podem ser descritas como sobremaneira excêntri-
cas. Os intérpretes de música country podem usar roupas rurais ou de trabalho or-

55
dinárias, ou às vezes indumentárias espetaculares que se associam àquelas; em
todo caso, não usam ternos completos, smokings, roupas estilosas ou camisetas
em farrapos, mas antes uma indumentária que de alguma maneira simboliza a mé-
dia da classe média, o grupo que os jornais descreviam, durante os anos 1970,
como os “Estados Unidos médio”.
No Departamento de Música, contudo, os conjuntos de rock e música coun-
try aparecem ‘uma vez na vida, outra na morte’13. Quando aparecem, é logo possí-
vel associá-los, a partir do comportamento dos músicos e da relação de platéia /
intérprete com algumas das músicas que se mencionou acima — os concertos de
música nova no caso do rock, e a concertos étnicos no caso do country e do wes-
tern. Mas raramente se dá a ocasião. É mais comum que os professores da escola
de música prefiram que seus alunos evitem o contato com essas músicas, por medo
que se contaminem irremediavelmente. A similaridade entre a estrutura de círculos
concêntricos (na qual as músicas se relacionam entre si no Departamento de Músi-
ca) e um sistema colonial é sugestiva. As músicas de fora do repertório central po-
dem entrar no sacro recinto pela porta dos fundos: pelas aulas de musicologia. Elas
podem ser aceitas (enquanto performance) conquanto se portem tal como o re-
pertório central (com apresentações em concertos, segundo a estrutura tradicional)
mas mantendo-se distintas (sem sitar ou música eletrônica no concerto orquestral
ou no quarteto de cordas). É difícil evitar a comparação com o colonialista que es-
pera que o nativo colonizado se comporte tal como ele (se converta ao cristianismo
e desista de ter duas mulheres) mas que se mantenha ao mesmo tempo à distância
(evite a miscigenação com a população colonialista)14.

Trazendo o Passado para o Presente

As Músicas da História
Cada Sociedade Tem a Sua História Musical Própria. Refletimos a respeito duma vi-
são do mundo como um grupo de músicas distintas, uma visão que em parte se ba-
seia numa concepção ocidental de sociedade que era mais evidente antigamente
que no fim do século vinte. Nessa visão, a combinação ou mistura de grupos étni-
cos ou culturais deveria ser administrada com cura para evitar a contaminação. A
concepção da música do mundo como músicas também se baseia, contudo, na per-
cepção ocidental da música artística como um repertório cujos componentes se dis-
tinguem principalmente através das suas épocas de origem. De diversas maneiras,
muito do esforço da escola de música se destina a trazer o pretérito ao presente.
A história não é jamais ‘o que aconteceu’, sem mais; sempre se a interpreta
de maneiras que são determinações, e a sustentação, de valores e princípios fun-
damentais da cultura15. Mesmo em sociedades que possuem poucas informações
concretas sobre o seu próprio passado musical, há ainda idéias e crenças sobre o
que ocorreu com base em mitos, folclore e tradição oral; há também algumas idéi-
as de como a história da música ‘funciona’, sobre os seus mecanismos de mudança
e continuidade16. Ao mesmo tempo, as sociedades que possuem informações factu-
ais em minuciosos registros escritos podem, não obstante, ignorá-los em prol de
interpretações da história que se baseiem em valores míticos, sociais ou políticos.
Cada sociedade tem a sua própria história em pelo menos dois sentidos, porquanto
cada história da música é uma invenção parcial dos historiadores da música17.

56
Aprender algo sobre a maneira como a sociedade interpreta a sua história —
havendo ou não disponibilidade de dados concretos — é crucial para a empreitada
etnomusicológica. Por exemplo, ainda que os blackfoot mal enunciem uma teoria
específica sobre o assunto, este povo parecia encarar a história da sua música, nos
anos 1960 e 1970, como uma sucessão de três períodos principais, que se correla-
cionavam com três modos diversos de compor música: (1) um período pré-
histórico, em que o mundo era em parte habitado por personagens míticas que
trouxeram ao mundo as primeiras canções; (2) a cultura blackfoot antes da vinda
dos brancos, quando se criava música sobretudo através de sonhos, nos quais se-
res sobrenaturais ensinavam as canções aos humanos; e (3) a época a partir o iní-
cio da ocidentalização, quando indivíduos conscientes compunham a maioria das
canções indígenas. Esta periodização implicava considerações de estilo musical e
métodos composicionais, mas não as vidas de cantores, compositores ou canções
individuais18.
[...]
Em muitas culturas, parece ser importante para as pessoas a ênfase na an-
tiguidade de sua música; que ela seja, num certo senso, uma pura expressão da
cultura; que ela seja distinta da música de outras sociedades; e, em muitos casos,
que ela seja de qualidade superior, ou pelo menos que ela supere a música oci-
dental em alguns quesitos específicos. Talvez em nenhum lugar este caráter espe-
cial da música duma cultura se releva mais que entre músicos e suas audiências na
Europa e, dentro desse contexto, talvez em nenhum lugar mais que no mundo da
música européia clássica ou artística.

Períodos e Eras. A princípio, a reação típica da sociedade do Departamento de Mú-


sica a uma peça musical é a identificação do seu período de composição. Os estu-
dantes de música aprendem sobre dos períodos da história da música nos primeiros
estágios dos seus cursos de música. A periodização da história da música é um dos
temas centrais da musicologia, promulgando-se vários esquemas de períodos, mas
o plano de seis períodos (medieval, renascentista, barroco, clássico, romântico e
século vinte) é o que tem maior aceitação nos cursos e manuais didáticos norte-
americanos19.
Ainda que qualquer ensino de história torne necessário a subdivisão dum
contínuo, a abordagem dos professores de música norte-americanos merece um
comentário. É uma abordagem que se preocupa muito com os limites, e vê os perí-
odos como músicas que se pode separar, tal como os etnomusicólogos vêem o
mundo da música como composto por compartimentos musicais. Como prova, cito
não apenas a organização habitual dos manuais e cursos, mas também os requisi-
tos de graduações em performance nos seus recitais; por exemplo, costuma-se so-
licitar a interpretação de música, digamos, dos períodos clássico, romântico e con-
temporâneo. E assim como os etnomusicólogos se acostumaram a procurar ofere-
cer um panorama de ‘uma’ música, ao esboçar as suas características mais estáveis
e regulares, os historiadores da música vêm, tipicamente, se preocupando com os
fundamentos dos períodos, perguntando, por exemplo, o que faz da música barroca
aquilo que ela é, ou qual é a espécie mais típica de romantismo, ou se o renasci-
mento se fundamenta em Josquin ou em Palestrina. Não têm tido eles o hábito de
se preocupar com as transições — escola de Mannheim, Weber, Debussy, Satie,
Ives. Existe, ao menos no ensino de história da música nas escolas de música, uma
ênfase maior na estabilidade que na mudança e na regularidade das direções, uma
vez que se as define. Quando se testa estudantes americanos com gravações, pa-
recem estar eles mais aptos a identificar os estilos de Mozart, J. S. Bach e Brahms

57
que obras de C. P. E. Bach, quartetos tardios de Beethoven, o Stravinsky jovem ou
Gesualdo, e tendem eles a encarar a história da música como um complexo em
movimento em torno duma oficialidade que se fundamenta em Bach, Beethoven e
Brahms. Se a escola de música é importante como local onde a música de diversas
sociedades pode se encontrar, então é ela também um ponto de encontro para as
músicas que os períodos da história da música ocidental compreendem, oferecendo
uma posição para cada uma, mas encontrando modos de mantê-las distintas.

Reacionários e Radicais. A cultura do Departamento de Música tem uma preocupa-


ção enorme com questões e temas que são, num senso lato, históricas. Alguns lei-
tores podem encarar este tipo de preocupação como uma peculiaridade da alta
cultura ocidental, mas é provável que outras sociedades não sejam diferentes, e
ainda que costumem elas carecer de dados concretos em quantidade, costumam
dar atenção a coisas como se a peça ou o gênero são antigos, se é possível asso-
ciá-los a um herói cultural musical, ou se são sequer parte da cultura de fato20. Mas
a tarefa primordial do Departamento de Música Doméstico parece ser, poder-se-ia
dizer quase, a conexão do presente com o passado, ou com aspectos particulares
do passado.
O panteão dos grandes compositores se constitui todo ele de homens que
morreram há cerca de cem anos ou mais. A maioria das obras musicais que se in-
terpreta ou estuda são composições anteriores ao nascimento dos seus intérpretes.
Em geral, o que se enfatiza mais nas obras e nos estilos musicais, nos compositores
e intérpretes, e mesmo nos instrumentos, é — no sentido mais amplo — a sua ori-
gem, o seu lugar na história. Os compositores, cuja função é a de se opor à domi-
nação da música de antanho, se preocupam em ‘fazer história’, buscando trazer
mudanças ao estilo musical, e em ‘ser originais’. Os intérpretes da música de anta-
nho se preocupam muito em seguir os preceitos da prática da performance preté-
rita, autêntica e ‘original’. Os estudantes de graduação em música cursam um nú-
mero significativo de disciplinas em história da música, mais que, por exemplo, os
seus congêneres nas artes visuais, e os graduandos em todos os campos da música
devem chegar a uma proficiência tal em história da música para passar na admis-
são e se graduar. Parece haver um interesse enorme em história, origens e mudan-
ças; dificilmente se lida com qualquer assunto sem levantar a questão de como tal
veio a ser e o que foi.
Era portanto de se esperar que a noção de ‘história da música’ fosse ben-
quista nas diversas seções do Departamento de Música, conferindo estima e popu-
laridade aos historiadores da música. É certo que não chegam a ser eles os párias
que por vezes acreditam ser, mas a maioria dos alunos e docentes são ambivalen-
tes para com os musicólogos, vendo-os às vezes como ‘cobradores de pré-
requisitos’. Quando se trata duma visão sobre história e mudança, muitos estu-
dantes e professores de música percebem os musicólogos como pertencentes ao
lado conservador ou mesmo reacionário do espectro político-musical, não só colo-
cando ênfase nos fundamentos da música clássica, como também pontificando so-
bre a música antiga (repare que o conjunto de música antiga, o collegium musicum,
costuma estar sob a égide dos musicólogos) e insistindo na performance historica-
mente precisa. Na minha experiência, os musicólogos (com exceções significativas)
têm uma visão conservadora da sociedade do Departamento de Música, tendo ati-
tudes que em geral condizem com o setor conservador da sociedade, e criticam o
estilo e o conteúdo das notas de programa, os erros de ortografia nos cartazes, a
gramática na retórica dos memorandos, a frivolidade dos grafismos e a experi-
mentação composicional.

58
A natureza da musicologia, seu escopo próprio, e sua relação com o resto da
academia musical, se as vêm discutindo amplamente21. Muitos musicólogos enca-
ram a sua cultura contemporânea conforme encaram (ou ao menos gostariam que
seus alunos de graduação encarassem) a história da música, uma cronologia em
que a estabilidade é mais proeminente e mais desejável que a mudança. Mesmo
assim, as ‘bilheterias’ em concertos de música nova costumam revelar uma repre-
sentação relativamente maior de integrantes do corpo docente musicológico.
Na escola de música, os compositores são os principais promulgadores da
mudança, e encaram a mudança e a inovação como as maiores características da
história e do presente. É possível classificá-los em categorias, do reacionário ao ra-
dical, mas todos os compositores vêem a inovação em estilo e conteúdo musicais
como o principal pré-requisito duma carreira composicional de sucesso, se não
duma composição de sucesso. Esta atitude caracteriza o mundo da composição da
música artística como um todo, mas é mais evidente no Departamento de Música,
onde o conceito de música nova se mantém à parte do resto da música. Em geral,
os compositores não costumam freqüentar os concertos da música clássica central,
mas são mais aptos a comparecer quando se apresenta outras músicas — antiga,
não ocidental ou jazz. Alguns sustentam que o conhecimento da música artística
mais antiga não tem utilidade maior para os compositores contemporâneos.

A Peculiaridade da História da Música Ocidental


A escola de música é uma instituição tanto para o estudo quanto para a de-
fesa — a defesa da tradição da música artística ocidental, particularmente a do pe-
ríodo que se costuma estudar, de 1720 a 1920. Não haveria de surpreender que a
sua visão da história da música ocidental e, de fato, da música do mundo deriva
deste propósito. Judith Becker sugere que os músicos ocidentais encaram a sua
música como superior em três aspectos: (1) ela se baseia em princípios naturais, e
forças da natureza a desenvolveram através de estágios que outras músicas do
mundo representam agora, até a sua forma atual, ou melhor dizendo, até a sua
forma no século dezenove europeu, sua condição mais alta de realização; (2) ela é
mais complexa que as outras músicas, e com um tipo de complexidade absoluta-
mente diferente; e (3) ela possui uma significação duma ordem tal que as outras
músicas não têm22. A frase “a música ocidental é simplesmente diferente demais”
[da música do resto do mundo], poderá ser mais famosa do livro sobre musicologia
de Joseph Kerman23. Os professores de apreciação musical às vezes distinguem
entre a música ocidental e as demais músicas, ao afirmar que a ocidental é dinâmi-
ca, ao passo que o resto do mundo musical é estático.
Outras sociedades podem também insistir no caráter único da sua própria
música, mas não costumam sugerir que todas as outras culturas deveriam adotá-la.
Os músicos ocidentais, tais como os políticos ocidentais de antigamente, impõem a
sua música ao resto do mundo. A sociedade ocidental encara a sua cultura como
diferente do resto, não apenas em grau mais em gênero, e o manifesta em sua
atitude com respeito à música. Os ocidentais distinguem a sua música ao insistir
que ela possui uma história distinta, uma história na qual as outras músicas do
mundo desempenham papéis secundários.

Música do Mundo e História da Música. Qual é o papel da música não ocidental na


concepção de história da música do Departamento de Música? A história da música
típica encara a história mundial da música, conforme sugere Becker, como um úni-
co evento. Com base em manuais e estilos pedagógicos, podemos identificar duas
abordagens explicativas:

59
Há um esquema linear segundo o qual se divide a música ocidental em seis
períodos, todos com um valor essencialmente igual, aos quais precedem um estágio
que abrange as músicas antiga, oriental, tribal, e talvez também a folclórica euro-
péia. Ao considerar as músicas do mundo, e aquelas que não existem mais, os ma-
nuais mais antigos e alguns professores de história da música tomam uma pers-
pectiva que é sobretudo histórica. Consideram eles as diferenças entre as músicas
do mundo como um fenômeno histórico, em que todas as culturas passam por es-
tágios semelhantes, em velocidades diferentes. As músicas não ocidentais não atin-
giram ainda, ou apenas começaram a chegar ao estágio da música medieval euro-
péia, e assim se as apresenta com muita brevidade, precedendo considerações so-
bre Pitágoras, Platão e Aristoxeno. Mas os períodos da música ocidental, conforme
os vê o famoso texto de Grout, ou a série Prentice-Hall History of Music, são mais
ou menos iguais em detalhe e abrangência24.
Uma segunda abordagem atribui o mesmo papel à música não ocidental,
mas o estende um tanto à música artística européia mais antiga e à mais recente. A
música passa da tribal e oriental para a música ocidental antiga, e chega ao seu
apogeu na época de Bach, Mozart e Beethoven, após o que se dá um novo declínio.
O período de 1730 a 1830 ganha a maior atenção e o maior espaço, e o que acon-
teceu após Beethoven é visto, ao fim e ao cabo, como uma resposta ao desafio de
Beethoven.
[...]
Em outros textos, a música artística do século vinte vem começando a ocu-
par proporções substanciais de espaço, e a música ocidental não canônica e a de
outras culturas vêm aos poucos recebendo um tratamento ligeiramente mais exten-
so e, no geral, mais digno25. Muitos dos historiadores de música mais influentes
viram uma linha central da história indo de Bach a Beethoven, a Brahms e Bru-
ckner, talvez a Wagner e mesmo a Schoenberg, com todo o resto seguindo essa li-
nha, a diferentes distâncias26. O princípio do círculo concêntrico está em operação,
na medida em que a periferia começou na Espanha, Inglaterra, Escandinávia e
Hungria, e passou para os gêneros rurais e demais continentes.

Unindo os Opostos. Um aspecto importante da visão do Departamento de Música


sobre a sua própria música implica a necessidade de unir os opostos: os valores do
antigo e da mudança, de pólos opostos, e o das origens.
Os valores contrastantes do antigo e da mudança são paradigmáticos na vi-
são da sociedade ocidental sobre a música artística. É uma visão que há muito
tempo está em vigor. No mundo da música artística européia, parece provável que
a consciência histórica não desempenhasse um papel preponderante até a renas-
cença, com o desejo desta de retorno aos ideais da antigüidade clássica. Mas antes
disso, a distinção que se fez entre ars antiqua e ars nova no princípio do século
quatorze, e a insistência de que algo novo estava a tomar forma por volta de 1600
sugerem que o contraste entre o novo e o velho — e uma visão dinâmica da histó-
ria — desempenharam um papel fundamental.
Entre os séculos dezoito e dezenove, se firmara a noção de progresso e o
desejo dos compositores de permanecerem à frente de suas platéias e dos compe-
tidores. Nesse instante, a música, para ser viva, precisa sempre estar (ou declarar-
se estar) em transformação. Mas a possibilidade de atrelar-se ao velho, ao passo
em que se constrói adiante, aumentou na medida em que os métodos de transmis-
são foram se consolidando — primeiro através do exclusivamente auditivo e da
notação manuscrita com pouca padronização, depois com níveis maiores de con-
senso e na impressão, e finalmente na gravação e sintetização.

60
No século vinte, uma força motora maior era o desejo de ver a música se
expandir. Disto resulta um paradoxo. Por um lado, ocorre a crença de que os com-
positores devem sempre fazer algo que seja novo, não apenas em essência mas
também em gênero. As peças devem não apenas ser novas em seu conteúdo espe-
cífico (temas, seqüências harmônicas, ou séries tonais), mas devem mostrar tam-
bém o compositor como inovador em concepção composicional, método e técnica.
Cada obra deve ser uma peça nova, num estilo estabelecido de composição; o es-
tilo deve ser, de algum modo, novo. Bom, isso é uma visão da história tal como os
compositores contemporâneos de música nova a concebem. Por outro lado, o po-
pulário amante da música artística, e mesmo alguns compositores que estão sem-
pre a inovar, encaram a melhor música como sendo aquela que se criou no passa-
do. Mesmo experimentadores dos anos 1980 afirmavam a mim que os maiores
compositores viveram há um ou dois séculos, e que, destes, os mais recentes vie-
ram a ingressar no círculo dos mais respeitáveis bem após as suas mortes. Afinal
de contas, Wagner e Brahms, hoje entre os grandes, eram vistos com desdém por
um grande segmento de amantes da música norte-americanos nos anos 1930; nos
anos 1950, era Mahler. O mundo da música artística tem uma visão dicotômica do
valor da história e da mudança: é essencial que se inove, mas desde o tempo de
Mozart e Beethoven (ou, entre alguns radicais, de Wagner ou mesmo Schoenberg),
não vem havendo melhorias na música.
Na escola primária, ou no primeiro mês de aulas de piano, os alunos apren-
dem a primeira grande díade da música ocidental, o maior e o menor, seja tonali-
dade, acorde ou intervalo. A tendência a se pensar dualisticamente continua a de-
sempenhar um papel fundamental na percepção da música, e portanto se vê as-
pectos da história em termos de contrastes, dicotomias e pares. As formas mais in-
fluentes — a sonata–alegro, a forma canção tripartite, e o rondó — todas primam
por apresentar contrastes e oposições; o concerto, como evolução da antífona. A
tendência é apresentar o mundo da música como pares de unidades contrastantes
(e pares de compositores, para a memorização): sacro / secular, vocal / instru-
mental, música de programa / música absoluta (Wagner / Brahms), sobrenatural /
humano (Mozart / Beethoven), local / universal (Bach / Handel), e Schoenberg e
Stravinsky (ruptura radical com o passado vs. evolução gradual a partir deste). Tais
caracterizações costumam ser historicamente incorretas, ou no mínimo simplistas.
Que elas — e outras díades — sejam amplamente aceitas no pensamento do século
vinte sugere que o mundo da música artística pensa o seu campo como relevante-
mente dualístico. Esta tendência ao dualismo informa a visão da escola de música a
respeito da história da música.
A ancestralidade tem grande importância na cultura do Departamento de
Música, mas o interesse do intérprete pela história, ao contrário daquele do histori-
ador, enfoca sobremaneira os seus aspectos de ‘origem’. A concepção ocidental da
música artística se associa intimamente à noção de história, mas à história num
sentido peculiar. É claro que o aspecto mais importante duma peça musical é a sua
origem, mas a origem das peças implica questões relativas a como elas surgiram: o
que seus compositores tinham em mente, as suas identidades, como eles trabalha-
vam e juntavam os materiais, suas fontes estilísticas e temáticas, e a forma parti-
cular que as peças assumiram nas suas origens. A ênfase na origem resultou na
preocupação com a autenticidade da prática interpretativa, mas os músicos podem,
noutros sentidos, ignorar a história. O contexto social e cultural da peça no seu
momento de origem e na sua história posterior, a chamada história da recepção,
costuma ser de interesse exclusivo de especialistas acadêmicos.

