Você está na página 1de 13

Narrativa Histórica e Memória Individual:

um olhar pelo prisma da história pública

AIMÉE SCHNEIDER DUARTE


RAQUEL TERTO**

Resumo

A partir de um olhar em que os espaços de produção de conhecimentos são


valorizados, pretende-se refletir acerca da memória de Marilza Botelho de Sousa – dona de
terreiro de Umbanda – dentro do cenário da história pública. Insta frisar, contudo, que não há
memórias e imagens autênticas ou mentirosas, mas enfoques e olhares distintos, sendo a ação
narrativa uma forma artesanal de comunicação. Desse modo, a imagem e a fala precisam ser
interpretadas de forma crítica, de modo a entender o contexto em que foram concebidas.
Trata-se de adotar a memória pessoal como ponto de partida para a compreensão da memória
pública por meio da conexão entre as esferas privadas e públicas. Através do recurso visual, é
possível problematizar o conhecimento histórico como prática de história pública: comumente
associada ao acesso franqueado de informações de interesse público, nos últimos anos, vem-
se ampliando o entendimento dessa modalidade de história para além dos trabalhos
acadêmicos. Almeja-se, com isso, que a narrativa seja uma produção histórica em diálogo
com outras áreas do saber, pensando em uma memória compartilhada.

Descrição da fonte oral utilizada

A escolha da entrevistada se justificou por sua trajetória como dona de terreiro de


Umbanda e por ser uma pessoa influente no seu bairro – Manilha, Itaboraí-RJ –, assumindo
verdadeiro protagonismo através de seus trabalhos de caridade junto à entidade “Preta Velha”.
A primeira entrevista foi realizada no contexto da disciplina “História e Fontes Orais”,
desenvolvida entre 25/11/2015 a 02/04/2016, coordenada pela professora Juniele Rabêlo de
Almeida, na Faculdade de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). O projeto
resultou no diálogo com Marilza de Sousa sobre sua vida pessoal, as dificuldades encontradas
por ser mulher e pobre – questão de gênero e de classe social – e o seu envolvimento com a
religião umbandista. Já o segundo encontro, decorrido dois anos, em 04/04/2018, teve como


UFF, Mestre em História Social, pesquisadora júnior do INCT – Proprietas: História Social das Propriedades e
Direitos de Acesso.
**
UFF, Mestranda no programa da Comunicação Social com ênfase em Mídia e Cotidiano.
objetivos compreender o momento atual da entrevistada, dar continuidade ao registro oral de
sua história de vida, levantando novas questões de uso do audiovisual, bem como conformar
uma sequência com base nos questionamentos levantados na primeira entrevista.

Introdução: o encontro e a “entre-vista”

Nas tardes dos dias 09 de janeiro de 2016 e 04 de abril de 2018, Marilza Botelho de
Sousa nos deu entrevista – na primeira vez, em seu terreiro1 e na segunda, em sua casa, ambos
localizados no bairro de Manilha, em Itaboraí (RJ). Destacamos que a opção pelo trabalho
com a oralidade permite a produção de uma “entre-vista” (trocas de olhares), na qual ocorre
um encontro entre pesquisador e pesquisado.
Na entrevista de 2016, após fazermos uma breve visita ao terreiro de Umbanda,
decidimos mostrar as perguntas no início do diálogo, deixando Marilza livre para contar sua
história. As questões foram: 1. O que você se lembra da sua infância e como foi seu primeiro
contato com a religiosidade? E qual era a religião?; 2. Como você começou a se envolver
diretamente com o Umbandismo, inclusive adquirindo este Centro?; 3. Quais as
características mais marcantes da sua trajetória como representante religiosa? E você poderia
falar um pouco sobre suas atividades e experiências?; 4. Ocorreu algum acontecimento
marcante para você se desvincular e se afastar da Umbanda?; e 5. Quais as suas expectativas
para o futuro, tanto pessoal quanto para a sua religião?.
A partir destas, a entrevistada falou sobre suas recordações da infância, a
discriminação social que sofreu por ser demasiadamente humilde, as dificuldades encontradas
por ser mulher, o início dos seus transes e a relação com o espiritismo – mais especificamente
com a Umbanda. Também fez um breve relato sobre as ações da sua entidade, uma Preta
Velha de nome Tia Chica de Angola. Cabe destacar que, apesar de termos ido até ela com a
ideia de enfatizar a questão religiosa, a narrativa se desenvolveu por outro caminho, deixando
esse tema em segundo ou, talvez, terceiro plano.
Marilza afirmou que não intervém mais diretamente no Centro, mas que o respeita e
não pretende se desfazer dele, nem das estátuas dos santos tampouco das vestimentas. Porém,
em termos do espaço físico disponível, parte dele será transformado em duas casas para serem
alugadas. Antes da nossa partida, ela nos mostrou o seu caderno de cantos e orações e, em
especial, uma oração que ela escreveu em um momento de muita dor ao perder um de seus

