Você está na página 1de 39

Cartas do Erasmo 2021- Paula Alves - 1

Autor
ERASMO GURGEL
Espírito

Cartas do
Erasmo
Erasmo
2021
2021
Erasmo
2021
Psicografado por
PAULA ALVES
2021

2 – Cartas do Erasmo – 2021 – Erasmo Gurgel


Dados internacionais de catalogação na publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Gurgel, Erasmo (Espírit)


Cartas do Erasmo 2021 / ditado pelo Espírito
Erasmo Gurgel, psicografado por Paula Alves.
-- Guarulhos, SP : Paula Cintia Del Nero Martins
Alves, 2021.

ISBN 978-65-00-37541-1

1. Espiritismo 2. Mediunidade 3. Psicografia


I. Alves, Paula. II. Título.

22-97859 CDD-133.93
Índices para catálogo sistemático:
1.Psicografia : Espiritismo 133.93

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

Cada Real que você utiliza para compra


Revisão de um livro espírita viabiliza 0bras

Paula Alves sociais e de divulgação da doutrina, às


quais são destinados os direitos
Diagramação e Capa
autorais. Revisão e Capa trabalhos
Magno Ribeiro
cedidos gratuitamente. Nesta obra
Impressão
respeitou-se o Acordo Ortográfico da
Geográfica Língua Portuguesa (1990), ratificado em
2008

Erasmo Gurgel
wwww.erasmogurgel.com.br
Guarulhos - SP - Brasil

Cartas do Erasmo 2021- Paula Alves - 3


“Eu deveria parar de contemplar o erro da maioria e me
incluir na minoria que faz pelo todo”
Cristiane

Autor
ERASMO GURGEL
Espírito

Cartas do
Erasmo
Erasmo
2021
2021
Erasmo Psicografado por
PAULA ALVES

2021 2021

4 – Cartas do Erasmo – 2021 – Erasmo Gurgel


Cartas do Erasmo 2021- Paula Alves - 5
CARTA DO AUTOR PARA A MÉDIUM

C
ada trabalho é único, árduo, exige esforço e
dedicação. Reconhecer que somos imortais é a
primeira parte para compreender este trabalho.
Entender que existe um mundo invisível, cheio
de seres inteligentes e que carregam consigo
aprendizados, virtudes e afetos, lembranças e
necessidades, é a segunda parte.
Quando nos conscientizamos da grandiosidade
das criações de Deus e de todos os seus propósitos
para conosco, podemos enxergar melhor a
espiritualidade e este singelo trabalho adquire a razão
de ser o que é, um despertar para as consciências.
Ouvir o outro é caridade, mas não apenas com o
outro, também para conosco. Quando você ouve o
desabafo, você permite que a pessoa se liberte daquilo
que lhe incomoda e se sinta livre daquele peso que
carrega por tanto tempo, mas, desta forma, você se
envolve com o assunto em questão e pode aprender com
a vivência alheia.
É como se você tivesse a oportunidade de
encurtar o caminho do sofrimento porque seu
aprendizado faz você pegar um atalho, você erra menos
com a experiência do outro. Isso faz deste trabalho algo
eficiente para todos aqueles que se envolvem com ele.
É eficiente para mim e para todo o grupo de
assistência. É eficiente para a médium. Eficiente para o
Espírito que está sendo assistido e para todos os
leitores que colocarem em prática as orientações que
puderem perceber.

6 – Cartas do Erasmo – 2021 – Erasmo Gurgel


Segundo Allan Kardec, todas as informações dos
Espíritos podem ser pertinentes para nossa evolução,
mas todas as informações devem ser avaliadas, devem
passar pelo crivo da razão.
Todas as cartas são baseadas em fatos reais. São
relatos de pacientes que envio, eu — Erasmo Gurgel, à
médium Paula Alves.
As cartas de Erasmo podem ser enviadas ao plano
material após passarem por análise dos nossos
superiores. Sempre são adequadas para alguém, para
algum leitor e servem para dar paz e tranquilidade
àquele que deseja se manifestar.
Como deve ser grandiosa a oportunidade que
alguns recebem de se reportarem ao plano físico...
Nós prosseguimos com o trabalho de levar
informação sobre o plano espiritual, engajados no
propósito de esclarecer encarnados e facilitar o trânsito
na Terra para que as pessoas se certifiquem de que
todos nascem para se desenvolverem, se reconciliarem,
trabalharem, assimilarem e progredirem.
Todas as vidas são importantes para Deus que
coloca ao seu lado um ser mais experiente do que você,
para te auxiliar na sua caminhada terrestre.
Espero que estas histórias de vida te esclareçam,
incentivem e facilitem a sua compreensão sobre a vida
no plano espiritual.
Para que nenhuma palavra se perca no anonimato,
prosseguimos. Gratidão.

Erasmo Gurgel

Cartas do Erasmo 2021- Paula Alves - 7


SUMÁRIO
Capítulo-1
CARTAS DE JANEIRO................................................................08
Capítulo-2
CARTAS DE FEVEREIRO.......................................................39
Capítulo-3
CARTAS DE MARÇO..............................................................66
Capítulo-4
CARTAS DE ABRIL..................................................................96
Capítulo-5
CARTAS DE MAIO..................................................................125
Capítulo-6
CARTAS DE JUNHO...............................................................157
Capítulo-7
CARTAS DE JULHO.............................................................182
Capítulo-8
CARTAS DE AGOSTO..........................................................205
Capítulo-9
CARTAS DE SETEMBRO..........................................................232
Capítulo-10
CARTAS DE OUTUBRO............................................................258
Capítulo-11
CARTAS DE NOVEMBRO.....................................................290
Capítulo-12
CARTAS DE DEZEMBRO.........................................................316

8 – Cartas do Erasmo – 2021 – Erasmo Gurgel


Capítulo-1
CARTAS DE JANEIRO

“A vida não termina com a morte, mas um erro pode


quebrar com a vida de alguém”

E
u estava bastante ansioso. Fiquei pensando se seria possível
enviar notícias aos meus familiares. Coisa incrível eu ainda
estar vivo. Mais incrível ainda é esta forma maravilhosa de me
comunicar. Compreendo que não seja muito aceita por todos.
Quem poderia imaginar o quanto estamos atentos a tudo o que ocorre
na Terra?
Nada mudou. Eu ainda me preocupo com eles, com todos eles.
Queria ter estado presente em todos os acontecimentos importantes. Eu
sempre os amei. Queria ter tido mais tempo, mas quem pode garantir
que o dia chegou? Quem pode garantir que viveu tudo o que tinha para
viver e o quanto a sua vida foi proveitosa.
Não que este seja o meu caso, mas quem pode determinar o
quanto fez render a própria vida? Eu sinto que, apesar de ter partido tão
jovem, fiz coisas muito legais. Eu conheci pessoas geniais, pessoas que
foram amigos leais, familiares que demonstraram seu amor. Nasci num
lugar onde vivia muita gente simples, de bons hábitos e boas maneiras.
Faltava recursos, mas sobrava honestidade e fé.
Me envolvi com grupos de pessoas que se uniam para fazer o
bem e conheci a Rita, mulher trabalhadora, visionária que sonhava
transformar o mundo. Eu também quis transformar o mundo com meu
jeito de ser, com minha fala mansa e meu otimismo.
Sempre acreditei que o bem triunfa, apesar de todas as
adversidades, ainda hoje penso assim. Deus não nos criou para sofrer,
mas sim para reagir e aprender a sermos pessoas cada vez melhores.
Nossa obrigação é nos superarmos. Não estamos neste mundo para
competirmos, mas para nos unirmos, já que todos pretendem alcançar
a sua própria evolução. A questão está ligada a individualidade. Você se
supera todos os dias, se redescobre, mas é a partir do contato com os

Cartas do Erasmo 2021- Paula Alves - 9


outros que consegue se melhorar. Eu pude fazer algo que sempre
almejei, fui salva-vidas.
Eu sabia que aquela maneira de servir poderia me fazer melhorar
muito porque eu colocava minha vida em risco para salva outras
pessoas. A imprudência de alguns, muitas vezes, danifica a vida de
outros.
Mas, eu nunca poderia pensar que um ser, por pura brincadeira,
colocaria em jogo a vida de outra pessoa. Eu estava feliz naquele dia
porque a Rita tinha dito sim. Mesmo com incertezas, sem nada, ainda
assim, ela me disse sim. Eu fazia planos de nos casarmos, termos filhos
lindos como ela. Eu nunca parei para pensar em enriquecer ou ter o
melhor carro para me exibir por aí, eu queria uma família, filhos, uma
vida de alegria e paz.
Enquanto eu imaginava minha vida, não reparei num grupo de
amigos que se divertia. Quando dei por mim, alguém pedia socorro e eu
corri. Eu só pensava em salvar. Um medo terrível se apossou de mim.
Eu não temi por mim, mas pela pessoa que sofria no mar. Eu temi que
ela se desesperasse e não conseguisse me esperar. Eu temi que fosse
frágil, que estivesse cansado para retornar à superfície. A pessoa que
trabalha para preservar a vida, também fica insegura e apreensiva.
Eu corri tanto e o caminho parecia bem mais longo, mas eu nadei
e não vi mais ninguém.
Eu nadei e procurei e me desesperei que ele tivesse sido tragado
pelas ondas. Eu pedi a Deus que o protegesse e nem percebi o quanto
estava aflito e cansado de procurar. Aí eu vacilei e fui tragado. Eu
pensei em mim e na Rita. Pensei que, de uma hora para a outra, nossa
vida pode mudar e tudo ser apagado. Suas preocupações e anseios ficam
tão insignificantes porque não vão servir de nada.
Lembrei dos meus pais e no quanto ficariam entristecidos sem
mim. Eu chorei antes do fim. Tentei respirar e já não conseguia, então,
eu afundei coberto de consciência, sem ter forças para voltar. Eu ainda
me lembrei do treinamento, de todas as vezes que ri, dizendo que tinha
um fôlego de homem do mar, eu era Netuno. Mas, minha vida estava se
apagando e eu chorei.
A vida não termina com a morte, mas um erro pode quebrar com
a vida de alguém. O rapaz estava só brincando, disseram todos que

10 – Cartas do Erasmo – 2021 – Erasmo Gurgel


estavam envolvidos no meu afogamento. Eu nem percebi quando
tiraram ele do mar. Era só gracinha e insensatez que resultou na minha
morte.
Eu não culpo, também era jovem, mas eu usei minha juventude
com o intuito de salvar vidas.