61
Confrontamento: convergências e colisões

O confrontamento entre as músicas sempre foi o material elementar da his-


tória da música e da cultura musical, tanto quanto o confrontamento cultural é uma
característica importante do comportamento humano. Há muitas maneiras pelas
quais as instituições musicais lidam com tais confrontamentos, com as questões
que derivam delas virem a se tornar pontos de encontro entre músicas. O contato
intermusical desempenha um papel em muitas das decisões que resultam de seus
conceitos e valores, decisões que resultam em padrões de comportamento e políti-
cas que, por sua vez, provocam características do som musical em muitos níveis.
Em sendo o Departamento de Música o local no qual as músicas de muitos
lugares, segmentos da sociedade, e origens históricas se encontram e se confron-
tam, o seu confrontamento é evidente em diversas situações, arenas e eventos. Se
defrontam elas na vida das pessoas, na combinação de estilos de compositores e
intérpretes, e em instituições como salas de aula e bibliotecas. Alguns confrontos
resultam em convergência, mas outros produzem colisões e separação. Apesar do
Departamento de Música absorver todos estes tipos de músicas e assim servir de
arena para que as culturas musicais se defrontem, tal deve ocorrer segundo uma
conformação a padrões que vigoram no mundo do repertório clássico central e na
sua cultura de concerto do século vinte. O encontro das músicas é encorajado ou
inibido de três maneiras, pelo menos: pela preservação da pureza da música, pelas
platéias especializadas, e pela prática de conjunto.

Preservando a Pureza
De diversas maneiras, o conceito de pureza, um dos valores que regem as
escolas de música domésticas, trabalha contra o caráter de ponto de encontro do
Departamento de Música. É certo que o ‘impuro’, o estilística e culturalmente mes-
tiço mantém o seu espaço, mas o privilégio é para o que é de alguma maneira
‘puro’. Assim, os concertos permanecem dentro de suas delimitações taxonômicas;
você não encontrará um quarteto de cordas a tocar antes do intervalo, e depois um
sitarista, ou uma obra orquestral a suceder um solo de piano (ao contrário duma
variedade substancial de arranjos de programa à época de Beethoven). Afora nos
concertos iconoclásticos de música nova, um pianista de jazz, um collegium musi-
cum, e um trio com piano jamais dividiriam um recital. Num senso diverso, são
testemunhos do valor da pureza o grande interesse da escola de música pela per-
formance autêntica, pelos ditos instrumentos autênticos da época do compositor, e
pela execução de obras conforme as supostas intenções e ideais do compositor.
Uma vez que a importância que se dá a períodos de estabilidade estilística,
estilos centrais, e períodos na carreira dum compositor (e a relativa negligência
para com as delimitações incertas entre eles) é uma contingência da importância
das origens, parece ser ela uma função também do valor que se dá à pureza. O
foco da atenção é no estático, não no mutável. Numa vertente bem diversa, os
professores primários não encorajam demais os alunos a fazer ou ouvir música fora
de seus campos de interesse maior. Tais atitudes inibem o cruzamento entre as
músicas.
É óbvio que a escola de música doméstica coloca em questão um certo grau
de coexistência musical. Seria assim possível esperar ver acontecerem performan-
ces com combinações de estilo e repertório musicais. Combinações dessa espécie
(por vezes compreendendo elementos da música ocidental) são significativas nas
performances de concertos de música nacional ou nacionalista e de conjuntos de
música e dança de nações asiáticas e africanas. Na realidade, na escola de música,

62
a principal influência flui do estilo central para os periféricos. A música folclórica do
leste europeu é aceitável quando a tocam grandes conjuntos — a orquestra folclóri-
ca russa, com sua organização análoga à orquestra, e o coro dos Bálcãs, análogo
ao coro de concerto. A grande banda de jazz, uma miniatura da banda de concerto,
toca, com partitura, uma quantidade substancial de música que pode carecer de
improviso. Este tipo de jazz de big-band tem um papel bem modesto do mundo
fora do jazz, mas a escola a seleciona, não obstante, para ser o exemplar de jazz
dentro de seus muros.

A Platéia Especializada
No tipo de cidade onde se situa a Universidade Doméstica, a escola de músi-
ca e suas instituições de performance correlatas contam com uma grande platéia
em potencial — uma comunidade de cinqüenta a cem mil. Ainda que não haja nú-
meros precisos disponíveis, os que freqüentam concertos com uma certa regulari-
dade são bem menos. Numa estimativa bastante aproximativa, poderá haver uns
trezentos estudantes de música que vão a concertos com regularidade (dos oito-
centos estudantes de música residentes), oitenta professores de música, cerca de
cem estudantes de outros departamentos, e cerca de trezentos empregados da
universidade que não são músicos e habitantes da cidade que aparecem de vez em
quando. Ainda que haja sobreposições significantes, gêneros de concerto diferentes
tendem a ter platéias específicas. Estas se organizam conforme diversos critérios:
por etnia, nível de educação, atitude política e, mais evidentemente, por idade. Se
podemos descrever a sociedade norte-americana como composta por múltiplas et-
nias, a estratificação das culturas brancas anglo-americanas por idade é importan-
te, cada grupo tendo a sua música étnica típica. Por exemplo, o público do concerto
clássico padrão é o mais velho, e o de música nova e de eventos étnicos, o mais
novo. Ainda que a música de câmara e os concertos de órgãos atraiam platéias
mais velhas que os concertos sinfônicos, os concertos de jazz reúnem um público
mais velho que a banda de concerto. No cruzamento das culturas musicais no De-
partamento de Música, apenas uma pequeno grupo de pessoas freqüentam perfor-
mances de todas ou de muitas músicas.

O Valor dos Conjuntos


Um outro olhar sobre o requisito de que cada aluno toque num conjunto ofi-
cial lançará alguma luz sobre o papel da escola de música enquanto instituição po-
limusical mediadora. A maioria dos quarenta e tantos conjuntos que caracterizam
uma escola exige um regente, e faz música do período entre 1700 e 1930. As ban-
das de jazz, o gamelão, o quarteto de cordas, os conjuntos de mbira e flautas de
pã, e os de música nova, ou fazem música de fora deste período, ou não têm um
regente explícito (ainda que contem com a liderança dum docente). Os estudantes
e docentes que neles se envolveram sempre tiveram dificuldade em persuadir a
administração ou a maioria do corpo docente a aceitar que esses conjuntos satisfi-
zessem o requisito (ainda que no fim costumassem consegui-lo), mas às vezes se
deixava claro que a administração da escola preferiria que os alunos tocassem na
orquestra sinfônica, na banda ou cantassem num coro grande.
Os conjuntos musicais que não pertencem ao arcabouço clássico central de-
vem demonstrar o seu valor, seja pela performance de música que de algum modo
é similar à música artística por excelência, seja pelo menos operando de modo si-
milar aos grandes conjuntos, através do uso de música impressa e com a atuação
dum regente. Assim, a orquestra folclórica russa faz sucesso porque toca com par-
tituras e partes, tem um regente, e usa harmonia funcional e arranjos de melodias

63
folclóricas tradicionais russas. O gamelão funciona porque seus adeptos argumen-
tam que, na realidade, há um regente (ainda que este personagem não se coloque
à frente), assinalando também que, dentre os conjuntos não ocidentais, é aquele
que, na sua estrutura interna e na de sua música, chega mais perto dos grandes
conjuntos ocidentais. Certos conjuntos do Oriente Médio, da América Latina e da
África se fazem incluir ao satisfazerem certas necessidades políticas da instituição.
Os grupos de rock e outros conjuntos populares não se conformam a nenhum dos
critérios, e portanto podem permanecer na categoria dos ‘intocáveis’.
Quando se os chama ao debate acerca destas preferências, os habitantes da
escola de música tomam por pressuposto a superioridade estética do repertório
central, sobretudo das obras para grandes conjuntos. (É de se supor que os com-
positores tenham se proposto a escrever suas melhores obras para esses conjun-
tos.) A maneira pela qual a escola de música permite que as músicas se encontrem,
mas também que mantenham suas ‘devidas’ relações, é através do privilégio aos
grandes conjuntos e da relutância em aceitar, se é que os aceita, os de outras mú-
sicas — nova, antiga, jazz, popular, étnica e não ocidental — e daí apenas na medi-
da em que as demais músicas adotem os valores da música central. Há de se ob-
servar este processo também nas nações asiáticas e africanas que desenvolveram
orquestras de música tradicional, e instrumentos exclusivos para esta função com-
petitiva.

Caldeirão Fervente ou Mosaico?


Não ligue para políticas, pré-requisitos e valores. A vida musical na escola de
música doméstica poderia ser descrita como um caldeirão fervente no qual um úni-
co sabor predomina, ou como um mosaico no qual muitas cores coexistem, não nos
mesmos termos, mas cada qual com a garantia da sobrevivência27. Qual interpreta-
ção é mais esclarecedora? É uma questão que, outrossim, se poderia perguntar a
todo o mundo musical do nosso século.
Nos cursos de história da música, é costume citar a influência da música não
ocidental, folclórica e mais antiga, no repertório clássico central e nos seus compo-
sitores desde a renascença (mas sobretudo nos últimos 150 anos), sem que, no
âmbito da performance na escola de música, se a leve muito em consideração. É
raro, por exemplo, que na estruturação de programas de concerto ou recital se dê
atenção à ordenação das obras, de modo a enfatizar essa influência, com o uso de
estilos vocais ou vestuário esquisitos, digamos (se é que é possível imaginá-lo).
Mais realisticamente, não temos acesso a programas com grupos de obras que
apresentem uma influência específica no seu som (e.g. um concerto de música fol-
clórica húngara ou da que dela deriva, conforme o denotam as obras de Bartók,
Liszt, Brahms, Haydn e Schubert). No concerto clássico por excelência, o encontro
das músicas se restringe. Assim, são as madeiras tradicionais que harmonizam e
executam uma melodia folclórica como tema duma sinfonia. A seção de percussão
tradicional incorpora o tambor africano.
Mesmo em concertos fora do âmbito central do repertório clássico, os sons
das culturas musicais se defrontam através da aproximação a ideais clássicos. A
própria noção de concerto não é compatível com os contextos tradicionais da inter-
pretação de boa parte ou da maioria da música não ocidental, nem, nesse sentido,
com os contextos autênticos das performances medieval, jazzística e folclórica. O
tradicional concerto de Madras, com três horas (já ele um produto parcial da oci-
dentalização) e as três canjas de jazz na casa noturna se transformam, na escola
de música, em concertos de noventa minutos com intervalos. Não se coloca em
questão a reprodução dum clube de jazz ou a realização duma cerimônia africana

64
no ginásio. As diversas músicas se defrontam ao se enquadrarem a um formato
comum de concerto, com uma certa sobreposição de público, e se submetendo ao
sistema de valores que rege a cultura da música clássica ocidental. Mas em termos
de estilo musical, na verdade elas são se defrontam.
Se encararmos o presente macrocosmo da música mundial como um con-
frontamento de sistemas musicais resultando em convergências e colisões, este en-
contro de músicas vem tendo muitos tipos de conseqüências: o total abandono de
certos gêneros, estilos, repertórios e mesmo de sistemas musicais completos; o
desenvolvimento de estilos e repertórios sincréticos, uma maior diversidade de
oportunidades musicais para certas pessoas; a preservação artificial, em comparti-
mentos, de tradições mais antigas; e a transferência de traços musicais discretos, a
coexistência musical pluralista, o engajamento ou rejeição do novo. Qualquer en-
contro de culturas pode resultar em diversos frutos musicais, mas eventualmente
há um predominante28. A escola de música doméstica, que às vezes se dispõe à re-
flexão num microcosmo, compartilha de alguns destes processos, mas quase nunca
de outros. Cada vez mais se dá oportunidades às pessoas para que sejam polimusi-
cais e, ao mesmo tempo, às vezes ocorre a preservação artificial de músicas — so-
bretudo da antiga e das não ocidentais. Entretanto não se perde ou abandona re-
pertórios, e estilos sincréticos não costumam resultar.
Na correlação entre as suas músicas, o Departamento de Música guarda
paralelos não mais que imperfeitos com o mundo das músicas do século vinte. Mas
ao justapor o repertório clássico principal a estilos satélites que toma por insignifi-
cantes, ele reflete o mundo moderno mais explicitamente no sentido sociocultural
— a relação duma cultura dominante com os seus satélites ou dum poder maior
com colônias do terceiro mundo. A cultura tradicional das sociedades dependentes
tem de se conformar aos valores do poder central, e ainda manter a sua distância,
adotando o cristianismo, por exemplo, mas se abstendo da industrialização, ou se
adaptando ao estilo de vida da família ocidental mas evitando a miscigenação. A
minoria das músicas periféricas na escola de música tende a marcar a separação do
repertório principal; o jazz e a música indiana, e mesmo a música nova não entram
no arcabouço dos seus concertos ou currículos. Ainda assim, devem elas se inserir,
não mais que para a sua sobrevivência, nos contextos social e interpretativo da
música principal.
A escola de música doméstica é um espaço para a mediação musical só até
certo ponto, e é uma arena tanto para convergências quanto para colisões. Há con-
vergências, porquanto as pessoas têm a liberdade pelo menos de participar como
audiência, ou como alunos ouvintes em cursos, de diversas músicas que povoam o
departamento, e há um nível modesto de sobreposição e fusão. Mas há colisões,
porquanto as músicas repelem umas as outras, por assim dizer, mantendo distânci-
as e coexistindo na estrutura social hierárquica que os acadêmicos ocidentais há
muito tomam por pressuposto, permitindo a ocupação dum lugar modesto na ins-
tituição enquanto se as submete aos valores do centro. Ao fim e ao cabo, talvez se
trate mais dum mosaico que dum caldeirão fervente.

65
4

Incursões no Repertório

O Formato da Música

Toda sociedade possui um repertório musical, mas as sociedades diferem bastante


na maneira como esse repertório se distribui entre os seus integrantes e, mais im-
portante, na maneira como estes concebem o repertório e como vêem a sua es-
trutura em relação aos domínios da cultura aos quais a música se relaciona. Mas
em cada cultura, o mundo da música possui, e é visto como possuidor de um for-
mato. O povo blackfoot, ou pelo menos parte dele, por exemplo, parece encarar a
sua música como um reflexo do sistema cultural1. Cada qual de seus rituais, cada
subdivisão de sua sociedade conta, pelo menos em teoria, com canções próprias.
Me disseram que a maneira certa de fazer algo era cantar junto a canção correta, e
normalmente se identificava as canções através das atividades ou dos âmbitos
culturais com os quais se associavam.
Alguns de seus músicos vêem o sistema persa de música clássica como um
reflexo do espectro de ambiências e afetos, porque cada dastgah (modo) apresenta
um caráter particular. Há doze dastgahs, sete dos quais são os principais; muitas
unidades menores se organizam em grupos de três. O número doze se aplica a ou-
tros domínios, e tal como há dozes imãs no islã xiita, e doze constelações no zodía-
co, os doze modos musicais (mais presentes na teoria que na prática) perpassam
todo o mundo. Os números três e sete cumprem com papéis importantes também.
Em ambos os casos, a concepção do repertório musical é, em importantes aspec-
tos, congruente com toda a cultura. Na música clássica do sul da Índia, o sistema
de ragas é visto como uma espécie de hierarquia, uma reminiscência das castas; no
norte da Índia, é visto como um reflexo da estrutura familiar, com as figuras do
pai, da mãe e da criança refletindo gêneros e graus de dependência na relação.
Qual é a concepção de repertório musical no mundo da música artística
norte-americana? Como ponto de partida, tomemos as taxonomias de gêneros,
compositores, e grau de caráter clássico. Os nativos do Departamento de Música
concebem o seu repertório musical de diversas maneiras: (1) segundo a crença de
que há um fundamento central do repertório, a música mais importante; (2) se-
gundo a sugestão de que o Departamento de Música encara as suas obras musicais
e as suas relações muito à maneira como encara a sociedade e as relações entre
grupos e indivíduos; e (3) segundo a compreensão do papel que a música desem-
penha em performances nas quais os valores principais da cultura vêm à tona.

66
As Principais Obras

Mesmo em sociedades pequenas como a dos cerca de 150 Suyá, um grupo


tribal da Amazônia brasileira que Anthony Seeger estudou, cada pessoa conhece a
sua cultura a partir duma visão pessoal particular, e nem sempre há tanta congru-
ência entre as experiências musicais dos indivíduos2. Ainda assim, os etnomusicólo-
gos costumam procurar demonstrar que a cultura possui coerência musical, e assim
podem se inclinar a perguntar: “Há um repertório por excelência, que a sociedade
mais identifica como seu próprio, ou encara como o seu maior produto musical, ou
conhece melhor?”
Meus informantes blackfoot respondiam a este tipo de questão de duas ma-
neiras. Suas ‘canções mais importantes’ são as canções das cerimônias da parafer-
nália medicinal, canções que hoje mal se conhece e que sempre, desde os tempos
antigos, foram do conhecimento de uns poucos apenas; ou são as canções intertri-
bais que se canta em powwows, e que a maioria das pessoas que as escuta reco-
nhece. Na cultura da música carnática de Madras, me disseram que o repertório
mais evidentemente central era composto por canções dos três grandes composi-
tores do princípio do século dezenove; eram estas também as canções que mais se
cantava no repertório de concerto. No Irã, meu professor me disse que a música
central seria a música com base no dastgah de Shur, pois o seu caráter reflete mais
de perto o caráter da cultura iraniana3.
Cada qual destas sociedades parecia aceitar a idéia de que os repertórios
têm um setor central, mas cada uma tinha seus critérios próprios para o identificar
e caracterizar. Na cultura do departamento de música, uma abordagem óbvia con-
duz às obras dos grandes mestres. Elas são uma chave para tal conceito. Mas é
provável que um visitante etnomusicológico dum planeta distante pudesse observar
primeiro que há algumas canções que todos parecem conhecer e sabem cantar,
uma série que ele pode não achar interessante, mas parece estar muito presente.
Começarei com este corpus musical alternativo.

