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Emoções, gênero e poder

(Catherine Lutz & Lila Abu-lughod)

Chiara Albino
Jainara Oliveira
(Orgs.)
Seriguela
Editora
Emoções, gênero e poder
Emoções, gênero e poder
(Catherine Lutz & Lila Abu-lughod)

Organizado por Chiara Albino e Jainara Oliveira

Editora Seriguela - Recife - 2023


Emoções, gênero e poder

Organização [CC] das organizadoras


Tradução [CC] das tradutoras
Títulos originais [CC] Catherine Lutz & Lila Abu-lughod

Você tem permissão de compartilhar, copiar, distribuir e transmitir esta obra, desde que a cite a
autoria e não faça uso comercial

Editoras Responsáveis Organização


Chiara Albino Chiara Albino
Jainara Oliveira Jainara Oliveira

Conselho Científico Normatização


Amanda Danaga (UEMS/UNESP) Chiara Albino
Carla Pires Vieira da Rocha (UFSC) Jainara Oliveira
Caroline Soares de Almeida (UFPE)
Denise Machado Cardoso (UFPA) Tradução, Preparação e Revisão
Esmael Alves de Oliveira (UFGD) Chiara Albino
Fernanda Cardozo (UFSC) Jainara Oliveira
Hélder Amâncio (UEM, Moçambique)
Helma Oliveira (UFPB) Revisão Técnica da Tradução
José Duarte Barbosa Júnior (IFRN) Sabrina Del Sarto
Marcos Mariano (UFRN)
Mariana Melo (UFPB) Projeto Gráfico e Diagramação
Mikelly Gomes da Silva (UFPI) Chiara Albino
Moisés Alessandro de S. Lopes (UFMT) Jainara Oliveira
Tarcisio Dunga Pinheiro (UFERSA)
Telma Amaral Gonçalves (UFPA) Capa
Vera Fátima Gasparetto (USFC) Foto: Jay Oliveira
Arte e Edição: Chiara Albino e Jainara Oliveira

Editora Seriguela
Recife, 2023
www.editoraseriguela.com
editoraseriguela@gmail.com
@editoraseriguela
Qualquer discurso sobre emoção também
é, pelo menos implicitamente,
um discurso sobre gênero.

Catherine Lutz
O que precisamos saber é como discursos sobre
emoção, ou discursos emotivos [...] estão
implicados nos jogos de poder e na
operação de sistemas de hierarquia
social historicamente mutáveis.

Lila Abu-lughod
Sumário

9 Agradecimentos

13 Apresentação à edição brasileira


Chiara Albino
Jainara Oliveira

25 Emoções generificadas:
gênero, poder e a retórica do controle
emocional no discurso norte-americano
Catherine A. Lutz

77 A mudança política da poesia de amor beduína


Lila Abu-Lughod

123 Sobre as Autoras


Agradecimentos
“Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano”, de
Catherine Lutz, e “A mudança política da poesia de amor
beduína”, de Lila Abu-Lughod, foram originalmente
publicados, respectivamente, como “Engendered emotion:
gender, power, and the rhetoric of emotional control in
American discourse” e “Shiing politics in Bedouin love
poetry” em Language and the politics of emotion, editado por
ambas e publicado por Cambridge University Press e
Editions de la Maison des Sciences de l'Homme em 1990.
Nossos mais sinceros agradecimentos às autoras Catherine
Lutz e Lila Abu-Lughod e às editoras a permissão para
traduzir e publicar esses textos em português. Também
agradecemos à antropóloga Sabrina Del Sarto a revisão
técnica da tradução, e à fotografa e jornalista Jay Oliveira a
permissão para usarmos a sua foto como imagem na capa
deste livro.

Chiara Albino & Jainara Oliveira

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Apresentação à
edição brasileira

Chiara Albino e Jainara Oliveira

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Chiara Albino e Jainara Oliveira

Na segunda metade do século XX, verifica-se na


antropologia norte-americana o florescimento do interesse
pelas emoções. Conforme assinalaram Catherine Lutz e
Geoffrey White (1986), naquele momento, os pesquisadores
estavam preocupados em analisar o modo como as emoções
atuavam na vida social e pessoal. Essa preocupação destacou
a forma como as pessoas experienciam socioculturalmente
as emoções, retirando-as, assim, das margens da teoria da
cultura. Isso, por conseguinte, desdobrou-se na elaboração
de abordagens interpretativas que se voltaram para os
aspectos sociais e relacionais, bem como comunicativos e
culturais, que constituem a experiência emocional. O que
implicou em não limitar as emoções ao campo das
experiências naturais e biológicas das pessoas, e, portanto,
não as examinar apenas desde a sua estrutura psicobiológica.
Essa preocupação com a análise cultural das emoções
sustentou também o interesse antropológico pelas emoções.
Particularmente no campo dos estudos antropológicos sobre
emoções, existem tensões teóricas e epistemológicas que
estruturam, ainda que de maneira implícita, os debates e os
silêncios sobre os modos como as emoções e a cultura se
relacionam, em termos analíticos.

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Apresentação à edição brasileira

Entre essas tensões, destaca-se aquela entre abordagens


universalistas e positivistas, assim como relativistas e
interpretativas. No âmbito dessas tensões, encontram-se
divergências que se referem às questões do materialismo e do
idealismo, do positivismo e do interpretativismo, assim como do
universalismo e do relativismo. Ao mesmo tempo, surgem
divergências relacionadas ao individual e ao cultural, e ao
romantismo e ao racionalismo.
Trata-se de tensões que não apenas estruturam o
discurso dos estudos antropológicos voltados para o
problema das emoções, como também exigiu que os
pesquisadores assumissem posições quanto a elas. Nesse
sentido, assumir posição torna-se crucial para o modo como
os pesquisadores conceituam, avaliam e estudam as
emoções, sobretudo porque essas questões nem sempre são
debatidas de maneira explícita como estando relacionadas
ao problema das emoções.
No âmbito dessas tensões teóricas e epistemológicas,
Catherine Lutz e Lila Abu-Lughod editaram o volume
Language and the politics of emotion, publicado nos Estados
Unidos em 1990. Na introdução, as autoras discutem o
problema de tomarmos as emoções como objetos
naturalizados não apenas nos saberes especializados, mas
também nos estudos socioantropológicos. Elas buscam
assinalar a relevância da análise sociocultural das emoções e

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Chiara Albino e Jainara Oliveira

sugerir caminhos próprios para o desenvolvimento de uma


antropologia das emoções.
Para conduzir esse desenvolvimento, as autoras
sugerem que pode-se utilizar, por exemplo, a essencialização e a
relativização, bem como a historicização e a contextualização do
discurso emocional. Depois de apresentarem essas quatro
estratégias, elas também sugerem que uma análise sociocultural
apropriada da emoção deveria considerar tanto o campo relativo
aos sentidos quanto os usos plurais da noção de “discurso”. Para
elas, o exame dos discursos sobre a emoção, bem como dos
discursos emocionais nos possibilitaria analisar cultural e
comparativamente as emoções de maneira mais produtiva. E,
por fim, apresentam uma abordagem diferenciada da emoção,
no que se refere ao modo como foca, interpreta e explora essa
categoria. Dizem elas:

[Esta nova abordagem da emoção] se distingue por


seu foco na constituição da emoção, e no domínio
da própria emoção, nos discursos ou nas práticas
discursivas situadas; por sua interpretação da
emoção como relacionada à vida social, e não a
estados internos; e por sua exploração do
envolvimento estreito dos discursos emotivos com
questões de sociabilidade e poder – em suma, com a
política da vida cotidiana (Ibidem, p. 1-2)

Em 1990, este livro abriu um debate com os trabalhos

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Apresentação à edição brasileira

antropológicos que discutem a complexa relação entre


emoções, sociedade e significados culturais. Ao fazê-lo, Lutz
e Abu-Lughod assinalaram que os colaboradores da obra
focam o discurso social e analisam as situações sociais
específicas, e que, para eles, as emoções são uma construção
sociocultural. Esta abordagem das emoções presta atenção,
de maneira particular, ao termo “discurso”. Por este motivo,
as autoras ressaltam que, naquele momento, “discurso” era
um termo popular, mas pouco definido no vocabulário de
muitos estudiosos. Nesse sentido, elas examinam como esse
termo foi trabalhado teoricamente e assinalam que se trata
de um termo usado de variadas maneiras, mas que mantém
sua relevância para os estudos sobre emoções.
Segundo Lutz e Abu-Lughod, os colaboradores deste
livro não empregam a noção de discurso de maneira igual,
porém, partem do discurso para estudar as emoções e
prestam atenção no discurso sobre emoções e nos discursos
emocionais. Apesar de haver divergência entre eles, os
colaboradores pensam sobre as emoções por meio da
linguagem. Para eles, a linguagem é social, em seu sentido
fundamental e inescapável. Neste livro, os colaboradores
entendem as emoções como práticas discursivas. Nesse
sentido, ao focar a relação da emoção com o discurso, eles
sugerem que não se deve separar a emoção e o discurso.
Por outro lado, indicam que se deve “encarar o

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Chiara Albino e Jainara Oliveira

discurso emocional como um modo de ação social que cria


efeitos no mundo” (Ibidem, p. 12). Ao mesmo tempo, eles
também ressaltam que o discurso emocional está vinculado
à sociabilidade e às relações de poder. Dessa maneira, ao
voltarem suas análises para as políticas do discurso
emocional, eles olham “para a pragmática da fala emotiva,
para o uso social de discursos emocionais específicos, ou
para as políticas das ideologias da emoção” (Ibidem, p. 15).

***

No presente livro, publicamos em português dois


capítulos da coletânea Language and the politics of emotion, a
saber: Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica do
controle emocional no discurso norte-americano, de Lutz
(2023), e A mudança política da poesia de amor beduína, de
Abu-Lughod (2023). Ao longo das últimas três décadas, essa
coletânea e, em particular, os artigos de Lutz e Abu-Lughod,
tornaram-se leituras obrigatórias no campo dos estudos
antropológicos sobre emoções realizados no Brasil. Por isso,
acreditamos que a publicação desses dois textos em
português contribuirá com as discussões antropológicas
locais sobre emoções.
No capítulo Emoções generificadas: gênero, poder e a
retórica do controle emocional no discurso norte-americano,

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Apresentação à edição brasileira

Lutz (2023) assinala que as emoções, no âmbito específico do


discurso acadêmico ocidental, estavam associadas à vida
interior, porém, na medida em que se deslocaram desse
lugar, elas passaram a serem descritas como operadores
culturais, bem como sociais e linguísticos. Devido a esse
deslocamento, tornou-se possível questionar tanto as bases
culturais das nossas interpretações ligadas ao domínio do
emotivo, como também a emoção enquanto categoria
organizadora.
Além disso, a autora sugere que esse deslocamento
possibilitou ainda questionar a associação da categoria
emoção com o feminino. Nesse sentido, a autora ressalta que,
no Ocidente, associa-se a emoção com o natural e o
subjetivo, e não com o cultural e o universal, da mesma
forma como se faz com o feminino. Daí por que ela afirma
que “qualidades que definem o emocional também definem
as mulheres” e, por isso, “qualquer discurso sobre emoção
também é, pelo menos implicitamente, um discurso sobre
gênero” (Ibidem, p.26).
Para a Lutz, existe uma semelhança no modo como a
noção de controle opera nos discursos ocidentais sobre os
domínios das emoções e da sexualidade. Nesse sentido, a
emocionalidade e a sexualidade são entendidas, de maneira
dominante, desde um modelo biomédico. A autora destaca
também que falar sobre controle das emoções replica a visão

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Chiara Albino e Jainara Oliveira

de que as emoções têm uma essência psicofísica, o que, por


conseguinte, reproduz igualmente a visão de que as
mulheres são natural e universalmente um gênero mais
emotivo. Por fim, ela destaca a política de gênero que está na
base dos estudos sobre emoção.
No capítulo A mudança política da poesia de amor
beduína, Abu-Lughod (2023) destaca que os trabalhos
antropológicos sobre emoção produzidos no final do século
XX, cujos interesses estavam associados às noções de pessoa,
self e experiência, questionaram as suposições ocidentais
sobre emoção. Porém, tais questionamentos não deixaram
de retomar ou recorrer, em suas reformulações, a noções
culturais amplamente difundidas sobre emoção. Ao retomar
trabalhos que focam especificamente o significado cultural da
emoção, a autora ressalta que o foco nas emoções como
construtos culturais e não naturais pode terminar produzindo
uma assimilação da emoção ao pensamento. Ela também
sublinha os trabalhos que prestam atenção na relação entre
emoções e estrutura social, e sugere que esses trabalhos,
muitas vezes, podem oferecer uma definição muito estreita
dos construtos emotivos e do processo social.
Abu-Lughod, por outro lado, defende que os estudos
antropológicos precisariam realizar um rompimento com o
conceito de cultura, em vez de enriquecê-lo. Para tanto, esses
estudos necessitam fazer pressão na questão da fala, bem

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Apresentação à edição brasileira

como da ação social: isto é, “precisamos examinar a emoção


como uma prática discursiva” (Ibidem, p.85). Para ela, em
vez de focar apenas no significado, as análises culturais
deveriam focalizar “como os discursos emotivos são
empregados nos contextos sociais” (Ibidem, p.86). Em
outras palavras, deveríamos examinar “como discursos
sobre emoção, ou discursos emotivos [...] estão implicados
nos jogos de poder e na operação de sistemas de hierarquia
social historicamente mutáveis” (Ibidem).
Em seu capítulo, Abu-Lughod volta-se para uma
estória de amor beduína. A atenção da autora está
concentrada nas emoções que constituem as relações entre
homens e mulheres pertencentes a uma comunidade
beduína. Ela analisa particularmente a poesia de amor
beduína, no Egito, e, nesse sentido, demonstra como a
expressão de sentimentos de amor entre eles está marcada,
de maneira específica, pelas relações de poder.