Samuel

“Todos nós temos um dia para retornar”

Por que tínhamos que nos separar? Eu estava com ele quando
tudo aconteceu. As brigas pareciam ser frequentes. Por qualquer coisa,
por todos os motivos, nós discordávamos.
A gente nem percebe quando se transforma num ser
insuportável, mas era recíproco. As pessoas diziam que a gente se
merecia. Impressionante porque brigávamos, mas nem um de nós
aceitava que mexessem com o outro. Eu o defendia e vice-versa.
Estranho também como tínhamos as mesmas opiniões, a mesma forma
de enxergar o mundo.
Eu não poderia viver sem ele. Estávamos casados há mais de
trinta anos. Eu sabia de tudo o que ele gostava e, às vezes, fazia de tudo
para irritá-lo só para ter assunto. Nossa vida foi assim depois dos filhos
e netos partirem para longe. Eles crescem e descobrem que não
gostam mais da terra natal. Eles acham que é melhor sem nós e vão
embora. A vida ficou tão triste e sem graça. A gente conhece tanto o
outro que nem precisa conversar. Você sabe direitinho tudo o que ele
gosta de comer e como gosta, não precisa perguntar, então a gente
resolveu brigar para ter assunto.
Vida diferente, mas era a minha vida e eu gostava dela. Já me
perguntei quando chega a hora de desistir da vida. Se a gente vive muito
começa a ver quem gosta morrendo. Eu nunca quis passar por isso,
prefiro que Deus me leve para não correr o risco de enterrar um filho
ou um neto. Mas, eu fiquei pensando quem iria primeiro, eu ou o
Eurípes. Eu não queria morrer, mas enterrar o Eurípes seria muito duro.
Eu sofreria demais, porém se eu morresse primeiro ele ficaria muito
infeliz e solitário, com quem ele iria brigar? Quem iria esconder os

Cartas do Erasmo 2021- Paula Alves - 11


chinelos dele e colocar açúcar no feijão? Sal no leite só para escutar as
reclamações? Eu o deixava muito feliz. Deixei Deus com este impasse.
Naquela manhã, eu senti algo estranho. Tive vontade de chorar
de tanta emoção olhando os ambientes domésticos, foi como se eu
estivesse agradecendo pelo refúgio que construímos. A vida lá fora
pode ser como fosse, desde que, na minha casa fosse só paz. Eu tentei
fazer isso dar certo e achava que havia conseguido.
Olhei todas as minhas coisas e parecia estar abandonando tudo.
Fiquei satisfeita porque sabia não precisar delas. Convidei Eurípes para
um passeio, ele não quis, foi reclamando, mas isso era normal. Preparei
uns lanches e sabia que tinha alguma coisa me esperando no passeio, eu
nunca mais voltei para casa.
Eurípes devia estar sentindo parecido porque ele aproveitou a
paisagem para me agradecer. Ele nunca foi carinhoso e conversador,
mas falou tudo o que sentia. Falou da saudade pelos familiares que
nunca nos visitavam. Falou de minha dedicação como esposa e mãe.
Falou do meu feijão com açúcar, que eu era uma desgraçada amorosa.
Até para me agradecer estava me achincalhando. Eu peguei em sua mão
e disse que achava o mesmo. Disse que sempre o amei e que ele tinha
sido um presente de Deus na minha vida.
Meu marido sorriu e falou que o mundo não poderia
compreender o nosso amor e nosso jeito louco de viver a vida. A pista
estava escorregadia, parecia óleo. O carro não conseguiu suportar e
derrapamos. O carro capotou várias vezes, eu fiquei tranquila
observando o olhar sereno de Eurípes, mas de repente, eu adormeci.
Senti como se meu corpo estivesse tão pesado e não resisti ao sono.
Quando acordei estava aqui, tão bem tratada por moças lindas.
Todas atenciosas, honestas, falaram que eu desencarnei. Fiquei
contente, não sofri, me sentia bem e em paz, mas, e o Eurípes. Se
estávamos juntos, por que ele não está aqui?
Eu demorei muito para conseguir entender o que o senhor estava
tentando me mostrar doutor. Agora compreendi e não gostei nada da
resposta que tive. Meu Eurípes não morreu como eu, mas ficou na cama,
inválido. Soube que todos nós temos um dia para retornar. Entendi que
todos nós somos diferentes e temos um caminho único, necessidades
evolutivas diferentes. Apesar de termos a mesma família, sentirmos a

12 – Cartas do Erasmo – 2021 – Erasmo Gurgel


falta dos nossos filhos, nós pensamos tão diferente. Eu brigava para
sacudir a relação, para diverti-lo, no entanto, Euripes ficou enfurecido,
com o coração duro, ele brigava mesmo e chegava a me detestar,
pensava em atos criminosos contra si mesmo.
Eu não podia imaginar, nunca reparei que ele sofresse tanto. Ele
precisava valorizar a vida, valorizar os cuidados que dediquei a ele e,
por isso, está padecendo desta forma. Eu entendi. Não queria que tivesse
sido deste jeito, mas eu vou aguardar até o tempo em que poderei
reencontrá-lo. Eu tenho fé que poderemos estar juntos novamente, se
Deus quiser.

Alcione
“Quantos são como eu?”

Eu desejava a liberdade. As pessoas poderiam se colocar no


lugar dos outros. A Humanidade sempre foi mesquinha e traiçoeira.
Todos sempre lutando por seus próprios interesses mesmo que leve a
morte de centenas de inocentes.
Vida bandida! Quanta injustiça! Naquele tempo, todos nós
éramos escravos. Eu vi tanta coisa ruim com meus irmãos de cor. Queria
que pudesse sair da minha cabeça, mas todas as vezes que chego deste
lado, tudo retorna, minhas lembranças mais vivas me mostram o quanto
as pessoas são ambiciosas e cruéis. Foram muitas vidas, muitas revoltas
e delitos em nome da justiça.
Eu me lembro dos grilhões e da faca, do sangue e mesmo assim,
eu ainda morri no tronco. Morrer no açoite, já pensou?
Morrer de tanto apanhar e ainda preso, sem poder me defender.
Eu nutri um sentimento tão grande de horror, de necessidade de
vingança, virei perseguidor, padeci por séculos e quando pedi perdão,
fui resgatado e me apresentaram uma nova oportunidade, eu fiquei
louco. Eu já havia padecido, teria que retornar e ter contato com todos
aqueles que me feriram, na mesma família? Pra quê? O quanto
poderiam me ferir? Eu me recusei e voltei na marra, não tem que querer.
Como é que eu posso estar de acordo? Voltei e sofri mais ainda,
de novo negro, negro com revolta, uma vontade de não ser apontado,