Canções Obrigatórios
Segundo os informantes menomini do etnógrafo J. D. Slotkin, as cerimônias
religiosas do peiote, dos índios menomini, comportavam dois tipos de canções4.
Quatro, em particular, tinham de ser cantadas em quatro momentos específicos da
cerimônia. O resto — talvez dúzias delas, que se cantava numa noite — as selecio-
navam os cantores, cada qual cantando quatro canções cada um. Ainda que cada
cantor selecionasse o que cantava (“só o que lhe dá na telha”), as canções devem
ser ‘canções de peiote’, sejam as que vêm do repertório de canções de peiote que a
comunidade conhece, seja dentro do estilo musical próprio e distinto do peiote,
compostas na ocasião ou que o cantor aprende na hora.
Este tipo de distinção é característica dos rituais em muitas culturas. É pre-
ciso que se faça certas canções ou peças a cada vez que se encena um ritual, mas
outras são tanto específicas para a ocasião, quanto de livre escolha dos participan-
tes. Os estudantes do departamento de música se iniciam nesta estrutura no prin-
cípio de suas disciplinas em história da música, ao aprenderem que a missa católica
se divide no ordinário, que compreende textos que incluem o ‘kirye eleison’, o ‘cre-
do’, o ‘sanctus’ e o ‘agnus dei’ (ou suas versões em vernáculo); textos que se recita
ou canta em toda missa (ainda que nem sempre com a mesma música); e o pró-
prio, que inclui seções tais como o ‘gradual’, o ‘aleluia’ e o ‘ofertório’, com textos
específicos da celebração do dia em questão. Diversos rituais na vida religiosa
contemporânea, incluindo os serviços da maioria das igrejas protestantes, têm es-

67
truturas que provêm da forma da missa, e outros seguem princípios semelhantes5.
Os rituais seculares seguem linhas semelhantes. Assim, num jantar formal norte-
americano, haverá um paralelo entre os aperitivos, os petiscos, as saladas, os vi-
nhos e o café (que se espera que estejam presentes, a despeito do que vem na
sopa, no prato principal e na sobremesa, nos quais haja relativamente pouca varie-
dade) e a missa ordinária. Os demais pratos, nos quais há muito mais variedade
(qualquer anfitriã que se dê o respeito irá se recusar a servir a mesma coisa aos
mesmos convidados ao longo dum período de cinco anos) se parecem mais com o
próprio6.
Perguntamos qual das duas séries de ingredientes rituais é a mais central.
Na história da música artística religiosa, ainda que as obras musicais que são parte
ou provêm do próprio da missa resultassem com freqüência em música mais com-
plexa, o ordinário pode ser visto como o âmago da missa porque seus componentes
sempre estão lá, sempre em essência os mesmos. O serviço presbiteriano é do jeito
que é graças à presença da invocação, da benção, da oração ao Senhor e da recita-
ção do credo, não importa o quão brilhante e extenso seja o sermão. Por mais
grandioso que seja o prato principal, não importando o quão exótica é a sobreme-
sa, é o aperitivo, o vinho e o café, nesta ordem, que o levam a crer que você está
num jantar formal. A questão é, serão os rituais da cidade da universidade domés-
tica (incluindo a escola de música) comuns a virtualmente toda a sociedade? São
eles de algum modo correlatos ao conceito da ‘missa ordinária’ da vida como um
todo, e têm eles também um repertório musical que sempre está presente e pode-
ria estar então apto a ser o repertório musical central da comunidade?
Há uma boa quantidade de rituais em comum. Alguns são ritos de passa-
gem: casamentos, cerimônias de colação de grau, festas de aniversário, celebra-
ções de aposentadoria e, num certo senso, funerais. Outros compreendem o ciclo
anual: celebrações natalinas, festas de ano-novo, jantares de ação de graças, fes-
tas das bruxas e celebrações de páscoa. Outros ainda são sazonais, mas menos es-
pecíficos; por exemplo, certos eventos esportivos e ritos correlatos, tais como a re-
cepção dos alunos.
[...]
Diversas celebrações que seguem o curso anual são feriados oficiais que o
governo prescreve, tais como o Quatro de Julho. Entre os eventos cerimoniais que
acompanham essas celebrações, estão as paradas — procissões duma ordem quase
militar — com música de acompanhamento que se tira dum repertório seleto de
marchas e canções patrióticas. A marcha que mais se usa, sendo assim a peça que
a maioria das pessoas conhece, é Stars and Stripes Forever [Estrelas e Listras para
Sempre], de John Phillip Sousa, que pode, portanto, arrogar a si um lugar no nos-
sos repertório central. Outrossim, as paradas e as atividades ao seu redor sempre
incluem a performance de pelo menos uma de três ou quatro canções patrióticas
centrais: America [Estados Unidos], America, the Beautiful [Estados Unidos, o Belo]
e The Star-Spangled Banner [A Faixa Resplandecente de Estrelas]. São estas parte
também do repertório musical cerimonial central da comunidade. Mesmo que não
se especifique o seu lugar específico em rituais de parada, pelo menos uma das
canções haverá de se tocar, cantar, ou dela se fará uma marcha em algum mo-
mento da celebração.
O uso de música patriótica é também um pré-requisito do cerimonial nos
eventos de esporte que parcialmente constam no calendário, tais como partidas de
futebol, beisebol e basquetebol, muitos ou a maioria dos quais começam com The
Star-Spangled Banner, prática tal que não se vê na maioria dos demais rituais ou
eventos, tais como concertos ou exibições de filmes, a não ser em tempos de

68
guerra. A presença do hino nacional sugere a percepção duma homologia entre o
atletismo e a guerra, e entre equipes de atletas e forças militares, e possivelmente
a crença de que o atletismo é de algum modo patriótico e um símbolo especial da
identidade americana ou da nação. A referência ao jogo de futebol americano como
uma ‘luta’, na qual a banda de cada time toca o seu ‘canto de guerra’ (Indiana, my
Indiana [Indiana, Minha Indiana] ou We’re Loyal to You, Illinois [Somos Leais a
Você, Illinois], ou, mais ao leste, Crash Through That Line of Blue [Arrebente
Aquela Linha Azul]), também ilustra o paralelo7. A música nos eventos esportivos
universitários costuma incluir o canto de guerra e da alma mater específicos da ins-
tituição. Todavia, em algum momento da maioria dos jogos de beisebol, se toca ou
canta Take Me Out to the Ball Game [Leve-me ao Jogo de Bola]. Na Universidade
Doméstica, os músicos dos eventos atléticos são sobretudo alunos da escola de
música.
Poderíamos então, desta série de considerações, construir uma noção dum
repertório central, que na verdade incluiria Happy Birthday [Feliz Aniversário] e
Auld Lang Syne [Há Muito Tempo], algumas marchas, uma coleção de hinos natali-
nos, algumas canções patrióticas, talvez Pomp and Circumstance [Pompa e Cir-
cunstância], de Elgar, as marchas matrimonias de Wagner e Mendelssohn, e talvez,
uma vez que fosse, I Love You Truly [Eu Amo Mesmo Você]? Não é difícil fazer uma
lista. Não é o que os habitantes do departamento de música encaram como a gran-
de música de sua cultura, e a maior parte dela não é música séria para eles. Quase
ninguém a consideraria como música ‘boa’, essa música que se associa aos rituais
centrais. Ainda, é a música mais famosa, e a mais previsível.
Tudo pode parecer estranho, e mais entranho ainda quando pensarmos que
boa parte da música no repertório de concerto contemporâneo foi composta para
cumprir uma função ritual específica que não compreendia concertos. Boa parte
dela foi concebida como música de igreja, ou como música de fundo para jantares e
festas aristocráticas, ou para o teatro; parte dela era música para eventos específi-
cos, uma coroação particular, uma festa de aniversário, uma caçada em grupo, um
casamento, ou a comemoração duma vitória. Mas no mundo da música artística de
hoje, parece impróprio associar o que consideramos como a melhor música com
funções rituais ou cerimoniais específicas; é uma maneira de denegrir a grandeza
da música.
Uma das características da cultura de concerto do século vinte é a sua ten-
dência a combinar obras que, no momento em que foram compostas, não constari-
am num mesmo programa. E assim preferimos esquecer que algumas das obras de
Mozart, por exemplo, seriam, nas suas origens, absolutamente impróprias em qual-
quer cerimônia da cidade da Universidade Doméstica nos anos 1980. A comunidade
em torno do Departamento de Música não se sentiria à vontade, contudo, de dimi-
nuir um grande compositor ao atribuir um papel funcional a boa parte da sua músi-
ca. Os habitantes do Departamento de Música não costumam considerar uma honra
a Mozart o uso de sua obra como música de fundo na trilha sonora dum filme, tal
como em Hopscotch [Amarelinha]8. O mundo cerimonial próprio do Departamento
de Música vive bem à parte. Os seus rituais, em última análise, não se dão em be-
nefício dos humanos e das necessidades de suas atividades, mas a serviço dos
grandes mestres, cujas obras estão acima do burburinho do vai e vem dos huma-
nos, existindo enquanto arte pela arte.

Obras-Primas
Na seção precedente, sugeri que um tipo de repertório central é a música
que todos conhecem, mas há outras maneiras de se determinar a centralidade. Po-

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der-se-ia procurar a música que a sociedade considera como sendo a mais ‘normal’.
Ou a música que nem todo mundo conhece mas, segundo alguma autoridade, de-
veria conhecer. Ou o que dizer das mais grandiosas das obras? Não merecem elas o
status da centralidade? Na retórica corrente do departamento de música, o ‘grandi-
oso’ se refere sobretudo às maiores obras. Não é coincidência que num dos poucos
livros sobre o conceito de obras-primas musicais, as primeiras duas obras que se
menciona são o Don Giovanni de Mozart e o Anel dos Nibelungos de Wagner9.
Podemos identificar as grandes obras ao consultar os manuais correntes de
história da música, e a bibliografia de apreciação musical. Ou ao consultar a lista de
obras que constam na “Bibliografia Musical Básica” e em outras disciplinas introdu-
tórias para graduação em música ou, a este respeito, as obras que se espera que
doutorandos em música conheçam em seus exames de admissão ou qualificação.
Outro caminho é simplesmente perguntar às pessoas da sociedade do departa-
mento de música quais são as obras que consideram ser grandiosas. A questão da
popularidade e da grandeza das obras-primas deve ser sujeita a uma minuciosa
análise demográfica e estatística, e há uma vasta bibliografia a lidar com o tema10.
Para identificar o conceito dum repertório central e o seu caráter geral, ainda
que não detalhemos o seu conteúdo, consideremos duas pequenas amostras da
população do Departamento de Música. Poderiam elas identificar as maiores obras,
e estariam de acordo sobre quais são elas? No primeiro exemplo, experimentei a
questão com um grupo de treze alunos de graduação, a maioria de musicologia,
sem os avisar, os pedindo apenas que escrevessem duas ou três grandes obras (ou
grupos de obras) da música artística ocidental. Houve pouca unanimidade; resultou
uma lista com vinte e sete obras. Os compositores predominantes foram Bach, Be-
ethoven, Mahler e Wagner, mas também constaram (aqui em ordem alfabética)
Bartók, Luciano Berio, Brahms, Debussy, Josquin des Prez, Mozart, Prokofieff,
Puccini, Schubert, Schumann e Shostakovitch. Os gêneros mais proeminentes fo-
ram as óperas e sinfonias. Apenas a Sétima de Beethoven, o Tristão de Wagner, e
ou seu Anel receberem dois votos cada. As respostas que agruparam obras listaram
as sinfonias de Beethoven, as sinfonias de Mahler, os últimos quartetos de Beetho-
ven e Schostakovitch, os prelúdios de Debussy, os Lieder de Schubert, as óperas de
Puccini e as obras para violino de Bach.
Se eu indagasse por nomes de compositores, mais que por obras, minha
aposta é que lá estariam Beethoven e Bach, e também Mozart, Haydn e Schubert,
ainda que é provável que não constasse Wagner, e com certeza não constaria
Mahler. Quando se pediu uma listagem de obras, os que responderam pensaram
automaticamente nas que implicavam forças superlativas. Há razões para crer que
quem respondia não conhecia bem estas obras-primas, ou sequer as conhecia, mas
a idéia era listar obras grandes, complexas. A ‘grandeza’ da música consiste em
extensão, complexidade, e na capacidade do compositor vencer dificuldades e co-
mandar uma vasta quantidade de gestos, eventos e correlações musicais. Dada
essa concepção atlética da composição, muitos dos amantes da música norte-
americanos acham que uma grande obra deve ser fisicamente extensa. Tal é o caso
dos músicos acadêmicos: para se doutorar em composição, o aluno deve produzir
uma obra ‘grande’.
Em 1989, em segundo lugar, Melinda Russell pediu a um grupo de graduan-
dos, sem especialização em música mas que pegaram uma disciplina do departa-
mento de música como optativa, que selecionassem os discos que levariam para
uma ilha deserta11. Os compositores clássicos que mais se mencionou foram Be-
ethoven, Mozart, Bach e Mahler, com os Beatles (também representantes duma
época ‘clássica’) vindo após Beethoven. As obras que mais se mencionou foram a
Nona e a Quinta de Beethoven e o seu Concerto para Violino, bem como Götter-

70
dämmerung [O Crepúsculo dos Deuses], a Sinfonia Júpiter de Mozart, o Don Qui-
xote de Strauss, a Sinfonia “Novo Mundo” de Dvorák. Mais uma vez, com poucas
convergências específicas, houve ênfase nalguns poucos compositores e em obras
grandes, longas, com orquestra e às vezes com coro.
Os dois grupos bem diferentes de estudantes vieram com respostas bem di-
ferentes ao mesmo tipo de pergunta, sob formas diferentes. Mas o que tinham em
comum era a crença evidente de que a grandeza musical reside no tamanho e na
complexidade, e que o apogeu da grandeza musical está entre 1750 e 1900. Será
que as estruturas musicais típicas daquela época refletem a estrutura social que a
classe média norte-americana almeja, ou era o que a sociedade almejava, ou será
que, em algum momento, a estrutura musical e a relação entre organização musi-
cal e social simplesmente congelou, conforme sugeriu Small12? Talvez tenhamos na
música o tipo de sociedade em cujo pináculo muitos indivíduos da sociedade norte-
americana gostariam de estar, porém, estando conscientes da impossibilidade de
impô-lo à sociedade real, se contentam em manipulá-lo, tornando-o a pedra fun-
damental da sua música. É um pouco como idolatrar a monarquia britânica, sem vi-
ver sob o seu governo13.

Uma Sociedade de Músicas

Viemos observando uma rede de inter-relações sociais. Os músicos do mun-


do da música artística se relacionam entre si de maneiras que são paralelas à orga-
nização social da sociedade — a familiar, a relativa a classe, a da divisão do traba-
lho, e também de maneiras que refletem os papéis daqueles em estruturas e con-
juntos musicais. Estes, por sua vez, derivam de modelos tais como as organizações
governamentais, religiosas, militares e produtivas que outrossim vigoram na socie-
dade ocidental, e dos tipos de hierarquia na qual se fundamentam. Sugeri que os
músicos e amantes da música artística vêem o seu mundo conforme uma estrutu-
ração que se assemelha um tanto à da sociedade. A orquestra é uma espécie de
fábrica, o panteão de compositores é como que uma família extensa, o concerto é
como um ritual de adoração, e a instituição educacional é como uma corporação in-
dustrial. Agora gostaria eu de sugerir que os tipos de relações que são evidentes na
sociedade das pessoas do departamento de música, e da música artística em geral,
desempenham um papel importante na determinação dos modos em que estas
concebem os materiais musicais em si — as peças de música, os tipos de composi-
ção e os instrumentos.
Vistos como um todo, a maioria das obras e dos gêneros do repertório pa-
drão, consistindo sobretudo de música composta entre 1730 e 1920, refletem cer-
tos princípios proeminentes de nossa estrutura social: a importância e as inter-
relações da família nuclear, a hierarquia das classes e as suas gradações, e a im-
portância da individualidade e da liderança individual.

Reflexos na Família e na Comunidade


As classificações e taxonomias nas culturas musicais vêm recebendo uma
atenção substancial na literatura etnomusicológica, mas não enquanto objeto dum
escrutínio comparativo. Uma área da vida musical que se presta com maior facili-
dade a tal comparação é a classificação de instrumentos, um campo com o qual
Margaret Kartomi lida em bases interculturais14. A seleção de taxonomias que exa-
mina ela sugere que as culturas do mundo agrupam seus instrumentos de maneiras

71
que se fundamentam em importantes aspectos de suas cosmovisões. O principal
sistema classificatório de instrumentos chineses apresenta o mundo dos instru-
mentos como um reflexo do mundo físico; classifica-se os instrumentos num dos
oito grupos conforme o principal material de construção. As classificações árabes
oferecem uma hierarquia de status e aceitabilidade, um tanto conforme as hierar-
quias social e musical em vigor nas culturas islâmicas.

O Paradigma Coral. Na cultura musical doméstica, os textos de apreciação musical


reúnem os instrumentos em grupos conforme princípios acústicos, a aparência e a
função em orquestras e bandas. Pensamos os instrumentos como membros de fa-
mílias. Entre os instrumentos orquestrais, a família das cordas (ou do violino) é o
exemplo mais óbvio, mas é costume chamar também as madeiras e os metais de
‘famílias’. Tais famílias são grupos de instrumentos que se produz em três ou qua-
tro tamanhos e tessituras melódicas. Não se usa o termo família para todas as es-
pécies de instrumentos, tais como violas da gamba, tubas, clarinetas, mas também
com estes vem havendo uma tendência ao desenvolvimento de grupos de instru-
mentos, cada qual consistindo em três ou mesmo quatro realizações do mesmo
princípio num tamanho ou tessitura diferentes. Para boa parte disto, o modelo é o
coro vocal, no qual o princípio da família — mulher e homem, cada um com uma
voz grave e uma aguda, sugerindo talvez pai e filho — é paradigmático. Ainda que
homens e mulheres jovens não tenham necessariamente vozes mais agudas que as
dos de meia-idade, a associação de soprano e tenor com a juventude e de contralto
e baixo com a madureza é comum em representações tais como papéis operáticos.
Os conjuntos instrumentais nos quais vários integrantes duma ‘família’ tocam jun-
tos em grupos grandes são também chamados de ‘coros’, como por exemplo os
coros de clarinetas e os de trombones, que constam na série de conjuntos musicais
da escola doméstica.
O conceito de família como princípio norteador da terminologia no agrupa-
mento de instrumentos se encontra também noutras culturas, como por exemplo
no uso de relações familiares na classificação de instrumentos africanos e suas
partes15. No século vinte, com freqüência as sociedades não-ocidentais adotaram o
princípio ocidental da construção de instrumentos em famílias. Assim, no Irã, o tra-
dicional gheichak, um instrumento de cordas e arco de tessitura intermediária, se
expandiu de diversas formas — soprano, tenor e baixo — para o emprego em or-
questras. Outrossim, as orquestras de balalaica e domra da Rússia estabeleceram
versões soprano, contralto, tenor e baixo dos instrumentos, se constituindo assim
em duas seções principais, cada qual análoga à da orquestra de cordas da música
artística. O mesmo vem se dando nas orquestras chinesas modernas, e foram feitas
tentativas no passado de criar tais agrupamentos na música indiana, com a intro-
dução de sarangis (instrumentos de arco do norte da Índia) do tamanho de contra-
baixos. O desenvolvimento de orquestras a partir de ‘coros’ de instrumentos tradi-
cionais parece ser um dos padrões expansivos da ocidentalização musical16.
O princípio das quatro partes como norma quase que domina o repertório
padrão da música artística ocidental. No Departamento de Música, se o encontra
não apenas em combinações instrumentais e vocais — grupos de câmara, seções
de orquestras, ou mesmo grupos de rock — mas também nas classes de teoria e
nas inter-relações entre obras e gêneros musicais. Ensina-se o sistema musical com
o uso de quatro vozes, de acordes de quatro sons. O aprendizado de como o uso
das quatro vozes oferece sustentação às linhas mestras da composição e compre-
ensão musicais é um elemento importante na formação do músico.
[...]