1
Nesse local também fica a casa em que atualmente mora uma de suas filhas.
filhos – uma cópia nos foi entregue. Ela cita o ditado popular de que “tudo na vida tem um
começo, um meio e um fim”.
Por sua vez, neste ano, mudamos a abordagem e enviamos as questões via WhatsApp,
para Marilza, antes da realização da entrevista. As perguntas foram: 1. Passados dois anos,
gostaríamos de saber se, de fato, o terreiro encerrou as atividades, ou se elas continuam; neste
último caso, sob sua direção e/ou de sua filha Liliane?; 2. A entrevista anterior influenciou
de alguma maneira a sua trajetória de vida?; 3. Qual a sua opinião sobre a conjuntura em que
vivemos no atual momento, em relação às manifestações políticas e ataques às religiões,
principalmente as de matrizes africana?; 4. O que a Senhora espera que os seus depoimentos –
o presente e o de dois anos atrás – tragam para quem for ler o artigo, ouvir e/ou assistir uma
possível exibição do material?; e 5. Quais as suas expectativas para o futuro?.
Ao chegarmos à sua casa, estava presente também a sua família – igualmente no
primeiro encontro: a filha Liliane com os seus dois filhos. Novamente, fomos recebidas com
carinho e alegria; e logo após uma pequena conversa, iniciamos a entrevista. Desta vez, como
já mencionado, o contato teve como objetivo o seu momento atual, partindo, a princípio, de
uma questão específica levantada na entrevista anterior, qual seja: de fato, ela havia se
desligado das atividades do terreiro, e se não, havia passado a diligência para a sua filha,
Liliane?
Obtivemos como resposta a sua continuidade; contudo, não de forma assídua. Pois,
pelo o que entendemos, Liliane assumiu a direção superior do Centro. A mudança não se
limitou à liderança, mas também se fez na sua composição, uma vez que os trabalhos, que
eram regidos dentro de uma linha de Nação chamada Nagô, agora mudaram para a Nação
Angola. E tal mudança, acarretou para Marilza uma “renovação”, “rejuvenescimento”,
“mudanças mentais” e “revigoramento espiritual” – pelas próprias palavras da entrevistada.
Percebemos uma linha de continuidade em torno da procura por uma essência de
Umbanda – prestação de caridade, ausência de cobrança de capital e utilização de banhos de
ervas – que a própria entrevistada havia comentado no primeiro encontro e reafirmou no
segundo.
Abordagens metodológicas

Quando o documento é produzido no contexto da pesquisa de campo, as filmagens e


fotografias serão posteriormente relacionadas à situação das entrevistas num texto
próprio, e o resultado de pesquisa definirá os usos e funções das imagens. (DUMAS;
MAUAD, 2011, p.84)