Cartas do Erasmo 2021- Paula Alves - 13


vontade de ser branco, de ter possibilidades de ser alguém, de tentar
uma vida normal, mas não. Recebi meus algozes como pais, de brancos
a negros, lembrando que eu matei e fui morto, sangue de vingança e
revolta não produz amor. Fui negrinho do crime, do tráfico, da
malandragem, nunca tive apoio de pai, amor de mãe, facilidade na vida,
estudo, dignidade. Só dor e medo.
Morri cheio de droga, passei para este lado totalmente aloprado,
enlouquecido, incentivando o vício e a delinquência. Demorou muito
para chegar a uma ligeira consciência de quem precisa se tratar, mas
quando consegui, recebi o acolhimento dos Bons. Tô precisando voltar
para pôr em prática o que aprendi, mas o que foi que eu aprendi? Até
agora eu não senti compaixão. Eu não sei o que é ter carinho ou
amizade. Não sei o que é ter ânimo para o trabalho ou uma necessidade
de auxiliar. Como pode ser uma pessoa como eu no meio de tantos
outros loucos como eu?
O problema não é a cor da pele? Você me diz que as coisas
mudaram e que hoje todos são considerados iguais. Eu escolho ser
branco. Acho que vai ser um pouco mais fácil. Já sei que vou ter que
retornar nem que seja na marra, não adianta recusar a oferta do
retorno para a carne, mas que seja como branco. Aí me falaram que eu
vou me envolver com uma negra, mas por quê? Por que todos os meus
planos envolvem a negritude? Três vidas? Me ajude a compreender,
tem algo que eu ainda não entendi. Dizem que nós retornamos para
aprender alguma coisa bem importante que nos falta. Se eu estou sempre
envolvido com a negritude, o que me falta?
Após ligeira análise, eu me lembrei de outra existência onde fui
branco. Quantos agredi, quantas molestei pelo simples fato de ser negro
ou negra?
A Lei é imperiosa. O preconceito partiu de mim. Eu fui cruel e
serei até quando? Como tirar tudo isso de dentro de mim, se fui negro
e, ainda assim, não me aceitava como realmente era. Eu não me aceitei
como negro, se pudesse teria me tornado um branco, eu tive vergonha.
Eu sinto asco, repugnância e preciso me tratar. Não sei como posso
prosseguir desta forma, mas vocês acham que eu posso amar uma
mulher negra. Não sei se isso é possível. Você me faz lembrar de uma
mulher que foi muito importante para mim. De outras existências, ela

14 – Cartas do Erasmo – 2021 – Erasmo Gurgel


foi a única que já pode chegar ao meu coração, ler o meu íntimo, mas
será que eu vou permitir que ela se aproxime de mim, sendo uma negra?
Usem todos os recursos porque eu sei que isso é doença da alma
e sinto vergonha de ser quem sou. Um Espírito dotado de tanto
preconceito, eu tenho muita vergonha. Quantos são como eu?

Bento

“Nada vai faltar, nem pão, nem paz”

Eu precisava perseverar porque a região não dava nem mesmo


o básico para que pudéssemos sobreviver. Eu casei apaixonado, queria
minha família e ela era minha razão de viver, mas sem água quem vive?
Eu sabia do cangaço, eu sabia da pobreza, mas para a gente era
tudo normal, só que eu ouvi falar da cidade. A cidade que estava tão
longe de nós e eu agora, já não mais sozinho. Eu precisava cuidar da
Janete e dos nossos filhos. Mas, eles eram pequeninos e puderam ser
levados no colo. Janete ficou assustada porque a gente não tinha nada
na vida, era a esperança e a roupa do corpo. Ela me abraçou e disse que
Jesus iria nos guiar.
Oh! Deus. Eu achava que ia morrer de tanta fome. Janete deu o
peito pras crianças, nem sei como ela conseguia andar, coitada.
A gente viajou muito tempo a pé, depois de carona. Tem gente
boa por aí que nem sabe o que fazer para ajudar quem precisa. Um casal
de meia idade que se encantou com nossas crianças, a mulher até quis
pegar nosso nenê para eles, mas a Janete só olhou nervosa e a mulher
percebeu que não devia falar nisso com ela. Deve ter bastante gente que
dá as crianças. Eu nem julgo não porque tem quem não consiga criar
mesmo.
O percurso era cansativo e ainda tinha uma preocupação: ia
chegar na cidade e fazer o quê? Sem ter para onde ir, sem ter trabalho
ou dinheiro. Eu era o chefe da família e não podia deixar minha esposa
ficar mais desesperada. Tentei passar coragem para ela, perseverei,
chegamos em São Paulo. Pés machucados, cheios de fome e uma criança
doente. Janete nunca reclamou.

Cartas do Erasmo 2021- Paula Alves - 15


Fui num restaurante e pedi um prato de comida. Quando a agente
tem família, engole o orgulho para matar a fome. Eu consegui encontrar
gente muito legal pelo caminho, o dono do restaurante alimentou a
gente e ainda ofereceu emprego para Janete. Ele falou que na firma que
ficava em frente, estavam precisando de operário e me arrumou
emprego.
Foi tão rápido! Passou que eu nem vi. Trabalhei muito, a Janete
também, a criançada crescendo. Daí ela engravidou e eu consegui
comprar um terreno. Nós fomos esforçados e trabalhadores
conseguimos criar nossa família e ainda recebemos nossos irmãos para
tentar a vida em São Paulo.
Tudo é difícil para quem não tem nada, mas a gente não pode
esmorecer, se curvar para a pobreza e para a dificuldade.
Sempre achei que Deus dá condições da gente se erguer e viver.
Eu sempre tive fé que conseguiria formar uma linda família e consegui.
Se você for sempre trabalhador e honesto, a vida vai permitir que você
forme família e nada vai faltar, nem pão, nem paz.

Sócrates

“Viver de aparências ou viver desejando o que não se


possui é doença”

O desejo de possuir é doença. Começa como necessidade e, se


não tem discernimento, vira compulsão. Eu tinha necessidade de
possuir o que eu queria, mas eu não era rica. Eu tinha que trabalhar para
me manter e para ajudar meu marido a manter nossa estrutura
doméstica, mas eu não podia ver nada.
Eu saia para um passeio e achava que tinha que levar a casa nas
costas, se eu chegasse no lugar e faltasse alguma coisa, por mais
supérfluo que fosse, já era motivo de ir às compras. Achava tudo tão
necessário, depois chegava em casa me perguntando por que tinha gasto
dinheiro com aquilo, eu nunca usava. Meu esposo chegou a me
questionar muitas vezes, por que disto ou daquilo e, por diversas vezes,
eu me envergonhei porque tirava o dinheiro de alguma conta importante
para gastar com bobagens.

16 – Cartas do Erasmo – 2021 – Erasmo Gurgel


Eu via minhas amigas com algo bom e belo e já desejava, no
outro dia, revirava a cidade até encontrar, gastava o que não tinha e
depois chorava, chorava porque percebi que estava fora de controle.
Doença, compulsão. Foi indo, meu esposo se cansou, falou que
eu era invejosa e desequilibrada. Ele pensou que eu não me importava
com as diversas horas extras que eram feitas para colocar nosso
orçamento em ordem. Ele dizia que faltava colaboração e
responsabilidade da minha parte. Eu me sentia mal, mas não era fácil
controlar. Eu expliquei a ele e prometi melhorar, mas me senti muito
deprimida e desejei comprar alguma coisa para ficar feliz. Loucura?
Pode ser mesmo. Naquele dia, eu comprei uma geladeira novinha sem
a menor necessidade. Quando a geladeira entrou por uma porta, meu
esposo saiu pela outra. Ele justificou que não ia se afundar em dívidas
por minha causa. Eu não parei porque ele foi embora, pelo contrário, aí
é que me atolei mais ainda. Meus filhos me pediam para devolver as
coisas que chegavam em casa. Eu fui muito compulsiva e acumuladora.
Roupas que não cabiam no armário, louças, sapatos, eletrodomésticos,
tudo o que puder imaginar, do menor ao maior valor.
Eu me endividei tanto que meus filhos resolveram vender tudo
para pagar as dívidas. Eu enlouqueci, eram as minhas coisas, como
podiam fazer isso? Eu me agarrei nelas, chorei e implorei, disse que
usaria tudo, mas não teve jeito, daí tentei dar um susto neles, corri para
o quarto para me trancar e fazer escândalos, mas tropecei e bati a cabeça
na quina da cama. Senti tudo rodar, achei que tinha desmaiado, mas
fiquei perambulando por aí por mais de vinte anos.
Que vida terrível! Eu fui tão apegada. Tão miserável porque
poderia ter colaborado com meus familiares, ter sido uma esposa
parceira e batalhadora, mas fui egoísta. Nunca ajudei ninguém com
meus excessos, apenas causei desespero e preocupações. Hoje
compreendo o porquê devemos nos esforçar para ter uma vida mais
simples e modesta. Não é balela religiosa não. A vida mais simples faz
você valorizar tudo o que tem. Você sentir prazer de estar com quem
você gosta pelo que são, independente do que tem ou no que podem te
beneficiar. Deixar os bens de lado e apreciar as coisas lindas da vida e
os bons momentos que são únicos. Viver de aparências ou viver
desejando o que não se possui é doença. Você não consegue sentir amor,

Cartas do Erasmo 2021- Paula Alves - 17


gratidão ou indulgência por ninguém, nem por você mesmo. Isso
porque está prestando atenção, apenas nas coisas.
Está muito difícil pra mim. Voltar a me socializar. Observar a
natureza e valorizar minha vida aqui neste local. Eu sou muito
agradecida por terem me acolhido porque eu percebo o quanto sou uma
pessoa complicada.
Será que eu tinha que ter procurado tratamento, enquanto estava
encarnada?