72
Solo e Acompanhamento. Se um componente central da sociedade ocidental oficial
é a família nuclear, outro é o conceito de que normalmente há um líder ou empre-
gador num grupo, bem como seguidores ou empregados. Na sociedade, a idéia de
que alguém ou algo está a ser ‘acompanhado’ por algo outro é sempre presente —
empregador e empregados, chefe e departamento, sargento e pelotão militar, ca-
pitão e time de futebol americano, lançador e jogadores de beisebol, presidente e
gabinete, rei e távola redonda — e, na maioria dos casos, pai ou mãe e família,
bem como avô e família extensa. Não apenas há uma hierarquia, como também
costuma haver um líder e mais de um seguidor.
Procurei interpretar o repertório central como uma manifestação da impor-
tância da noção de família. Talvez o mais importante seja que esse repertório ma-
nifesta também os princípios maiores, e em essência hierárquicos, da organização
social ocidental. Já chamei a atenção para a importância das hierarquias nos con-
juntos, mas talvez uma manifestação mais evidente seja a centralidade do princípio
do acompanhamento, cuja natureza sub-reptícia é uma das coisas que unifica a
música do repertório central, o qual apresenta, por outro lado, uma grande varie-
dade. A maior parte dele consiste em algo essencial, com o acompanhamento de
algo que se subordina. Conforme o confirma a lista de gêneros que consta acima,
compreende ele o piano acompanhado pela orquestra no concerto, o violino e vio-
loncelo com o piano na obra solo, e mesmo nas extensas seções de obras de câ-
mara tais como as sonatas, e o canto com o acompanhamento do piano ou violão.
Indício duma ordem social irredutível, o repertório central é a música na qual a se-
ção do primeiro violino é acompanhada pelo resto das cordas, os solistas operáticos
têm o apoio da orquestra, e as cordas das orquestra têm o apoio dos sopros. Mas
há também a mão direita do pianista, que a esquerda acompanha, e mesmo as
mãos no órgão, que têm o acompanhamento dos pés.
Será que a história da música vai na esteira da história social? É certo que
ao passo que se permitiu uma mobilidade social eventual (ou a sua ilusão) às clas-
ses mais baixas do fim dos anos 1800s e dos 1900s, as forças do acompanhamento
ganharam oportunidades para solar, com a mão esquerda eventualmente tocando a
melodia, as madeiras a dominar no trio do minueto orquestral, e os acompanha-
mentos dos Lieder de Schumann a incluir codas para o piano. Mas os clássicos, com
a sua hierarquia estrutural, mantêm a sua centralidade na vida musical tardia. A
pretensão de que há mobilidade social se mantém, mesmo quando está no geral
ausente.
Uma enquete das obras que se tocava nos programas clássicos que ‘atendi-
am ao ouvinte’, na Universidade Doméstica, mostra que as peças mais benquistas
exibem o princípio da virtuosidade solista com a subserviência do acompanhamento
de grandes dimensões. Aqui pode se encontrar a razão da popularidade da ópera e
da música orquestral; dos concertos; sob outros aspectos, de peças virtuosísticas
como as polonaises e estudos de Chopin ou as obras para piano de Liszt; e, talvez
de outras maneiras ainda, de “O Vôo do Besouro” — mesmo quando se o interpreta
na Tuba.

Alguns Gêneros e Formas


A importância da música de 1720 a 1920 no mundo contemporâneo é, numa
certa medida, graças à maneira em que as obras musicais manifestam aspectos da
estrutura e dos valores sociais da classe média ocidental na primeira metade do sé-
culo vinte. As próprias obras representam um número considerável de gêneros. O
etnomusicólogo alienígena bem poderia fazer uma lista (em ordem aleatória) dos

73
tipos de obras de maior representação no repertório essencial, uma lista que pode-
ria ser algo como o que se segue (também em ordem aleatória):

Sinfonias, se seguindo de obras orquestrais menores;


Concertos, sobretudo para violino ou piano com orquestra;
Lieder de compositores alemães do século dezenove;
Óperas de Mozart, Verdi, Wagner e Puccini, e menos de outros compositores;
Música solo para piano (e demais teclados) de Chopin, Beethoven, Mozart, Bach,
Schubert, Schumann e Liszt (isso inclui peças menores — isto é, ‘característi-
cas’ —, sonatas, suítes e combinações de prelúdio–e–fuga);
Música para violino solo, sobretudo sonatas com piano;
Obras virtuosísticas, normalmente curtas, para diversos instrumentos, mas particu-
larmente para piano e violino, de compositores não alemães do século deze-
nove; e
Música de câmara, mais freqüentemente quartetos de cordas, com trios com piano e
quintetos com piano a seguir.

O marciano ofereceria provas da centralidade deste repertório na cultura da


música artística contemporânea por meio do exame de programas de concerto, es-
toques de lojas de discos, e programas de pedidos de ouvintes em programas clás-
sicos de rádio. A importância de certos gêneros e da harmonia funcional se reflete
na ausência dos compositores que se costuma ter como figuras sobrepujantes dos
demais períodos.
Meu propósito é considerar alguns aspectos deste repertório nos termos de
sua variabilidade, textura e formato internos, de modo a indagar que obras e gê-
neros dentro dele ocupam posições centrais ou superiores, e como funcionam eles
com respeito ao todo.

A Classe Musical Dominante. Esta é a música para a qual o termo grandiosa se


costuma empregar. As conversas entre amantes da música costumam descambar
para discussões sobre a grandiosidade relativa de compositores, intérpretes, obras
e performances, e pode-se ouvir sugestões de que é possível destacar algumas
obras como as ‘maiores’. Don Giovanni já constou como a maior obra de arte hu-
mana17. “C’est l’empereur”, gritou o oficial francês ao ouvir o Quinto Concerto para
Piano (assim nos diz a lenda, e gostamos de crê-lo, ainda que seja provável que tal
não tenha ocorrido). Os músicos chamam “O Cravo Bem Temperado” de “os 48”,
testemunhando o seu caráter básico (e talvez também a importância numerológica
do número quarenta e oito).
Estas grandes obras, outras tais como elas, e o repertório central como um
todo exibem valores sociais importantes no seu período, e tensões entre estes;
também sugerem que esses mesmos valores e tensões ainda estão entre nós. É de
particular interesse que essas obras mais grandiosas vêm sobretudo do século de-
zoito e dos primeiros três quartos do dezenove, e que boa parte do que o mundo da
música artística vê como a música mais grandiosa do mundo foi composta antes de
1825. Um vasto corpus bibliográfico procura explicar esta grandiosidade como fruto
do gênio individual, dum equilíbrio fortuito entre ‘conteúdo e forma’, como fruto de
algo objetivamente melhor que a música composta antes ou depois.
Os etnomusicólogos, com o hábito do relativismo cultural, têm contudo a
tendência (para o bem ou para o mal) a não acreditar que alguma música possa ser
intrinsecamente ‘superior’, tal como o poderiam ser certas formas de agricultura,
produção industrial ou medicina18. Entretanto, não será concebível que certos com-

74
positores e grupos de compositores ou culturas musicais simplesmente tenham
descoberto melhores maneiras de se produzir música, e que músicos e ouvintes
posteriores venham a reconhecer esta capacidade? O que, afinal, poderia dar conta
da relativa homogeneidade das músicas na África subsaariana, em comparação com
a variedade enorme dos sistemas sociais e culturais do continente, para dar um
exemplo?
A questão é relevante porque pode haver um juízo sobre a técnica do com-
positor e intérprete que segue critérios acordados, e não deveríamos encarar qual-
quer juízo individual como igualmente válido. Mas esses critérios fazem diferença, e
uma das tarefas do etnomusicólogo é descobri-los, de sociedade em sociedade,
bem como descobrir também a sua origem para o indivíduo e para o grupo. Ao ob-
servar as maiores obras do fim dos século dezoito e princípio do dezenove, e o pa-
pel que desempenham na cultura musical contemporânea, nos vemos de novo sob
a tentação de perguntar se os amantes modernos da música se sentem mais à
vontade com a música que reflete a estrutura social que precede as convulsões da
Revolução Francesa e dos séculos dezenove e princípios do vinte.
Não é surpresa que estas obras mais grandiosas são grandes sob diversos
aspectos, requerendo forças grandiosas. Os dois gêneros mais representativos são
a ópera e o concerto. É possível argumentar, ainda que talvez não seja fácil, que
estes dois tipos de música são os que melhor representam os princípios da socieda-
de do fim do século dezoito. É mais fácil mostrar como representam eles as modali-
dades de relações músico-sociais que se encontra em todas as modalidades da mú-
sica artística do século dezoito — a canção, a sonata, a cantata, o divertimento, a
suíte, a sinfonia, e todo o resto — mas as representam num nível mais alto, em
maior grau. Será talvez possível interpretá-los como a classe dominante da socie-
dade das músicas?
Tomemos as óperas de Mozart, começando com o modelo de todas as ópe-
ras, Don Giovanni, e vejamos como ilustram e generalizam elas características da
estrutura social do século dezoito, tal como a sociedade contemporânea a percebia.
A música exibe hierarquias de todas as espécies. A partitura é um exercício sobre
as complexidades dum sistema de classes, e a relação entre os personagens e os
estilos musicais costuma acompanhá-lo. A música séria vai para as classes mais
altas do dramatis personae: Donna Elvira, Don Ottavio, Donna Anna, e mesmo o
Commendatore, de vida breve (e mais tarde, de morte breve). A figura malcom-
portada da classe alta, Don Giovanni, é um barítono (pouco convencional em per-
sonagens principais) e canta uma música um tanto humorística (na verdade, ele
não deveria pertencer às classes mais altas, seu comportamento dificilmente se
ajusta ao de um real aristocrata). Os personagens da classe baixa — o criado, Le-
porello, e o casal de camponeses, Zerlina e Masetto — cantam às vezes com um
tom presumivelmente folclórico e humorístico. Mozart parte de práticas da ópera
mais do princípio do século dezoito, em que os homens e mulheres principais can-
tavam inevitavelmente as passagens mais difíceis e espetaculares, com uma clara
hierarquia entre os personagens e papéis e, por conseguinte, entre os próprios in-
térpretes. Os personagens principais, que tipicamente eram deuses, heróis e reis,
eram tenores; os criados e vilãos eram barítonos.
Em contraste com a prática geral da ópera do princípio e de meados do sé-
culo dezoito, as de Mozart, as grandes obras-primas Don Giovanni e As Bodas de
Fígaro e, sob este aspecto, Cosi fan Tutte e A Flauta Mágica, são mais que uma
mera representação ou manifestação das desigualdades e iniqüidades da sociedade.
Também fazem elas uma crítica do sistema. Mozart escolheu libretos justos: Don
Giovanni figura como um pequeno tirano, um mulherengo, chauvinista e enganador
de seus empregados e seu criado —recebendo ele, ao fim, a sua punição. Fígaro

75
bate o seu mestre, o qual tira vantagem de seus criados e empregados e de todas
as mulheres. Em A Flauta Mágica, Mozart apresenta a Rainha da Noite como vilã,
mas demonstra uma ambigüidade com respeito a esta atribuição ao dar a ela algu-
mas das grandes árias, ainda que sejam árias claramente estranhas ao estilo da
ópera como um todo. em Cosi, a platéia recebe um estímulo para se perguntar se
são mesmo as mulheres que são malignas, conforme os personagens sustentam,
ou se são mais propriamente os homens. Na Flauta Mágica e no Entführung [O
Rapto do Serralho], Mozart cria situações para parodiar o racismo e o etnocentris-
mo. Questiona-se as relações de gênero e identidade: A Flauta Mágica começa com
o herói Tamino a gritar em desespero tal como uma mocinha, sendo então salvo
pelas “Três Damas”, que cantam em triunfo num estilo marcial, masculino, e no Fí-
garo, o espectador fica a pensar que gênero de pessoa Cherubino deverá ser19.
As críticas sociais de Mozart, e as de seus libretistas, residem sobretudo nos
enredos, os libretos, mas são também parte da música. Assim, as demandas que se
coloca aos cantores, e o nível no qual se requer um cantor espetacular, têm distri-
buição bem igualitária entre os personagens. É possível argumentar que a seção
mais popular de Don Giovanni é a “Ária do Catálogo”, a qual canta Leporello, o cri-
ado. No Fígaro, o conde canta músicas relativamente pouco excepcionais, ao passe
que algumas das árias mais memoráveis vão para Cherubino, um personagem me-
nor, a quem o conde pune por fazer justo as mesmas coisas que ele próprio faz (ou
gostaria de fazer).
Um grande corpus bibliográfico observa a importância da crítica social nos
enredos de muitas das maiores óperas, por mais ou menos cem anos após Mozart.
O exame dos libretos de obras bem famosas, tão diversas como Fidelio, Aida, Ri-
goletto, Meistersinger [Os Mestres Cantores], e mesmo Bartered Bride [O Escambo
da Noiva] e Wozzeck, chama a atenção não apenas à crítica de aspectos centrais da
sociedade, como também às maneiras em que a crítica se incorpora num estilo mu-
sical que manifesta, outrossim, uma visão conservadora da sociedade.
Christopher Small afirma que o grande prestígio da orquestra sinfônica e do
seu repertório reside no grau em que a sua estrutura social, conforme a música a
representa, granjeia a admiração da platéia20. Argumentando na mesma linha, su-
giro que, em grande medida, se admira a ópera pela sua complexidade, e que as
óperas mais admiradas apresentam e mantêm uma estrutura social hierárquica (na
música, tal como na orquestra, mas também na dramaturgia) ao passo que ao
mesmo tempo a critica, oferecendo assim a medida do imprevisível que caracteriza
a grande arte. A ópera é o gênero musical de maior prestígio porque suas obras são
longas e complexas — e encaramos a complexidade como um critério fundamental
de excelência em arte — e também porque apresenta ela a estrutura músico-social
de reger / seguir e solista / acompanhante em vários níveis simultâneos, entre per-
sonagens principais e secundários, solistas e coro, cantores e orquestra, e regente
e instrumentistas, bem como dentro da orquestra. Entretanto, entre o que há de
melhor, na obra de alguém como Mozart, o seu enredo, e às vezes a sua música,
contradizem a sabedoria convencional do mundo musical21.
[...]

O Sacerdócio do Repertório. Na sociedade ocidental, sobretudo na norte-americana,


há uma tensão entre o princípio orientador da hierarquia e liderança (ou, na músi-
ca, da melodia com acompanhamento) e a concepção de igualdade humana. Ainda
que os humanos sejam claramente desiguais quanto a seus recursos, capacidades
ou riqueza, a sociedade reconhece áreas da vida em que são eles idealmente
iguais, tais como o pressuposto da formação igual sobre o qual se fundamenta o

76
governo norte-americano, ou a freqüentemente invocada igualdade de todos pe-
rante Deus. O conceito de igualdade em associação à religião sugere que de algum
modo poderemos descobrir, no repertório da música artística, uma relação da
igualdade com o sacro, ou com uma seriedade que sugere o confrontamento da
humanidade com o criador.
Ainda que a estrutura do solo com acompanhamento seja sobremaneira pro-
eminente na porção do repertório clássico que é objeto da maior adoração (mas
não a de melhor reputação), o ‘sacerdócio’ do repertório musical parece ser mais
atraente para a parte do público que se considera de elite. Este grupo valoriza a
música na qual há uma igualdade textual das partes, e nas quais as distinções de
poder, volume, cor do timbre, e especialização de papéis têm importância relativa,
formando um corpus de música que mantém, para além de sua existência sônica,
uma vida em abstrato. Esta é a música cujos detalhes estruturais desempenham, a
cada momento, um papel maior que a natureza aprazível de seu som. Em geral, ela
não possui conteúdo programático, e talvez apresente pouca coisa à guisa de co-
notações emocionais óbvias.
Este sacerdócio do repertório compreende gêneros e formas nas quais se
afirma uma certa pureza; é a música que desempenha um papel fundamental no
sistema teórico e na formação em teoria musical que orienta a aprendizagem do
repertório central. Sendo a música da teoria musical, ela parece ser também um
reflexo da teoria social, mais que da realidade social. Ainda que, na realidade, a so-
ciedade ocidental se fundamente em hierarquias e desigualdades de várias e con-
flitantes espécies, a teoria é que, nessa sociedade, as pessoas são iguais. Na con-
trapartida musical, se as diferenças nas nuanças de cor timbríca da orquestra são
importantes para o compositor e o ouvinte, porquanto as diferenças de cor humana
(tomando-as em sentido estrito ou lato) fazem uma grande diferença na sociedade,
a teoria é que, não obstante, essa sociedade deveria ser indiferente à cor e, por-
tanto, a música mais próxima da teoria musical, a música mais abstrata, também
será a mais indiferente ao uso da cor timbríca. Os gêneros musicais que enfatizam
o conceito de igualdade se constituem de obras polifônicas tais como fugas e quar-
tetos de cordas, e eles parecem funcionar, de modos diversos, como a consciência
musical do Departamento de Música.
A fuga é a forma ou gênero que se desenvolveu ao mais alto grau de perfei-
ção graças a J. S. Bach, cujas fugas acabaram por se tornar totalmente paradigmá-
ticas do conceito; ninguém mais chegou perto — assim ao menos pensaram os
compositores posteriores. Se Mozart e Beethoven são as divindades reinantes dum
panteão de amantes da música, Bach é (ou foi, por dois séculos) o compositor dos
compositores, uma atitude que de pronto a documentam as biografias dos grandes
mestres, de Mozart a Schoenberg.
[...]
As fugas de Bach, ou à maneira de Bach, têm o caráter de textos sagrados.
Enquanto exercícios de igualdade, evitando a reprodução musical da estrutura soci-
al que o solo / acompanhamento oferece em todas as suas manifestações comple-
xas e variadas, as fugas têm uma certa pureza porquanto o compositor pode escre-
ver no abstrato, no espírito musical, sem corpo musical, fora dos limites das repre-
sentações musicais dos constrangimentos sociais e políticos. As fugas não costu-
mam servir para exprimir uma variedade de afetos, e não costumam servir para
uso programático, a não ser como sugestão de seriedade. A fuga veio a se associar
à cristandade e à sua disciplina, e funciona como um signo de valores imutáveis, da
fidelidade dos compositores aos fundamentos do clássico. As fugas são concebidas
como estrutura musical num sentido quintessencial, não admitindo (ou ao menos