Pretendemos, nesta abordagem, utilizar o método do relativismo, que constitui um


procedimento epistemológico que sublinha a relação entre o objeto delineado e quem o
observa, levando, assim, ao questionamento da verdade absoluta. A fonte deve ser
relativizada, sendo um testemunho indireto. É necessário, sob essa ótica, criticar as fontes e
examinar o contexto de sua elaboração por meio de uma relação entre prova e possibilidades.
O relativismo se impõe como um paradigma epistemológico. A própria seleção, neste
trabalho, de quem entrevistar e como organizar as fontes orais já revela uma maneira de
contar a história. Demonstra uma representação, revelando um modo de ver o mundo e a
escolha de um enfoque, o que não significa que apenas um contexto seja válido –, pelo
contrário, apenas se deu preferência a um dos pontos de vista.
Cabe apontar que fizemos duas diferentes abordagens metodológicas: antes, todas as
perguntas foram lidas no início da entrevista, com a finalidade de ser uma entrevista-
narrativa; depois, na segunda entrevista, as perguntas foram enviadas para Marilza com
antecedência, de maneira que acabou sendo uma entrevista-questionário, com perguntas e
respostas sequenciais. Tais metodologias resultaram em produtos diversos, posto que na
primeira vez, o áudio ficou com mais de 1 hora de gravação e na segunda, somente um pouco
mais de 16 minutos – cabe pontuar que, as perguntas descritas acima foram respondidas nos
primeiros 10 minutos e o tempo restante resultou em perguntas elaboradas na hora para
tentarmos prolongar um pouco mais o encontro.
Por conta da filmagem em ambas ocasiões, é preciso ressaltar que a busca pelo real – e
também pelo irreal – se dá na construção da narrativa e, nesse sentido, enfrenta-se as
seguintes indagações: “O que a imagem reflete? Ela é a expressão da realidade ou é uma
representação?” (KORNIS, 1992:237). Defende-se que as leituras icnográficas devem lidar
com as narrativas e as suas versões, uma vez que o espaço social passa a ser utilizado na
“busca de um alargamento das experiências do mundo” (SADER, 1988:206).
A escolha de filmarmos a entrevista partiu mais de um desafio de prática do que
necessariamente de uma escolha metodológica. O uso do vídeo no processo de gravação para
um trabalho historiográfico, assim como o do gravador, apresenta certas limitações e
desdobramentos que precisam ser analisados a partir de metodologias próprias. Ao longo dos
debates acerca das fontes históricas, pesquisadores – de outras áreas e, também, historiadores
– mostravam certa resistência ao seu uso; somente a partir de um novo olhar para a história do
presente que as fontes orais passaram a ser amplamente exploradas e validadas.
No presente trabalho, decidimos atentar, de forma específica, à narrativa do vídeo.
Dito isso, adotamos o conceito de “texto videográfico” (ou escrita videográfica da história),
defendido por Ana Maria Mauad (2011) e Fernando Dumas (2011). Nele, faz-se uma análise
da fonte videográfica para além dos canteiros institucionais da história, definindo o filme de
pesquisa como um “vídeo-história”, ao mesmo tempo em que apresenta uma nova forma, uma
peculiaridade de se transmitir informações e análises a partir de um conteúdo visual.
Diferentemente da historiografia convencional, as imagens vão criando “grande
efetividade” informativa, à medida que as reflexões, pautadas nos aspectos sonoros e visuais,
nos proporcionam uma leitura das performances e comportamentos expressivos de cada
entrevistado. Logo, as narrativas sobre suas experiências e trajetórias de vida são também
influenciadas pelo apontamento da câmera. E, assim como a história oral, com ou sem uso do
vídeo, os trabalhos devem discutir questões como mediação, negociação e colaboração no
processo de construção da narrativa.
Por fim, a narrativa fílmica não é qualquer coisa que fica por conta da construção do
passado, ele é um produto da sociedade contemporânea de que o fabricou segundo as relações
de negociação entre o entrevistado e o entrevistador (Jaques Le Goff apud KORNIS, 1992, p.
238); e que, no fim, se pretende voltar para os conhecimentos compartilhados. Em nossas
análises metodológicas das fontes orais, nos aproximamos de uma história pública, que, por
sua vez, cria um leque de possibilidades de diálogo entre as experiências de vida cotidiana da
nossa entrevistada ao saber científico da academia. Michael Frisch, Linda Shopes, Ricardo
Santhiago, Renata Schittino e Juniele Rabêlo, entre outros, trazem, em seus debates mais
recentes, um fluxo direcional nessa relação, na qual reavaliam novos ensaios e escritas em
uma história social e cultural.2
Apesar de o conceito de história pública não ser novo no Brasil, sua prática é recente
no âmbito da História Social, assinalando as dimensões que podem ser consideradas como
produção e divulgação do conhecimento histórico em diálogo com outras áreas do saber. Por
meio da história oral, é possível problematizar os contextos como prática de história pública; e
a compreensão dessa relação traz impacto no âmbito da história – dentro e fora do espaço