Cliseide

“Perdi meu tempo na inveja. Desejando ter a vida do


vizinho para mim”
Tanta raiva de ver o que aquele homem tinha e eu não. Ele
morava na frente da minha casa e tinha tudo, os melhores carros, a casa
mais bonita da rua, até a mulher dele era mais bonita e mais culta. Ele
tinha filhos educados e bons estudantes. Tinham estabilidade financeira.
Faziam boas viagens e eram reconhecidos na sociedade por serem bons
e valorosos, eram caridosos.
Eu morria de raiva. Minha vida estava desmoronando, parecia
que nada dava certo e aquele sujeito ainda queria me dar lição de moral
na frente dos outros vizinhos. Eu fugia dele, me esforçava para nem
cruzar no seu caminho. Cheguei a imaginar várias vezes, vivendo a
vida dele. Morando naquela casa, convivendo com seus familiares
como se fossem minha própria família. Eu nem podia reclamar porque
minha esposa era honesta comigo, leal e muito trabalhadora. A coitada
não exigia nada de mim, tudo o que ela almejava, se esforçava para
conseguir com seu trabalho digno. Meus filhos eram amorosos, mas
tinham dificuldades em arrumar empregos melhores, porém nunca
esmoreceram, estavam sempre fazendo pequenos serviços que pagavam
cursos e eles eram incentivados pela mãe que dizia, como que para me
educar, que cada um tem a sua vida, não deve olhar para a vida dos
outros e ficar se comparando.
Eu morria de raiva. Eu olhava para a vida do vizinho e me
indignava porque eu nunca fui acomodado. Eu levantava bem cedo, me

18 – Cartas do Erasmo – 2021 – Erasmo Gurgel


esforçava para ser um bom funcionário, mas nunca conseguia
promoção. Eu sempre me dava mal, sei lá por que. Aí foi me batendo
uma revolta da vida injusta.
Eu sempre me esforçava e não merecia ter as coisas boas? Por
que o bom tinha que ser sempre dele?
De repente, você me diz que eu fui ingrato? Você deixa, eu
reclamar à vontade e me diz que ingratidão agrava a pena. Que história
é essa?
Eu me lembro sim das diversas vezes que precisei enfrentar
situações e reclamei sempre. Eu achava que, se Deus me amava, Ele
deveria facilitar minha vida, Ele não deveria gostar de ver um filho
sofrendo como eu.
Eu precisei entender que todo mundo tem a vida certa para se
elevar, a partir de esforços e trabalho sério. Se um é diferente do outro
por que deveriam ter as mesmas vidas, os mesmos caminhos ou
oportunidades?
Todas as vezes que eu reclamei da minha vida, vinha mais
dificuldade? Porque eu estava sendo ofensivo com Deus?
Eu estava, indiretamente, discordando com o que Ele traçou
para mim?
Eu não estava tentando ofender a Deus. Eu fui invejoso. Eu fui
um covarde, perdi tempo querendo o que era dele e nem me importei
com o meu plano. Nossa! Ficou tudo para trás.
Tanto trabalho para colocar todos juntos na mesma casa e eu
nem fiz nada por eles.
Perdi meu tempo na inveja. Desejando ter a vida do vizinho para
mim. Eu tinha que ter ajudado mais os meus familiares e não fiz nada
por eles.
Engraçado! Depois que eu faleci, parece que tudo deu certo para
eles. Minha esposa vendeu a casa, comprou outra menor perto da
faculdade. Eles se esforçaram tanto, estudaram e conseguiram
empregos excelentes. Estão todos bem. Estão seguindo o plano sem
mim. Só eu fracassei, eles tiveram outras possibilidades sem o estorvo
aqui.

Anailton

Cartas do Erasmo 2021- Paula Alves - 19


“Eu desejei ser diferente. Eu precisava mudar”
Eu não queria ser daquele jeito. Sofri muito minha vida toda
quando me apontavam dizendo que eu era feia. Eu chorei muito quando
os familiares faziam brincadeiras e eu servia de chacota para todos. Na
escola foi ainda pior, eu não conseguia encontrar amigos porque todos
temiam estar ao meu lado, eu era estranha, pavorosa.
Mas, eu cresci e não conseguia olhar nos olhos das pessoas, isso
dificultou para me inserir no mercado de trabalho. Meus pais
reclamavam de mim e me comparavam com minhas irmãs que, para
meu desespero, eram lindas. Nem parecia que eu era daquela família.
Eu desejei ser diferente. Eu precisava mudar: ficar mais magra,
mais loira, mais alta, com o nariz mais fino e os lábios mais grossos,
então, coloquei isso como um ideal.
Consegui um emprego como camareira e conheci uma artista
que riu muito quando me viu, eu não aguentei segurar o choro e desabei.
Ela teve pena de mim e me convidou para trabalhar em sua casa. Esta
mulher me incentivou a usar todos os recursos que eu tinha para mudar
o meu visual, ela me ajudou e eu tive acesso a cirurgias e tratamentos
que foram me modificando. Eu levei quinze anos para ficar com a
aparência que eu desejava. Eu me olhei no espelho, depois disso, e me
senti feliz, mas foi estranho porque a felicidade durou apenas alguns
instantes, depois eu me deprimi tanto que nem mesmo consegui
compreender o que se passava comigo. Só entendi quando cheguei aqui.
Eu fiquei irreconhecível, as pessoas nem mesmo, sabiam lidar
comigo, era como se não me conhecessem realmente. Eu levei uma vida
buscando por aparências e não tive nada real, nem um afeto, família,
amigos sinceros, nada. Uma vida que passou sem nada importante ou
motivações. Um objetivo que não me levou a parte alguma.
Quando cheguei aqui me explicaram que cada um de nós recebe,
junto com o plano, o corpo que é ideal para concretizá-lo. O feio tem sua
razão de ser, o bonito também tem. O rico tem provas importantes, o
pobre também tem. Cada um de nós recebe uma tarefa importante para
realizar, sempre voltada para o bem de si mesmo ou dos outros, mas
nunca está vinculado com o egoísmo, orgulho ou vaidade. Sempre é
para nos encaminhar ao progresso e enobrecimento.

20 – Cartas do Erasmo – 2021 – Erasmo Gurgel


Eu me concentrei na beleza e deixei meu plano de lado. Eu
deveria me envolver com um homem que também não tinha qualidades
físicas, mas estava profundamente ligado às obras sociais. Nós
deveríamos cuidar de muitas crianças, inclusive adotando várias. Eu
deixei tudo de lado porque me melindrei com a forma maldosa como me
trataram na infância.
Nós devemos ser ensinados a nos valorizarmos pelo que temos
na nossa essência. Valorizar os bons sentimentos, a intelectualidade e o
esforço. As crianças não devem ser estimuladas a competir, mas a se
superarem nas pequenas e, depois, nas grandes tarefas.
Foi bom saber da verdade. Eu me arrependo sim, mas vou me
esforçar para fazer bonito na próxima. Com fé e coragem.

Lara

“Eu vivi de aparências e ostentações”

Ela foi a melhor amiga que eu já tive. Me arrependo muito de tê-


la feito sofrer tanto. É ruim quando nós olhamos a história da nossa vida
e vemos que fomos o ser cruel, a pessoa má. Eu nunca desejei ser a vilã,
mas fui mais do que isso. Eu a traí, enquanto ela sempre foi boa para
mim.
Se eu pudesse voltaria atrás dos meus deslizes, mas agora é tarde
demais.
Quando Sara conheceu Afonso, foi um amor lindo. Ela me contou
de sua alegria quando ele disse que também gostava dela. Ele morava
na capital, era filho do amigo do pai dela. Parecia até que estavam
prometidos, todos gostaram de pensar que eles pudessem se casar. Eu
achei aquela conversa de romance meio tediosa, mas ouvi várias vezes
ela me contar tim-tim por tim-tim tudo o que se passara. Eles se
correspondiam por cartas e prometiam amor eterno. Eu achava cafona
demais.
A vontade de se ver foi tamanha que o rapaz foi até o interior
para encontrar com Sara. Ela queria que eu o conhecesse, era importante
para ela, eu fui até o parque e quando o vi não acreditei como um
homem tão lindo poderia estar envolvido com minha amiga caipira.

Cartas do Erasmo 2021- Paula Alves - 21


Ele era de boa família, vivia na capital e estava quase se
formando, ou seja, poderia dar boa vida com quem se casasse com ele.
Eu o cobicei. Fiquei irritada com minha amiga e quando fui almoçar na
casa dela tratei de me arrumar com esmero. Eu me perfumei e puxei
conversa, eu era muito mais interessante, mais astuta. Propus que minha
amiga fosse até a cozinha pegar um doce que ela havia feito e me
declarei a ele. Combinei um encontro perto dali e ele, rapaz jovem, se
viu tentado. No encontro eu não resisti, me esqueci de Sara e pensei,
apenas em mim, na minha situação. Eu o beijei, disse que não sabia que
eles tinham compromisso. Falei que eu estava apaixonada e consegui
virar a cabeça dele.
Quando ele olhou para Sara, já estava diferente. Afonso foi
embora prometendo retornar por mim, mas Sara não sabia. Ela sofreu
demais quando nos casamos, ela nunca mais quis falar comigo. Eu senti
mais a ausência dela do que de todos os meus familiares. Vivi com
Afonso um relacionamento frio, leviano. Talvez, a culpa não tenha
permitido eu me entregar totalmente. Depois de trinta anos de
casamento e muitas traições, posso dizer que tive as regalias que desejei,
mas nunca o amor sincero.
Eu vivi de aparências e ostentações. Nunca mais me encontrei
com Sara, mas ouvi Afonso insinuar que eu tinha desconsiderado minha
amiga e que tinha feito um casamento arranjado para viver bem. Nos
separamos e eu terminei meus dias só. Ele sempre soube, mas por que
foi fraco? Por que se entregou a mim?
Respostas que só tive quando aqui cheguei. Sara foi minha irmã
em outras existências. Espírito com muita afinidade comigo, porém eu
fui gananciosa e a invejei. Ele estava no caminho da Sara. Deveriam se
casar, ter filhos, mas eu interrompi com meus pensamentos
mesquinhos.
Quando desejávamos o mal de alguém, quando sentimos
necessidade de possuir por ganância, poder, orgulho, soberba, podemos
atrair com estes desejos e pensamentos, entidades que se comprazem no
mal. Foi como se eu estivesse contratando um serviço. Eu tive o que
queria, a vida boa, o casamento e só.
Deixei de seguir o meu caminho, deixei de me esforçar e
trabalhar duro para conquistar independência como estava previsto.