77
dispensando) quaisquer variações de andamento, dinâmica, cor tímbrica e estilo
harmônico. As qualidades e competências especiais dos diversos instrumentos não
vêm à tona, pois todas as vozes da fuga têm tarefas idênticas; elas são humanos,
os quais são iguais perante a Deus.
A pureza, religiosidade e seriedade das fugas têm a contraparte de contex-
tos sociais típicos nos quais as fugas costumam figurar. Na igreja, pode-se tocar
fugas apenas; na cultura de concerto, se as apresenta apenas como partes — mas
normalmente as partes do clímax ou as mais sérias — de outras obras maiores. Na
sociedade dos músicos, e na sociedade das músicas e das obras musicais, as fugas
recebem portanto um tratamento bem diferente dos demais gêneros.
Tais como as fugas, os quartetos de cordas também passam seriedade e
raramente são escritos para exprimir idéias não musicais, descrever eventos, ou
exibir a técnica de tocar. Ao contrário da orquestra (com suas sinfonias, aberturas,
e poesia de timbres) ou do piano (com sonatas, peças curtas e fantasias), o quar-
teto não é um mero conjunto a servir como meio para uma variedade de gêneros.
O repertório (até cerca de 1970) é quase que na íntegra de obras de nome “Quar-
teto de Cordas”, cada qual levando de vinte e cinco a quarenta e cinco minutos. Em
contraste com a estrutura ritual dos concertos sinfônicos, os concertos de quartetos
mais costumam consistir de três obras (todas com o título de “Quarteto”), cada
qual com três ou quatro movimentos, um intervalo depois do segundo, a obra mais
antiga normalmente em primeiro lugar, e a maior por último.
É possível observar o conceito de igualdade sob diversos ângulos. As três
obras do concerto são relativamente iguais, em comparação com a hierarquia óbvia
dum concerto sinfônico. Menos superficial é a igualdade entre as quatro vozes ins-
trumentais. Tal como as fugas, os quartetos são pensamento e estrutura musicais
‘puros’, tipicamente a evitar a virtuosidade instrumental ou composicional que te-
nha o único propósito da exibição. (Mas isto não quer dizer que eles não possam
ser extremamente difíceis de se tocar.) A alternância de cada instrumento enquanto
solista, as importância maior das estruturas contrapontísticas, e a ausência de
destaque ao instrumento solista da vez graças a sua cor tímbrica única, mitigam o
conceito do solo com acompanhamento. É certo que os primeiros quartetos impor-
tantes (os de Franz Joseph Haydn) apresentam o primeiro violino com o acompa-
nhamento do resto, mas todos os principais compositores, de Mozart, Beethoven e
Schubert, passando por Brahms e Verdi, até Schoenberg e Bartók, experimentaram
seu estro em quartetos, e a igualdade dos quatro instrumentos se intensificou.
No Departamento de Música, é perceptível a crença de que as fugas e os
quartetos de cordas são música artística num sentido maior e mais puro que os
outros gêneros, que eles são, num certo sentido, a ‘consciência’ do mundo da mú-
sica. O tratamento especial que se os devota no Departamento de Música ressalta
essa noção. Ainda que poucas escolas de fato possam realizar as suas intenções, a
maioria gostaria de ter um organista da universidade e um quarteto residente. A
noção do ‘organista da universidade’ remonta aos velhos tempos de muitas escolas,
que remontam às igrejas. E mesmo até os anos 1950 ou depois, os organistas
eram figuras centrais na vida musical das instituições. É comum a idéia de que ou-
vir concertos de quartetos de cordas é uma experiência indispensável para estu-
dantes de música — mais do que ouvir concertos de orquestra, recitais de piano,
concertos de trios para piano ou, nesse sentido, óperas ou concertos de gamelão.
As fugas e os quartetos são, mais que os outros gêneros, a música por excelência
dos músicos.
As fugas e os quartetos de cordas constituem, no departamento de música e
nas instituições que a este se associam, a música da velha geração. As audiências

78
dos concertos de quartetos é mais velha que a média das audiências de concertos;
a maioria dos integrantes é de meia-idade ou idosa, e há poucos estudantes. (Mas
os integrantes dos quartetos de cordas costumam ser bem jovens). Os programas
que compreendem sobretudo fugas, mais freqüentemente recitais de órgão, mais o
eventual recital de piano apresentando “O Cravo Bem Temperado” ou o “Ludus To-
nalis”, atraem outrossim mais as pessoas de meia-idade e idosas. Esta é a música
séria da sociedade, a música que se associa aos valores eternos e espirituais, da
disciplina mental, música que rejeita os valores terrenos que resultam nas desi-
gualdades sociais. Quase que todos os compositores do período que produziu o re-
pertório central, não obstante as suas especialidades, praticaram o seu estro em
fugas e quartetos.
Será que os habitantes do departamento de música pensam de fato os gê-
neros e peças musicais dos seus repertórios como uma família? Será que falariam
do Papai Júpiter, da Vovó Nona, da Prima Fantasia Opus 17, do Titio Cravo Bem
Temperado de modo tal como Ordenações Sacras? É claro que minha associação
entre as duas estruturas é uma abstração teórica, uma interpretação que se apóia
mais na prática musical que na verbal. Se podemos considerar a estrutura social
como o âmago da cultura, conforme o sugerem antropólogos sociais clássicos tais
como Radcliffe-Brown, e se a maneira pela qual as pessoas se relacionam umas
com as outras é fundamental para as estruturas econômicas e políticas, conforme o
sugere Marvin Harris, ou acadêmicos tais como Alan Lomax, quando se trata de
música, então poderá haver sentido em examinar outros domínios da cultura como
reflexos da organização social, da maneira como as pessoas interagem em socieda-
de22. E, na esteira de Daniel M. Neuman, se a música é um microcosmo da cultura,
e uma de suas tarefas é comentar sobre a cultura da qual faz parte, é razoável su-
gerir que os norte-americanos, no departamento de música, um departamento sob
a égide de divindades mortas, usam de sua música — sobretudo a música com-
posta num passado um tanto distante — como uma maneira de exprimir seus co-
mentários sobre a sociedade e a cultura23. Suas ações musicais, senão seus discur-
sos, interpretam esta estrutura do repertório meio que como a da sociedade, con-
forme percebem esta — uma organização social a qual regem as classes e as desi-
gualdades, mas com a teoria de que todos são criaturas iguais.

Performance Cultural

Prelúdio: o grande powwow


O grande powwow que se realiza na Reserva Indígena dos blackfoot de
Browning, Montana, por volta de 10 de julho, tem muitos propósitos, mas um deles
é, com certeza, o desejo de localizar os blackfoot e a sua cultura no ambiente social
mais amplo em que vivem. Em seus vários aspectos, mostra ele ao próprio povo
blackfoot, e aos demais participantes, que esta é uma cultura com uma história
singular e um presente singular; que os blackfoot em Montana se relacionam de
perto com o povo blackfoot no Canadá e alhures; que eles são parte duma cultura
indígena norte-americana contemporânea de ampla abrangência; que são parte do
Oeste Norte-Americano; que têm um claro sentimento, ainda que ambivalente, da
condição de norte-americanos, no senso social e político. O powwow do Dia do Ín-
dio Norte-Americano lembra a todos destes laços a cada ano, e assim se qualifica,
no senso técnico do termo, como uma ‘performance cultural’24.

79
Desde 1970, vem surgindo uma quantidade de obras nas quais se apresenta
um ritual como performance cultural, em grande detalhe e com descrições de cada
instante, se o apresentando então como uma síntese de valores culturais. Na etno-
musicologia, Anthony Seeger, Regula Qureshi, Christopher Small, Daniel Neuman,
Ruth Stone e Henry Kingsbury apresentaram estudos que, de diversas maneiras,
vêem os eventos musicais como ‘performance cultural’ ou como ritos de passa-
gem25. Na vida acadêmica, uma colação de grau pode desempenhar ambas as fun-
ções; ela promove as pessoas a um novo estágio na vida e, na medida em que o
faz, rememora a elas os valores fundamentais da cultura (ou da subcultura).

A Colação de Grau
Leva-se o etnomusicólogo do planeta distante a um evento descrito como
uma das ocasiões realmente importantes no ano acadêmico da escola de música: a
celebração de colação de grau dos alunos sêniores da escola e dos mestrandos e
doutorandos. Umas duzentas pessoas envergando solidéus e roupões negros vão
perambulando, e a cor decorativa predominante é o rosa pastel de capuzes, cor-
dões, e listras em padrões em ‘v’. As pessoas marcham à frente do auditório sob os
acordes duma obra que se vai tocando, naquele mesmo domingo, em centenas de
outras colações de grau, sentando-se e se preparando para uma hora de celebração
e, alguns dos participantes subentendem com seus suspiros, de tédio. O programa
acaba por ser um tanto breve. Um sacerdote ora rapidamente, o diretor da escola
discursa por três minutos, daí o faz por mais tempo um distinto professor de com-
posição, e por fim um dos bacharelandos discursa. Uma peça breve dum conjunto
de metais pontua o evento, e daí os(as) bacharelandos(as) marcham ao longo do
palco, cada qual recebendo uma pasta que porta o seu diploma. Avisos eventuais
de prêmios e aposentadorias precedem o êxodo dos docentes, bacharelandos e os
parentes radiantes sob os acordes de outra peça, mais breve mas familiar. Fora do
auditório, a multidão se deixa levar numa orgia de abraços de congratulação e fo-
tografias. Isto é um relato duma colação de grau na Universidade Doméstica; nou-
tras ocasiões, noutros anos, o curso dos eventos foi similar mas não idêntico. As li-
nhas gerais e as principais características permaneceram, contudo.
As colações de grau são um ritual secular comum na América do Norte, o
rito de passagem mais importante na vida acadêmica, e o evento tem análogos na
Europa e alhures. Podem também serem vistas como uma performance cultural
pelas pessoas da sociedade do departamento de música, que as encenam de modo
a confirmar seus principais valores e definir o seu lugar na sociedade abrangente.
Dever-se-ia pensar as colações de grau com maior atenção, para ver o que elas re-
velam sobre os valores da música, os valores musicais, e as maneiras pelas quais
estes se relacionam a valores culturais gerais. Há afirmações explícitas e implícitas.

Uma Celebração da Música Artística. Sob um certo aspecto, as colações de grau


celebram a música artística ocidental, sobretudo o seu repertório central. Quaisquer
que sejam os demais tipos de música que eventualmente possam ter sido de inte-
resse dos bacharelandos, a eles não se permite que tomem parte. Os bacharelan-
dos passam a maior parte do seu tempo a estudar a música clássica, mas alguns
praticaram também a música jazz, rock e country. As colações de grau deixam
claro que a afiliação primordial à música artística é um pré-requisito virtual para a
pertença à sociedade do departamento de música. Coerentemente, o propósito par-
cial das colações de grau é exaltar a música artística, mais implícita que explicita-
mente.

80
Esta é a clara intenção do sistema, da administração e dos docentes, dos
antigos alunos e benfeitores, bem como, provavelmente, da maioria dos estudan-
tes. Mas há entretanto uma tensão familiar entre valores. Os bacharelandos e os
estudantes, por exemplo, tomam por pressuposto, mas também se envergonham
um pouco de estar numa escola que bem poderia ter o nome de “Escola de Música
Clássica da Europa Ocidental”. Os estudantes provêm, afinal de contas, dum seg-
mento da sociedade o qual implica um certo grau de riqueza, o qual é implícito ser
virtualmente essencial para o sucesso na música desta escola. Estar no topo, mes-
mo no contexto duma escola de música, acarreta a expectativa dum instrumento da
melhor qualidade, e quem pode se permitir achacar seus pais por uma flauta de dez
mil dólares ou um violoncelo de quinze mil? Alguns estudantes acham que este es-
tado injusto das coisas é impróprio porque também eles absorveram o conceito de
que a sociedade em que vivem deveria se fundamentar na igualdade. Questionam
eles a justiça de algo que se vem martelando nos seus ouvidos desde a sua tenra
infância; eles não ficam de todo felizes com o pensamento de que “sou uma pessoa
melhor porque toco Beethoven e (na maior parte do tempo, pelo menos) desprezo
o rock, o country, o reggae, o pop e sei lá mais o quê, e venho evitando me conta-
minar”. Me parece, contudo, que estas restrições são postas de lado na colação de
grau, e que se celebra a própria música artística por seu caráter especial, junto
com os seus títulos.

O Sacerdócio para Celebrar, o Exército para Defender. Alguns discursos tornam ex-
plícito que a colação de grau é uma celebração da música artística. O diretor da es-
cola diz a seu público que a música vale a pena, que os estudantes deveriam rece-
ber aplausos por terem escolhido esta área de estudos, e que as obras musicais
estão entre as maiores criações da humanidade. Está claro que o diretor quer dizer
‘humanidade na cultura ocidental’ — obras de vulto e complexidade, reflexos de
nossa concepção atlética da música, e obras que requerem um esforço enorme de
tecnologia, forças, e concentração musicais, tais como a Missa em Si Menor de
Bach, o Meistersinger de Wagner, e os últimos quartetos de Beethoven. A maneira
como se usa a palavra obras na retórica aponta para esta atitude.
O professor de composição começa com uma lista dos tipos de música que
há na escola: jazz, músicas comerciais de diversas qualidades, música não ociden-
tal, música antiga, música folclórica, música de igreja, e daí duas categorias espe-
ciais, a música artística e a música contemporânea. O professor diz que as duas úl-
timas são aquelas às quais os bacharelandos devem se dedicar mais, pois essas
categorias precisam de atenção especial. As demais músicas podem cuidar de si
mesmas, mas sem um sustento especial — o estudo, a prática, a crítica e o patro-
cínio — a música artística e a música contemporânea não conseguiriam sobreviver.
A implicação é que, ainda que todas as músicas possam ter os seus lugares na
cultura, os bacharelandos deveriam ver a si mesmos como um corpo de sacerdotes
para a preservação e prática da música artística e da música artística contemporâ-
nea, e também para o seu desenvolvimento.
Neste grande dia se apresenta aos alunos, talvez pela primeira vez de modo
explícito e enfático, a taxonomia da música, e a hierarquia que esta acarreta. É difí-
cil saber com que freqüência discutiram eles essa taxonomia durante seus anos
estudantis, mas eu apostaria que tal não veio muito à tona. Sempre se a tomou por
pressuposto, e a exposição que o compositor faz dela e de seu papel nas vidas dos
bacharelandos, na colação de grau, é algo como que uma iniciação. Seria de se
pensar que finalmente se diz aos bacharelandos o porquê de terem estado eles a
estudar um repertório particular com tanto afinco: para se tornar sacerdotes da
música de elite.

81
O aluno orador, na esteira dos pensamentos professorais do mestre, e rea-
firmado-os com maior ênfase, exorta os bacharelandos a se tornarem missionários,
através da execução, composição, ensino e pesquisa da grande música artística.
Este termo — música artística — na verdade não se o usa, mas outros — oratório,
ópera e sinfonia — tornam explícito o arcabouço conceitual. A colação de grau não
é um evento obrigatório, e não há dúvida que há bacharelandos que não aparecem,
que discordam dos valores da escola de música e não se dão ao trabalho de escutar
a sua apologia, daí que devêssemos evitar superestimar a importância da colação
de grau entre os eventos anuais. Mas a sua apresentação explícita dos valores da
instituição — em contraste com muitos eventos nos quais se os apresenta por mera
implicação — lhe dá uma significação especial.
Junto com a iniciação dos graduandos num apostolado cuja tarefa é missio-
nar, promulgar a música artística e exortar a sociedade a substituir outros tipos de
música por ela, há também as entrelinhas. O foco que se implica é que os graduan-
dos deveriam ser um exército pronto para defender uma posição sob sítio, pois a
música artística parece estar sempre a perder terreno, na taxonomia da escola,
para outros tipos de música. Alguns oradores mencionavam o quanto a sobrevivên-
cia da música artística era ameaçada pela falta de apoio financeiro e governamen-
tal; pelo crescente desejo dos graduandos de ganhar a vida tocando rock ou música
country ou se tornando músicos de estúdio, para os meios de comunicação de mas-
sa; pela diluição da música artística nas citações e paródias em comerciais na tele-
visão e canções populares; pela carência dum público que a aprecie de verdade;
pela banalização, conforme a promove a ‘indústria Mozart’ e a disseminação de
gravações de excertos; e pela negligência decrescente das escolas públicas26.
Ouve-se expressões de medo. A tarefa dos graduandos é contribuir para a inversão
destas tendências. É preciso defender a boa música, e justificar o seu estudo.
[...]

A Cor Rosa. Outro aspecto das entrelinhas da defensiva diz respeito ao simbolismo
da cor nas colações de grau. Os que estão a receber os diplomas vestem capuzes
acadêmicos cor-de-rosa, às vezes distintivos rosas em ‘v’ em suas vestes douto-
rais, e cordões rosas em seus solidéus. Nem todos estão de acordo com esta esco-
lha de cor, e a sua ambivalência tem algo a ver com a crença dos músicos clássicos
de que devem eles defender a sua posição, que devem lutar pela sobrevivência de
sua profissão e sua arte. Aqui a colação de grau apresenta um microcosmo da ma-
neira pela qual a sociedade norte-americana, em geral, atribui papéis aos seus
principais âmbitos. Nos Estados Unidos, a música em si não possui um papel subor-
dinado; ninguém poderia imaginar a vida sem ela. Mas se a associa (ou se a asso-
ciava) a classes sociais e subculturas subordinadas, as quais a cor rosa simboliza.
Para além da expressão ‘forte e rosado’, a cor se associa a meninas bebês, a
mulheres em geral por extensão, e às vezes, por extensão ulterior, a homossexuais
masculinos. No período após 1945, se associava a cor também a liberais e socialis-
tas (os pinkos). Seria a atribuição do rosa para a cor dos capuzes em colações de
grau em música uma mera coincidência, como o fato de que se selecionou muitas
cores quando se começou a reconhecer as graduações na academia, e a dignificá-
las com gorros e roupões? Quando se começou a distribuir as cores, será que al-
guém não se saiu, sem pensar, com “rosa, claro, que tipo de pessoa se gradua em
música, afinal”? O sistema de cores se estabeleceu nos Estados Unidos numa con-
ferência na Universidade de Columbia, em 1895, mas não encontrei relatos sobre
os debates que devem ter acompanhado o evento27.

82
Em suas origens últimas, as cores acadêmicas remontam às universidades
medievais, nas quais o rosa, o salmão ou o vermelho se associavam à música por
motivos totalmente diversos28. Mas ao fim do século vinte, nos Estados Unidos, o
rosa conota uma população em particular. Isto comporta algum histórico. Os de-
partamentos de música surgiram primeiro como faculdades para moças, as mulhe-
res constituíam o grosso — se não a liderança — da população musical, e a música
era uma ocupação na qual se tolerava amplamente a homossexualidade, e na qual
grassavam vários tipos de comportamento pouco convencional, simbolizados por
músicos cabeludos e radicais políticos e sociais. A sociedade abrangente pode pen-
sar que o rosa é a cor justa para a música, mas muitos músicos acadêmicos discor-
dam. Conversas com integrantes do staff da Collegiate Cap and Gown Company,
em Champaign, Illinois, um dos principais fabricantes e distribuidores, indica que
um bom número de músicos está insatisfeito com a sua cor.