Referências

ABU-LUGHOD, Lila. A mudança política da poesia de amor


beduína. Tradução de Chiara Albino e Jainara Oliveira.
ALBINO, Chiara; OLIVEIRA, Jainara (Orgs.). Emoções,
gênero e poder. Recife: Seriguela, 2023, p. 77-121.

LUTZ, Catherine. Emoções generificadas: gênero, poder e a


retórica do controle emocional no discurso norte-

21
Chiara Albino e Jainara Oliveira

americano. Tradução de Chiara Albino e Jainara Oliveira


(Orgs.). ALBINO, Chiara; OLIVEIRA, Jainara. Emoções,
gênero e poder. Recife: Seriguela, 2023, p. 25-74.

LUTZ, Catherine; ABU-LUGHOD, Lila (Eds.). Language


and the politics of emotion. Cambridge: Cambridge
University Press; Paris: Editions de la Maison des Sciences de
l'Homme, 1990.

LUTZ, Catherine; WHITE, Geoffrey M. e Anthropology


of Emotions. Annual Review of Anthropology, vol. 15, p. 405-
436, 1986.

22
Emoções generificadas:
gênero, poder e a retórica do controle
emocional no discurso norte-americano

Catherine A. Lutz

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Catherine A. Lutz

No discurso acadêmico ocidental, as emoções


começaram a se deslocar de seu lugar culturalmente
atribuído no centro dos recessos obscuros da vida interior e
estão sendo descritas como operadores linguísticos, sociais e
culturais. No processo, podemos questionar não apenas
sobre os fundamentos culturais das coisas interpretadas
como emocionais, mas também sobre a própria categoria
organizadora de “emoção”. Um aspecto importante dessa
categoria é sua associação com o feminino, de modo que
qualidades que definem o emocional também definem as
mulheres. Por esse motivo, qualquer discurso sobre emoção
também é, pelo menos implicitamente, um discurso sobre
gênero.
Como um conceito analítico e corrente no Ocidente,
a emoção, assim como o feminino, tem sido tipicamente
considerada como algo natural, em vez de cultural;
irracional, em vez de racional; caótico, em vez de ordenado;
subjetivo, em vez de universal; físico, em vez de mental ou
intelectual, não intencional e incontrolável, e, portanto,
muitas vezes perigosa. Esta rede de associações coloca a
emoção em contraste desvantajoso com processos pessoais
mais valorizados, particularmente com a cognição ou o

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Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

pensamento racional, e o feminino em relação insatisfatória


com o seu outro masculino. Outro tema concorrente nas
interpretações culturais ocidentais da emoção, entretanto,
contrasta a emoção com a alienação fria. Nesta perspectiva,
emoção é a vida em sua morte da ausência, é a conexão
interpessoal ou a relação com um distanciamento não
emocional, é uma natureza livre e glorificada contra uma
civilização opressora. Esta última interpretação da emoção
ecoa algumas das formas fundamentais pelas quais o
feminino também foi “redimido”, ou alternativamente e de
forma mais positiva, interpretado (LUTZ, 1988).
Neste artigo, explorarei como a emoção tem sido
atribuída a um gênero em alguns setores da cultura norte-
americana e apresentarei dois argumentos relacionados.
Primeiro, ao examinar conversas de entrevistas conduzidas
com um pequeno grupo de mulheres e homens norte-
americanos, demonstrarei que o discurso local ou cotidiano
sobre emoção estabelece explícita e implicitamente ligações
entre mulheres, subordinação, rebelião e emoção. Em
particular, explorarei uma “retórica do controle” que
frequentemente acompanha a fala das mulheres (e, em menor
medida, a dos homens) sobre emoção, e argumentarei que
falar sobre o controle ou a gestão da emoção também é uma
narrativa sobre a natureza dupla - fraca e perigosa - dos grupos
dominados. Em outras palavras, falar sobre controle

27
Catherine A. Lutz

emocional nas e pelas mulheres é falar sobre o poder e seu


exercício. Segundo, argumentarei que este e outros aspectos
do discurso local ecoam e são reproduzidos em muitas áreas
do discurso científico natural e social que lidam com a
“mulher emocional”. Por fim, apresentarei uma análise
sintática mais detalhada das conversas das entrevistas que
contradiz pelo menos algumas das crenças estereotipadas
sobre a relação entre gênero e emoção que estes informantes,
assim como as ciências sociais, expressaram. Esta análise
examina o grau em que mulheres e homens podem usar de
forma diferenciada padrões sintáticos para distanciar, negar
ou despersonalizar a experiência da emoção. O fracasso em
encontrar diferenças sistemáticas pode ser tomado como
uma evidência preliminar de que os modelos culturais que
retratam as mulheres como mais emocionalmente
expressivas ou mais confortáveis em discutir suas próprias
emoções permanecem como modelos superficiais, e não
organizam o discurso em níveis mais microscópicos ou
inconscientes.

Gênero, poder e a retórica do controle emocional

O discurso ocidental sobre as emoções as constitui


como entidades paradoxais que são, ao mesmo tempo, um
sinal de fraqueza e uma força poderosa. Por um lado, a

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Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

emoção enfraquece a pessoa que a experiencia. Ela faz isto


por servir como um sinal de um tipo de defeito de caráter (por
exemplo, “ela não conseguiu superar suas emoções”) e por ser
um sinal de, pelo menos, desorganização intrapsíquica
temporária (por exemplo, “ela estava em um estado frágil” ou
“ela desmoronou”). A pessoa que “desmoronou”, desnecessário
será dizer, é incapaz de funcionar de forma eficaz ou vigorosa.
Por outro lado, as emoções são literalmente forças físicas que
nos impulsionam para uma ação vigorosa. “Ela estava
revigorada”, dizemos; “ondas de emoção sacudiram seu corpo”.
De uma forma contraditória semelhante, as mulheres são
construídas tanto fortes como fracas (por exemplo,
JORDANOVA, 1980), e apresentarei evidências das entrevistas
mencionadas anteriormente de que, quando mulheres e
homens norte-americanos falam sobre emoção, eles se baseiam
nessa semelhança para comentar sobre a natureza do gênero e
do poder. Esta característica do emocional e do feminino
produz discussões frequentes nas entrevistas sobre o problema
de controlar os próprios sentimentos. Tal discussão é
encontrada tanto no discurso dos homens quanto no das
mulheres, mas com muito mais frequência neste último. Eu
mostrarei que essa fala sobre controle das emoções é evidência
de uma visão cultural amplamente compartilhada do perigo
tanto das mulheres quanto de sua emocionalidade. É uma fala
que também pode significar coisas diferentes tanto para o

29
Catherine A. Lutz

falante quanto para o público quando é pronunciada por


mulheres e por homens, e este fator será usado para ajudar a
explicar as diferenças na taxa de uso desta retórica de
controle. Embora tanto as mulheres quanto os homens
recorram a um modelo culturalmente disponível de emoção
como sendo algo que precisa de controle, eles podem ser
vistos frequentemente fazendo diferentes tipos de sentido e
reivindicações a partir desse modelo.
O material que examino primeiro foi coletado em
quatro extensas entrevistas sobre emoção com quinze
mulheres e homens norte-americanos de classe média e
trabalhadora. Todos brancos, eles variavam em idade de 20 a
70 anos e incluindo profissionais que trabalhavam em caixa
de banco, operação de fábrica, docência universitária,
inspeção de código habitacional, corretora de valores ou
estava aposentado. A maioria deles era pais. As entrevistas
eram geralmente conduzidas nas casas das pessoas, e os
entrevistadores incluíam a mim mesma e vários alunos de
pós-graduação, a maioria mulheres. Cada pessoa foi
entrevistada pelo mesmo indivíduo nas quatro sessões e,
embora um pequeno número de perguntas organizasse cada
sessão, todas as tentativas foram feitas para que as entrevistas
se aproximassem de uma “conversa natural”. Todavia, é
importante ter em mente o contexto do discurso a ser
analisado, já que ele foi produzido por um grupo de pessoas

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Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

que concordou com a solicitação por telefone e carta “em


falar sobre emoção” para um público desconhecido que
também era acadêmico e, em sua maioria, feminino.
Muitas pessoas mencionaram em um ou vários
momentos das entrevistas que acreditam que as mulheres
são mais emocionais do que os homens. Um exemplo da
variedade de maneiras como isto foi expresso é o relato que
uma mulher deu para explicar sua observação de que
algumas pessoas parecem ser inerentemente “tipos
nervosos”. Ela se lembrou de sua infância:

as professoras tinham uma tendência a gritar muito


com as crianças, e quando eu estava na aula com o
professor, parecia que ele simplesmente deixava as
coisas passarem e não parecia ficar irritado tão
rápido, e ele não gritava na mesma situação em que
uma professora talvez o fizesse. ... Acho que as
pessoas emotivas ficam chateadas mais rápido. Eu
fico. E como acontece com homens e mulheres,
coisas que são importantes ou que me incomodam
não incomodam meu marido. ... Acho que essa é uma
1
diferença entre homem e mulher.

Um tema que surge frequentemente nas entrevistas é


o que pode ser chamado de “retórica do controle”
(ROSALDO, 1977). Quando as pessoas são solicitadas a falar
sobre emoções, um dos conjuntos mais comuns de metáforas
usadas é aquele em que alguém ou algo controla, lida,

31
Catherine A. Lutz

enfrenta, negocia, disciplina ou gerencia suas emoções ou a


situação vista como sendo criadora da emoção. Por exemplo:

Acredito que um indivíduo pode exercer um grande


controle sobre suas emoções mantendo uma
perspectiva mais positiva, não ficando preso ao
negativo, tentando deixar de lado um sentimento
desagradável. Estou ficando com raiva e, como eu
disse, ele superou a raiva, mais ou menos desistiu, e
ele espera que eu também o faça. Bem, não temos o
mesmo temperamento, simplesmente não posso
lidar com isso dessa maneira.

E de uma forma mais poética, uma pessoa ponderou:

tristeza ... mergulhando, mergulhando nisso…


apenas o descontrole das coisas.

As pessoas normalmente falam sobre como controlar


emoções, lidar com situações emocionais, bem como com
sentimentos emocionais, e tratar com pessoas, situações e
emoções.
A noção de controle opera de forma muito
semelhante aqui ao modo como o faz nos discursos
ocidentais sobre sexualidade (FOUCAULT, 1980). Tanto a
emocionalidade quanto a sexualidade são domínios cujo
entendimento é dominado por um modelo biomédico;
ambos são considerados impulsos naturais e universais;
ambos são referidos como formas “não saudáveis” e

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Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

“saudáveis” existentes; e ambos estão sob o controle de uma


profissão médica ou quase médica (principalmente a
psiquiatria e a psicologia). Foucault argumentou que as
perspectivas mais populares sobre a sexualidade - como uma
pulsão reprimida durante a Era Vitoriana e liberada de modo
gradual durante o século XX - são enganosas porque
pressupõem uma única essência que é manipulada pelas
convenções sociais. Em vez disso, postulou Foucault,
múltiplas sexualidades são constantemente produzidas e
modificadas. Um discurso popular sobre o controle das
emoções corre em paralelo com um discurso sobre o
controle da sexualidade; uma retórica do controle requer
uma essência psicofísica que é manipulada ou combatida e
direciona a atenção para longe da natureza socialmente
construída da ideia de emoção (ver ABU-LUGHOD; LUTZ,
1990). Além disso, a metáfora do controle implica algo que,
de outra forma, estaria fora de controle, algo selvagem e
indisciplinado, uma ameaça à ordem. Falar sobre o controle
das emoções é replicar a visão das emoções como sendo
naturais, perigosas, irracionais e físicas.2
O que é impressionante é que as mulheres falaram
sobre o controle das emoções mais do que o dobro das vezes
em relação aos homens, olhando proporcionalmente ao total
de fala de cada um nas entrevistas.3 Para ajudar a explicar esta
diferença, podemos perguntar o que a retórica do controle

33
Catherine A. Lutz

poderia cumprir para o falante e o que poderia dizer a


diversos públicos (ver BRENNEIS, 1990). Pelo menos três
coisas podem ser feitas por meio da retórica do controle
emocional: (1) reproduzir uma parte importante da visão
cultural da emoção (e implicitamente das mulheres como o
gênero mais emotivo) como irracional, fraca e perigosa; (2)
elevar minimamente o status social da pessoa que afirma a
necessidade ou capacidade de autocontrolar as emoções; e
(3) opor-se à visão do self feminino como perigoso quando o
falante nega a necessidade ou a possibilidade de controle da
emoção. Cada uma destas sugestões só pode ser examinada
brevemente.
Primeiro, esta retórica pode ser vista como uma
reprodução, principalmente por parte das mulheres, da visão
de si mesmas como mais emocionais, da emoção como
perigosa e, portanto, de si mesmas como necessitando de
controle. Faz isto inicialmente estabelecendo um limite -
aquele limite além do qual a emoção descontrolada pode
transbordar. Várias pessoas notaram que as ameaças a uma
ordem social dominante às vezes são articuladas em uma
preocupação com diversos tipos de limites (sejam físicos ou
sociais) e sua integridade (por exemplo, MARTIN, 1987;
SCHEPER-HUGHES; LOCK, 1987). Um dos limites mais
críticos que se constitui no discurso psicológico ocidental é
aquele entre o interior e o exterior das pessoas; o

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Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

individualismo como ideologia é fundamentalmente baseado


na ampliação desse limite particular. Quando a emoção é
definida, como também é no Ocidente, como algo interno do
indivíduo, ela fornece um importante veículo simbólico pelo
qual o problema da manutenção da ordem social pode ser
expresso. Um discurso que se preocupa com a expressão, o
controle ou a repressão de emoções pode ser visto como um
discurso sobre a travessia desse limite entre dentro e fora, um
discurso que podemos esperar ver de forma mais elaborada
em períodos e lugares onde as relações sociais parecem ser
subvertidas iminentemente.
Entretanto, esta retórica do controle emocional vai
além de definir e defender limites; também sugere um
conjunto de papéis - um forte e defensivo e outro fraco, mas
invasivo - que são hierarquizados e ligados a papéis de
gênero. Rosaldo (1984) observa que as sociedades
hierárquicas parecem evidenciar uma preocupação maior
do que as mais igualitárias com a forma como a sociedade
controla o self emocional interior e, podemos acrescentar,
com a forma como uma parte de um self bifurcado e
hierarquicamente estratificado controla outra. Em outras
palavras, o corpo político às vezes é replicado nas relações
sociais dos vários homúnculos que povoam a mente
humana, um tipo de “política mental”. Quando a cognição
supera e gerencia com sucesso a emoção, os papéis

35
Catherine A. Lutz

masculino e feminino são replicados. Quando as mulheres


falam de controle, elas desempenham os papéis de
superiores e subordinadas, de controladoras e controladas.
Elas identificam suas emoções e a si mesmas como
indisciplinadas e disciplinam ambas por meio de um
discurso sobre o controle dos sentimentos. A construção de
um self feminino, este material poderia sugerir, inclui um
processo pelo qual as mulheres passam a se controlar e,
assim, a evitar a necessidade de um controle externo mais
coercitivo.
Há o exemplo de uma mulher com pouco mais de 30
anos; ela falou sobre o ódio que sentia por seu ex-marido, que
começou um caso amoroso enquanto ela estava grávida e a
deixou com o bebê, uma criança mais velha e sem emprego
remunerado:

Então eu acho que você se esforça muito para não


deixar isso transparecer [o sentimento] porque você
não quer esse tipo de coisa em casa com as crianças,
sabe. Isso é muito ruim, muito prejudicial, isso não é
uma forma saudável de crescer. Então eu acho que
agora, talvez eu tenha aprendido a controlá-lo e o
tempo tenha mudado o sentimento de ódio.