22 – Cartas do Erasmo – 2021 – Erasmo Gurgel


Parecia que eu estava imaginando que teria de trabalhar tão duro para ter
minhas conquistas, mas eu desisti do plano e isso nunca aconteceu, fui
dondoca, inútil na sociedade.
Tudo tem um preço. Quando desencarnei, após sofrer por meses
da enfisema que me arruinou, fui lançada para um local trevoso onde
me cobravam seres horríveis. Levei tempo para observá-los e notar
certa semelhante em meu jeito frio de tratar as pessoas. A gente fica
enraizado no mal, nos maus pensamentos e no sentimento leviano. Não
consegue compreender nada. Eu senti quando a Sara se aproximou de
mim no umbral. Eu senti! Eu me arrependi de tudo. De ter tomado a vida
dela, mas a Sara é um anjo, tão boa.
Justificou dizendo que não cai uma folha de uma árvore sem a
vontade de Deus, foi permitido, ela falou.
O que eu posso fazer agora? Nem sei por onde começar.

Verônica

“Acho que, se pudéssemos salvar a nós mesmos, já seria


um bom começo”

Foi muito difícil chegar aqui. Os meus sentimentos me levaram


para um mundo que eu não sabia que existia.
Declarei meu amor e jurei ser um bom marido, desejei ser bom
pai. Eu sempre pensei que toda mulher quisesse encontrar um homem
que a amasse para viver uma vida tranquila, formar família, mas acho
que fui romântico demais.
Eu sonhei uma vida que não era ambição dela. Eu a pedi em
casamento e me frustrei tanto quando ela recusou, meu mundo caiu. Eu
não estava pronto para o rompimento. Acreditei que tivéssemos coisas
em comum e que, em breve tempo, estaríamos com um filhinho nos
braços. Ela me disse que não era isso o que desejava viver naquele
momento. Ela disse que, nem mesmo, tinha certeza de seus reais
sentimentos por mim e eu a amava. Ela me confessou que havia se
interessado por outro e queria romper. Tive ímpetos de matá-la.
Eu a respeitei como noiva, como minha futura esposa, fiz tudo
para honrá-la e o que foi que eu ganhei?

Cartas do Erasmo 2021- Paula Alves - 23


Tomei ódio pelo mundo, profundamente magoado e arruinado
pelo orgulho ferido. Pensei diversas vezes, que os planos de Deus
devem ser bem óbvios, mas somos muito pretenciosos para descobri-
los. Acreditei, olhando ao derredor, que muitas pessoas seriam mais
felizes vivendo sem tantas ambições. Cada mulher se esforçando para
ser boa esposa, mãe, filha. Cada homem se esforçando para ser bom
esposo, pai, filho, irmão. Cada um de nós deve ter algo a cumprir, alguma
coisa para realizar, mas não necessariamente salvar o mundo como nos
filmes de ficção. Acho que, se pudéssemos salvar a nós mesmos, já seria
um bom começo.
Eu observava dentro de minha angustiante inércia, o quanto as
pessoas se superiorizam, se superestimam e acreditam que devem ser
tão importantes numa sociedade onde cada um, só enxerga o próprio
umbigo.
Mães que abandonam a dádiva da criação para serem excelentes
profissionais, tão pretenciosas e vaidosas, tão sofisticadas e secas.
Pais que abandonam os lares com crianças que esgoelam de
fome para se satisfazerem na luxúria de corpos esculturais.
Tantos que se entregam ao vício para não pensarem de forma
relevante. Entorpecem o cérebro para não pensarem no amanhã.
Irresponsabilidade com esquecimento providencial de tudo o que é
realmente importante na face da Terra.
Outros tantos vão para a criminalidade, desde os pés de chinelo
até os colarinhos brancos, por falta de ânimo de pegar no batente,
preguiça com falta de caráter.
São inúmeras justificativas, vale tudo no mundo onde tudo pode
ser. Eu critiquei tanto, observei inerte e me cansei de não fazer nada.
Me cansei de ser como todos os outros. Me vi atolado de indignação,
sufocado no meu próprio amargor. Então, notei que as coisas acontecem
por uma razão de ser. As pessoas não podem ser caracterizadas por um
único ser. O erro de um não pode condenar a maioria.
Aí me dei conta que tudo acontece com a permissão de Deus.
Eu me aludi, mas não existe uma só mulher, eu ainda podia me entregar
ao amor. Eu poderia assumir meu desejo de ser um homem de família.
Me reergui, na esperança de atingir meu objetivo tão simples, tão
diferente do habitual.

24 – Cartas do Erasmo – 2021 – Erasmo Gurgel


Eu me reergui sem uso de entorpecentes, sem mentiras ou
violência que arruinasse minha vida. Eu tive ao meu lado abnegado
amigo que me inspirou e esclareceu que a vida sempre continua. Eu
podia ter o meu final feliz e segui em frente com um novo modo de
pensar e enxergar minha vida. Foi melhor o rompimento, antes de
chegarmos no altar, muito melhor.
Voltei para a faculdade, mudei de emprego e após dois meses,
resolvi passear num parque onde o sol brilhava iluminando um rosto em
especial. Tudo me levava para ela, quando me aproximei parecia que
estava reencontrando um ente querido. Ela se tornou minha esposa dois
anos depois.
Ester acrescentou em mim, as maiores qualidades que me trouxe
para cá. Foi um anjo em minha vida. A companheira ideal, parceira e
amiga. Com ela eu tive a certeza de que nasci, nesta existência, apenas
para ser bom esposo e pai. Graças a ela pude cumprir meu compromisso
e estou aqui.
As pessoas devem sentir o que necessitam fazer e não se
iludirem por questões supérfluas da vida. Enxergarem-se como
realmente são. A justa medida de si mesmo é imprescindível para
alcançar a paz.

Casé

“Estou pensando que a gente nunca conhece ninguém de


verdade”

Eu bati, bati e bati, quase matei. Quando olhei para ela, fiquei
transtornado. Eu sabia que havia agido errado ou melhor, foi
imperdoável o que fiz. Naquela época, não aconteceria nada comigo.
Eu não seria preso, tampouco ofendido, ainda mais se soubessem o
motivo que me fez agredir minha esposa.
Ela confessou sua traição!
Eu fui tomado de um ódio que me transformou. Virei um louco.
Você devia ter visto a cara dela, o despeito. Depois de quinze anos. Eu
fui um marido tradicional, como tantos outros, não havia trocas de
carinho. Não tinha aquelas coisas que ouvimos falar hoje em dia. A

Cartas do Erasmo 2021- Paula Alves - 25


mulher tinha obrigações no lar e o marido também. Machismo? Pode
ser. Eu não queria estar na pele delas. Era trabalho no lar e com as
crianças que eram responsabilidade das mães. Os homens podiam quase
tudo, inclusive relacionamentos fora do casamento, nada escrachado,
mas todos tinham suas concubinas, suas diversões.
O marido sempre voltava para casa, a esposa tinha sempre o
marido na sua cama. Eu nunca passei uma noite fora de casa e nunca
tive ninguém correndo atrás de mim, fazendo passar vergonha,
importunando minha esposa.
Eu sabia que ela queria estudar, mas pra quê? Não ia trabalhar
fora, nem tinha livro que servisse para elas, o melhor era ficar como
sempre foi, o marido cuidando de tudo, mas ela aprendeu com um rapaz
que fazia serviços para mim. Aprendeu a ler um pouco, o suficiente para
mandar carta, carta de amor. Flertando nas minhas barbas, no meu teto.
Quando descobri, ela já estava cobra criada. Me ofendeu, falou
de virilidade e de prazer de mulher, fiquei maluco.
Onde já se viu uma mulher falando deste jeito? Mãe dos meus
filhos. Não podia ser. Eu não a reconheci. Estou pensando que a gente
nunca conhece ninguém de verdade. A gente acha que conhece, a gente
imagina que todo mundo pensa como a gente, mas não sabe se pode
levar uma punhalada pelas costas.
Isso pode acontecer com qualquer um, se surpreender com
alguém te rebaixando e dizendo que você não vale nada para ela, mas o
que não pode é você perder a cabeça e partir para cima. Eu arruinei o
rosto dela e quando acabei, ela respirava com dificuldade, eu desejei
voltar no tempo para que nunca tivéssemos nos conhecido. Eu desejei
ter vivido uma outra vida. Queria que estas lembranças sumissem da
minha cabeça porque não importa o tempo que passe, eu sou muito
violento.
Ela quis ir embora e se lembrou de como uma mulher separada
era tratada por toda a sociedade. Ela chorou e disse que isso nunca
poderia ter acontecido, falou que eu estraguei tudo.
Quem era mais errado? Dá para saber quem errou mais?
História horrível de traição e agressão.
Eu pensei em me matar porque, assim poderia me esquecer de
tudo o que ouvi dela.