2
Os autores descritos estão na coletânea MAUAD; ALMEIDA; SANTHIAGO, 2016.
escolar. Pretende-se que a narrativa histórica não seja realizada apenas por um historiador de
ofício, mas fazer uma produção do conhecimento histórico em diálogo com outras áreas – não
necessariamente acadêmicas. Tentamos, desse modo, construir uma aproximação teórico-
metodológica entre a história pública e história oral.
Feito um levantamento dos encontros com Marilza e dos arranjos metodológicos
utilizados, o presente trabalho não seguirá formato de roteiro comentado: menções diretas a
pontos específicos do relato são feitas com o intuito de gerar uma leitura dinâmica, de modo
que aqueles que não tiverem acesso à transcrição na sua íntegra poderão entrar em contato
com os momentos que consideramos mais relevantes, sem ter a experiência diminuída ou
comprometida. A reflexão que nos propomos a fazer não é somente a de contar a história de
uma pessoa, mas conjeturar a questão da memória e os significados diversos que a entrevista
pode refletir no âmbito da história pública. Aproximamo-nos, com isso, da chamada micro-
história, e o fio condutor dessa perspectiva micro será a análise de uma trajetória de vida,
colhida por meio da entrevista oral, sem deixar de problematizar questões mais amplas da
sociedade.

História de vida de uma mulher

O debate entre a imagem ser “subjetiva” ou “objetiva” no vídeo transita entre dois
conceitos: o de imagem-percepção e o de imagem-movimento. Usando o primeiro conceito
como uma alegoria para se referir a quem está de fora (o espectador), é possível comparar a
nossa impressão (sensação) do entrevistado perante uma perspectiva que determinado
personagem tem acerca de certa ação e intervalo de tempo, a feição de “ver tudo”.3
Simplificando o conceito, a imagem-percepção nada mais é do que uma tomada de
consciência da personagem na cena diante de uma ação descrita no roteiro.
Admitindo, portanto, a constante passagem do aspecto subjetivo para o objetivo da
imagem – e vice-versa –, podemos chegar à conclusão de que a própria realidade é construída
momentaneamente, de forma instantânea. E, se essa afirmativa permanece verdadeira, assim
como a assertiva de que a realidade é de fato uma construção, a noção de verdade é ilusória. A
análise deste documento enquanto texto videográfico possibilita a divulgação, sob a forma de

3
A comparação realizada aqui é dada a partir da definição de imagem-percepção presente no livro “Cinema, a
imagem-movimento”, de Gilles Deleuze. Nela, tem-se (2005, p. 92): “imagem-percepção quase pura: é tanto um
drama do visível e do invisível quanto uma epopeia de ação: o herói só age porque vê primeiro, e só triunfa
porque impõe à ação o intervalo ou o segundo de atraso que lhe permite ver tudo (Winchester 73, de Anthony
Mann).” A definição se dá na tomada de consciência-perceptiva do momento pelo personagem-observador.
trabalho historiográfico e acadêmico, de uma nova modalidade de escrita da história. A
realidade, portanto, permanece em constante questionamento.
Ao optarmos por reconstruir a história de vida de uma mulher que questiona
definições de gênero no espaço vivido, pretendemos compreender as possibilidades de
resistência pelo traçado de seu caminho, tendo lutado ao longo da vida constantes revoltas
discretas. Em suas recordações, Marilza se vê como uma mulher que não se deixava dominar
e tinha garantida, através do trabalho, a independência financeira e a autonomia nas relações
sociais. Ela rompe com representações tradicionais, visto que ser “mulher” não a impediu de
conquistar sua liberdade: familiar, religiosa, econômica e social. Contudo, é interessante
perceber que ela oscila entre a reafirmação da hierarquia de gênero – por exemplo, a família
só permaneceu unida e financeiramente sustentável enquanto existia a figura paterna
comandando-a – e o questionamento desta.
A despeito disso, é possível encontrar a apropriação de um símbolo tido como
masculino (o Exército e, por conseguinte, o alistamento) para a realização de uma ação
violenta: ter sido vendida pela sua própria mãe. Iniciamos essa análise com o seguinte trecho:

E chegando em casa falei assim: “Oh mãe – que Deus a tenha –, seu Dozinho me
contou uma história assim, assim, assim...por acaso isso é verdade?” Gente, ela com
todas as letras falou assim para mim: “É... filha mulher não tem valor, filha mulher é
que nem cachorro: nasce para dar, pare e a gente pega os filhos e joga fora. Filho
homem que tem valor porque tem que ir para o Exército, tem que servir o quartel,
tem que fazer não sei o quê, não sei o quê lá...” E eu fiquei parada, eu falei: “Meu
Deus, isso não existe. Isso não existe, eu não tô ouvindo isso”. (MARILZA, 2016).