Arte e Poder
A principal mensagem numa colação de grau é o orgulho e a promulgação
da música de elite; as entrelinhas são o medo do ostracismo e a necessidade de
defendê-la. Isto está claro. Entretanto há um outro aspecto, mais intrigante, do
complexo de valores que se apresenta aos bacharelandos, que é relativo aos dois
modos de identificação da música central, a mais grandiosa em oposição à música
que, nos maiores rituais, é central. As grandes divindades / compositores estão ob-
viamente presentes. Seus nomes inscritos adornam o edifício por dentro e por fora,
seis mestres (quatro dos quais são alemães) instruem os estudantes, a se reunir
em convocações semanais nos auditórios, de que todas as questões musicais im-
portantes residem num arco de 150 anos, e que nada mais é preciso — esta é a
grande música. Mas ao passo que os bacharelandos estão a se iniciar numa vida a
serviço dos grandes compositores, a música que ouvem na colação de grau não é a
deles. Ao invés, ouve-se compositores de segunda classe: o órgão toca uma obra
de Edward Elgar na entrada, e uma de Charles-Marie Widor na saída. Um movi-
mento para quinteto de metais de Vaclav Nelhybel é um número recorrente, en-
quanto um conjunto de fagotes entretinha a platéia antes.
Nesta sociedade, a arte mais grandiosa é a música para cordas e teclados (e
talvez aquela para vozes) dos grandes compositores germânicos, mas são os so-
pros, sobretudo os metais, que representam o poder político, sobretudo na música
de compositores de outras nacionalidades. Vimos a equação da arte com as cordas,
da política e da guerra com os sopros, na cultura ocidental e nas demais, e traça-
mos a analogia desta estrutura com a estrutura política e de classes das faculdades
de música. As colações de grau, ainda que com um baixo nível artístico, são um
importante componente do seu poder. Mais que mero entretenimento da classe
alta, as colações de grau, na verdade, transportam as pessoas através dos obstá-
culos da sociedade e portanto requerem a performance dos instrumentos de sopro,
politicamente poderosos.
Ainda que o evento que eu tenha descrito seja apenas um dentre as cente-
nas de colações de grau que poderia ter estudado, e que decerto não seja cultural-
mente representativo, é provável que não seja coincidência o seu emprego da mú-
sica não alemã para sopros, sobretudo na interpretação de homens (ainda que as
mulheres constituam uma ligeira maioria entre bacharelandos e platéia). Enquanto
os bacharelandos irrompiam da formação, se reuniam aos pais e professores favo-
ritos, tiravam milhares de fotos e corriam a sorver inúmeros copos de ponche cor-
de-laranja, talvez não estivessem cientes de que acabavam de participar dum
evento no qual se exibira os principais valores do mundo musical ocidental, a sua

83
relação com os valores sociais abrangentes, e alguns dos conflitos entre esses va-
lores, no que saíam do armário para o seu exercício anual.

84
Posfácio

Após tentar desempenhar os meus três papéis, devo agora me perguntar se forneci
e fiz uso de informações fidedignas; se a minha experiência própria é representati-
va; se encontrei pontos de apoio confiáveis na cultura, se apresentei as escolas de
música domésticas de modo tal que seus habitantes se reconhecessem, e se tomei
uma perspectiva empática. Alguém outro poderá dar as respostas, mas meus lei-
tores devem estar cientes do quanto tremo ao tentar examinar a cultura em que
vivo.
Henry Kingsbury, numa discussão com um foco específico num conservatório
que não faz parte de nenhuma universidade importante, mas não obstante com
muito em comum com as escolas de música domésticas, tentou chegar, ainda que
através de abordagens e ênfases um tanto diversas, ao que também tentei aqui1. O
leitor notará as similaridades e diferenças, mas Kingsbury trabalha mais com pro-
cessos, e eu com estruturas; ele se ocupa mais das políticas de relações que envol-
vem poder, e eu mais com os reflexos formais nas relações sociais, educacionais e
musicais.
A impressão que Kingsbury deu a alguns leitores é a duma cultura ou sub-
cultura que, para a maior parte de sua população, é na essência vil, e mesmo bru-
ta. A resenha de Ellen Koskoff sugere que Kingsbury tem ‘o rabo preso’; que ele
quer “ridicularizar, gozar, ou deplorar... a dura realidade da vida no conservatório”;
e que ele irá convencer apenas aqueles músicos “que recordam de sua própria for-
mação musical com ressentimento, e que, lá no fundo, querem é dar o troco”2.
Kingsbury não nega de todo estes propósitos em sua resposta, pois conclui a sua
réplica com uma citação de Howard Becker, querendo dizer que os cientistas sociais
devem emitir juízos, e que “apelos por testemunhos ‘equilibrados’ nas ciências so-
ciais são, com demasiada freqüência, admoestações veladas para endossar o status
quo”3. É de se esperar que Kingsbury gostasse de ver mudanças no conservatório,
mudanças que trariam melhorias à vida e talvez melhorassem a música, e eu
aplaudo e concordo. Mesmo o retrato mais cor-de-rosa haveria de conter o seu qui-
nhão de dureza. Daí que eu, também, gostasse de ver mudanças, ainda que, no
momento, não esteja seguro do quê para o quê.
[...]
Temos porém, entretanto, esta — sob muitos critérios — grande música, es-
tilos e gêneros que vêm sendo aceitos na maior parte do mundo como a melhor
música. No entanto essa música vive e se a transmite em instituições onde gras-
sam o conflito e a desigualdade, onde os grupos populacionais e as suas manifesta-
ções musicais estão em constante competição por um lugar ao sol, nas quais pouco
se diz que não acarrete juízos comparativos, e onde todos tomam nota deles. Um
observador crítico poderia querer indagar se as escolas de música têm de ser as-
sim. E, acrescentaria eu, o que há na cultura ocidental que faz essa grande música
tão representativa de aspectos do nosso sistema cultural, com os quais muitos dos
habitantes da escola de música não gostariam de se identificar? Esta não é uma
questão banal, e suspeito que ela trouxe angústias a muitos etnomusicólogos cuja
formação vem da tradição clássica ocidental. De fato, talvez a invenção da etnomu-
sicologia só pudesse se dar numa sociedade que constantemente transita entre o
etnocentrismo (e o etnocentrismo musical), que entendo como parte da natureza

85
da cultura, e o relativismo cultural (e musical), com o qual podemos concordar,
mas que é difícil atingir.
E daí que não sou capaz de explicar dum modo que satisfaça a mim mesmo
o porquê dos valores e das estruturas da escola de música doméstica refletirem al-
guns daqueles da cultura contemporânea norte-americana, ao passo que, ao mes-
mo tempo, parecem contradizer alguns dos seus ideais. Pode tudo ter a ver com a
posição anômala da música na nossa sociedade, e em muitas sociedades: o músico
é um estranho, mas a música é necessária e adorada, ainda que por vezes se a
tema. A música se associa intimamente à nossa concepção do sobrenatural, mas
também reflete relações humanas e a condição humana, tanto explícita quanto
abstratamente. A escola de música é análoga à fábrica, à empresa, e ao estabele-
cimento científico; ela reflete a sociedade da qual faz parte. Mas se a música existe,
como alguns o crêem, como uma linguagem especial com a qual os humanos pode-
riam falar com Deus, ou com os deuses, então as suas instituições podem manter
uma posição de alheamento à cultura, a contradizendo, aprovando, debatendo e
comentando.

86
Índice

"America, the Beautiful" (canção), 68 Ancestralidade: significância da, 61. Vide


Academia Norte-Americana, 32 também Origens
Acadêmica, indumentária, 82–83 artistas, 36
Acadêmico, corpo docente, 37–39 Artística, música: celebração da, 80–81;
concepções da, 61; hegemonia da, 27–
Acompanhamento, 30, 73
28
Administração, 45; análoga à regência,
Artística, Música: na cultura ocidental, 2
44, 45–46
Arturiana, távola redonda, 15
Administradores: credenciais dos, 38;
enquanto classe, 31–33; funções dos, Atribuição, 10
34; remuneração dos, 36 Auer, Leopold, 42
Africana, música, 64–65 Austrália, 33
Afro-Americana, música, 54 Bach, família, 41
Afro-Americanos, 45–46 Norte-Americano, Teatro de Dança
Amadeus (Shaffer), 16, 28 Indígena, 52
An die Musik (Schubert), 28 Platéia: natureza da, 63; participação da,
53–56
[...]

87
BRUNO NETTL nasceu na Czechoslovakia em 1930, se mudou
para os Estados Unidos em 1939, estudou na Universidade
de Indiana e na Universidade de Michigan, e vem ensinando
na Universidade de Illinois em Urbana-Champaign desde
1964, onde é professor emérito de música e antropologia.
Atuando sobretudo no campo da etnomusicologia, fez pes-
quisa de campo com povos nativos norte-americanos, no Irã
e, secundariamente, em Israel e no sul da Índia. Foi presi-
dente da Society for Ethnomusicology [Sociedade de Etno-
musicologia] e editor do seu periódico, Ethnomusicology.
Entre seus livros, constam Theory and Method in Ethnomusi-
cology (1964), The Study of Ethnomusicology (1983),
Blackfoot Musical Thought: comparative perspectives (1989)
e a edição revista de The Radif of Persian Music (1992).

88
Notas

Introdução
1
Cristopher Small, “Performance as Ritual: sketch for an enquiry into the nature of a
symphony concert” [A Performance enquanto Ritual: esboço duma investigação sobre a na-
tureza dum concerto sinfônico], em Lost in Music: Culture, Style, and the Musical Event
[Perdido na Música: estilo, cultura e o evento musical], org. de Avron Levine White (Londres:
Routledge & Kegan Paul. 1987: 6–23); Judith Becker, “Is Western Art Music Superior?” [A
Música Artística Ocidental É Superior?], Musical Quarterly 72 (1986: 341–59); Catherine
Cameron, “Dialectics in the Arts: composer ideology and culture change” [A Dialética nas
Artes: a ideologia do compositor e mudança cultural”, tese de doutorado, Universidade de
Illinois em Urbana–Champaign. 1982; Pierre Bourdieu, Distinction: a social critique of the
judgement of taste [Distinção: uma crítica social do julgamento de gosto], trad. de Richard
Nice (Cambridge: Harvard University Press. 1984); Ruth Finnegan, The Hidden Musicians:
music-making in an English town [Os Músicos Escondidos: prática musical num vilarejo in-
glês] (Cambridge: Cambridge University Press. 1989); Henry Kingsbury, Music, Talent, and
Performance: a conservatory cultural system [Música, Talento e Performance: um sistema
cultural de conservatório] (Filadélfia: Temple University Press. 1988). Uma publicação so-
bremodo relevante é Community of Music: an ethnographic seminar in Champaign-Urbana
[Comunidade da Música: um seminário etnográfico em Champaing-Urbana], org. de Tamara
E. Livingstone et. al. (Champaign: Elephant & Cat. 1993).
As maneiras pelas quais o meu livro corre em paralelo ao de Kingsbury se tornarão ób-
vias, bem como as maneiras divergentes nas quais optei por descrever e interpretar algumas
estruturas e processos semelhantes ou mesmo idênticos. Kingsbury se dedica mais a uma
instituição, ao passo em que estou a tentar investigar um gênero. A abordagem de Kings-
bury é mais crítica que a minha, que procuro manter uma atitude isenta de juízos. Kingsbury
dá muitos exemplos anedóticos, enquanto tendi mais a examinar estruturas. Mais concreta-
mente, o Eastern Metropolitan Conservatory é uma instituição independente, numa cidade
importante, enquanto as escolas de música do centro-oeste, das quais me ocupo, estão em
cidades menores ou vilarejos universitários, sendo porém parte de universidades maiores,
interagindo com suas demais unidades. Kingsbury se interessa por certos conceitos chave
tais como o de talento, em torno dos quais elabora o seu trabalho; minha tentativa é passar
as instituições em revista por quatro vezes, de modos algo diversos. Procurei evitar a refe-
rência a Kingsbury a cada oportunidade que surgisse, e apenas numas poucas ocasiões, tal
como no Posfácio, irei comparar o que digo com suas colocações. Gostaria de expressar
meus respeitos e admiração pelo trabalho de Kingsbury, que foi sendo útil, influente e esti-
mulante à medida em que eu formulava as minhas próprias observações.
2
É certo que a etnomusicologia não possui qualquer monopólio sobre a amplitude de
perspectivas. A interpretação ponderada, levando em consideração a posição cultural do ob-
servador, vem caracterizando, há um século, muitos trabalhos em musicologia histórica e
sistemática. No período desde 1980, sob uma certa influência dos desenvolvimentos na et-
nomusicologia e antropologia, os historiadores da música começaram a se aproximar de
posturas que se tinha, com freqüência, por quintessencialmente etnomusicológicas. A litera-
tura é extensa; vide Joseph Kerman, Contemplating Music: challenges to musicology [Con-
templando a Música: desafios para a musicologia] (Cambridge: Harvard University Press,
1985]; Rose Subotnick, Developing Variations: style and ideology in western music [Desen-
volvendo Variações: estilo e ideologia na música ocidental] (Minneapolis: University of Min-

89
nesota Press, 191); e Disciplining Music: musicology and its canons [Disciplinando a Música:
a musicologia e seus cânones], org. de Katherine Bergeron & Philip V. Bohlman (Chicago:
University of Chicago Press. 1992).
3
Me inspirei nestes seminários, e nos ensaios subseqüentes que se publicou em Commu-
nity of Music, org. de Livingstone et. al., sobretudo em Colin Franey, “Composers’ Forum: a
compositional taste-test” [Fórum de Compositores: um teste de gosto composicional]; Mi-
yon Kim, “Musical Organisations in an Ethnic Student Group: the korean church choir and the
samulnori pae” [Organizações Musicais num Grupo de Estudantes Étnicos: o coro da igreja
coreana e o samulnori pae]; Eunmi Shim, “Taking Lessons and Practicing: the piano and
tuba cultures in the school of music” [Ter Aulas e Estudar: as culturas do piano e da tuba na
escola de música”; Tamara E. Livingstone “Rehearsals and Academic Music-Making: the Rus-
sian Folk Orchestra and the University Symphony” [Ensaios e Prática Musical Acadêmica: a
Orquestra Folclórica Russa e a Sinfônica da Universidade]; Lise Waxer, “Just Hangin’ Out and
Playing Guitar: music and individualism” [Só Andando Por Aí e Tocando Violão: música e in-
dividualismo]; Patricia Sandler, “Aspects of Women’s Life in the School of Music: pedagogy,
sexualisation, identity” [Aspectos da Vida Feminina na Escola de Música: pedagogia, sexuali-
zação, identidade]; Melinda Russell, “Undergraduate Conceptions of Music” [Concepções de
Música na Graduação]; e Craig Macrae, “Integrating a Society: Persian Music in the Iranian
Community” [Integrando uma Sociedade: música persa na comunidade iraniana].
4
Ruth Benedict, Patterns of Culture (Boston: Houghton Mifflin. 1934).
5
Bronislaw Malinowski, Argonauts of the Western Pacific [Os Argonautas do Pacífico Oci-
dental] (Londres: Routledge. 1922: 24–25).
6
Clifford Geertz, “Deep Play: notes on the balinese cockfight” [Jogos Profundos: observa-
ções sobre as rinhas de galo em Bali]. Daedalus 101 (1972): 1–37 (reimpresso em diversas
antologias).
7
Nesta linha, a obra mais famosa de Claude Lévi-Strauss, em tradução inglesa, é The
Raw and the Cooked: introduction to the science of mythology [O Cru e o Cozido: introdução
à ciência da mitologia] (Nova Iorque: Harper & Row. 1969]. Vide também Steven Feld,
Sound and Sentiment [Som e Sentimento] (Filadélfia: University of Pennsylvania Press.
1982).
8
Daniel M. Neuman, The Life of Music in North India [A Vida da Música na Índia do Norte]
(Detroit: Wayne State University Press. 1980).
9
Alan P. Merriam, Ethnomusicology of the Flathead Indians [A Etnomusicologia dos Índios
Flathead] (Chicago: Aldine Press. 1967).
10
Anthony Seeger, Why Suyá Sing (Cambridge: Cambridge University Press. 1988).
11
James Clifford, The Predicament of Culture: twentieth-century ethnography, literature,
and art [O Desconforto da Cultura: etnografia, literatura e arte no século vinte (Cambridge:
Harvard University Press, 1988: 46–54).
12
Para maiores comentários sobre esta questão, vide Bruno Nettl, The Study of Ethnomu-
sicology: twenty-nine issues and concepts [O Estudo da Etnomusicologia: vinte e nove
questões e conceitos] (Urbana: University of Illinois Press. 1983: 234–41).
13
Neuman, The Life of Music in North India: 27–29.
14
Alan P. Merriam, “Basongye Musicians and Institutionalised Social Deviance” [Músicos
Basongye e Desvio Social Institucionalizado], Yearbook of the International Folk Music Coun-
cil 11 (1979): 1–26, apresenta uma análise em detalhe de um exemplo. Vide também, de
Merriam, The Anthropology of Music [A Antropologia da Música] (Evanston: Northwestern
University Press. 1964), 138–42. Neste livro, minhas referências à bibliografia relevante são
mais seletivas que abrangentes.

90
Capítulo 1: A Serviço dos Mestres
1
Walter Wiora, Das musikalische Kunstwerk [A Obra de Arte Musical] (Tutzing: Hans
Schneider. 1983).
2
John Spitzer, “Musical Attribution and Critical Judgement: the rise and fall of the Sinfo-
nia Concertante para sopros, K.297b” [Atribuição Musical e Julgamento Crítico: ascensão e
queda da Sinfonia Concertante para sopros, K.297b], Journal of Musicology 5. 1987: 321.
3
Um estudo que exemplifica tal abordagem é o de Rita Steblin, “The Newly Discovered
Hochenecker Portrait of Beethoven (1819): ‘Das änlichste Bildnis Beethovens’” [O Recém
Descoberto Retrato Hochenecker de Beethoven], Journal of the American Musicological Soci-
ety 45 (1992): 468–94.
4
Para um comentário na lista dos compositores na Universidade de Harvard, e sua gêne-
se, vide Elliot Forbes, A History of Music at Harvard to 1972 [História da Música em Harvard
até 1972] (Cambridge: Harvard University Department of Music. 1988: 57)
5
Para um comentário gráfico sobre o cânone dos grandes compositores e seus bustos no
piano, vide a encadernação em papel de Disciplining Music: musicology and its canons, org.
de Katherine Bergeron & Philip V. Bohlman (Chicago: University of Chicago Press. 1992), so-
bretudo em relação ao corpo do livro, e também o capítulo de Don Randel.
6
É dito (ainda que eu não ponha a mão no fogo pela autenticidade da estória) que um
professor de música aposentado, europeu de nascença, deixou à escola de música duma
Universidade Doméstica, como espólio, um fragmento do crânio de Beethoven. Foi aceito
com gratidão e se o guardou, sem que ninguém tenha feito tentativas de checar a sua au-
tenticidade ou a maneira como pôde ele ter vindo às mãos do professor.
7
Wolfgang Hildesheimer, Mozart, trad. de Marion Faber (Nova Iorque: Vintage Books.
1983: 366); Alfred Einstein, Mozart, His Character, His Work [Mozart, o Homem, a Obra]
(Londres: Oxford University Press. 1945: 103).
8
Ian Crofton & Donald Fraser, A Dictionary of Musical Quotations [Dicionário de Citações
Musicais] (Nova Iorque: Schirmer Books. 1985).
9
Nicolas Slonimsky, Baker’s Biographical Dictionary of Musicians [Dicionário Biográfico
Baker de Músicos], 6ª ed. (Nova Iorque: Schirmer Books. 1978: 126, 1197).
10
Vide o debate sobre as visões de Grove, e de outras comparações do século dezenove
entre Schubert e Beethoven, em David Gramit, “Constructing a Victorian Schubert: music,
biography, and cultural values” [A Construção dum Schubert Vitoriano: música, biografia e
valores culturais], Nineteenth Century Music 17, nº. 1 (1993): 65–78.
11
Vide o relato sobre a “Schubertiade” em Nova Iorque, Janeiro de 1992, que ocorreu na
Rua 92ª Y, em Joseph Horowitz, “Schubert: eternally feminine?” [Schubert: eternamente
feminino?], New York Times, 19 de Janeiro de 1992, H27. Vide também Lawrence Kramer,
org. “Schubert: music, sexuality, culture” [Schubert: música, sexualidade, cultura], volume
especial de Nineteenth Century Music 17, nº. 1 (1993).
12
Vide, por exemplo, Susan McClary, Feminine Endings: Music, Gender, and Sexuality
[Terminações Femininas: música, gênero e sexualidade] (Minneapolis: University of Minne-
sota Press. 1991: 18, 69).
13
Para um exemplo deste tipo de análise, vide Alexander L. Ringer, “Ende gut alles gut:
Bemerkungen zu zwei Finalsätzen von Johannes Brams und Gustav Mahler” [Tudo Está Bem
Quando Termina Bem: observações sobre dois andamentos finais de Johannes Brahms e
Gustav Mahler], en Neue Musik und Tradition: Festschrift Rudolf Stephan [Música Nova e
Tradição: Festschrift para Rudolf Stephan], org. de Josef Kuckerz (Laaber: Laaber-Verlag.
1990: 297–309].