26 – Cartas do Erasmo – 2021 – Erasmo Gurgel


Eu era o homem que fui ensinado a ser, machista, controlador,
machão. Eu só sabia ser assim. Esperava que minha esposa fosse leal e
boa mãe, mas ela me traiu e eu não podia aguentar a traição dela. Eu não
queria que ela fosse apontada, que falassem de nós, então me enforquei.
Mas, foram muitos séculos de tormento e dor. Eu dentro daquela
casa, vendo tudo o que ela fazia no nosso quarto. A pessoa é como é.
Ela sempre foi leviana e eu sofri.
Me arrependo muito com tudo o que houve entre nós. Eu ainda
tenho vergonha de falar da nossa história. Agora teremos outra chance.
Novamente um casal. Será que ela vai me aceitar?

Josivaldo

“Algumas nascem para ser princesas, a maioria não”

Eu me casei novinha. Casamento que meu pai arrumou. Era tudo


bem difícil na nossa casa e eu não podia discordar do pai. Meu marido
era mais velho. Não tinha muita conversa com ele. Eu fui levando
minha vida sem alegrias, só tarefas do lar, respeito e obrigação. Logo,
vieram os filhos e mais trabalho. Aprendi a gostar dele, vendo as
qualidades que ele apresentava. Tinha defeitos, mas isso, todo mundo
tem.
Quando eu via o jeito que ele tratava os filhos e o quanto ele
trabalhava para não faltar nada para a gente. Quando eu via ele me
olhando de longe, nem sabia sorrir, mas cumprimentava com a cabeça,
era o jeito de fazer carinho. Quando eu via a integridade dele por toda
parte e o quanto era educado e direito com todo mundo, eu sabia que
ele tinha o seu valor.
Aí me entreguei para minha vida. Toda mulher tem o direito de
sonhar.
Às vezes, a gente sonha tão alto, acha que é princesa, que é tão
linda e sonha. Acha que um dia vai ganhar o mundo, vai ter tudo o que
deseja, mas não acontece fácil assim para todas nós. Algumas nascem
para ser princesas, a maioria não.
Com a maioria a vida é simples, cheia de percalços, dificuldades
de todos os tipos e provação, dor e sofrimento.

Cartas do Erasmo 2021- Paula Alves - 27


Eu nem podia me queixar. Era o trabalho de todo dia. Eu aprendi
a não pedir muito da vida. Viver um dia de cada vez. A vida de novela
não foi feita para sonhar, é só para passar o tempo entre um afazer e
outro.
O tempo passou, eu envelheci, ele também e minha provação
chegou, depois de tanto filho e neto, ele adoeceu.
Ele era o primeiro a falar, o único a dar a opinião. Quando falava
ninguém nem queria olhar nos olhos, era respeito pelo pai. Eu nunca
ousei contrariar, aprendi assim, mas ele caiu. O pai estava doente e eu
tinha que assumir a liderança. Eu tinha que decidir o que seria feito.
Daí meu filho mais novo achou que poderia se rebelar. Falou
que agora era hora de eu viver minha vida. Ele achava que eu não tinha
que ser obrigada a cuidar dele na cama depois de anos vivendo uma
ditadura dentro de casa. Ele falou que iam colocar o pai num asilo e eu
ia poder viver em paz, pelo menos na velhice.
Meu marido estava ouvindo tudo sem poder falar, paralítico na
cama, ele olhava querendo chorar e eu percebi. Eu peguei a mão dele e
levantei a cabeça pela primeira vez.
Falei que a gente quando casa, sabe que vai ter uma vida em
comum. A gente sabe que não vai ser uma vida só de flores e sabe que
tem um papel para assumir. A mulher tem que saber ser esposa, muitas
vezes, para ter paz no lar, a esposa, a mãe tem que fazer o que não quer
e o que não gosta. Muitas vezes tem que deixar de lado o cansaço, o
sono e até a doença para fazer por todo mundo para que a família siga
forte, firme. O marido também tem tudo isso na vida dele. Nem sempre
pode sorrir e fazer piada porque a vida da família é coisa muito séria.
Falei que o meu marido, eu aprendi a conhecer com o tempo e aprendi
a respeitar, a amar do jeito dele.
Eu estava muito agradecida pela família que Deus me deu e eu ia
cuidar dela até o final para que ela não se arruinasse. O meu esposo
precisava de cuidados, de atenção e todos fariam das tripas coração para
que ele se recuperasse. Todos!
Meus filhos ficaram de boca aberta, meu marido chorava tanto.
Acho que eles não entenderam por que eu nunca havia falado nada. Na
verdade, eu nunca precisei assumir posição nenhuma porque meu

28 – Cartas do Erasmo – 2021 – Erasmo Gurgel


marido sempre cuidou de tudo, mas quando eu precisei cuidar dele, nos
revelamos nobres companheiros.

Jerusa

“Família requer sacrifício e abnegação”

Eu soube da traição, eu soube do filho. E eu me senti ofendida,


me senti menosprezada. Eu chorei, procurei não falar nada, eu precisava
pensar. Pensar em mim, no meu filho e na nossa situação.
Eu precisava decidir se conseguiria dormir com ele, sabendo que
ele dormiu com ela. Eu a conhecia e achava aquela mulher linda,
comunicativa, bem-humorada. Eu tive raiva, me senti feia, humilhada.
Todos sabiam, menos eu. Como ele havia conseguido esconder por
tanto tempo? Eu não notei nada. Nem sei como ele teve tempo de se
encontrar com ela e fazer um filho e estar com eles em tantos lugares.
Os meninos estudavam na mesma escola. Tinham quase a
mesma idade, um absurdo.
Eu não queria sentir vergonha, medo, indignação, orgulho ou
egoísmo porque eu só pensava em mim. Eu não consegui pensar em
como ela se sentia ou em como o filho dela se sentia porque eu era a
esposa, eu sempre tive privilégios.
Mas, eu pensei nos motivos dele. Eu pensei no por quê as
pessoas traem. O que leva a pessoa a se encantar com outra pessoa?
Quando acontece o primeiro olhar para longe de você? Quando seu
marido começa a desejar outras mulheres? Por quê?
As justificativas de que a esposa tem algum defeito físico ou
moral não me faziam apoiar a covardia dele. Covardia sim porque ele
fez tudo pelas minhas costas. Quem trai não dá o direito de defesa à
outra pessoa. Quem trai fere a moral, a integridade moral do
companheiro. Isso pode deixar sequelas por tempo indeterminado. Isso
porque a gente não confia em mais ninguém. Fica paranoico. Tem
mania de perseguição, se sente submisso e inferior. Falta confiança e a
autoestima chega no pé.
Mas, eu pensei se valia a pena lutar por ele ou se seria melhor
entregar ele para ela porque, se ele saísse de casa, fatalmente iria para a

Cartas do Erasmo 2021- Paula Alves - 29


casa de minha concorrente. Eu raciocinei, pensei no meu filho, pensei
na minha situação financeira e no asco que eu teria para dormir com ele
pensando no que eles faziam, em como se comportavam pelas minhas
costas.
Eu vi que o perdão foge ao raciocínio. Não era uma questão de
aceitação do perdão, de compreensão, de saber que é possível se
envolver com outra pessoa fora do casamento ou de amar mais do que
uma, como ele mesmo me falou.
Disse que amava as duas, pode?
O perdão não é instantâneo, nem racional. Eu precisava de tempo
para perdoar e não queria mais um homem que teve bastante tempo para
escolher, mas preferiu se acomodar na satisfação de ter duas esposas.
Eu olhei para mim e preferi tentar sozinha. Eu tinha receio, eu tinha
pavor de me imaginar vivendo sozinha com meu filho. Eu sempre falei
que, se estava ruim com ele, estaria pior sem ele, mas eu não imaginei
que ele era mentiroso e desleal. Eu não queria perder meu companheiro,
mas me dei conta de que estava sendo usada, nada era real na minha casa.
Eu tomei coragem e fiz as malas dele afirmando que ele tinha para onde
ir, já eu, precisava daquela casa para recomeçar sozinha cuidando com
dignidade do meu filho.
Ele foi embora e resolveu ficar com ela. Eu nunca mais me casei.
Foi tudo bem complicado, arrumei um emprego muito bom, mas
sempre tive dificuldades para me organizar nas reuniões de escola, com
tempo para cuidar do meu menino, faltava dinheiro, não tinha com
quem contar. Depois que ele saiu de casa, acabou assumindo a outra
família de forma integral e praticamente se esqueceu do nosso filho.
Largou a esposa e o filho também.
Tive muitos anos para refletir sobre tudo o que nos aconteceu e
ainda preciso de terapia para aprender a perdoar, veja você. Eu estou
querendo prosseguir, me encontro aqui relembrando situações que
ainda me comovem. Eu o culpo por tudo. Eu não estava preparada. Eu
queria ter sido feliz na nossa casa, com a nossa família.
Não aceito o plano de me casar novamente, com ninguém. Eu
acho que é muito sofrimento e responsabilidade. Eu acho que existem
muitas maneiras de adquirir o que necessito para evoluir. Não preciso
me envolver maritalmente com ninguém.