As concepções de gênero, extraídas acima, estão baseadas no discurso normativo do


poder paternal, no qual o homem possui privilégios apenas por ser do sexo masculino,
restando às mulheres o papel de “parideiras”. O historiador Edward Thompson apresenta, em
Costumes em Comum, a “venda de esposas” como um costume das camadas populares
inglesas dos séculos XVIII e XIX. Segundo o autor, “a esposa podia ser levada ao mercado
puxada por uma corda, ou a corda podia aparecer no momento da venda” (THOMPSON,
1998, p. 317), sendo entregue dessa forma ao comprador. A aparência era a de um leilão, que
ocorria por meio da troca de alguma importância em dinheiro.
Sem incorrer em anacronismos, devido às diferenças entre a sociedade inglesa dos
séculos XVIII e XIX e o interior do Estado do Rio de Janeiro da metade do século passado,
entendemos que, embora existam diferenças substanciais entre os termos, há uma
proximidade nas duas práticas. Por mais abominável que seja a ideia, “a venda de filhas”,
realizada pela mãe de Marilza, seria uma espécie de “costume em comum” daquela época
entre as classes mais pobres. O cenário da história pública mescla a narrativa pessoal em
perspectiva de complementaridade com a narrativa historiográfica, de tal modo que as
ressignificações acabam por favorecer uma história que vai além do espaço privado.
Sob essa ótica, não nos parece incoerente a história contada por Marilza de que foi
vendida por sua mãe em troca de 3 litros de Bousquetin (adaptação do nome da cachaça
Bousquet), obrigando-a a romper os laços maternos ao sair de casa somente com a roupa do
corpo e suas ferramentas de trabalho (foice, cavadeira, enxada, etc.).4 A autonomia que
demonstra ter em relação aos entraves do mundo destoa do comportamento comumente
esperado para as mulheres da sua geração, qual seja: casar e ter filhos ao estilo “Amélia”.
A entrevistada assevera, ainda, que, assim como recebeu o milagre do recebimento do
seu primeiro pedaço de terra, procurou igualmente ajudar outras pessoas, conforme listou em
exemplos. É importante ponderar sobre a influência que afirma ter tido sobre a vida das
pessoas de quem cuidava, por meio da sua “militância” pelo bem: “Você ganha satisfação,
alegria, prazer, orgasmo de fazer o bem sem olhar a quem” (MARILZA, 2016). Essa
intervenção na vida e nos valores dos necessitados ocorria ora espiritualmente, através da sua
“Preta Velha”, ora de forma material, por meio de comida, roupas e abrigo – como se deu
com a sua ajuda a alguns viciados em drogas.
Consideramos a ação de ajudar interessante para debater o processo de construção de
si mesma e a conquista da sua autonomia. Por meio da declaração através da qual Marilza se
reconhece como uma pessoa caridosa, podemos perceber uma referência à filantropia e, nesse
parâmetro, a historiadora Michelle Perrot (1991), ao analisar a Europa do século XIX,
estabeleceu uma ponte entre esta e o processo de conquista da independência da mulher. A
autora considera que a prática filantrópica foi uma forma de poder feminino, pois contribuiu
para a apropriação de conhecimentos e de atitudes tidos como masculinos, tais como
administração financeira, gestão e comunicação. O espaço utilizado para se relacionar pode
ter auxiliado no desenvolvimento do que Perrot chama de “consciência de gênero”.
A abordagem adotada por Marilza está ligada ao sujeito “mulher”, demostrando as
dificuldades enfrentadas em um mundo patriarcal, machista e desigual. Consideramos suas
práticas, tácitas ou não, como novas formas de enfrentamento das desigualdades de gênero, o

4
Na entrevista de 2018, Marilza, de maneira indireta, volta ao tema relacionado ao passado e à mãe, afirmando
que o resultado de quem ela é hoje está ligado ao que vivenciou em sua vida: “Olha só, eu agradeço a Deus por
tudo o que eu passei lá atrás porque talvez se eu não tivesse passado o que eu passei eu não seria o que sou hoje.
(...) Essa semana estava fazendo este comentário com os meus filhos e meus netos: talvez se a minha mãe não
tivesse feito o que fez comigo tão criança, tão pequena, tão inocente – que o melhor da vida é a inocência – eu
não seria o que eu me considero esse ser humano que sou hoje, humilde, capaz e resignado a Deus e aos Orixás”.
(MARILZA, 2018)
que torna possível considerar que outras mulheres também tenham inventado novas
perspectivas de subversão.