A mulher aqui se define como alguém com um


sentimento de ódio e o retrata como perigoso, principalmente
em termos da ameaça que representa para seus próprios filhos,
uma ameaça que ela expressa em termos biomédicos (ou seja,

36
Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

“não saudável”). Ela replica um ponto de vista que Shields


(1987) considerou predominante em uma pesquisa de
manuais de educação infantil em inglês do século XX; este é o
perigo que se pensa que as emoções das mães (e não dos pais)
apresentam para os filhos. Além disso, a descrição que esta
mulher faz de seus sentimentos os essencializa como
estados; como tal, eles permanecem passivos (ver
CANCIAN, 1987, sobre a feminização do amor) ao invés de
motivadores ativos, um ponto ao qual voltaremos
posteriormente.
Em outros casos, as pessoas não falam sobre si
mesmas, mas lembram aos outros (geralmente mulheres) da
necessidade de se controlarem. Estes casos também servem
para replicar a visão das mulheres como perigosamente
emocionais. Outra mulher falou sobre uma amiga que ainda
sofria por um filho que havia morrido dois anos antes: “Você
tem que se recompor e continuar. Você tem que tentar ter
esses sentimentos sob controle”. O “você” nesta declaração é
um signo complexo e multívoco (KIRKPATRICK, 1987), e
direciona a admoestação para controlar simultaneamente a
mulher enlutada, a entrevistadora, a própria falante,
ninguém em particular, e a todos em uma audiência
potencial.
Um segundo efeito pragmático da retórica do
controle emocional é a afirmação de ter a capacidade de

37
Catherine A. Lutz

“superar” as emoções ou de aprovar aqueles que o fazem. As


mulheres, mais do que os homens, podem falar de controle
porque estão preocupadas em neutralizar a difamação
cultural sobre si mesmas por meio de uma associação com a
emoção. “Acho que é importante controlar as emoções”,
dizem elas, e lembram implicitamente a um público crítico
que elas têm o que é preciso para serem consideradas
maduras e racionais. É importante notar que, como
acadêmicos, eu e os alunos de pós-graduação que realizaram
as entrevistas podemos ter sido percebidos como um público
que precisa especialmente de tais lembretes. Os falantes
teriam feito isto, entretanto, distanciando-se da emoção, em
vez de questionando a visão dominante tanto de si mesmos
quanto da emoção.
Embora as mulheres possam ter menos acesso a uma
visão de si mesmas como indivíduos magistrais, um aspecto
comum do esquema cultural que está disponível as retrata
como magistralmente eficazes com os outros em tarefas
conjuntas, particularmente tarefas interpessoais ou
emocionais (as versões das ciências sociais incluem
CHODOROW, 1978; PARSONS; BALES, 1955). Isto altera
sutilmente o significado da retórica do controle; o
conhecimento de quais são os sentimentos que “precisam” de
controle e de como o controle deve ser percebido e descrito
como um processo social, e não individual. Por exemplo,

38
Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

uma mulher diz: “Se você está ligado a uma família ... você
tem que usá-la para orientar como você controla suas
emoções.” Esta é a mesma mulher cujo problema de vida
central durante o período da entrevista foi lidar com a ex-
mulher e a família do seu marido, que moravam do outro
lado da rua. O contato regular e amigável entre marido e ex-
mulher a deixou muito infeliz, mas também insegura sobre o
que fazer. A ambiguidade sobre quem deve controlar ou
regular é o que fica evidente em sua descrição de uma
discussão que teve com o marido sobre o assunto.

Eu estava louca. Eu estava louca. E eu disse: “Não me


importa se você acha que eu deveria [palavra
inaudível] ou permanecer nisto, é demais, e porque
vou dizer isso.” E eu disse: “como você ousa me dizer
como devo me sentir”, sabe. Bob [o marido] dizia,
sabe, “você tem que viver com isto” ou “você tem que
fazer isto” ou “como você ousa me dizer isto, eu não
tenho que aguentar nada” ou “eu não tenho que me
sentir assim porque você me diz que eu tenho que me
sentir assim.” Sabe, foi assim, no caso da Robin, que é
a ex-mulher dele, “e você tem que lidar com isto”,
sabe, “todos os problemas que ela traz para você.” E
era quase como dizer “você vai ter que gostar disto”.
Bem, eu não gosto. Eu não, você sabe. E por um ano e
meio ele ficou dizendo, sabe, “você vai ter que gostar,
é assim que vai ser, você vai ter que fazer isto, você vai
ter que ser e agir desta maneira”, sabe, agir como se
tivesse tudo bem, e não estava, sabe, e eu estava
começando a me ressentir de um monte de coisas.

39
Catherine A. Lutz

Eu, eu, eu me ressentia dele por me dizer que eu tinha


que me sentir assim quando eu não gostava muito da
situação. Eu não gostava disto. Quando eu dizia a ele
que não gostava, ele dizia “o problema é seu, lide com
ele.” Não gostava disto, ficava muito zangada porque
estava dizendo: “Ajude-me aqui, não sei como lidar
com isto.”

Esta mulher está frustrada com o marido por não ter


se juntado a ela em um projeto colaborativo de “lidar com”
seus sentimentos de ressentimento. Aqui, o controle é dado
ou compartilhado com outras pessoas. Esta estratégia de
controle é mais complexa e sutil do que a simples
autoimposição descrita em outras partes das transcrições até
agora; tem como objetivo controlar tanto as emoções do self
quanto a atenção e assistência do outro. Note também que ela
fala de “ressentir-se” ou “não gostar” (termos relativamente
brandos de descontentamento) da situação geral, mas está
muito enfurecida (“louca, louca, louca”) com a suposição de
seu marido de que ela não deveria se sentir de certa maneira.
Ela reivindica o direito de “sentir-se” infeliz com sua
situação, mas está claramente definindo esse sentimento no
sentido contemporâneo padrão de um evento estritamente
interno e passivo. Em nenhum lugar da entrevista ela afirma
explicitamente ou parece sugerir que deseja, pretende ou
deve agir de acordo com esses sentimentos. O que está sendo
controlado ou tratado, portanto, já foi definido como um

40
Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

sentimento relativamente inócuo, em vez de uma tendência


à ação.
Finalmente, a retórica do controle emocional
também pode ser empregada de formas idiossincráticas e
“invertidas”, que podem pretender ou ter o efeito de, pelo
menos minimamente, resistir à visão dominante da
emocionalidade e, portanto, das mulheres. Algumas pessoas,
por exemplo, falaram espontaneamente sobre o problema do
controle emocional, evocando assim todo o esquema que
acabamos de analisar. Elas continuaram, entretanto, definindo
“controle” de uma forma que implicava restrições
relativamente mínimas na comunicação emocional. Uma
mulher, uma caixa de banco de 28 anos, disse: “Deixe-me
explicar o controle. Não é que você se acomoda e submete-se
a isto [algum tipo de abuso] e, sabe, acho que controlá-las
[emoções] é deixá-las sair na hora certa, no lugar certo.”
Talvez mais radicalmente, algumas mulheres (assim como
um dos homens gays com quem conversei) negaram que
tinham a capacidade de controlar algumas ou muitas de suas
emoções.4 Um homem na casa dos 20 anos descreveu
criticamente uma tendência anterior que ele tinha de
intelectualizar demais os problemas e explicou que ele
trabalhou contra essa tendência porque

Não era que eu quisesse suprimir minhas emoções,


eu simplesmente não conseguia, elas saiam do

41
Catherine A. Lutz

controle, e descobri que quanto mais eu tentasse


suprimi-las, mais poderosas elas se tornariam. Era
como se uma grande represa não deixasse escapar
um pouco [de água] de cada vez, ela simplesmente
explodiria de repente, e eu ficaria totalmente fora de
controle.

A questão permanece, no entanto, sobre a validade


de ver estes últimos usos aparentemente resistentes da
retórica do controle emocional como formas “opositivas”
5
(WILLIAMS, 1977) dentro desse sistema. Esta é certamente
uma estratégia retórica perigosa, visto que (nós) estamos
presos dentro de um discurso hegemônico que não criamos
por nós mesmos. A oposição ao autocontrole provavelmente
será absorvida pela lógica do sistema existente e, portanto,
chegará a um nível não de resistência, mas de simples déficit
6
ou falta (de controle). Uma possível intenção oposicionista
pode ter resultados colaborativos na medida em que a
negação do autocontrole é tomada pela maioria dos públicos
como um déficit e uma confirmação de ideias sobre a
irracionalidade das mulheres.
A emocionalidade culturalmente construída das
mulheres está repleta de contradições. A mulher emocional,
como o mundo natural que é a fonte cultural do afeto e das
mulheres, é construída tanto como flexível (porque fraca e
um recurso para ser usado pelo homem civilizado) e, em
última instância, como tremendamente poderosa e

42
Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

incontrolável (STRATHERN, 1980).7 Emocionalidade é a


fonte do valor das mulheres, sua expertise em vez de
racionalidade, e ainda é a origem de sua inadequação para
tarefas sociais mais amplas e até mesmo uma ameaça
potencial para seus filhos.
Há paralelos vívidos entre isto e os significados
culturais em torno do colonialismo que Taussig (1984) e
Staler (1985) descreveram. Olhando para as perspectivas dos
colonos do início do século XX sobre a força de trabalho
colombiana local, Taussig descreve sua alternância entre o
medo e o temor dos índios que eram percebidos como
figuras perigosas e violentas, por um lado, e a repugnância e a
difamação de sua fraqueza e falta de civilização, por outro.
Taussig (1984, p. 495) descreve o processo como aquele em
que um “espelho colonial” “reflete de volta para os colonos a
barbárie de suas próprias relações sociais”. De uma maneira
(certamente menos sistemática ou universalmente brutal),
um “espelho patriarcal” pode ser conceituado como algo que
ajuda a produzir a visão das mulheres como emocionais -
como perigosamente “explosivas” e como estando em um
processo de “desmoronamento”. Um “paradoxo da vontade”
parece consistentemente atender às relações dominantes -
sejam aquelas de gênero, raça ou classe - já que o outro
subordinado é ideologicamente retratado como fraco (de
modo a precisar de proteção ou disciplina) e ainda

43
Catherine A. Lutz

periodicamente como ameaçador, prestes a romper o limite


ideológico em um surto ou histeria. A fala sobre emoção,
como fica evidente nestas transcrições, mostra as mesmas
contradições de controle, fraqueza e força. Dada sua
definição, pelo menos no Ocidente, os discursos sobre
emoções podem ser um dos instrumentos mais prováveis e
poderosos pelos quais a dominação prossegue.