30 – Cartas do Erasmo – 2021 – Erasmo Gurgel


Compreendo por que, hoje em dia, as pessoas não querem
compromisso. Ainda somos muito egoístas para nos envolvermos com
seriedade. Muito egoístas para observar as necessidades das outras
pessoas. Família requer sacrifício e abnegação.
Se esquecer das suas necessidades e prazeres pelo bem de quem
está ao seu lado. Quem faz isso?

Lucrécia

“Mulher de verdade se reconhece por seus olhares, seu


empenho em direcionar sua família”

O arrependimento chegou e fez com que eu me deparasse com


uma vida que não tomou o rumo que eu desejava. A gente se deixa guiar
pelo comodismo e quando percebe, já perdeu tudo o que era realmente
importante.
A gente não lembra o que ficou determinado no mundo
espiritual. Traça uma série de acontecimentos necessários para que você
se reconcilie com algumas pessoas e também para que possa evoluir,
fazendo as escolhas certas, mas quando está encarnado, se deslumbra,
se envaidece e esquece de tudo.
Na verdade, se a gente se reconhece do jeito que é de verdade,
sabe o que não pode fazer, sabe quais são as limitações e pontos fracos.
Eu sabia que tinha uma tendência à traição. Eu fui traidor como homem
e renasci mulher com a mesma tendência. Você pode até achar horrível
vindo de uma mulher, mas eu digo, e não é para me defender: a traição
e a falta de lealdade estão bem ligadas. É tudo fruto do egoísmo, de
quem só pensa em satisfazer os seus prazeres e não se preocupa com o
sentimento dos outros. Tanto faz ferir dois ou três, tanto faz atingir
uma pessoa que é abandonada ou afetar uma família inteira. Tudo muito
egoísta porque não pensa em ninguém.
Meu esposo foi cordial, romântico. Um homem diferente da
maioria, totalmente preocupado com o bem-estar da família. Eu fui
muito inescrupulosa quando me afastei dele. Sabe aquela pessoa que se
arruma para chamar a atenção? Eu fui assim.

Cartas do Erasmo 2021- Paula Alves - 31


Não era simplesmente para me sentir bem comigo mesma, como
cansei de afirmar. Nada disso, era mesmo para atrair os olhares. Eu
gostava de ser vista. Adorava chamar a atenção e me sentia triunfando
quando chegava num lugar e todos os homens olhavam para mim, para
desespero de suas acompanhantes.
Meu esposo era tão confiante. Ele sempre acreditou no que eu
dizia, jurando o meu amor de uma forma tão séria que ele se comovia e
nunca me pediu para mudar de roupa ou mudar o meu comportamento.
Acho que nunca mais vou me relacionar com outra pessoa igual. O fato
é que, quando eu saia, parecia até que estava procurando por alguma
coisa, até que achei.
No nosso núcleo de amizade, todos consideravam muito meu
esposo e por mais que eu fosse aparecida, nunca teriam a coragem de
me galantear, mas me tornei muito abusada e me atirei sobre um homem
que também era casado.
Hoje eu me envergonho muito do que causei. Ninguém deveria
se envolver numa família. Existem muitos homens e mulheres solteiros,
bem resolvidos. Ninguém tem necessidade de se intrometer num
casamento onde pode comprometer família, cônjuge e filhos sofrendo
desnecessariamente por causa de pessoas totalmente egoístas e
irresponsáveis.
Eu demorei para entender isso, mas valeu a lição. Nos
envolvemos, eu iniciei o romance com sedução e sarcasmo, mas caí nas
armadilhas do amor. Eu me apaixonei por ele de uma maneira que
nunca achei que fosse possível.
Eu quis me separar, quis estar com ele e só com ele. Fiquei
nervosa quando o vi com a esposa tão carinhosa e bela. Eu fiz de tudo
para arrumar uma briga com a esposa que nunca desconfiaria de nada se
eu não estivesse bêbada e não falasse demais.
Fomos cada qual para sua casa, meu esposo cobrou satisfações
e eu falei tudo, disse coisas terríveis que ele não merecia ouvir e, após
ter saído de casa e abandonado todos os meus familiares, tentei formar
família com meu amante, mas ele me surpreendeu.
Disse que nunca se separaria dela, ela era a mãe de seus filhos,
sua companheira e eu era leviana, uma mulher que não tinha como

32 – Cartas do Erasmo – 2021 – Erasmo Gurgel


confiar, se eu havia traído meu companheiro de anos, poderia fazer isso
com qualquer um.
Ele falou que a mulher de verdade se reconhece por seus olhares,
seu empenho em direcionar sua família. Ela pensa nos filhos e no esposo
e não em seduzir e conquistar. Eu era egoísta e leviana. Ele nunca
trocaria sua estrutura doméstica por uma qualquer como eu.
Eu chorei e percebi que havia trocado tudo por um romance tolo.
Eu me iludi e, pensando bem, tudo o que almejei foi destruir a felicidade
daquela esposa que parecia tão perfeita.
Ela perdoou e ficou com sua família, enquanto eu fiquei sozinha
para sempre. Eles nunca me perdoaram, meus filhos se envergonharam
de mim, ficaram do lado do pai e nunca quiseram me visitar, formar um
laço afetuoso comigo.
Então, meu amigo, a verdade é que eu me deixei levar por minhas
más inclinações. Eu deveria ter me preparado melhor para nunca desviar
meu olhar da família. Sempre me comprometer com o bem-estar de
meus tutelados e ser o braço forte do meu esposo que tanto me valorizou
e saiu tão ofendido e magoado.
Eu ainda estou me perdoando por tudo o que fiz, não os culpo,
eles sempre foram muito melhores do que eu, mas espero que um dia
possam me perdoar.

Maria Adelaide

“O primeiro passo de todo ser humano é se perceber


falho”

Eu não quis contar que estava doente. Tudo muda quando as


pessoas sabem que você está mal. Eu estava feliz com o casamento da
minha filha, com a gravidez da outra, com a promoção do meu mais
novo. Eu era feliz com minha esposa, com a aposentadoria e queria
aproveitar.
Nós fizemos planos de viajar depois que eu me aposentasse e eu
não quis preocupar Patrícia. Ela sempre foi muito atenta com meus
exames, mas o câncer era muito invasivo, ele crescia rápido destruindo
tudo.

Cartas do Erasmo 2021- Paula Alves - 33


Fruto de meu mau comportamento com pessoas do meu
passado, falta de perdão corrói. Eu não quis ficar preso no hospital,
eu não quis que eles se desesperassem, estavam tão bem. Eu tinha algum
tempo e poderia aproveitá-lo. Seria uma despedida incrível. Eu fiz
planos com o tempo que o médico me deu e disse que não queria me
tratar. Havia tratamento, mas era tudo muito debilitante, cirurgia,
quimio, eu não quis me destruir com o tratamento, não havia uma
porcentagem tão alta que me afirmasse que eu me curaria, então, deixei
para lá.
Eu falei com Patrícia, antecipamos a viagem. Eu sentia dores
terríveis, mas tentava esconder. Passeamos muito e ela ficou
extremamente feliz ao meu lado. Eu nunca vou esquecer, mas de
repente, meu corpo não aguentou e deu sinais de colapso.
Eu acho que poderia aguentar mais, porém mostrei que não
cuidaria dele (do corpo) e não teve jeito, eu desabei.
Fui socorrido imediatamente, Patrícia soube de tudo, me culpou,
sofreu e desejou o tratamento, mas a metástase já havia se instalado e
eu sucumbi vendo-a chorar demais.
Quando o dia chegou, eu pensei que apenas fosse me libertar
daquele sofrimento, pelo contrário, foi ainda pior.
Eu recusei os recursos disponíveis para me tratar, eu me suicidei
porque não fiz esforços para continuar vivendo e foi pior ainda porque
eu fiz tudo isso pensando, apenas em me divertir.
Os fins não justificam os meios? Tudo depende da
intenção. Eu trabalhei a vida toda, quase não tive tempo para a minha
família porque estava preocupado em ter uma estrutura material que
nos deixasse viver em paz, então, quando conquistei tudo o que achava
que devia ter, casas, carros, dinheiro guardado, aposentadoria, meus
filhos formados e com base familiar, eu resolvi viver e estava doente,
mas preferi curtir do que me cuidar.
Eu fui punido por minha leviandade. Fui arremessado para o vale,
sofri em meio as paranoias dos delírios, vi tantos sofredores como eu,
tantos zumbis que choram e reclamam sem ter solução para nada.
Parecia não ter saída. Era o inferno dos que erraram demais, mas
eu chorei do fundo do coração, eu pedi e fui socorrido.