Memória e silêncio acerca dos contornos da fé

A narração é uma forma artesanal de comunicação. Ela não visa a transmitir o ‘em si’ do acontecido,
ela o tece até atingir uma forma boa. Investe sobre o objeto e o transforma. (BOSI, 1994, p. 88).

Assim como a trajetória de vida de Marilza, a análise de sua narrativa documentada


por nós fez-se a partir de conjuntos de novas percepções às experiências sentidas durante o
processo. Dizemos com isso que, não há uma metodologia empregada a procura ilusória de
uma realidade, mas sim a identificação de uma representação.
A religiosidade está presente na vida da Marilza desde a infância. Ela relata que sua
formação religiosa começou através do catolicismo e, mais tarde, por causa dos seus transes,
que começaram aos 18 anos, se envolveu com o espiritismo e, logo, com a Umbanda. As
concepções de mundo estão presentes nas suas escolhas narrativas, feitas de forma a emergir
um conjunto de opiniões acerca da vida, do mundo e das pessoas, defendendo ideais que
desaguam na espiritualidade, na caridade e no amor.
Entretanto, sua visão sobre a fé é mais complexa do que se possa imaginar. Na sua
abordagem, aparece a necessidade de justificar a sua racionalidade pela “troca de favores” e a
comparação das entidades da Umbanda aos políticos. Marilza demonstra ser uma mulher
prática, uma vez que, ao aparecer um problema, se dedica a resolvê-lo.5 A alusão que faz à
importância “da cabeça”/“do psiquê” – “Tudo com coisa de cabeça, engraçado né? Pelo fato
de eu ter afinidade e querer fazer uma coisa... (...) Só problemas de cabeça” (MARILZA,
2016) – expõe o seu lado lógico e evidencia a sua vontade de ter sido psicóloga. A ideia de
que ela não media esforços para ajudar os necessitados a aproxima da imagem de uma “santa”
– “E assim eu fiz bastante caridade, bastante caridade, graças a Deus” (MARILZA, 2016).
É interessante questionar essa representação, levando em conta que ela também é associada a
uma mulher que lidava com a religião, até o momento da segunda entrevista, como um
negócio.6

5
“Esse negócio... o ser humano tem que se impor. Aí comecei a lidar com as entidades que nem político. Político
só trabalha o quê? Ferro quente! ‘E você, como é que é?’; ‘Como é que isso funciona?’. Quer dizer, tudo é uma
questão de você incomodar. Se você vai lá só...catuca, balança essa árvore para ver se cai uma folha. Tem que se
mexer. Então, a espiritualidade ajuda muito. Muito, muito, muito, muito...” (MARILZA, 2016).
6
“E o negócio ficou meio...ah, gente, ‘quando não se pode com o diabo, junta-se a ele’. Aí relaxa e goza, deixa
rolar. E foi assim que eu entrei, entrei por... aí, fiquei lá dentro por 2 anos. Naquela assim, tipo assim, será que
isso é verdade? Acredito mesmo? Acredito nisso não. Vou pagar para ver. (...) Mas até aí, como fez dois anos eu
A oposição entre a mulher santa versus a racionalidade material é uma construção
histórica referente à constituição de modelos idealizados para as mulheres, nos quais aquelas
que divergem da figura santificada são consideradas “desonestas”. Analisando o discurso,
podemos pensar na possibilidade de que Marilza estaria ligada, ao mesmo tempo, aos dois
modelos – rompendo, assim, com a dicotomia idealizada e permeando um campo de nuanças
onde não existe a figura da pessoa totalmente boa ou má.
Após o nosso retorno, neste ano, Marilza afirma que a mudança de Nação fez com que
não vinculasse qualquer prática religiosa ao âmbito material. A entrevistada não renega ou se
arrepende da Nação Nagô – pelo contrário, é muito agradecida por tudo que conquistou e
vivenciou naquele momento de sua vida –, mas, agora, com a Nação Angola, ela se encontrou
e se renovou: tanto como mulher, uma vez que encontrou o amor, quanto como religiosa,
posto que se sente mais leve e livre.
Ao investigarmos o processo que a levou a deixar de praticar a Umbanda e, na
entrevista posterior, sobre o seu retorno, não obtivemos informações precisas do porquê de
tais mudanças, refletindo na sua intenção proposital em silenciar certos assuntos. Cabe
destacar que a memória humana não é simplesmente um arquivo mecânico que registra fatos
sucessivos; não existe em uma modalidade fixa, mas em forma de processo, pois, ao
“recordarmos, construímos uma versão possível dos acontecimentos” (SANTHIAGO;
MAGALHÃES, 2015, p. 36). O indivíduo é mutável, o que deságua no dinamismo dos
pensamentos. Portanto, quando lembramos, os elementos de nossa memória – que é seletiva –
são filtrados e reelaborados conforme as circunstâncias do presente e de acordo com esses
filtros.
Como estamos trabalhando com a rememoração, precisamos ter cuidado para não
tomar as manifestações proferidas por verdades intransponíveis. Entre lembranças e
esquecimentos, Marilza seleciona, recria e reelabora os fatos a partir dos anseios individuais e
coletivos do presente. Michael Pollak (1992, p. 204) afirma que “a memória é um fenômeno