91
14
John H. Mueller, The American Symphony Orchestra: a social history of musical taste
[A Orquestra Sinfônica Norte-Americana: uma história social do gosto musical] (Bloomin-
gton: Indiana University Press. 1951: 182–299).
15
Henry Kingsbury, Music, Talent, and Performance: a conservatory cultural system (Fila-
délfia: Temple University Press, 1988: 59–83).
16
Peter Shaffer, Amadeus (Nova Iorque: Harper and Row. 1980).
17
Para uma discussão histórica e crítica das questões relativas à performance e prática
performática histórica e autêntica, vide Joseph Kerman, Contemplating Music: challenges to
musicology (Cambridge: Harvard University Press, 1985: 182–214).
18
O papel abrangente na vida cotidiana duma figura tal como Mozart, e de seu caráter
polissêmico, se faz claro através dos muitos ensaios em Peter Csobádi et al. (org.), Das
Phänomen Mozart im 20. Jahrhundert: Wirkung, Verarbeitung und Vermarktung in Literatur,
bildender Kunst und in den Medien [O Fenômeno Mozart no Século 20: efeitos, usos e co-
mercialização na literatura, nas artes plásticas e na mídia] (Anif/Salzburg: Ursula Müller-
Speiser. 1991). Vide também Marshall Brown, “Mozart and After: the revolution in musical
consummerism” [Mozart e Após: a revolução no consumismo musical], Critical Inquiry 7, nº.
4 (1980: 689–94), e muitos artigos publicados por volta de 1991, por exemplo Richard Ta-
ruskin, “Why Mozart Has Become an Icon for Today” [Por Que Mozart Se Tornou um Ídolo
Hodierno], New York Times, 9 de Setembro de 1990, H35, H40.
19
James R. Oestreich, “‘Mr. Mozart’ Comes to Lincoln Center”, New York Times, 20 de Ja-
neiro de 1991, H1, 30 (sobre Neal Zaslaw).
20
Em seu livro Sound and Sentiment (Filadélfia: University of Pennsylvania Press. 1982),
Steven Feld explica a cultura musical do povo kaluli, na Nova Guiné, através da análise dum
mito sobre um menino que se tornou pássaro; a abordagem deve muito à obra de Claude
Lévi-Strauss.
21
Diversas publicações apresentam versões sintéticas do meu relato do sofisticado mito
dos blackfoot, das quais a mais importante é o esboço de John C. Ewers, The Blackfoot: rai-
ders on the northwestern plains [Os Blackfoot: predadores das planícies do noroeste] (Nor-
man: University of Oklahoma Press. 1958: 168–69).
22
O homem-castor recebe este nome num compêndio de mitologia blackfoot de autoria
dum blackfoot, Percy Bullchild, The Sun Came Down [Baixou o Sol] (Nova Iorque: Harper &
Row. 1985.)
23
Para um resumo de apresentações de materiais para crianças sobre Mozart e, em me-
nor escala, sobre Beethoven, vide Kenneth McLeish e Valerie McLeish, The Oxford First Com-
panion to Music [O Primeiro Manual de Música de Oxford] (Londres: Oxford University Press,
1982), F14; Ian McLean, Mozart (Londres: Hamlin, 1990); Ian Woodward, Lives of the Great
Composers [Vidas dos Grandes Compositores] (Loughborough: Wills & Hepworth, 1969),
1:20-34; e Benjamin Britten & Imogen Holst, The Wonderful World of Music [O Mundo Mara-
vilhoso da Música] (Garden City: Doubleday, 1958: 42–43). Para uma abordagem ligeira-
mente mais adulta, vide Bruno Rauch, “Verehrt und vermarktet”, Coop–Zeitung (Basiléia),
18 de Julho de 1991, 38–43. Sou grato à minha colega Eve Harwood pelas informações so-
bre os materiais infantis. Outrossim, vide Csobádi et al. (org.), Das Phänomen Mozart; para
uma abordagem diferente e anterior, vide Edith Sterba & Richard Sterba, Beethoven and His
Nephew [Beethoven e Seu Sobrinho] (Nova Iorque: Pantheon, 1954) e Alessandra Comini,
The Changing Image of Beethoven: a study in myth-making [A Imagem Cambiante de Be-
ethoven: estudo sobre a construção dum mito] (Nova Iorque: Rizzoli. 1987).
24
Gustav Becking, Der musikalische Rhytmus als Erkenntnisquelle [O Ritmo Musical nas
Origens da Cognição] (Augsburg: B. Filser. 1928). Para trabalhos mais recentes em linhas
algo correlatas, vide Alan Lomax et. al., Folk Song Style and Culture [Estilo e Cultura da
Canção Folclórica] (Washington: American Association for the Advancement of Science.
1968).
25
Vide Joseph Kerman, Listen [Escute], 2ª ed. (Nova Iorque: Worth. 1976); Curt Sachs,
Our Musical Heritage [Nossa Herança Musical] (Nova Iorque: Prentice-Hall. 1948); e K. Marie

92
Stolba, The Development of Western Music: a history [O Desenvolvimento da Música Oci-
dental: uma história] (Dubuque: Wm. C. Brown. 1990] para exemplos de livros-texto nos
quais este tipo de classificação desempenha um papel. Sachs, sobretudo, faz uso dela em
seus subtítulos. Era, em minha experiência como graduando, um artifício mnemônico para
lembrar e associar compositores.
26
Alan P. Merriam, The Anthropology of Music (Evanston: Northwestern University Press.
1964), 85–86.
27
Alie Urbach, So kocht man in Wien [Assim Se Cozinha em Viena] (Vienna: Zentralge-
sellschaft für buchwerbliche und graphische Betriebe. 1936).
28
Bonnie Wade, Music in India: The Classical Traditions [Música na Índia: as tradições
clássicas] (Englewood Cliffs: Prentice-Hall. 1979: 78).
29
É verdade que se costuma usar o contraste entre Mozart e Beethoven como paradigma
de distinções importantes no mundo dos conceitos que gravitam em torno da música artísti-
ca ocidental. Mas o grau em que Mozart é fonte de simbolismo ultrapassa em muito o relati-
vo a Beethoven, conforme sugere um grande número de ensaios em Csobádi et al. (org.),
Das Phänomen Mozart. Nos aniversários de Beethoven, 1970 e 1977, não houve nada pró-
ximo ao volume de atenção que se dispensou a Mozart em 1991. A comparação é difícil, e a
inibe as mudanças na política, no papel da mídia de massa, e em questões econômicas, mas
os fatos de que Mozart parece (no que toca a nós — não esqueça, isso não tem nada a ver
com o que de fato ocorreu no século dezoito) mais suscetível a caracterizações e descrições
humorísticas que Beethoven, e que a sua música virtualmente define os parâmetros da mú-
sica ocidental e é mesmo, na superfície, ‘mais fácil de ouvir’, podem ambos ter um peso.
30
Anthony Burgess, A Clockwork Orange (Nova Iorque: Ballantine, 1963), and The End of
the World News (Nova Iorque: McGraw-Hill. 1983).
31
Bruno Nettl, The Radif of Persian Music [O Radif da Música Persa], ed. rev. (Cham-
paign: Elephant & Cat. 1987: 3–5, 104, 165).
32
Nettl, The Radif of Persian Music, 184–92.
33
Bruno Nettl, Blackfoot Musical Thought: comparative perspectives [O Pensamento Mu-
sical Blackfoot: perspectivas comparativas] (Kent: Kent State University Press. 1989: 137–
40).
34
Para um princípio de bibliografia, com toda a sua variedade disponível, vide Leonard B.
Meyer, Music, the Arts, and Ideas: patterns and predictions in twentieth-century culture [Mú-
sica, Artes e Idéias: padrões e previsões na cultura do século vinte] (Chicago: University of
Chicago Press. 1967); Charles Seeger, “Music and Class Structure in the United States” [Mú-
sica e Estrutura de Classe nos Estados Unidos], American Quarterly 9 (1957: 281–94);
Christopher Small, “Performance as Ritual: sketch for an enquiry into the nature of a sym-
phonic concert”, em Lost in Music: culture, style, and the musical event, org. de Avron Levi-
ne White (Londres: Routledge and Kegan Paul. 1987); Rose Subotnick, Developing Variati-
ons: style and ideology in western music (Minneapolis: University of Minnesota Press. 1991);
and Kingsbury, Music, Talent, and Performance.
35
Vários autores discutem isso, de Theodor W. Adorno, Introduction to the Sociology of
Music [Introdução à Sociologia da Música], trad. de E. B. Ashton (Nova Iorque: Continuum.
1976) até Small, “Performance as Ritual”, 17–18.
36
Para desenvolvimentos desta questão, vide Elias Canetti, Crowds and Power [Multidões
e Poder], trad. de Carol Stewart (Nova Iorque: Viking Press. 1962: 394–96).
37
E. D. Hirsch, Jr., Cultural Literacy: what every American needs to know [Alfabetização
Cultural: o que todo norte-americano deve saber] (Boston: Houghton Mifflin, 1987: 10–18).
38
Em Music, Talent, and Performance, Kingsbury discute, com uma ênfase considerável,
esta oposição entre ‘música’ e ‘notas’, e a diferença entre questões ‘musicais’ e ‘técnicas’, a
despeito do fato da palavra para peças em notação, nesta cultura, ser simplesmente música;
vide, em particular, os capítulos 4 e 6.

93
39
Há muito que isto é de entendimento implícito por parte dos etnomusicólogos, que
costumam dar bastante atenção aos processos de transmissão, em cada cultura, porém o
assunto não vem sofrendo, com freqüência, uma síntese intercultural. Vide, contudo, Merri-
am, The Anthropology of Music, cap. 8; Bruno Nettl, The Study of Ethnomusicology: twenty-
nine issues and concepts (Urbana: University of Illinois Press. 1983), cap. 25; e para uma
abordagem a partir da perspectiva da educação musical, Patricia Shehan Campbell, Lessons
from the World [Lições do Mundo] (Nova Iorque: Schirmer Books, 1991).
40
Curt Sachs, Our Musical Heritage (Nova Iorque: Prentice-Hall. 1948: 378).
41
Richard Schaal, “Konzertwesen” [Padrões de Concertos], em Die Musik Geschichte und
Gegenwart 7 [A História e Atualidade da Música], org. de Friedrich Blume (Kassel: Bärenrei-
ter. 1958: 1589, 1597).
42
A despeito da ampla vigência de padrões relativamente regulares, a construção do pro-
grama é um assunto que recebe muita atenção dos intérpretes, que o encaram como uma
questão bem pessoal. Para um exemplo de testemunho pessoal, vide Alfred Brendel, “The
Pianist and the Program” [O Pianista e o Programa], New York Review of Books, 22 de no-
vembro de 1990, 35–36.
43
Mueller, The American Symphony Orchestra, 183–209.
44
Tal não foi assim apenas em 1991, conforme aponta Csobádi et al. (org.), Das Phäno-
men Mozart, ou graças às obras ficcionais de Shaffer e seus predecessores, mas mesmo na
literatura acadêmica, conforme o indica o tom de Hildsheimer, Mozart, e dantes, conforme os
excertos de Alfred Orel, Mozart: Gloria Mundi (Salzburg: Ludwig Schäffer. 1956). No entanto,
é digno de nota que os maiores gestos de adoração apareçam em épocas da maior significa-
ção cerimonial, tais como nos centenários.

Capítulo 2: A Sociedade dos Músicos

1
Para comentários sobre a inter-relação social entre os músicos carnáticos, vide Kathleen
l’Armand e Adrian l’Armand, “Music in Madras: the urbanization of a cultural tradition” [Músi-
ca em Madras: a urbanização duma tradição cultural], em Eight Urban Musical Cultures [Oito
Culturas Musicais Urbanas], org. de Bruno Nettl (Urbana: University of Illinois Press, 1978:
115–45).
2
É tentador usar a terminologia antiga da antropologia sociocultural e descrever a socie-
dade da escola de música como uma ‘tribo’, em parte por tenderem os seus membros a ver
a si mesmos como um grupo coeso, com uma metalinguagem, ritual e valores distintivos.
Seja tal analogia é válida ou não, seu uso na antropologia moderna não seria inédito. Vide,
por exemplo, J. McIver Weatherford, Tribes on the Hill: the U.S. Congress, rituals, and reali-
ties [Tribos na Colina: o congresso norte-americano, rituais e realidades], ed. rev. (South
Hadley: Bergin & Garvey, 1985).
3
Daniel M. Neuman, The Life of Music in North India (Detroit: Wayne State University
Press. 1980).
4
Vide Alan P. Merriam & Raymond W. Mack, “The Jazz Community”, Social Forces 38
(1960: 211–22); Alan P. Merriam, The Anthropology of Music (Evanston: Northwestern Uni-
versity Press. 1964), 137–39; Alan Lomax, “Folksong Style” [O Estilo da Canção Folclórica],
American Anthropologist 61 (1959: 927–54), e Folk Song Style and Culture [O Estilo da Can-
ção Folclórica e a Cultura] (Washington: American Association for the Advancement of Scien-
ce. 1968); Christopher Alan Waterman, Juju: a social history and ethnography of a west afri-
can popular music [Juju: história social e etnografia duma música popular da África Ociden-
tal] (Chicago: University of Chicago Press. 1990); e Bruno Nettl, The Radif of Persian Music,
ed. rev. (Champaign: Elephant & Cat. 1992: 186–93).
5
Na bibliografia musical se discute amplamente a questão da estratificação social e musi-
cal. Para discussões fundamentais, vide Max Weber, Die rationalen und soziologischen Grun-

94
dlagen der Musik [Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música] (Munique: Drei
Masken. 1921); Kurt Blaukopf, Musik im Wandel der Gesellshaft [A Música em Trânsito na
Sociedade] (Munique: R. Piper. 1982); John Shepherd (org.), Whose Music? a sociology of
musical languages [Música de Quem? uma sociologia das linguagens musicais] (Londres: La-
timer. 1977); e Pierre Bourdieu, Distinction: a social critique of the judgement of taste
(Cambridge: Harvard University Press. 1984).
6
Richard A. Waterman, “Music in Australian Aboriginal Culture: some sociological and
psychological implications” [A Música numa Cultura Aborígene Australiana: algumas implica-
ções sociológicas e psicológicas], Music Therapy 5 (1956: 41, 47).
[...]
16
Neuman, The Life of Music in North India, 164–65.
17
Henry Kingsbury, Music, Talent, and Performance: a conservatory cultural system (Fila-
délfia: Temple University Press, 1988: 85–86), lide com a significância das linhagens musi-
cais, e o principal professor descrito em seu livro é aluno de Artur Schnabel. Ele descreve a
importância do estúdio como um ponto nodal na sociedade do conservatório (85–110).
18
Este tipo de informação se encontra de pronto disponível em dicionários e enciclopédias
de música em geral, e assim não está explicitamente documentado aqui.
19
Vide Shim, “Taking Lessons and Practicing”, 112-114.
20
A herança e as linhagens têm igual importância nas escolas de música domésticas, mas
o papel do estúdio não é central, graças à importância relativamente maior dos aspectos
acadêmicos do currículo musical, e às relações entre a música e as disciplinas acadêmicas
mais tradicionais.
21
Carta de Edmund J. James, 1º. de agosto de 1914, Urbana-Champaign, Illinois, publi-
cada em Campus Report (Setembro de 1973: 1).
22
Informações deste tipo se encontram de pronto em livros de referência geral em músi-
ca, tais como o de Nicholas Slonimsky, Baker’s Biographical Dictionary of Musicians, 6ª ed.
(Nova Iorque: Schirmer. 1978); Stanley Sadie (org.), The New Grove Dictionary of Music and
Musicians [Novo Dicionário Grove de Música e Músicos], 20 vol. (Londres: Macmillan. 1980);
e H. Wiley Hitchcock & Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of American Music [Novo
Dicionário Grove da Música Americana] (Londres: Macmillan. 1986).
23
Vide Bourdieu, Distinction, 131–33, para observações argutas sobre as relações de
classes e profissões e mobilidade social.
24
College Music Society, Directory of Music Faculties [Catálogo de Docentes em Música].

Capítulo 3: Um Espaço para Todas as Músicas? confronto e mediação

1
Para um comentário imparcial sobre estes temas, vide Katherine Bergeron & Philip V.
Bohlman (org.), Disciplining Music: musicology and its canons (Chicago: University of Chica-
go Press. 1992), e Rose Subotnick, Developing Variations: style and ideology in western mu-
sic (Minneapolis: University of Minnesota Press. 1991). Discute-se a questão dos cânones (de
modo menos imparcial) nas famosas obras de Allan Bloom, The Closing of the American Mind
[O Estreitamento do Pensamento Norte-Americano] (Nova Iorque: Simon & Schuster. 1987),
e E. D. Hirsch, Jr., Cultural Literacy: what every American needs to know (Boston: Houghton
Mifflin. 1987).
2
Vide Don Randel em Disciplining Music, org. de Bergeron & Bohlman, 15.
[...]
5
Mark Slobin, “Micromusics of the West: a comparative approach” [Micromúsicas do Oci-
dente: uma abordagem comparativa], Ethnomusicology 36 (1982: 1–87).
6
Ruth Finnegan, The Hidden Musicians: music-making in an English town (Cambridge:
Cambridge University Press, 1989).