A generificação da emoção na ciência

Demonstrações das bases políticas, morais e


culturais da ciência ocidental foram feitas de forma
convincente em uma série de campos naturais e sociais (por
exemplo, ASAD, 1973; FAUSTO-STERLING, 1985; HAAN,
BELLAH, RABINOW; SULLIVAN, 1983; SAMPSON,
1981). Da mesma forma, pode-se argumentar que as ciências
da emoção foram, em um sentido significativo, um produto
de seu contexto social. Em particular, a literatura acadêmica
sobre emoção pode ser considerada uma forma de discurso
político sobre as relações de gênero por causa das
associações marcadas entre os dois domínios. Essa literatura,
portanto, surge e entra novamente em um campo de lutas
pelo poder para definir a verdadeira feminilidade. Como
Haraway (1986) disse sobre a primatologia norte-americana,
ela pode ser vista como a “política por outros meios” e, no

44
Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

caso das emoções, é mais centralmente uma política de


gênero por outros meios. Ao examinar vários exemplos de
estudos da emoção, veremos que muitas pesquisas ao longo
dos anos em biologia, psicologia, sociologia, sociolinguística
e outros campos foram implicitamente baseadas em
modelos culturais cotidianos que ligam mulheres e
emocionalidade, e que essas pesquisas se movem da
suposição dessas premissas culturais à sua “prova”. O mais
impressionante nestes estudos é o número que naturaliza as
supostas diferenças de gênero, atribuindo-as a características
biológicas ou necessárias e universais do papel feminino na
reprodução física e social. Examinarei brevemente várias áreas
de pesquisa, incluindo a análise da síndrome pré-menstrual e
do humor, diferenças sexuais no reconhecimento de
expressões faciais de emoção e agressão e estudos dos
componentes afetivos e concomitantes da maternidade. As
críticas feministas a vários destes últimos campos têm sido
intensas, e vou recorrer a elas ao estender a análise ao domínio
da emoção.
Os estudos da relação entre o humor e as mudanças
hormonais se concentraram nos ciclos das mulheres (e não
dos homens) e, no processo, descobriram a doença
hormonal da síndrome pré-menstrual. Esta síndrome é
caracterizada tanto por dor física quanto por perturbações
de humor e foi atribuída pela comunidade de pesquisa

45
Catherine A. Lutz

biomédica a desequilíbrios hormonais nas mulheres que


sofrem com ela. A síndrome tem sido usada para explicar
uma série de emoções, desde irritabilidade e alterações de
humor até depressão, ansiedade e ataques de pânico. Uma
série de críticas feministas (ARCHER E LLOYD, 1985;
FAUSTO-STERLING, 1985; GOTTLIEB, 1987; WHATLEY,
1986) apontou a fraqueza das evidências para esta síndrome.
A avaliação do humor das mulheres geralmente se baseia em
autorrelatos retrospectivos por meio de questionários (uma
versão popular intitulada “Questionário da Angústia
Menstrual”), que permitem às mulheres recorrerem ao
conhecimento cultural sobre a relação entre gênero, emoção
e hormônios. Por outro lado, estudos que disfarçam os
propósitos do questionário não mostram alterações
significativas do humor pré-menstrual. Os supostos efeitos
terapêuticos das injeções hormonais são tidos como
evidência primária da base hormonal feminina para as
mudanças de humor, mas estes estudos não foram “duplo-
cegos”. Como Whatley (1986) argumenta, este discurso
biomédico sobre emoções e gênero pode “nos fazer ignorar o
fato de que nossas mudanças de humor pré-menstrual ...
também podem correlacionar-se mais de perto com um
ciclo mensal de saldos bancários baixos do que de flutuações
hormonais” (1986, p. 183). Além disso, os sintomas
emocionais da síndrome pré-menstrual podem ser vistos

46
Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

como um discurso tanto sobre a mulher boa quanto sobre a


mulher desviante, sobre a necessidade de seu sofrimento
emocional e a anormalidade, especialmente, de sua raiva ou
irritabilidade (GOTTLIEB, 1987), ambos sintomas comuns
ligados à síndrome. O trabalho acadêmico e clínico
normativo sobre a síndrome pré-menstrual enfoca a
emocionalidade das mulheres como algo comum e, ao
mesmo tempo, como um “sintoma” que precisa de cura. Esta
pesquisa baseia-se na visão cultural arraigada das emoções
como localizadas nas mulheres, como naturais em essência
(mas independentes da “naturalidade” das mulheres) e como
irracionais ou patológicas quando ocorrem.
Esta linha de pesquisa segue e reforça o modelo
cultural em que as mulheres são mais emocionais do que os
homens porque estão mais ligadas aos processos biológicos
que produzem as emoções. Úteros, menstruação e
hormônios “predizem” a emoção. Uma parte mais tácita da
lógica cultural que conecta mulheres e emoções pode surgir
da visão das mulheres como biologicamente inferiores, tanto
porque menstruam quanto porque são menores, mais fracas
e não têm pênis. Quando vista como uma forma de caos
físico ou “colapso”, a emoção é uma outra forma de fraqueza
biológica sofrida pelas mulheres.8
Várias pessoas no estudo da entrevista descreveram
espontaneamente ideias ligadas às relações entre mulheres,

47
Catherine A. Lutz

hormônios, emoção e patologia. Em vários casos, referiram-


se à pesquisa como a fonte autorizada de suas afirmações,
embora meu argumento seja que a relação entre as ideias
cotidianas e científicas sobre mulheres e emoção é dialética,
em vez de um sistema de ideias imposto hegemonicamente
sobre um modelo leigo anteriormente em branco ou muito
diferente. Segundo uma mulher, uma operadora de telefone
de 48 anos, “as mulheres são conhecidas por terem reações
diferentes à mesma situação em momentos diferentes do
mesmo mês. E isso foi estudado. Vi onde algumas mulheres
podem ser realmente perigosas, elas poderiam ser potenciais
assassinas.”
Outro campo em que se tem dado atenção às
diferenças sexuais é o estudo da expressão facial da emoção.
Em um relato sociobiológico, a emocionalidade feminina é
um produto da evolução. Babchuk, Hames e ompson
(1985) interpretam estudos que mostram que as mulheres
são mais capazes do que os homens de ler as expressões
faciais de emoções em bebês. Em sua opinião, isto é o
resultado da longa história das mulheres como as principais
cuidadoras de bebês e do valor reprodutivo do uso destas
pistas faciais para detectar o sofrimento do bebê. Este
argumento é implausível por muitas razões, sendo uma delas
a redundância na expressão facial dos bebês e outros sinais
de desconforto, e o valor teoricamente igual das habilidades

48
Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

de reconhecimento de expressão facial para os homens pré-


históricos, que, em muitos relatos evolutivos, estavam
comprometidos principalmente em defender a mulher e o
bebê contra estranhos ameaçadores e dissimulados. Além
disso, um dos estudos centrais que demonstra a superioridade
feminina na decodificação de expressões faciais de emoção
(HALL, 1978) foi reanalisado e mostrou ser responsável por
menos de 4 % da variação entre os indivíduos em habilidades
de reconhecimento de expressão facial (DEAUX, 1984, apud
SHIELDS, 1987).
Apesar de seus problemas óbvios, este relato da
evolução da identificação da expressão facial é uma história
com algum poder, pois se baseia em narrativas culturais
arraigadas sobre mulheres, maternidade, filhos e amor. Aqui,
a primeira premissa é que as mulheres estão mais
sintonizadas com as emoções sobre si mesmas e sobre os
outros. Ao contrário dos estudos da síndrome pré-
menstrual, no entanto, a emocionalidade feminina é
celebrada aqui, com as emoções assumindo seu sentido
positivo de compromisso interpessoal, não alienado. A
emocionalidade das mulheres torna-se uma habilidade e
uma vantagem. É significativo que o relato sociobiológico se
concentre no uso dessa vantagem para detectar desconforto
(em vez de, por exemplo, ameaça). O desconforto, é claro,
exige o cuidado, enquanto outras expressões faciais (em

49
Catherine A. Lutz

bebês ou adultos) podem exigir fuga ou defesa, mas apenas o


comportamento anterior é normativo para mulheres e mães.
Outra linha de pesquisa, sobre diferenças sexuais na
agressão, também se baseia em visões culturais da emoção e
das mulheres. Isto acontece, primeiro, porque a agressão,
pelo menos na visão cultural ocidental, é vista como uma
predição retrospectiva de raiva (MONTAGUE, 1978). A
raiva é a única emoção isenta no discurso cotidiano da
expectativa de que as mulheres sentem e expressam mais
emoção do que os homens. Na verdade, todas as emoções,
exceto a raiva, são reprovadas nos homens e, inversamente,
esperada nas mulheres (HOCHSCHILD, 1983). Este
estereótipo de gênero tem sido demonstrado como algo que
as crianças norte-americanas aprendem já no período pré-
escolar (BIRNBAUM, NOSANCHUCK; CROLL, 1980,
apud SHIELDS, 1987). Um conjunto de estudos recente,
amplamente aceito e frequentemente citado faz a afirmação
paralela de ter demonstrado uma relação entre os níveis do
hormônio “masculino” testosterona e a agressão. Fausto-
Sterling (1985) demonstra a fraqueza das evidências para
esta afirmação e questiona por que ela foi aceita com tanto
entusiasmo por muitos.
Os ecos da visão leiga na científica são seguidos pelos
ecos da visão científica na leiga também neste ponto. Uma
mulher profissional de 40 anos, durante a entrevista,

50
Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

comentou sobre a associação entre agressão e gênero: “Até


agora, a pesquisa mostra que, sim, os meninos são
inerentemente mais agressivos do que as meninas ... Acho
que me incomoda que haja uma ligação dos sexos com a
agressão. Há algumas ligações aos sexos que me incomodam,
mas ... mas eu não posso fazer nada sobre isso.”
Vários estudos que usam a lógica cultural da emoção
generificada focam menos nas diferenças fisiológicas para
explicar o emocional do que em funções e papéis universais.
Em particular, baseiam-se na noção do papel reprodutivo
das mulheres e no papel nutridor e nas emoções que
supostamente as acompanham naturalmente. Da teoria do
vínculo etológico (BOWLBY, 1969) a algumas escolas de
feminismo (por exemplo, RUDDICK, 1980), o foco é
colocado nos concomitantes emocionais naturais ou
inevitáveis da maternidade (ao invés da paternidade),
incluindo particularmente as emoções positivas de amor,
cuidado e apego. Bowlby (1969) segue a ênfase cultural
predominante nas qualidades emocionais das mulheres
quando se concentra nas emoções das mulheres e de seus
filhos. Ele deseja explicar a intensidade do vínculo entre a
mãe e o bebê, e enraíza essa explicação na necessidade
instintiva de apego do bebê e no medo da separação. Os
sentimentos de amor pela criança por parte da mãe são
naturalizados (cf. SCHEPER-HUGHES, 1985), e

51
Catherine A. Lutz

consequências desastrosas são narradas caso o bebê deixe de


receber quantidades suficientes de amor materno. Estas duas
facetas da abordagem de Bowlby fornecem as recompensas e
as ameaças do instinto natural e do dano psicológico à
criança como razões para a ênfase contínua na necessidade
de emocionalidade nas mulheres.
Ruddick (1980), por outro lado, identifica “bom
humor resiliente e alegria”, “amor atencioso” e “humildade”
como algumas das características centrais da virtude
materna que decorrem (e não precedem) da tarefa de ser mãe
e, por correlação frequente, da tarefa de ser mulher. A partir
destas perspectivas, as mulheres estão mais profundamente
envolvidas nas relações com outras pessoas (sendo o vínculo
mãe-bebê o exemplo e a causa primários). Este envolvimento
interpessoal com os outros é o que produz emoção, que é
aqui definida como resposta aos outros com quem se está
envolvido. Da perspectiva do feminismo, o individualismo
masculino é a antítese da experiência da emoção (ver
também CHODOROW, 1978).
As diferenças entre estas duas perspectivas sobre
maternidade e emoção são, sem dúvida, cruciais. A teoria do
vínculo ao estilo de Bowlby naturaliza a conexão entre as
mulheres e o afeto por meio da teoria evolutiva e está em
continuidade com teorizações anteriores sobre o elevado
status moral das mulheres alcançado por meio de suas

52
Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

habilidades maternas divinamente atribuídas e naturalmente


incorporadas. A teoria feminista frequentemente identifica a
divisão social do trabalho, e não a natureza, como a fonte
última de tais diferenças emocionais. Curiosamente, porém,
ambos os tipos de discurso sobre a emoção elevam as
mulheres (o primeiro a um pedestal doméstico, o segundo à
autoestima e/ou à capacidade de resistir ao patriarcado)
focando em emoções positivas como o amor e usando
“emoção” em seu sentido romântico positivo de conexão e
desalienação.
Outra versão da visão cultural das mulheres como
emocionais é encontrada na construção normativa
parsoniana dos papéis familiares, em que as mulheres são as
“especialistas expressivas” e os homens os “especialistas
instrumentais” (PARSONS; BALES, 1955). Estas competências
são vistas como um resultado das esferas do mercado
doméstico em que os gêneros participam de forma
diferenciada. Compare esta noção, entretanto, com a visão
contraditória do impacto emocional das mulheres sobre a
família observada no exemplo da entrevista e os temas do
manual de educação infantil descritos anteriormente. O
ponto pode ser que se espera que as mulheres sejam
especialistas em perceber e atender às necessidades
emocionais dos outros (também por BOWLBY, 1969), e não
às suas próprias, que são tratadas mais como objetos de

53
Catherine A. Lutz

controle ou repressão porque, ao contrário das emoções de


outros membros da família, são definidas como perigosas.
A importante revisão feminista de Hochschild
(1983) do esquema de Parsons e Bales descreve a emoção
menos como uma habilidade do que como uma forma de
trabalho. As mulheres recebem socialmente uma carga
muito mais pesada de trabalho emocional do que os homens.
As ideias de Hochschild contribuem para quebrar a
dicotomia entre emoção e pensamento; elas também podem
estender a noção de “jornada dupla” de trabalho doméstico e
assalariado da mulher, uma vez que as mulheres são
obrigadas a contribuir com o trabalho emocional e cognitivo
nas esferas remunerada e não remunerada. Nesta e em outras
análises feministas, gênero e emoção estão relacionados por
meio das relações de produção. Para Hochschild, a emoção é
um recurso pessoal que as mulheres devem explorar mais
que os homens. No entanto, ela permanece como um fato
psicofísico, socialmente manipulado, em vez de uma prática
discursiva que constrói as mulheres como mais emocionais
do que os homens.
Em suma, as ciências sociais disciplinam as mulheres e
suas psiques. Elas constroem a emoção como fenômeno
individual e intrapsíquico e evidenciam a mesma preocupação
do discurso leigo com a emocionalidade das mulheres - sua
frequência, sua intensidade, suas virtudes como emblema da

54
Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

identidade de gênero feminino, mas acima de tudo, seu


perigo e implicitamente a necessidade de seu controle.