quebrei o pau com o Pai de Santo. Quebrei o pau, falei ‘que doideira é essa? Vou ficar aqui batendo palma para
maluco dançar? Não sou doida. (...)’ Eu sou o certo pelo certo. Eu não estava vendo lucro naquilo ali. Estava
vendo desgaste físico e mental. E eu não ia perder o meu cérebro batendo palma para maluco dançar. Aí
apareceu lá uma entidade, num corpo de um rapaz. (...) Ele virou para mim e falou assim: ‘Você tem alguma
coisa aqui?’, eu falei ‘Eu não’, ‘Você gosta daqui?’, eu falei ‘Não, já perdi dois anos do meu tempo. Meu tempo
é muito precioso.’, ‘Se eu te der um presente, você vai passar a ter fé?’, eu digo ‘Vai vendo, vai depender do
quê?’. Tudo bem que a vida é um toma lá, dá cá, mas eu acho que a essência de qualquer coisa é você acreditar.
‘Mas se tu me der o que eu quero’, ‘E o que que você precisa?’, calmo, e eu estava que nem um mar revoltado,
uma onda de 3 metros. Falei: ‘Eu quero é comprar um terreno para fazer um teto, para trazer meus filhos de
volta’. (...) Aí ele olhou para mim e falou assim: ‘Então conta a partir de hoje, sete dias, começa a procurar a sua
terra que você vai encontrar’. Dito e feito, em 7 dias eu achei um terrenão. Terrenão! Me lembro até hoje o nome
do preto velho, preto velho Jango. (...) Olha, foi o maior milagre que eu recebi na minha vida.” (Grifo nosso).
(MARILZA, 2016).
construído”, pois falar do passado geralmente leva quem o conta a organizar e selecionar os
fatos. A memória registra como os acontecimentos foram digeridos por quem os relembra, de
maneira tal que gera um processo de edificação da imagem de si mesmo.
Partindo da premissa de que a memória é a base para a narração que permite a
construção do “eu” através da linguagem, podemos identificar que a narrativa da entrevistada
traz representações dela mesma e do mundo; dessa forma, é provável que haja uma
idealização dos acontecimentos. No diálogo com Marilza, é muito frequente o discurso em
que ela se coloca como uma mulher independente e caridosa, revelando um sentimento de
identidade: a versão que constrói e apresenta de si própria em conformidade aos valores
presentes na sociedade vivida. O fato de a narradora arquitetar um quadro não invalida a
importância de sua narração – muito pelo contrário: cabe a nós, historiadores, termos
consciência desse processo para pensar que o relato da vida também faz parte da vida.
Marilza mostra certo desprendimento ao compartilhar sua trajetória, que inclui
pobreza, discriminações, felicidades, dores, perdas, ganhos e fé. No entanto, quando se trata
de alguns temas, a exemplo do porquê do seu afastamento do terreiro, ela praticamente não se
pronuncia, antes silenciando-se, como se guardasse segredos. Pollak (1089) problematizou as
diferenças entre esquecimento e silêncio no campo da memória. Para ele, o silêncio não
necessariamente significa que o indivíduo se esqueceu da experiência vivida, mas que, por
razões diversas, optou por não se manifestar sobre ela. Não apenas o que é dito está
relacionado à construção da imagem e da identidade, mas também o que não é falado.