95
7
Para amostras e fontes, vide Richard Schaal, “Konzertwesen”, em Die Musik Geschichte
und Gegenwart 7, org. de Friedrich Blume (Kassel: Bärenreiter. 1958: 1587–1605). Para dis-
cussões acerca de estruturas de concertos e amostras de programas, vide Alice M. Hanson,
Musical Life in Biedermeier Vienna [A Vida Musical na Viena de Biedermeier] (Cambridge:
Cambridge University Press. 1985).
8
Para uma bibliografia genérica e complementar, vide Peter Manuel, Popular Musics of
the Non-Western World [Músicas Populares do Mundo Não-Ocidental] (Nova Iorque: Oxford
University Press. 1988) e Cassette Culture [A Cultura da Fita Cassete] (Chicago: University
of Chicago Press. 1993); e Bruno Nettl, “Persian Popular Music in 1969” [Música Popular Per-
sa em 1969], Ethnomusicology 16 (1972: 218–39).
9
Vide Tatiana Calhamer, “Shrine, Zoo, Museum, Archive, Lab: a record store in campus-
town” [Santuário, Zoológico, Museu, Arquivo, Laboratório: uma loja de discos no campus
universitário], em Community of Music: an ethnographic seminar in Champaign-Urbana, org.
de Tamara E. Livingstone et. al. (Champaign: Elephant & Cat. 1993: 15–28).
10
Theodore Grame, “Music in the Jma al-F’na of Marrakesh” [Música no Jma al-F’na de
Marrakesh], Musical Quarterly 56 (1970: 74–83).
11
Christopher Small observa isto em detalhe, ainda que o atribua a causas um tanto di-
ferentes, em “Perfomance as Ritual: sketch for an enquiry into the nature of a symphony
concert”, em Lost in Music: Culture, Style, and the Musical Event [Perdido na Música: estilo,
cultura e o evento musical], org. de Avron Levine White (Londres: Routledge & Kegan Paul.
1987: 10–11).
12
O caráter exótico do gamelão é questionável, no contexto das instituições norte-
americanas. De acordo com um funcionário da embaixada da Indonésia, com o encargo de
fazer tais registros, havia mais de duzentas orquestras de gamelão existentes e ativas nos
Estados Unidos, em 1992. Rivalizando com uma quantidade dos ditos Collegia Musica, as or-
questras de gamelão podem ser vistas como pertencentes e detentoras duma função comum
junto à cultura norte-americana.
13
Muitos autores que lidaram com a música dos anos 1980 trouxeram esta questão à
tona tangencialmente. Vide, por exemplo, Lawrence Grossberg, “Another Boring Day in Pa-
radise: rock and roll and the enjoyment of everyday life” [Mais um Dia Chato no Paraíso:
rock and roll e o gozo da vida cotidiana], Popular Music 4 (1984: 225–58), e Peter Wicke,
“Rock Music: a musical-aesthetic study” [Música Rock: um estudo estético-musical], Popular
Music 2 (1982: 219–44). Normalmente a atribuição de aspectos políticos à intocabilidade
acadêmica do rock e country e western vem daqueles que se associam a estes gêneros; os
adeptos do cânone clássico atribuem razões estéticas. Vide Lawrence Grossberg, We Gotta
Get Out of This Place [A Gente Tem Que Sair Daqui] (Nova Iorque: Routledge. 1992: 194–
98), e Richard Middleton, Studying Popular Music [Estudando a Música Popular] (Milton
Keynes: Open University Press. 1990: 103–8).
14
Vide Randel em Disciplining Music, org. de Bergeron & Bohlman, 17.
15
Vide, por exemplo, Subotnick, Developing Variations, e Stephen Blum, Philip Bohlman &
Daniel M. Neuman (org.), Ethnomusicology and Modern Music History [Etnomusicologia e
História da Música Moderna] (Urbana: University of Illinois Press. 1991).
16
Para uma amostragem da literatura relevante, vide Leonard B. Meyer, Music, the Arts,
and Ideas: patterns and predictions in twentieth-century culture (Chicago: University of Chi-
cago Press. 1967); Carl Dahlhaus, Grundlagen der Musikgeschichte [Fundamentos da Histó-
ria da Música] (Colônia: Hans Gerig. 1977); e Georg Knepler, Geschichte als Weg zum Mu-
sikverständnis [A História a Caminho da Compreensão da Música], 2ª. ed. (Leipzig: Reclam.
1982).
17
A bibliografia dos últimos anos que se pode citar, a apoiar e ilustrar as últimas três fra-
ses, praticamente não tem fim. Uma variedade de pontos-de-vista e abordagens inclui: Jo-
seph Kerman, Contemplating Music: challenges do musicology [Contemplando a Música: de-
safios à musicologia] (Cambridge: Harvard University Press. 1985); Albrecht Schneider,
Analogie und Rekonstruktion: Studien zur Metodologie der Musikgeschichtsschreibung und

96
zur Frühgeschichte der Musik [Analogia e Reconstrução: estudos sobre a metodologia de es-
crita da história da música e sobre a história antiga da música], Volume 1 (Bonn: Verlag für
systematische Musikwissenschaft. 1984); Susan McClary, Feminine Endings: Music, Gender,
and Sexuality (Minneapolis: University of Minnesota Press. 1991); e Bergeron & Bohlman
(org.), Disciplining Music (Chicago: University of Chicago Press. 1992).
18
Bruno Nettl, Blackfoot Musical Thought: comparative perspectives (Kent: Kent State
University Press. 1989: 109–15).
19
Vide os textos de Gustave Reese, Manfred Bukofzer, Alfred Einstein e William Austin na
Norton Series, que se publicou durante os anos 1940 e 1950; as discussões em Perspectives
in Musicology [Perspectivas na Musicologia], org. de Barry S. Brook et al. (Nova Iorque:
Norton. 1972); Warren D. Allen, Philosophies of Music History: a study of general histories of
music 1600–1960 [Filosofias da História da Música: um estudo de histórias gerais da música]
(Nova Iorque: Dover. 1962]; e, para uma amostragem de manuais, vide K. Marie Stolba,
The Development of Western Music: a history [O Desenvolvimento da Música Ocidental: uma
história] (Dubuque: Wm. C. Brown. 1990]; Stanley Sadie, Music Guide: An Introduction [O
Guia da Música: uma introdução] (Englewood Cliffs: Prentice-Hall. 1986]; a Prentice-Hall
History of Music Series [Série Prentice-Hall de História da Música], org. de W. Wiley Hi-
tchcock; e Kenneth Levy, Music: a listener’s introduction [Música: uma introdução ao ouvin-
te] (Nova Iorque: Harper & Row. 1983].
20
Vide, para exemplificar, a maioria dos ensaios em Blum, Bohlman & Neuman (org.),
Ethnomusicology and Modern Music History.
21
A bibliografia que as notas 14 e 15 deste capítulo citam é relevante aqui também; vide
Kerman, Contemplating Music; Subotnick, Developing Variations; e Bergeron & Bohlman
(org.), Disciplining Music. O escopo próprio da musicologia vêm sendo uma questão há déca-
das, está claro. Vide, por exemplo, Gustave Reese, em Perspectives in Musicology, org. de
Brook et al., 11–13, onde o preenchimento de lacunas implica quase que apenas os vazios
em nosso conhecimento da música antiga.
22
Judith Becker, “Is Western Art Music Superior?”, Musical Quarterly 72 (1986: 341–59).
23
Kerman, Contemplating Music, 174; vide também Hans Heinrich Eggebrecht, “Historio-
graphy” [Historiografia], in The New Grove Dictionary of Music and Musicians (Londres: Ma-
cmillan. 1980. 8: 593).
24
Donald Jay Grout, A History of Music [Uma História da Música] (Nova Iorque: Norton.
1960); a Prentice-Hall History of Music Series dedica volumes mais ou menos do mesmo ta-
manho aos seis períodos.
25
Na segunda edição de Listen [Ouça] (Nova Iorque: Worth Publishers. 1976), Joseph
Kerman dedica cerca de um quarto do seu espaço ao século vinte; quatro páginas do que
são sobre rock e oito sobre “American Popular Music: jazz” [Música Popular Norte-
Americana: jazz”. Na sexta edição de The Enjoyment of Music [A Fruição da Música] (Nova
Iorque: Norton. 1990), Joseph Machlis dedica cerca de 130 das quase que 530 páginas ao
século vinte; daquelas, quatorze páginas são sobre estilos populares, e oito são sobre música
não ocidental. Na quarta edição de Music [Música] (Englewood Cliffs: Prentice-Hall. 1988),
Daniel T. Politoske dedica cerca de 25 por cento (125 páginas) ao século vinte, e dentro dis-
so, mais ou menos vinte e cinco páginas à música popular e ao jazz; há um capítulo de doze
páginas sobre “Aspects of Music in Some non-Western Cultures” [Aspectos da Música em Al-
gumas Culturas Não Ocidentais].
26
A obra do influente historiador da música Carl Dahlhaus é ilustrativa. Em seus relatos
sobre a história da música ocidental, percebe-se o fio central de Bach–Beethoven–Wagner–
Schoenberg. Vide o seu Die Idee der absoluten Musik [A Idéia de Música Absoluta] (Kassel:
Bärenreiter. 1978: 118–27). Mas Foundations of Music History [Fundamentos da História da
Música], de Dahlhaus, na tradução de J. B. Robinson (Cambridge: Cambridge University
Press. 1983), o conceito de história estrutural, essencial para a identificação do central e do
periférico, é sujeito a ampla crítica (129–50).

97
27
Usou-se estes termos para distinguir abordagens contrastantes à assimilação das mi-
norias, sobretudo na distinção de políticas públicas nos Estados Unidos e no Canadá. Cons-
tam definições simples em Jean Burnet, “Multiculturalism” [Multiculturalismo], The Canadian
Encyclopedia [A Enciclopédia Canadense] (Edmonton: Hurtig. 1988 3: 1401). Para uma ilus-
tração anterior, vide Charles Wagley & Marvin Harris, Minorities in the New World [Minorias
no Mundo Novo] (Nova Iorque: Columbia University Press. 1958). Timothy J. McGee mencio-
na a peculiaridade da abordagem canadense no contexto musical em The Music of Canada [A
Música do Canadá] (Nova Iorque: Norton. 1985: 105–7).
28
Bruno Nettl, The Western Impact on World Music [O Impacto Ocidental na Música do
Mundo] (Nova Iorque: Schirmer Books. 1985: 149–64).

Capítulo 4: Incursões no Repertório


1
Bruno Nettl, Blackfoot Musical Thought: comparative perspectives (Kent: Kent State
University Press. 1989: 124–28).
2
Anthony Seeger, Why Suyá Sing (Cambridge: Cambridge University Press. 1988).
3
Na bibliografia musical se discute amplamente a questão da estratificação social e musi-
cal. Vide, por exemplo, Kurt Blaukopf, Musik im Wandel der Gesellshaft [A Música em Trân-
sito na Sociedade] (Munique: R. Piper. 1982); diversos ensaios em Whose Music?, org. de
John Shepherd (Londres: Latimer. 1977); e, um clássico mais antigo, Charles Seeger, “Music
and Class Structure in the United States”, American Quarterly 9 (1957: 281–94).
4
J. D. Slotkin, Menomini Peyotism [Peiotismo Menomini] (Filadélfia: Transactions of the
American Philosophical Society. 1952: 124–28).
5
Para uma amostra da bibliografia relevante na sociologia da música e na etnomusicolo-
gia, vide Ivo Supicic, “Music and Ceremony: another aspect” [Música e Cerimônia: outro as-
pecto], International Review of Music Aesthetics and Sociology 13 (1982: 21–38); Ruth Sto-
ne, Let the Inside Be Sweet [Deixe que Seja Doce por Dentro] (Bloomington: Indiana Uni-
versity Press. 1982); e Seeger, Why Suyá Sing.
6
A interpretação de muitos eventos importantes tais como rituais, e a comparação es-
trutural dos rituais duma cultura, constituem uma vertente importante na bibliografia antro-
pológica e folclorística. Um dos principais clássicos é de Mary Douglas, “Deciphering a Meal”
[Decifrando uma Refeição], em Myth, Symbol, and Culture [Mito, Símbolo e Cultura], org. de
Clifford Geertz (Nova Iorque: Norton. 1971: 61–82). Para uma visão genética, vide as mui-
tas obras de Claude Lévi-Strauss que lidam com os aspectos rituais dos alimentos. Para uma
comparação dos rituais dentro duma cultura, num espírito leve porém instigante, vide Nigel
Barley, The Innocent Anthropologist [O Antropólogo Inocente] (Londres: British Museum Pu-
blications. 1983). E quanto à análise de concertos enquanto rituais, vide Christopher Small,
“Performance as Ritual: sketch for an enquiry into the nature of a symphony concert”, em
Lost in Music: Culture, Style, and the Musical Event, org. de Avron Levine White (Londres:
Routledge & Kegan Paul. 1987: 6–23).
7
A tradição de ‘canções da faculdade’, publicada em livros específicos de faculdades ou
universidades, bem remonta ao século dezenove. Vide, por exemplo, Illini Song Book [Livro
de Canções de Illinois], 2ª. ed. (Urbana: Illinois Union. 1926); e The Northwestern Song Bo-
ok [O Livro de Canções da Noroeste] (Evanston: Student Body. n.d. [c. 1990]). Para uma
história anedótica, vide Cary Clive Buford, We’re Loyal to You, Illinois (Danville, Ill.: Inters-
tate. 1952).
8
Este filme norte-americano se baseia num romance de Brian Garfield. A produção é de
1980 e o diretor é Ronald Neame, com Walter Matthau e Glenda Jackson. Agradeço a Dennis
Lloyd por me o indicar.
9
Walter Wiora, Das musikalische Kunstwerke (Tutzing: Hans Schneider. 1983).

98
10
Vide sobretudo Katherine Bergeron & Philip V. Bohlman (org.), Disciplining Music: mu-
sicology and its canons (Chicago: University of Chicago Press. 1992).
11
Vide Melinda Russell, “Undergraduate Conceptions of Music”, em Community of Music:
an ethnographic seminar in Champaign-Urbana, org. de Tamara E. Livingstone et. al.
(Champaign: Elephant & Cat. 1992: 159–74). Um exemplo anterior de estudos etnomusico-
lógicos que abordam valores musicais fundamentais através de entrevistas ou questionários
a alunos é Charles & Angeliki Keil, “Musical Meaning: a preliminary report” [Significação Mu-
sical: um relatório preliminar], Ethnomusicology 10 (1966: 153–73); vide também Bruno
Nettl, “A Technique of Ethnomusicology Applied to Western Culture”, Ethnomusicology 7
(1963: 221–24).
12
Christopher Small, “Performance as Ritual: sketch for an enquiry into the nature of a
symphonic concert”, em Lost in Music, org. de White, 11–14.
13
Há uma copiosa bibliografia relevante, indo desde Crowds and Power, do beletrista Elias
Canetti (Nova Iorque: Viking Press. 1962), a Tonality in Western Culture [A Tonalidade na
Cultura Ocidental], de Richard Norton (College Station: Pennsylvania State University Press.
1984), até o ensaio introdutório de Stephen Blum em Ethnomusicology and Modern Music
History, org. de Stephen Blum, Philip Bohlman & Daniel M. Neuman (Urbana: University of
Illinois Press. 1991).
Ainda que o público de música clássica na cultura norte-americana aparente ver a si
mesmo como sem distinção de classe ou, em linhas gerais, de classe média, uma enquete
informal sobre a música que acompanhava comerciais de televisão, em 1990–91, sugere
uma interpretação diferente. Usava-se a música clássica como música de fundo em comerci-
ais de automóveis caros, cafés e vinhos finos e alimentos gastronômicos, produtos acessíveis
sobretudo aos estratos econômicos mais altos. Este aparato aparentemente fora de moda e
tradicional da boa vida chegava ao cúmulo com Mozart e Bach, ao passo que outras merca-
dorias caras, tais como roupas de estilista ou maquinário caro de computador ou escritório,
eram vendidas através de estilos musicais bem diferentes, mais afins aos anos 1980.
14
Margaret J. Kartomi, On Concepts and Classifications of Musical Instruments [De Con-
ceitos e Classificações de Instrumentos Musicais] (University of Chicago Press. 1990).
15
Vide, por exemplo, Christopher Waterman, Juju: a social history and ethnography of a
west african popular music (University of Chicago Press. 1990: 38); Paul Berliner, The Soul
of Mbira [A Alma da Mbira] (Berkeley: University of California Press. 1978: 1-2, 58); e Sto-
ne, Let the Inside Be Sweet, 88–90.
16
Bruno Nettl, The Western Impact on World Music (Nova Iorque: Schirmer Books. 1985:
57–60).
17
Soren Kierkegaard, citado em Alfred Orel, Mozart: Gloria Mundi (Salzburg: Ludwig
Schäffer. 1956: 99–101).
18
Judith Becker, “Is Western Art Music Superior?”, Musical Quarterly 72 (1986: 341–59).
19
Este tipo de especulação e análise grassa na bibliografia sobre Mozart, pelo menos des-
de Alfred Einstein, Mozart, His Character, His Work (Londres: Oxford University Press. 1945),
até as análises recentes na ficção (Peter Shaffer, Amadeus [Nova Iorque: Harper and Row.
1980]) e na academia, tal como Peter Csobádi et al. (org.), Das Phänomen Mozart im 20.
Jahrhundert: Wirkung, Verarbeitung und Vermarktung in Literatur, bildender Kunst und in
den Medien (Anif/Salzburg: Ursula Müller-Speiser. 1991).
20
Small, “Performance as Ritual”, 7, 9.
21
Algo que alguns dos mais veneráveis textos deixam claro para os calouros da faculda-
de. Vide Curt Sachs, Our Musical Heritage (Nova Iorque: Prentice-Hall. 1948: 305).
22
A. R. Radcliffe-Brown, “On Social Structure” [Da Estrutura Social], Journal of the Royal
Anthropological Institute 70 (1940: 2–3); Marvin Harris, Cultural Materialism [Materialismo
Cultural] (Nova Iorque: Random House. 1979: 77–115); Alan Lomax et al., Folk Song Style
and Culture (Washington: American Association for the Advancement of Science. 1968:
133). Está claro que os pontos-de-vista destes acadêmicos nem sempre gozaram de aceita-

99
ção por parte de toda a profissão antropológica, mas nestes ensaios, considero-os úteis para
a empresa.
23
Daniel M. Neuman, The Life of Music in North India (Detroit: Wayne State University
Press. 1980: 28).
24
Nettl, Blackfoot Musical Thought, 106, 108, 122. A definição do termo consta em Milton
Singer, When a Great Tradition Modernises [Quando uma Grande Tradição se Moderniza]
(Nova Iorque: Praeger Publishers. 1972: 70–74).
25
Clifford Geertz, “Deep Play: notes on the Balinese cockfight”, Daedalus 101 (1972): 1-
37. Para exemplos de descrições ‘espessas’ de eventos musicais, no sentido de Geertz, vide
em particular Seeger, Why Suyá Sing, e Regula Qureshi, Sufi Music of India and Pakistan:
sound, context, and meaning in Qawwali [Música Sufi no Paquistão: som, contexto e signifi-
cação no qawwali] (Cambridge: Cambridge University Press, 1987).
26
Vide Csobádi et al. (org.), Das Phänomen Mozart; e Richard Taruskin, “Why Mozart Has
Become an Icon for Today”, New York Times, 9 de Setembro de 1990, H35, H40.
27
Vide Lee C. Leighton (org.), The Encyclopedia of Education [A Enciclopédia da Educa-
ção] (Nova Iorque: MacMillan. 1971, 1: 31–32).
28
Charles Franklyn, “Academic Dress” [Vestuário Acadêmico], The International Encyclo-
pedia of Higher Education [Enciclopédia Internacional da Educação Superior] (San Francisco:
Jossey-Bass. 1977, 2: 23).

Posfácio
1
Henry Kingsbury, Music, Talent, and Performance: a conservatory cultural system (Fila-
délfia: Temple University Press, 1988).
2
Ellen Koskoff, resenha de Kingsbury, Music, Talent, and Performance, em Ethnomusico-
logy 34 (1990: 314).
3
Kingsbury ao Editor, Ethnomusicology 35 (1991: 81–82).

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