Personalização

Volto agora à questão de como estas noções culturais


sobre a emocionalidade das mulheres, articuladas no
discurso científico, estão relacionadas ao discurso cotidiano.
A retórica do controle que examinamos inicialmente
mostrou refletir, de maneiras múltiplas e complexas, as
relações de poder entre homens e mulheres, e refleti-las de
maneiras que possam ser ditas, em grande medida, para
reproduzir a “mulher emocional”. Ao observar atentamente
alguns aspectos mais microscópicos da fala na entrevista, no
entanto, podemos ver que as diferenças de gênero são
mínimas, fato que pode indicar as lacunas e fissuras na
construção de um discurso hegemônico.
Em duas das séries de entrevistas, as pessoas foram
solicitadas, primeiro, a descrever experiências recentes com
cada uma das várias emoções comuns e, segundo, a falar
sobre como se sentem em relação ao trabalho e à vida
familiar. Em uma análise de uma amostra de 286 declarações
de entrevistas selecionadas aleatoriamente que incluem
referência direta às emoções, concentrei-me no grau em que
a declaração “personaliza” a experiência emocional - ou seja,

55
Catherine A. Lutz

em uma variedade de maneiras pelas quais as emoções,


mesmo quando são discutidas, podem ser distanciadas do
self. Seria de se esperar que as mulheres usassem formas
sintáticas mais personalizadas e imediatas se operassem
seguindo o modelo cultural em que as mulheres são mais
expressivas emocionalmente e têm uma autoidentidade mais
emocional.
A personalização, ou a estratégia discursiva de não
distanciamento, foi identificada por meio de quatro padrões
de discurso (ver a tabela abaixo), que serão discutidos a
seguir.
Tabela - Personalização na sintaxe

1. Tempo presente
“Eu fico [ou estou] com raiva sempre que alguém fala comigo dessa
maneira.”
Outros
“Eu estava com muita raiva.”

2. Experienciador da emoção discutida


Self, como sujeito da experiência emocional
“Eu estou muito ansioso por isso”.
Self, como objeto da experiência emocional
“Só de falar sobre isto, isto me deixa com raiva”.
Outra pessoa (gênero masculino, feminino ou não especificado)
“Meu pai ficou muito aborrecido comigo por ter ido para aquele
campo”.
Não especificado
“Isto foi um sentimento muito forte de ódio”.
“E isso desenvolveu uma certa quantidade de ódio em relação a esse
indivíduo por causa do fato de que ele . . .”
Nenhum - emoção como uma entidade abstrata
“Bem, ódio e frustração geralmente andam de mãos dadas, eu diria.”
“'Amor' seria, eu acho, uma boa frase de efeito porque …”).

56
Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

3. Causa ou elicitação da emoção


Self
“Eles estavam com raiva de mim”.
“Eu apenas ri e a deixei ainda mais brava”.
Outra pessoa
“Eu a odeio porque ela foi má o suficiente para me dizer isso”
“Eu tenho muito medo de dentistas”.
Evento
“O momento mais ansioso que eu tive ... foi minha primeira
apresentação com a ... Choral Society”.
“Odeio sair, a menos que eu realmente precise”.
Objeto
“Ele adora livros”.
Não especificado
“Muitas coisinhas são frustrantes”.
“Não consigo mais falar, começo a gritar quando estou com muita
raiva”.

4. Negação
“Eu [ou ela] não estava com raiva”.

1. O tempo presente, em vez do tempo passado ou


condicional (por exemplo, “eu fico [ou estou] com raiva
sempre que alguém fala comigo dessa maneira” em
comparação com “eu estava com muita raiva”), é usado. O
tempo verbal, obviamente, afeta o significado que o público
pode dar a uma declaração sobre emoção. Primeiro, pode
mover a experiência emocional para mais longe ou para mais
perto do self ou de outra pessoa no tempo. Segundo, pode
generalizar ou particularizar a experiência; o uso do tempo
presente, por exemplo, pode muitas vezes incluir a
implicação de que a emoção é habitualmente experimentada
pelo sujeito. Em ambos os casos, o estereótipo nos levaria a

57
Catherine A. Lutz

esperar mais uso do tempo presente por falantes mulheres.


De fato, não há diferença entre os falantes masculinos e
femininos na amostra da entrevista no uso do tempo
presente. Na verdade, os homens, como grupo, fazem um
pouco mais de uso dele.
2. Outro elemento de uma estratégia de personalização
pode incluir o uso de padrões sintáticos que retratam mais
diretamente o falante como o experienciador da emoção. As
declarações foram codificadas para retratar o experienciador
como o self, como outra pessoa (gênero masculino, feminino
ou não especificado), ou como deixando o experienciador
não especificado (por exemplo, “isto foi um sentimento
muito forte de ódio” ou “e isso desenvolveu uma certa
quantidade de ódio em relação a esse indivíduo por causa do
fato de que ele…”) ou a emoção como uma entidade abstrata
sem nenhum experienciador particular (por exemplo, “bem,
ódio e frustração geralmente andam de mãos dadas, eu diria”
ou “'amor' seria, eu acho, uma boa frase de efeito porque …”).
A categoria de self foi ainda dividida pelo fato de o self ser
retratado como sujeito ou objeto da experiência emocional
(por exemplo, “eu estou muito ansioso por isso” em
comparação com “Só de falar sobre isto, isto me deixa com
raiva”). A crença na emocionalidade das mulheres pode
levar à expectativa de que as mulheres retratariam mais
frequentemente o self (particularmente o self como sujeito

58
Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

em vez de objeto) como o experienciador de emoções,


enquanto os homens retratariam o outro como o experienciador
ou o deixariam ambíguo.
Na amostra da entrevista, não é significativamente
mais comum que as mulheres, em suas discussões sobre
emoção, se concentrem no self como o sujeito em vez de
objeto da emoção, nem é mais comum para os homens
deixarem o experienciador não especificado ou abstrato.
Além disso, nem as mulheres nem os homens são mais
propensos a retratar os outros, em oposição ao self, como o
experienciador da emoção discutida. Mulheres e homens
falam de maneira mais parecida do que diferente nesta
amostra, ao discutir o experienciador das emoções.
3. As declarações sobre a emoção geralmente contêm
uma etiologia implícita ou explícita, ou seja, especificam a
causa (normalmente especificando o objeto) do sentimento.
As estratégias de personalização podem incluir a identificação
do self ou, secundariamente, de outra pessoa como a causa
final da emoção (em vez do uso de padrões sintáticos que
obscurecem ou não identificam a causa). As declarações
foram codificadas para retratar a causa como sendo o self
(por exemplo, “eles estavam com raiva de mim” ou “eu
apenas ri e a deixei ainda mais brava”), outra pessoa (por
exemplo, “eu a odeio porque ela foi má o suficiente para me
dizer isso” ou “eu tenho muito medo de dentistas”), um

59
Catherine A. Lutz

evento (por exemplo, “o momento mais ansioso que eu tive ...


foi minha primeira apresentação com a ... Choral Society” ou
“odeio sair, a menos que eu realmente precise”), um objeto
(por exemplo, “ele adora livros”), ou deixar a causa não
especificada (por exemplo, “muitas coisinhas são frustrantes”
ou “não consigo mais falar, começo a gritar quando estou
com muita raiva”) (cf. SHIMANOFF, 1983). Dadas as
associações entre gênero e afeto que mencionei anteriormente,
podemos esperar que as mulheres, mais do que os homens,
vejam outras pessoas como intimamente envolvidas em suas
próprias experiências emocionais e a si mesmas como
provocadoras de emoções nos outros, em vez de verem os
eventos como desencadeando emoção em si ou deixando de
especificar uma causa. Esta última estratégia pode ser
associada à visão da emoção como algo sem sentido, irracional
ou sem causa determinável. De fato, não há diferenças
significativas de gênero no uso da atribuição causal pessoal
versus impessoal, nem as mulheres usam mais atribuições do
self versus outras atribuições do que os homens.
4. Finalmente, uma série de declarações sobre
emoção nas entrevistas são essencialmente negações da
emoção em si ou no outro (por exemplo, “eu [ou ela] não
estava com raiva”). O estereótipo pode nos levar a esperar
mais negação em geral dos homens e mais negação de
determinados tipos de emoções ligadas às mulheres (que

60
Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

incluem a maioria das emoções, exceto a raiva) pelos


homens e das emoções ligadas aos homens (notadamente a
raiva) pelas mulheres. Aqui, novamente, os discursos das
mulheres e dos homens são indistinguíveis em termos da
proporção de estados emocionais que são negados à medida
que são discutidos.
A ausência de grandes diferenças pode ser atribuída à
natureza especial das pessoas entrevistadas, todas as quais
concordaram de antemão em falar com um estranho sobre
emoções. Os resultados são consistentes, no entanto, com
um estudo sobre as diferenças de gênero no uso da
linguagem emocional de Shimanoff (1983), que fez uma
análise semelhante das conversas gravadas em fita de vários
estudantes universitários e casais norte-americanos, e
encontrou poucas diferenças nas conversas entre homens e
mulheres que incluíam referência às emoções.9 Os resultados
também são consistentes com a tendência nos estudos das
diferenças psicológicas e linguísticas dos sexos em geral, que
tendem a mostrar muito menos diferenças do que os
pesquisadores esperavam - com base em estereótipos
culturais sobre estilos masculinos e femininos distintos de
pensamento, comportamento e discurso - e depois muitas
vezes encontradas de forma autorrealizável. A ausência de
diferenças é mais significativa dada a natureza sintática das
evidências examinadas; Shibamoto (1987) concluiu que as

61
Catherine A. Lutz

diferenças de gênero que não são uma resposta às


expectativas do público sobre identidades de gênero
particulares são mais prováveis de serem encontradas em
padrões sintáticos de uso porque estão tipicamente fora de
nossa consciência e, portanto, de nossa fácil manipulação, ao
contrário dos padrões semânticos, como aqueles que têm a
ver com a noção de “controle” que examinamos anteriormente.

Conclusão

Em todas as sociedades, os distúrbios corporais - cuja


emoção é considerada nesta sociedade - tornam-se
indicadores cruciais de problemas de controle social e, como
tal, são mais prováveis de ocorrer ou emergir em um
discurso sobre subordinados sociais. Foucault afirmou que o
poder cria a sexualidade e sua disciplina; da mesma forma,
pode-se dizer que cria a emocionalidade. A construção
cultural da emoção das mulheres pode, portanto, ser vista
não como a repressão ou supressão da emoção nos homens
(como muitos leigos, terapeutas e outros comentaristas
argumentam), mas como a criação de emoção nas mulheres.
Como a emoção é construída como relativamente caótica,
irracional e antissocial, sua existência justifica autoridade e
legitima a necessidade de controle. Por associação com o
feminino, reivindica a distinção e hierarquia entre homens e

62
Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

mulheres. E a lógica cultural que conecta mulheres e emoção


fortalece e corresponde às barreiras entre as esferas das
relações privadas e íntimas (e emocionais) no domínio
(ideologicamente) feminino da família e as relações públicas
e formais (e racionais) no domínio principalmente
masculino do mercado.
Rubin comentou sobre a sexualidade que “há
períodos históricos em que [ela] é mais fortemente
contestada e mais abertamente politizada” (1984, p. 267). A
emocionalidade tem o mesmo dinamismo histórico, com
mudanças nas relações de gênero muitas vezes parecendo
estar na raiz das lutas acadêmicas e leigas sobre como a
emoção deveria ser definida e avaliada.10 Em outras palavras,
o discurso dominante contemporâneo sobre as emoções - e
particularmente a visão de que elas são irracionais e devem
ser controladas - ajuda a construir, mas não determina
totalmente o discurso das mulheres; há uma tentativa de
reformular a associação das mulheres com a emoção em uma
voz feminista alternativa.
Os tratamentos feministas da questão da emoção (por
exemplo, HOCHSCHILD, 1983; JAGGER, 1987) tendem a
retratar as emoções não como caos, mas como um discurso
sobre problemas. Alguns contestaram a irracionalidade e a
passividade dos sentimentos, argumentando que as emoções
podem envolver a identificação de problemas na vida das

63
Catherine A. Lutz

mulheres e, portanto, são políticas. Falar sobre raiva, por


exemplo, pode ser interpretado como uma tentativa de
identificar a existência de contenção inadequada ou
injustiça. A tristeza é um discurso sobre o problema da perda,
o medo do perigo. Por extensão, falar sobre o controle das
emoções seria, neste discurso feminista, falar sobre a
supressão do reconhecimento público dos problemas. A
mulher emocional pode então ser vista não simplesmente
como uma construção mítica no eixo de algum dualismo
cultural arbitrário, mas como resultado do fato de que as
mulheres ocupam uma posição objetivamente mais
problemática do que o homem mais velho, branco, de classe
alta, do norte da Europa, que é o exemplo cultural por
excelência da racionalidade fria e sem emoção. De acordo
com uma análise feminista, quer as mulheres expressem ou
não seus problemas (ou seja, sejam emocionais) mais do que
os homens, o público dessas mulheres pode ouvir uma
mensagem que é um amálgama da visão ortodoxa e sua
contestação feminista: “Nós (essas) mulheres estamos
perigosamente perto de irromper em emocionalidade/apontar
para um problema/mover-nos em direção a uma crítica social.”

Notas

Uma versão anterior deste artigo foi apresentada no painel


“Emotion and Discourse” na reunião anual da American

64
Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

Anthropological Association, em Chicago, de 18 a 22 de


novembro de 1987. Aquela versão se beneficiou muito dos
comentários de Lila Abu-Lughod e Steven Feld. A pesquisa
na qual este artigo se baseia foi conduzida com bolsas da State
University of New York Foundation e do National Institute of
Mental Health e com a ajuda de muitas pessoas. Kathryn
Beach, Robin Brown, Paula Bienenfeld e Walter Komorowski
ajudaram na entrevista e transcrição, e o trabalho analítico
especializado de Angela Carroll e Marion Pratt ajudou a dar
forma ao artigo.