Considerações finais

A história oral expressa característica da história pública por meio de uma tentativa
colaborativa que envolve diversos segmentos para a produção do saber. A apropriação e a
ressignificação do conhecimento histórico acabam impactando o meio social e ultrapassando a
simples forma de publicização. É necessário o estabelecimento de relação entre reflexões
sobre as narrativas históricas e as maneiras de sua comunicação: o processo de divulgação
fortalece a história pública de modo a estimular a compreensão acerca do momento atual em
diálogo com o passado.
De modo geral, a história pública – ancorando-se em um campo interdisciplinar – é
compreendida em um âmbito de múltiplas possibilidades, notadamente ao considerar o outro
em sua diferença, promovendo diálogos e trocas – o que possibilita uma pluralidade de
sentidos epistêmicos em prol de uma ampliação do saber histórico. Por sua vez, as oralidades
possuem um parentesco com a história pública. Os sujeitos que constituem o objeto de análise
da pesquisa – neste presente caso, a Marilza – podem atribuir significações históricas que
ultrapassam a dimensão do problema analisado e abarcam as trajetórias de vida. Entender a
história enquanto algo público é um trabalho complexo que envolve saberes que convivem, ao
mesmo tempo, em uma atmosfera de disputas e de promoção de conhecimentos que não
encontram morada apenas na esfera acadêmico.
Marilza “costurou” – por ela também ser costureira, usamos essa metáfora para
pensarmos em uma colcha de retalhos ou em um tecido de patchwork – seu itinerário a seu
modo, criando um universo no qual os limites do contexto foram sendo tacitamente rompidos.
Se enxergarmos o mundo como uma invenção, acreditamos que ela teceu formas muito
próprias de viver, elaborando concepções que justificam sua forma de existir. Os diálogos, as
entrevistas e as perguntadas realizadas abriram mais uma porta de possibilidades para que
Marilza pudesse refletir sobre suas conquistas e rotas de destino, “sem remorso e sem
tristeza”, conforme suas próprias palavras.
Acerca das expectativas em relação à sua história, Marilza afirma que se a entrevista
“servir de uma base para alguém (...) é maravilhoso. (...) Fico feliz de estar sendo útil para
alguma coisa, que se eu não for lá na frente, pelo menos para vocês duas valeu” (MARILZA,
2018). E, neste contexto, deseja para o futuro uma melhor educação – não apenas formal, mas
em todos os sentidos – de forma que as pessoas possam pensar o outro em toda a sua
abrangência: “É isso que eu espero do futuro: que tenha um ensino melhor para todos”
(MARILZA, 2018).

Referências Bibliográficas

BOSI, Eclea. Tempo de lembrar. In: BOSI, Eclea. “Memória e Sociedade: lembrança de
velhos”. São Paulo: Cia das Letras, 1994, p. 73-92.
DELEUZE, Gilles. Cinema, a imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 2005.
GINZBURG, Carlo. Micro-história: duas ou três coisas que sei a respeito. In: “O Fio e os
Rastros”. Verdadeiro, Falso, Fictício. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
KORNIS, Mônica Almeida. História e cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, vol. 5, n.10, 1992, p.237-250.
MAUAD, Ana Maria; DUMAS, Fernando. Fontes orais e visuais na pesquisa histórica:
novos métodos e possibilidades narrativas. In: ALMEIDA, Juniele Rabêlo; ROVAI, Marta
(Orgs.). Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011.
MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; SANTHIAGO, Ricardo. História
Pública no Brasil: Sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016.
PERROT, Michelle. Sair In: DUBY. Georges & PERROT, Michelle. “História das Mulheres
no Ocidente. Século XIX. Porto: Afrontamento”. São Paulo: Ebradil,. 1991, pp 503-539.
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. In: “Estudos Históricos”. Rio de janeiro.
Vol. 5, n. 10, 1992.
____________. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, vol. 2, nº 3. 1989.
PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana. In: Ferreira, Marieta de M. e
Amado, Janaína. “Usos e abusos da História Oral”. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1996.
RIBEIRO, Suzana Lopes Salgado; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira; EVANGELISTA,
Marcela Boni. Audiovisual e história oral: utilização novas tecnologias em busca de uma
história pública. In: Revista de História Oral – Oralidades. São Paulo: Ano 5, n.10, jul.
dez/2011.
SANTHIAGO, Ricardo; MAGALHÃES, Valéria. História Oral na sala de aula. Belo
Horizonte: Autêntica, 2015.
SENNA, Adriana Kivanski de; MATOS, Júlia Silveira. História oral como fonte: problemas
e métodos. Historiae, Rio Grance, 2 (1): 95-108, 2011.
THOMPSON, Edward Palmer. “A venda das esposas”. In: Costumes em comum: estudos
sobre a cultura popular tradicional. Tradução de Rosaura Eichemberg. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.

Você também pode gostar