34 – Cartas do Erasmo – 2021 – Erasmo Gurgel


Isso mostra o quanto Deus é soberanamente justo e bom, Pai de
imensa misericórdia. Permite que se aprenda a lição e recomece para
provar a gratidão e a dignidade, a honra e a sensatez.
Eu quero acertar. Existe tanto a fazer. O primeiro passo de todo
ser humano é se perceber falho. Seria fazer uma justa análise de tudo o
que está fazendo para tentar corrigir. Acho que se eu tivesse feito isso,
teria evitado muito sofrimento. O principal objetivo não é acumular
bens e viver a felicidade da matéria, mas se cuidar para se enobrecer,
cuidar dos seus para que eles compreendam as questões valiosas da vida
e produzir atos bondosos que gerem frutos, ou seja, outros atos
bondosos na sociedade, esta é a verdadeira riqueza e é por intermédio
dela que podemos alcançar a felicidade permitida na Terra.

Charles

“Eu deveria parar de contemplar o erro da maioria e me


incluir na minoria que faz pelo todo”

Eu queria que todos tivesse direito à educação. Eu via aqueles


meninos e meninas jogados na rua e queria que pudessem ler. Como
seria se eles descobrissem a aventura de um bom livro ou o esplendor
de um museu?
Eu queria que todos tivessem acesso ao conhecimento e que as
questões infindáveis da vida pudessem se descortinar para cada um de
nós.
Mas, eu era apenas uma professora que mal dava conta de pagar
o aluguel.
Eu me deparei com uma série de analfabetos de todas as idades
que não sabia nem falar, muito menos escrever palavras simples, eu
fiquei amedrontada.
Como eles podiam fazer escolhas políticas ou sociais se, nem
mesmo, sabiam escrever o próprio nome?
Queria que tivessem acesso à cultura, que pudessem se
emocionar com um filme de romance ou com uma ópera, mas nas
melodias das músicas populares, eles nem percebiam o atentado ao
pudor e o incentivo à delinquência.

Cartas do Erasmo 2021- Paula Alves - 35


Foram tantos absurdos que vi, pensei que não pudesse ser mãe
depois disso. Achei que só eu estava vendo o mundo daquela forma, eu
me senti castrada. De mãos e pés atados, minha racionalidade se
desesperou. Eu vi a pobreza intelectual com a perspectiva do fracasso.
As pessoas se vendem por tão pouco e se deixam levar pelo
fanatismo, sensualismo e hipocrisia. A vulgaridade que toma conta de
um povo que se deixa levar pelo carnaval em meio as tempestivas
revoltas sociais. Guerras internas intermináveis, a fome e o abuso do
poder.
Tudo chocava minha razão e faziam com que meus sentimentos
pedissem para que todos pudessem ver tanto quanto eu. Eu me sentei
na Praça da Sé. Era só mais uma com fome, sem saber para onde ir.
Parecia que eu pensava sem sair do meu lugar, na inércia, clamando por
explicações vindas do Alto. Então, um senhor se sentou diante de mim.
Ele era distinto e culto, fiquei constrangida do seu saber, mas fiquei
contente de poder conhecê-lo.
Ele simplesmente falou que, se todos trabalhassem como
formigas, nós teríamos tudo o que precisamos diante de nós. Ao invés,
de reclamar as pessoas têm que desempenhar o seu papel. Cada um deve
fazer, apenas o que lhe compete, sem julgar o outro, apontar o outro ou
ofender o outro porque isso distrai. Se as pessoas ficassem num
caminho de retidão e se comprometessem com o seu objetivo nobre,
também dariam as mãos e nunca desapontariam aqueles que mostram
um serviço sério, honesto. Existem muitos precisando de ajuda, muitos
que já perceberam o mesmo que eu havia percebido. Alguns que
estavam sendo tocados e poderiam fazer muito, um pouco de cada vez.
Eu ouvi atentamente. Adorei a explanação dele, tentei digerir e me
comprometi a colocar em prática. Ele estava certo, eu poderia fazer o
que estava ao meu alcance para ajudar e parar de reclamar na minha
inércia. Eu deveria parar de contemplar o erro da maioria e me incluir
na minoria que faz pelo todo.
Eu respirei profundamente e quando abri meus olhos, ele não
estava mais lá. Só percebi que era meu mentor quando cheguei aqui
(risos). Daquele dia em diante, comecei a dar aulas de graça por todos
os lados. Eu tinha o meu trabalho com honorários e também me dispunha
a lecionar para quem se interessava. Eu dava aulas de diversos assuntos

36 – Cartas do Erasmo – 2021 – Erasmo Gurgel


e me apaixonei por minha atuação. Continuei com este trabalho depois
de aposentada, nas igrejas, praças e diversos locais onde era aceita.
Foram muitos que leram e se informaram com meu auxilio.
Estou me preparando para trabalhar num local religioso na área
de ensino. Eu amo ensinar. Sou muito grata pelas orientações que recebi
porque mudaram minha vida. E você, não tem coisas importantes para
realizar hoje?

Cristiane

“A vida nos fornece sempre situações para que


possamos despertar a consciência e reparar com atos
de bondade”

Eu só ficava naquele emprego porque precisava do dinheiro,


mas falar que eu gostava? Quem é que gosta de limpar alguém que já
está velho e mal humorado?
No início, eu tentei ser atenciosa e educada, mas cheguei
naquela casa onde todos eram pretenciosos e superiores. Os filhos do
meu patrão gostavam de deixar bem claro quem manda e quem tem. Eles
me menosprezavam e tratavam como inferior, como uma empregada.
Eu me irritei bastante no começo.
Sempre acreditei que devemos tratar a todos com cordialidade.
Tratar as pessoas como desejamos ser tratados. Somos diferentes em
muitos aspectos, mas não era por isso que deviam me tratar mal, me
ignorar e humilhar.
Minha mãe dizia que as pessoas só nos humilham se
permitimos, mas eu me sentia humilhada sim. Eu trabalhei todos os dias
sem a menor vontade, apenas pela necessidade financeira. Eu me sentia
mal naquela casa e, se tivesse outra alternativa, teria me demitido, eu
não suportava estar ali. O patrão, o dono da casa, estava acamado, mas
ele ainda conseguia esbravejar, dar ordens e gritos para todos os lados,
humilhações verbalizadas que deixavam qualquer um a ponto de
explodir de raiva.

Cartas do Erasmo 2021- Paula Alves - 37


Muitos diziam que devíamos ter paciência por causa de sua
situação de saúde, mas outros diziam que aquilo era castigo por causa
da ruindade do velho.
Sei lá, eu que era a enfermeira fazia de conta que não me atingia
e ia levando. Ouvi insultos, ouvi piadinhas e até fui assediada por ele,
mas fingi que não entendi para conservar meu emprego.
As pessoas deviam se colocar no lugar do outro e respeitar o
trabalho dos demais. Respeitar o trabalho digno que gera o pão para as
famílias. Ninguém devia pensar em se colocar na frente da fonte de
renda de cada um.
Mas, aquele homem foi piorando, tanto em relação à saúde
quanto em espécie de humor. Foi ficando insuportável o insulto dele.
Eu fiquei com vontade de agredi-lo. Se eu tivesse feito isso poderiam
dizer que era uma covardia agredir um velho acamado, mas o que será
que gerou a agressão? Você acha que nada justifica? Será? O assédio
moral é grave, mas quando chega a passar mão, o sangue sobe.
Eu achei que fosse conseguir pedir demissão, mas meus
familiares precisavam da minha renda e eu tive que aguentar.
Foram dois anos intermináveis até que ele morreu. Logo depois,
me indicaram para uma senhora que era uma princesa em forma de
gente. Uma delicadeza em pessoa. Eu pensei que tinha passado por
coisa ruim para que Deus pudesse me beneficiar com aquela criaturinha
tão amável que parecia um membro da minha família. Quando eu
cheguei aqui tive provas que cada um tem o paciente que merece. Eu
estava comprometida com aquele velho há muito tempo. Foram tantas
vidas em que estivemos ligados realizando trabalhos ruins, várias
formas inescrupulosas de ganhar dinheiro. Molestamos, desviamos,
matamos, como sócios, como capataz e senhor de escravos, como
cônjuges, irmãos. Houve traição e revolta, até que apareceu esta
oportunidade de reparar com os cuidados da saúde. Eu precisava mostrar
a ele que existe um jeito nobre de ganhar o sustento. Precisava mostrar
a ele que podemos ser úteis. Ele foi grato a mim. No finalzinho, antes
de morrer parece que me reconheceu. Eu estava ao seu lado, segurando
a sua mão para não se sentir desamparado e ele me chamou de um nome
confuso, nome de homem. Ele soube me reconhecer, parece que
reavivou a memória naquele instante, antes de partir. Ele me pediu

38 – Cartas do Erasmo – 2021 – Erasmo Gurgel


perdão, eu o perdoei com sinceridade e senti que tudo tivesse que ser tão
dolorido entre nós.
É impressionante como a vida nos fornece sempre situações
para que possamos despertar a consciência e reparar com atos de
bondade.

Simone

Cartas do Erasmo 2021- Paula Alves - 39

Você também pode gostar