1. O processo real pelo qual estes modelos de gênero e


emoção são adquiridos é uma questão fascinante, mas
inexplorada. Podemos esperar que isso inclua, em parte, o
raciocínio da criança desde a autoridade culturalmente
atribuída e o controle do professor até a falta de emoção,
este último talvez já tendo aprendido a exigir “força” e
“controle” para dominar - em outras palavras, generalizar
desde a posição dominante dos homens até uma suposta
falta de emoção (um processo que também poderia ter
ocorrido na visão que os professores têm de si mesmos).
2. O método utilizado na análise das transcrições baseia-se
em desenvolvimentos recentes no estudo “cognitivo” do
significado cultural. Estes se concentram na análise de
conversas extensas e relativamente naturais para o
conhecimento cultural ou dos modelos culturais
(HOLLAND; QUINN, 1987) evidentes, senão sempre
explicitamente declarados, neles. Ao analisar coisas como
sintaxe, metáfora ou redes proposicionais subjacentes à
sensibilidade da ordem das frases, é possível fazer
inferências sobre os tipos de modelos que os indivíduos
estão usando ou, talvez mais apropriadamente, fazer
inferências sobre os tipos de inferências que os ouvintes

65
Catherine A. Lutz

podem fazer sobre o que o falante não disse, mas


provavelmente deseja que seja compreendido.
3. Há 180 ocorrências nessas partes das transcrições das
mulheres analisadas até agora, e 85 ocorrências nas dos
homens, sendo que cada conjunto de transcrições tem
aproximadamente o mesmo tamanho.
4. Achei muito produtiva a análise de Woolard (1985) sobre
a natureza das formas hegemônicas e oposicionais de uso
da linguagem na formulação do que tenho a dizer aqui.
5. Martin (1987) examinou os discursos norte-americanos
sobre reprodução e corpos das mulheres e descobriu
rigorosamente a contradição entre uma visão das
contrações uterinas durante o parto como involuntárias e
uma visão da mulher como de fato no controle do
processo do trabalho de parto. As mulheres que ela
entrevistou sobre suas experiências de parto falaram de
maneira muito semelhante às mulheres descritas neste
artigo sobre sua sensação de controle sobre o processo
físico e sobre seus gritos de dor e prazer durante o
trabalho de parto e o nascimento. Ela nota uma diferença
de classe, no entanto, com as mulheres de classe média
falando com mais aprovação sobre o controle do que as
mulheres da classe trabalhadora. Podemos então esperar
que os homens também expressem mais preocupação e
aprovação com o controle da emoção, o que não é o caso
aqui. Este é certamente um problema digno de mais
estudo, particularmente delimitação dos tipos de controle
em que domínios parecem emergir a partir de tipos de
experiência dentro de sistemas hierárquicos.
6. O reconhecimento da emocionalidade de alguém pode
significar coisas muito diferentes para o público feminino
e masculino. As mulheres podem anunciar umas às outras
identidade e solidariedade compartilhadas, ao mesmo

66
Emoções generificadas: gênero, poder e a retórica
do controle emocional no discurso norte-americano

tempo que afirmam diferença, submissão ou desafio ao


fazer declarações semelhantes aos homens.
7. O estudo de Abu-Lughod (1986) sobre os Awlad 'Ali
representa o exemplo mais detalhado e eloquente de
como, em outro sistema cultural, os tipos particulares de
emoções alocadas e expressas pelas mulheres se articulam
com outros aspectos de suas posições ideológicas e sociais
estruturais.
8. Este grupo de estudos segue, obviamente, a tradição de
séculos de explicações especializadas da histeria. Embora
tenha havido muitas versões da explicação (como um
relato do século XIX que diagnosticou suas origens como
um útero vazio e uma infância onde a contenção da
emoção não foi ensinada [SMITH-ROSENBERG, 1972]),
elas foram organizadas em torno da conexão entre
fisiologia feminina e humor.
9. Shimanoff (1983) descobriu que os falantes masculinos e
femininos não diferiam no número de palavras afetivas
que usaram nem no tempo verbal, valência ou fonte
(semelhante à noção de “elicitação” usada aqui) das
declarações sobre emoção. Ela descobriu, no entanto, que
os homens se referiam mais às próprias emoções do que às
das outras pessoas, quando comparados às mulheres.
10. O ressurgimento do interesse pela emoção no final dos
anos 1970 e 1980 nas ciências sociais pode, em parte, ser o
resultado da revalorização do movimento feminista de
tudo o que está tradicionalmente associado às mulheres
(Margaret Trawick, comunicação pessoal). A mudança
das relações de gênero também pode estar na raiz do
revigoramento de um discurso ocidental de longa data
sobre o valor da expressão emocional; o debate atual opõe
expressionistas, para quem as emoções saudáveis são
liberadas, contra aqueles que as rejeitariam como

67
Catherine A. Lutz

“autoindulgentes” ou “imaturas”. Este debate, sem dúvida,


se baseia de forma complexa, em cada contexto concreto
em que ocorre, nas ideologias de gênero e nos conflitos
dos participantes individuais.

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74
A mudança política da
poesia de amor beduína

Lila Abu-Lughod

77
Lila Abu-Lughod

Um dia, em Nova Iorque, liguei o rádio e, por acaso,


ouvi um programa de atendimento terapêutico em que os
ouvintes telefonavam para a estação e falavam com um
psicólogo sobre seus problemas. A primeira pessoa que ligou
foi uma dona de casa mais velha que apresentou sua situação
como uma incapacidade de manter uma dieta. Ela estava
angustiada por continuar comendo demais. O psicólogo a
questionou habilmente até que descobriu que ela comia
sempre à noite, depois que o marido ia dormir, e que ela
estava “realmente” zangada com ele, porque ele sempre
chegava à casa tarde e cansado do trabalho e nunca queria
fazer algo com ela à noite.
O que mais me impressionou sobre o que ouvi foi que
o psicólogo perguntava repetidamente: “como você se
sentiu?” - como você se sente quando isto acontece, o que
você sentiu quando ele disse aquilo, o que você sentiu
quando ele fez aquilo? Ele tomou como certo este modo de
chegar à verdade, este foco nas emoções como pontos de
referência da realidade pessoal. E eu suspeito que aquela
pobre ouvinte, se ela tivesse feito terapia depois, teria
aprendido a preencher suas narrativas sobre si mesma e
sobre suas relações com uma legião de emoções também. Ela

78
A mudança política da poesia de amor beduína

teria aprendido a praticar sobre si mesma e sobre os outros,


adaptando uma noção de Foucault (1985, p. 5), uma
hermenêutica dos sentimentos.
Os beduínos com quem eu vivi e trabalhei no Egito
achariam estranho este comando de confessar seus
sentimentos: por um lado, seria impróprio e indigno e, por
outro, como se tornará claro, sem sentido. Sem sentido não
apenas porque eles nunca se perguntam “como você se
sentiu?” mas porque não consigo pensar em como isto
poderia ser dito em seu dialeto. Também seria sem sentido
porque eles são mais propensos a se perguntarem “o que ela
fez?” ou “o que você disse?”. Primeiro, é sem sentido porque a
pergunta implica que há uma explicação satisfatória a ser
obtida recorrendo à inspeção das emoções e, segundo,
porque presume que os sentimentos sobre os quais se falaria
nesta confissão pública transmitida no rádio seriam os
mesmos que os de outros contextos sociais e de outras
formas ou meios de comunicação. Em suma, esta pergunta
pressupõe que as emoções podem ser desvinculadas, em
termos de significado e de consequências, do fluxo da vida
social.
Na antropologia, a última década de trabalhos sobre
emoção, associada a um crescente interesse em noções de
pessoa, de self e de experiência, tem questionado
radicalmente tais pressupostos. 1 Muitos antropólogos

79
Lila Abu-Lughod

tornaram-se céticos em relação às ideias ocidentais


acadêmicas e populares sobre emoções - sobre sua
naturalidade e, portanto, universalidade, sobre sua localização
interna e sobre sua qualidade pessoal ou individual. Lutz
(1986) mapeou brilhantemente o terreno cultural compartilhado
pelo discurso filosófico e psicológico/psiquiátrico e pelo discurso
leigo da classe média euro-americana sobre emoções,
mostrando como a “emoção” atua em um sistema de dupla
significação como o oposto de razão (ou pensamento) e
afastamento. Uma contribuição importante de sua análise é,
como ela coloca (LUTZ, 1986, p. 304), que “ao demonstrar a
natureza e a extensão da construção cultural ocidental da
emoção, é possível contrastar estas concepções com as
premissas etnopsicológicas em que se baseiam as vidas
emocionais de pessoas de outras culturas, premissas que
agora só poderíamos cuidadosamente chamar de
'emocionais'.” Ao começar a desconstruir o próprio conceito
de emoção, mostrando seus significados culturalmente
específicos, ela solapa as certezas que guiam a antropologia
psicológica tradicional, tal como foi inspirada na psicologia e
na filosofia, e articula uma posição que está implícita em
grande parte dos trabalhos sobre emoção que se enquadra na
categoria de uma antropologia interpretativa.
Todavia, expor o etnocentrismo2 de nossos discursos
científicos e de senso comum sobre emoção não garante que

80
A mudança política da poesia de amor beduína

noções culturais básicas e difundidas sobre emoção não


possam ser retomadas em nossos trabalhos ou que não
possamos recorrer a outras noções culturais em nossas
reformulações. O fato de as emoções já existirem de alguma
forma ou de terem algum caráter ontológico retorna na
própria designação do objeto de estudo disciplinar: “a
antropologia das emoções”.
Há também problemas mais sérios que surgem
precisamente nesses trabalhos que oferecem a crítica mais
sustentada das conceitualizações psicológicas, psicobiológicas
ou psicanalíticas das emoções e de seus portadores humanos.
Antropólogos interpretativistas e cognitivos argumentam
que as emoções estão inseridas em contextos culturais que
lhes conferem significado e, assim, eles têm explorado a
variabilidade cultural das configurações e dos vocabulários
emocionais. Nos trabalhos sobre o que poderia ser chamado
de “construção cultural da emoção”, eles propuseram-se as
tarefas de tradução cultural e de mapeamento dos domínios
conceituais de termos sobre emoções em várias culturas,
traçando os sistemas culturais em que estes conceitos
participam e considerando as situações a que estes
construtos emotivos estão vinculados.3
Embora eu simpatize com a intenção destes
trabalhos, tenha contribuído para eles (ABU-LUGHOD,
1985, 1986) e acredite que eles deram início à importante

81
Lila Abu-Lughod

tarefa de relativização, há pelo menos três aspectos neles que


considero problemáticos. Ocupar-me-ei dos dois primeiros
agora e do terceiro mais adiante, em minha discussão sobre
discurso. Primeiro, para muitos pesquisadores envolvidos
neste trabalho de demonstrar que as emoções são culturais e
não naturais, o dualismo ocidental entre pensamento e
sentimento tem sido visto como a chave dos nossos erros.
Porém, como solução, a ênfase no caráter inerentemente
cultural das emoções corre o risco de assimilar a emoção ao
pensamento. Myers (1986, p. 106) enfatiza que “as emoções
não são simplesmente reações ao que acontece, mas
interpretações de um evento, julgamentos [sobre as
situações].” Lutz e White (1986, p. 428) concluem que, nesses
novos trabalhos sobre emoções, “a ênfase é deslocada da
questão de saber se uma experiência emocional de alguma
maneira descontextualizada seria 'igual' ou 'diferente' em
diversas culturas, para a questão de como as pessoas
conferem sentido aos eventos de suas vidas.” Rosaldo (1984,
p. 137-8) argumenta que “o pensamento é sempre
culturalmente padronizado e cheio de sentimentos, os quais
refletem um passado culturalmente ordenado”, e sugere que
os sentimentos devem ser compreendidos como “pensamentos
corporificados” (Ibidem, p. 138). Ao privilegiarem em suas
teorias da emoção atividades tais como compreender,
conferir sentido, julgar e interpretar, estes teóricos podem

82
A mudança política da poesia de amor beduína

estar inadvertidamente replicando aquela tendência em


direção ao mental, ao idealista ou ao cognitivo que Lutz
(1986) aponta como um valor cultural central para nós.
Um segundo problema relacionado com esta
abordagem cultural é que ela pressupõe que todos os seres
humanos, tais como os cientistas sociais ou os filósofos, estão
prioritariamente comprometidos com o projeto de
interpretar e compreender suas vidas, em vez de outras
práticas. Rosaldo (1984, p. 139) descreve uma tendência nas
ciências sociais que tem em seu centro o desejo de entender
“como os seres humanos compreendem a si mesmos e
[como] veem suas ações e comportamentos como sendo, de
certa forma, criações destas compreensões”. Parece-me que,
sem de alguma forma depreciar sua consciência ou suas
inclinações filosóficas, as pessoas que estudamos podem
estar também interessadas em outros aspectos da vida, e não
apenas da interpretação ou da compreensão. Deste modo, ao
invés de relativizar a psicologia ocidental chamando-a de
“etnopsicologia”, atribuindo seu projeto essencialmente
contemplativo de psicologizar, ou antropologizar, para todas
as pessoas, poderíamos querer questionar, como Foucault
(1970) faz, os desenvolvimentos muito peculiares e
historicamente específicos dos quais fazem parte os
empreendimentos conhecidos como ciências humanas e o
que ele chama, seguindo Nietzsche, de nossa moderna

83
Lila Abu-Lughod

“vontade de verdade” ocidental.


Como Lutz e White (1986, p. 420) salientam, mais
atenção está começando a ser dada à relação entre emoções e
estrutura social.4 Em muitos casos, esta virada para o social
encontra-se dentro do paradigma interpretativo. Myers
(1986, p. 107), por exemplo, defende uma preocupação com
o “lugar dos construtos emocionais no interior de um
sistema cultural de significados mais amplo”, e acrescenta
que “se as emoções são relacionais, as relações que elas
constituem recebem significado e valor por meio do
processo social em que estão inseridas.” Rosaldo (1984, p.
148) também, na última parte de seu artigo, começa a
explorar a ideia de que “noções de pessoa, processos afetivos
e formas de sociedade estão interligadas”, no que diz respeito
à vergonha, à culpa e à oposição entre sociedades igualitárias
e hierárquicas. Ela conclui argumentando que somos
“pessoas sociais” (Ibidem, p.151) e que o que é necessário é
relacionar “vidas de sentimentos a concepções de self, já que
ambos são aspectos de formas particulares de ordens
políticas e relações sociais” (Ibidem, p. 150). Ao sugerir,
como fazem muitos pesquisadores cujos trabalhos sobre
emoções consideram o âmbito do social, que pode haver
alguma correlação entre as construções emocionais e as
formas de sociedade, Rosaldo levanta a possibilidade um
tanto preocupante de realizar um novo tipo de estudo de

84
A mudança política da poesia de amor beduína

caráter nacional.5 Isto pode ser evitado apenas se a sociedade


não for concebida como um corpo unitário, mas como
composta de indivíduos e grupos com interesses
conflitantes, envolvidos em relações de poder, e se a política
não for reificada na noção de ordem política.
Prefiro seguir uma vertente mais dinâmica do
argumento de Rosaldo (1984), uma que traz pressupostos
mais sociolinguísticos, como uma direção promissora para o
estudo antropológico da emoção. Ela escreve que “o que os
indivíduos podem pensar e sentir é predominantemente um
produto de modos socialmente organizados de falar e de
agir” (Ibidem, p. 147). Usaria este aspecto de seu argumento
contra sua tendência interpretativa para defender que, ao
invés de enriquecer nosso conceito da cultura (Ibidem, p.
138), precisamos romper com ele, pressionando mais a
questão da fala e da ação social. Em outras palavras,
precisamos examinar a emoção como uma prática discursiva
(ver ABU-LUGHOD; LUTZ, 1990, para uma crítica ao
conceito de cultura). Isto traz à tona o terceiro problema de
muitas análises culturais, um problema que já recebeu
bastante atenção no livro Language and the politics of
emotion e em outros lugares: elas em geral se modelam em
teorias da linguagem como sendo referencial e comunicativa.
Isto promove uma preocupação persistente com o
significado, o que sempre implica que o objeto de estudo são

85
Lila Abu-Lughod

os referentes e não os falantes (ver também ROSENBERG,


1990). Eu argumentaria que o primeiro passo deve ser
perguntar como os discursos emotivos são empregados nos
contextos sociais. Isto deslocaria a preocupação daquilo que
Foucault argumentou ser característico e difundido no
Ocidente moderno - um foco naquilo que é dito no discurso -
para questões mais interessantes e políticas sobre o que é o
discurso, o que ele faz e quais formas ele assume.6 O que
precisamos saber é como discursos sobre emoção, ou
discursos emotivos (para esse assunto, ver ABU-LUGHOD;
LUTZ, 1990), estão implicados nos jogos de poder e na
operação de sistemas de hierarquia social historicamente
mutáveis (ver também TRAWICK, 1990).
Pode-se olhar para a relação entre emoção, vida
social e poder como Lutz faz (1986) ao notar as funções
ideológicas da atribuição de emoção (por exemplo, a
rotulação de mulheres, crianças, povos primitivos e classes
mais baixas como emocionais “para justificar a exclusão
destes indivíduos das posições de poder e responsabilidade”
(Ibidem, p. 294)), ou ao observar os contextos sociais reais
em que discursos emotivos são empregados. Estudar as
formas como discursos emotivos são usados, focar na prática
ao invés de no significado e examinar os discursos e não os seus
supostos referentes são, parece-me, os projetos compartilhados
pelos colaboradores do livro Language and the politics of

86
A mudança política da poesia de amor beduína

emotion.7
Neste capítulo, concentro-me nas emoções ou nos
sentimentos associados às relações entre homens e mulheres
em uma comunidade beduína no deserto ocidental do Egito,
particularmente nos discursos de “amor”. Meu argumento
prossegue por meio de uma estória de amor beduína. A
comunidade de beduínos sobre a qual escrevo faz parte de
um grupo conhecido como os Awlad 'Ali, que habita uma
área ao longo da costa mediterrânea do Egito, que vai do
oeste de Alexandria até a Líbia.8 Vivi nesta comunidade de
1978 a 1980, cinco anos depois a visitei durante um mês e, em
1987, voltei para cinco meses de trabalho de campo. Até
cerca de trinta e cinco anos atrás, aqueles que ainda viviam
no deserto ocidental ganhavam a vida pastoreando ovelhas,
cultivando cevada e organizando caravanas de camelos para
transportar tâmaras do oásis ao vale do Nilo. Eles estão agora
envolvidos em todo tipo de atividade, da antiga criação de
ovelhas aos mais novos cultivos de pomares, do contrabando
ao fornecimento de materiais de construção e à especulação
imobiliária. Eles costumavam viver em tendas. A maioria
deles agora vive em casas, embora eles ainda armem suas
tendas ao lado das suas casas e prefiram ficar nas tendas pelo
menos durante o dia. Eles costumavam montar em cavalos,
camelos ou burros; agora preferem caminhonetes da Toyota.
Embora estejam se sedentarizando, eles ainda se distinguem

87
Lila Abu-Lughod

com orgulho dos camponeses assentados e dos grupos


urbanos do vale do Nilo - os egípcios - por sua organização
tribal e pelo que consideram como sua moralidade superior.
Mas, como discutirei adiante, até isto está começando a
mudar.
Esta é a estória de amor. Em 1985, eu voltei ao Egito e
pela primeira vez, desde meu trabalho de campo inicial,
visitei as famílias com as quais eu convivi por quase dois
anos. Era a manhã do último dia em que estive lá. Meu
anfitrião, o chefe da família, com quem eu convivia como um
tipo de filha adotiva, estava se preparando para levar-me de
carro até o Cairo para eu pegar meu avião. Ele vasculhou os
bolsos de suas túnicas e coletes, olhou em sua pasta e
finalmente perguntou exasperado a seus filhos, que estavam
todos em pé, se eles sabiam o que havia acontecido com a fita
cassete de Fathalla Aj-jbehi. Sua filha mais velha saiu
acanhada e trouxe de volta a fita que ela e suas irmãs
escutavam frequentemente em segredo, quando o pai estava
fora. As crianças colocaram as minhas malas no seu novo
Mercedes, despedi-me e partimos. Assim que estávamos na
estrada deserta, ele ligou o toca-fitas e disse-me para escutar
a fita. Nós a escutamos. Um homem cantava, com uma voz
comovente e aflita, poemas do tipo chamado ghinmwa.
Meu anfitrião escutava extasiado, interpondo
exclamações de compaixão no final de alguns dos poemas, e

88
A mudança política da poesia de amor beduína

elaborava, com uma admiração intensa, sobre algumas das


referências nos poemas. Entre eles estavam os dois abaixo:

A paciência é difícil
para o meu coração, tão ferido recentemente. . .

Eu imaginei, oh amada, que a distância seria uma


cura, mas ela só piorou as coisas...

Meu anfitrião explicou-me que Fathalla, o jovem que


recitava os poemas (cuja relação de parentesco com um de
nossos vizinhos ele identificou) estava apaixonado por sua
prima paterna e queria casar-se com ela. Seus pais
concordaram inicialmente, mas depois discutiram um com
o outro. O pai da jovem decidiu recusar-se a dar a mão de sua
filha em casamento ao rapaz. Desesperado e pensando que
poderia superar isto mais facilmente se colocasse uma
distância entre eles, o rapaz partiu para a Líbia (para onde até
recentemente muitos homens beduínos foram à procura de
trabalho). Algum tempo depois, o pai da moça arranjou um
casamento para a sua filha com outro rapaz. Quando
Fathalla soube da notícia, ele compôs e gravou estes poemas
e enviou a fita para o irmão da moça, um primo com quem
ele havia crescido. Quinze dias depois do casamento, quando
a noiva voltou à casa de sua família para a visita pós-nupcial
ritualística, seu irmão mostrou-lhe a fita. Ela ouviu os
poemas e, quando a fita acabou, ela ficou sem ar, desmaiou e

89
Lila Abu-Lughod

caiu morta.
Esta estória nos diz muito sobre a política do discurso
emotivo na sociedade beduína. Examinarei quatro aspectos
disto. Primeiro, há a questão dos pungentes poemas de amor
e suas relações com outros discursos beduínos sobre o
“amor”. Segundo, há o significado das reações à poesia do
rapaz e seu poder aparente. Terceiro, há a fita cassete. Na
conclusão, considerarei uma quarta questão: o contexto
específico em que esta estória foi narrada para a antropóloga.
Quando Fathalla quis expressar sentimentos de
amor, ele o fez através do meio tradicional e formulado da
poesia. A maneira como ele expressou estes sentimentos e o
meio através do qual ele o fez poderiam ser considerados
distintamente beduínos. Pode-se dizer facilmente que eles
foram moldados pela cultura em que ele vivia. Fathalla
expressou seus sentimentos dolorosos em um gênero de
poesia oral lírica que faz parte da vida cotidiana e é tão
apreciada pelos beduínos que acabei estudando-a em minha
primeira viagem de campo. Lembrando o haiku japonês em
seu tamanho e condensação de imagens, porém mais
parecido com o blues em tom emocional, esta é a poesia da
vida pessoal. Não é de forma alguma o único tipo de poesia
que os beduínos recitam. Eles têm muitos gêneros distintos
de versos longos rimados, geralmente compostos por
homens, muitas vezes especialistas, e recitados em reuniões

90
A mudança política da poesia de amor beduína

formais. Eles também têm tipos especiais de poemas e


canções para casamentos. Mas poemas deste gênero,
ghinmwa, podem ser compostos e recitados por qualquer
pessoa, homem ou mulher. Embora os poemas possam ser
alterados ou cantados às vezes em casamentos ou, como você
poderia ver da minha estória, agora até gravados em fitas
cassetes que passam de pessoa para pessoa, na maioria das
vezes, conforme eu os ouvia, eram apenas recitados no meio
de conversas comuns com pessoas íntimas.
Esta poesia é rica em sentimentos, portanto, pode-se
ser tentado a explorar a linguagem da poesia a fim de chegar
à construção cultural do sentimento beduíno. Mas haveria
um problema com este projeto. Quando comecei a prestar
atenção à maneira como as pessoas usavam esta forma de
poesia, descobri um padrão intrigante: havia uma
discrepância entre os sentimentos que os indivíduos
expressavam em seus poemas e aqueles que eles expressavam
em suas comunicações orais cotidianas sobre as mesmas
situações.9 Isto não é aparente no caso de Fathalla, porque
seus poemas estavam fora de contexto. Mas é óbvio em um
caso mais típico sobre o qual já escrevi, o de uma mulher de
meia-idade que chamei de Safiyya.
Quando me contou sobre o seu divórcio do homem
com quem estava casada por quase vinte anos, ela demostrou
uma indiferença agressiva que eu esperava ser a atitude típica

91
Lila Abu-Lughod

em relação ao amor e ao casamento. Ela explicou que nunca


gostou dele e que não se importou quando ele se divorciou
dela. Mas dois dias depois, quando a conversa entre Safiyya e
várias outras mulheres de sua casa se voltou para o paradeiro
de seu ex-marido, que estava viajando na época, ela de
repente recitou um poema que todas sabiam que era sobre
seu marido. Nele, ela expressou um conjunto de sentimentos
muito diferentes, especialmente sua tristeza por perdê-lo.
Este e vários outros poemas que ela recitou sugeriram um
sentimento de apego ao marido e foram reconhecidos como
tal por todas as mulheres que os ouviram.
Como Fathalla, Safiyya expressou os sentimentos de
amor por meio da poesia - mas negou estes mesmos
sentimentos em suas conversas cotidianas. Nestas, ela
expressou os sentimentos mais característicos das relações
cotidianas entre homens e mulheres nesta sociedade - que
envolviam a negação de qualquer preocupação com o
marido. Em geral, as relações entre homens e mulheres entre
os beduínos são marcadas pela distância. A segregação
sexual caracteriza a vida cotidiana. As pessoas negam
interesse no amor ou nos assuntos sexuais e evitam membros
do sexo oposto, exceto parentes próximos. Este é um dos
objetivos importantes do processo de socialização das
crianças, especialmente das meninas. Uma vez, ouvi uma
menina confidenciar à nova esposa de seu tio: “para dizer a

92
A mudança política da poesia de amor beduína

verdade, eu nem sei o que é este amor. Eu ouço falar sobre


isso em canções e ouço que esta deu seu colar para um
homem, que aquela deu seu anel, mas eu não sei do que elas
estão falando”. A mulher mais velha respondeu com
aprovação: “Essa é minha menina”. Até mesmo mulheres
casadas negam interesse em seus maridos, para não
mencionar de outros homens. As mulheres raramente
chamam seus maridos pelo nome, referindo-se a eles como
“aquele” ou, afetuosamente como “o velho”; se elas estão
sendo formais, referem-se a ele educadamente como “o
senhor da minha casa”. Pelo menos diante de outros, elas são
formais e distantes com os maridos, não demonstrando afeto
em público.
Da mesma forma, os homens não passam muito
tempo com suas mulheres e raramente falam sobre elas. Eles
são ridicularizados se mostrarem muita preocupação.
Quando a nova esposa de um homem fugiu e ele amuou e
parecia infeliz, todos seus parentes o provocaram ou o
repreenderam. Sua mãe lhe disse: “Você está preocupado
com uma mulher? Você é um idiota”. É provável que Fathalla,
o rapaz que gravou a poesia na fita cassete, raramente
conversava com sua amada, e há poucas dúvidas de que ele
tinha sido incapaz de abordar assuntos de amor e de
casamento com seu próprio pai. Para o arranjo do casamento,
ele provavelmente contou com um intermediário. Um caso

93
Lila Abu-Lughod

extremo da evitação do assunto, especialmente diante dos


mais velhos, é bem ilustrado em um incidente descrito por
Peters (1952), que trabalhou com um grupo de beduínos na
Cirenaica. Ela estava sentada em uma tenda com um grupo
de homens beduínos e trouxe à tona o tema do casamento ou
das mulheres. De repente, ela notou que todos os jovens
haviam fugido da tenda e, na pressa, deixaram seus sapatos
para trás.
Diz-se que esta evitação é motivada por um
sentimento chamado hasham, que pode ser traduzido como
“modéstia”, “embaraço” ou “vergonha”. Hasham refere-se
tanto ao que podemos pensar como um estado interno de
timidez, embaraço ou vergonha, quanto a um conjunto de
comportamentos associados a estes “sentimentos”, embora
os Awlad 'Ali não façam esta distinção. O repertório cultural
de tais comportamentos inclui se vestir de forma modesta
para ambos os sexos (o que implica cobrir os cabelos, os
braços até os punhos e as pernas até os tornozelos) e aspectos
de conduta, como olhar para baixo, postura formal e evitar
comer, fumar, falar, rir e fazer brincadeiras. Isto também
implica, para mulheres casadas, o uso do véu em certas
circunstâncias. Muito importante, como descrevi, hasham
envolve decoro. O que está claro no hasham é que ele é o
sentimento moral. A pessoa com senso social, a pessoa boa -
os tahashshams - sente-se tímida e age com modéstia nas

94
A mudança política da poesia de amor beduína

situações apropriadas. Crianças, idiotas e pessoas insanas


não o fazem, nem as pessoas más.
A questão que surge neste momento é o que se deve
fazer com essa desconexão entre os dois tipos de sentimentos
que os beduínos expressam como “amor”. Como argumentei
em outro lugar (ABU-LUGHOD, 1986), várias explicações
óbvias não parecem satisfatórias. A primeira, que
pressuporia que as pessoas estão sendo hipócritas ou
envolvidas em atos de autoapresentação, subestimaria o
compromisso dos Awlad 'Ali com a moralidade, atribuindo-
lhes noções ideológicas euro-americanas sobre a oposição
entre liberdade individual e restrição social. Uma versão
mais fraca deste mesmo argumento, mas não menos
impregnada de nossas suposições culturais, seria a de que
estamos lidando com restrição moral (ou seja, social) versus
expressão pessoal. Relacionada a estas interpretações está a
teoria da válvula de escape que vê a poesia como uma forma
de liberação das pressões da conformidade moral, mas que
tem a desvantagem adicional de conceber a sociedade como
uma máquina. Todas estas teorias sobre as contradições
entre os dois discursos sobre sentimentos privilegiam os
sentimentos poéticos como sendo, em certo sentido, mais
verdadeiros que os outros. Será isto porque, como Foucault
(1985, p. 5) argumentou e o terapeuta do rádio demonstrou,
no Ocidente moderno passamos a buscar a verdade do nosso

95
Lila Abu-Lughod

ser no desejo, ou de forma mais ampla, nos sentimentos?


Prefiro um argumento diferente, um que não
confunde discursos sobre sentimentos com a emoção em si e
que presta muita atenção ao lugar daquilo que é dito na vida
social e política. Voltando à questão da modéstia, quero
mostrar que, se a modéstia está ligada à moralidade, esta por
sua vez está ligada ao poder de uma maneira específica. A
modéstia tem dois aspectos, que são mais fáceis de entender
se examinados em casos negativos - a pessoa má, a pessoa
imoral que não tem hasham. No que diz respeito às
mulheres, tais pessoas são descritas como “teimosas”
(gdwya) ou “vadias” (qhaba). O primeiro termo descreve
uma pessoa que responde ou desobedece aos mais velhos. A
própria palavra deriva da raiz que significa ser forte ou
poderoso, mas, nesta forma, sugere assertividade excessiva.
Tal assertividade é inadequada para aqueles em posições de
dependência ou inferioridade social. Isto sugere que a
modéstia está relacionada com a deferência aos outros.
Hasham pode se referir a uma atitude geral de decoro, mas na
maioria das vezes é pensado como operando no contexto de
relações particulares. Hasham é um índice de hierarquia tão
bom que, quando uma jovem se casou com alguém da
comunidade em que eu vivia, uma das primeiras perguntas
que ela fez às jovens parentes de seu esposo foi saber quem
era modesto diante de quem. As meninas responderam

96
A mudança política da poesia de amor beduína

dizendo-lhe quais mulheres usavam véu diante de quais


homens e quais homens não fumavam diante de outros
homens. Por meio deste esboço de padrões de deferência, a
noiva determinou a hierarquia em sua nova comunidade.
O segundo termo para uma pessoa sem hasham -
vadia - refere-se à propriedade sexual. Já descrevi os
elementos da modéstia sexual conforme se manifestam na
vida cotidiana. Aqui, quero mostrar como modéstia sexual,
enquanto negação de interesses amorosos, é, na verdade,
outra forma de deferência. Para desenvolver este argumento,
falarei não sobre o Islã - aquele conceito totalizante ao qual
tudo o que acontece na sociedade do Oriente Médio tende a
ser reduzido - mas sobre a ordem social beduína.
Os Awlad 'Ali são organizados tribalmente. Para eles,
a descendência por meio de uma linha masculina comum e
do mesmo sangue fornecem a única base legítima e primária
para unir as pessoas. Parentes paternos vivem juntos,
compartilham suas propriedades, transmitindo-as a seus
descentes, e seguem para as funções sociais juntos. Espera-se
também que eles se sintam próximos. Se os laços sanguíneos
entre os parentes paternos, sejam eles homens ou mulheres,
são privilegiados como a única base das relações sociais, o
amor romântico ou heterossexual, mesmo em sua forma
legítima que é o casamento, embora necessário para a
reprodução da sociedade e a perpetuação das linhagens,

97
Lila Abu-Lughod

torna-se difícil de lidar. Ele não se acomoda facilmente


dentro desta estrutura de relações sociais e torna-se, de fato,
uma ameaça a elas.
O amor e os laços que ele pode estabelecer entre
indivíduos não são apenas ameaças à estrutura que ordena as
relações sociais, mas são também mencionados como
ameaças à solidariedade do grupo de parentes paternos, algo
que é frequentemente observado na literatura sobre
sociedades patricentradas, da China tradicional ao
Zinacantan (COLLIER, 1974; WOLF, 1972). Os Awlad 'Ali
consideram os laços sexuais e os laços agnáticos como
concorrentes. Ainda mais importante, os laços sexuais são
vistos como uma ameaça à autoridade e ao controle dos
parentes masculinos mais velhos que representam os
interesses do grupo familiar agnático, que controlam seus
recursos e tomam as decisões. No casamento, os filhos
começam a ter um pequeno domínio de autoridade eles
próprios, e as filhas deixam o domínio de autoridade de seus
pais e parentes.
A ameaça que o casamento representa é contrabalançada
em cada ponto por meio de estratégias sociais e ideológicas. O
vínculo marital é minado de várias maneiras: as mulheres
mantêm laços estreitos com seus parentes paternos, os
parentes masculinos mais velhos controlam a escolha dos
noivos e a segregação sexual garante que maridos e esposas

98
A mudança política da poesia de amor beduína

passem pouco tempo juntos. O divórcio é fácil e a poliginia


possível, o casal raramente é economicamente independente
e os casamentos baseados em amor são ativamente
desencorajados. Um homem me disse que a única maneira
pela qual as pessoas que se amavam teriam permissão para se
casar era se seus parentes masculinos mais velhos ou os
primos paternos da moça não soubessem. As mulheres
muitas vezes me diziam que estes casamentos baseados em
amor sempre terminavam mal para a mulher, porque ela não
teria o apoio de seus parentes masculinos se seu marido a
maltratasse.
Já argumentei que a preferência cultural pelo
casamento com primos patrilaterais paralelos é outra
estratégia (ABU-LUGHOD, 1986). Os Awlad 'Ali
frequentemente se casam com seus primos de primeiro grau
ou outros primos por parte de pai, e os homens ainda têm o
direito legal sobre a filha de seus tios paternos. Este tipo de
casamento pode ser defendido como um ideal cultural,
porque proporciona uma maneira de neutralizar a ameaça
do vínculo sexual neste sistema social; ele inclui o vínculo
marital dentro do vínculo anterior e mais legítimo de
parentesco.
O código moral que prescreve a modéstia é o meio
mais eficaz de minar o vínculo sexual. Se a ameaça à ordem
social pode parecer uma ameaça à respeitabilidade ou ao

99
Lila Abu-Lughod

valor moral de um indivíduo, então esta ordem será


reproduzida pelas ações dos indivíduos na vida cotidiana. O
código da modéstia garante que mesmo os indivíduos que
não têm tanto interesse no sistema - como os rapazes e
principalmente as mulheres - ajudarão a perpetuá-lo, porque
sua virtude ou sua posição como seres morais, como pessoas
boas, depende de negar sua sexualidade. Como sugeri
anteriormente, estes sentimentos de modéstia sexual são
situacionais. Eles são importantes para serem expressos
apenas diante de certas pessoas - os agnados masculinos
mais velhos. Portanto, a modéstia sexual deve ser vista como
uma forma de deferência para com eles. Os sentimentos
morais da modéstia fazem parte de um discurso que sustenta
e perpetua este sistema social particular e o poder de certos
grupos em seu interior.
Por outro lado, então, os sentimentos imodestos do
“amor” são subversivos. Expressá-los é um ato subversivo da
ordem social e desafiador para aqueles cujos interesses são
atendidos por esta ordem. Este elemento de desafio é
concretizado na estória de Fathalla. Ao cantar sobre seus
sentimentos de amor, ele estava, em certo sentido,
desafiando a autoridade de seu tio paterno, que frustrou seus
desejos e o impediu de se casar com sua prima.
Uma vez que contém em si sentimentos subversivos
de amor, pode-se considerar os poemas ghinmwa como o

100
A mudança política da poesia de amor beduína

discurso beduíno de desafio. Há muitas evidências de que a


poesia está geralmente associada à oposição aos ideais da
vida social normal. Este tipo de poesia é considerado não-
islâmico. Os piedosos não deveriam recitá-la ou mostrar
interesse nela. Ela também é considerada desrespeitosa.
Mesmo o termo “cantar” não pode ser dito na companhia de
homens e mulheres sem causar constrangimento. As pessoas
diziam que se sentiam envergonhadas ou embaraçadas de
cantar diante de pessoas que não eram íntimas, especialmente
diante dos mais velhos. As mulheres me disseram para nunca
compartilhar seus poemas com os homens. E, no passado, os
homens mais velhos evitavam ocasiões públicas como
casamentos e festas de tosquia de ovelhas, onde os rapazes
geralmente recitavam este tipo de poesia. A evidência mais
persuasiva do caráter de oposição da poesia é quem recita
poesia e quem a evita. Embora homens mais velhos
ocasionalmente os recitem, os ghinmwas estão mais
estreitamente associados aos jovens e às mulheres. Estes são
os dependentes em desvantagem que têm menos a ganhar do
sistema tal como ele está estruturado.

A dialética da deferência e do desafio

A existência de discursos desafiadores ou subversivos


expressos por aqueles que não estão no poder é provavelmente

101
Lila Abu-Lughod

bastante comum em todo o mundo. Devemos ter o cuidado de


não romantizar esta rebelião, retirando-a dos contextos das
relações sociais e políticas de sociedades específicas. Isto me
traz de volta ao meu segundo ponto: precisamos considerar
as reações dos beduínos a esta poesia. O que pode ser
específico dos beduínos Awlad 'Ali é que, embora este
discurso emocional de resistência vá contra o sistema e deixe
nervosos os grupos que estão no poder, ele é culturalmente
elaborado e positivamente sancionado. A poesia é uma arte
altamente desenvolvida e os Awlad 'Ali valorizam-na e
privilegiam-na, escutando seus poemas atentamente em
certos contextos, memorizando-os, repetindo-os e sendo
movidos por eles. A maioria dos adultos com quem eu vivi
sugeriu que a poesia era o melhor que eles tinham a oferecer
como um grupo cultural. Eles pensavam que a poesia era
distintamente beduína, associada ao seu passado nobre
quando eram politicamente autônomos, fortes e independentes.
Da mesma forma, aqueles que recitam poesia,
expressando os sentimentos que contestam o sistema social e
a autoridade dos mais velhos, não são apenas tolerados ou
desaprovados, mas realmente admirados. Isto fica evidente
nas reações do meu anfitrião a Fathalla. Ele e todos os outros
que queriam ouvir esta fita repetidamente admiravam
claramente este rapaz por sua paixão e habilidade de
expressá-la na poesia. Eles ficaram comovidos com seus

102
A mudança política da poesia de amor beduína

poemas e impressionados com o poder de suas palavras.


Já argumentei que esta ambivalência em relação à
poesia de amor - o desconforto em torno dela, por um lado, e
sua glorificação, por outro - reflete uma tensão fundamental
na organização da vida social e política beduína. Ela pode
estar relacionada ao reconhecimento incômodo da forma
em que o sistema de hierarquia dentro da linhagem e da
família, aquele ao qual os sentimentos de deferência se
aplicam, viola os princípios da política tribal, em que a
autonomia e a igualdade são os ideais primordiais.
Entretanto, a política cotidiana coloca o controle dos
recursos e do poder sobre os dependentes nas mãos dos
agnados masculinos mais velhos. Esta dominação infringe
os ideais que sustentam o sistema tribal mais amplo. Isto
pode ser racionalizado por meio da elaboração de um código
moral que justifique o privilégio dos mais velhos e dignifique
a deferência dos dependentes. Mas é, mesmo assim, uma
contradição.
A poesia de amor, enquanto um discurso de desafio, é
vista como um discurso de autonomia e liberdade. Recitada
principalmente por aqueles menosprezados pelo sistema -
isto é, mulheres e rapazes - ela é exaltada porque a recusa à
dominação é a chave da ideologia política tribal e, portanto,
um valor fundamental, mesmo para estes indivíduos. Amar
ou expressar os sentimentos de amor também implica

103
Lila Abu-Lughod

liberdade individual. Mas falar dos sentimentos ou de


discursos sobre sentimentos como significando algo - neste
exemplo, liberdade - pode ser enganoso porque sugere algo
muito estático e idealista. A poesia de amor como um
discurso de rebelião é usada para afirmar esta liberdade e é
reconhecida pelos outros como sendo dotada de enorme
poder.
Este é o outro sentido em que os sentimentos devem
ser vistos como sendo políticos e recitar poesias de amor
deve ser visto como um ato político.10 Os poemas de Fathalla
contestam a autoridade de seu tio e acabaram minando o
controle do homem mais velho sobre a vida de sua filha e
sobrinho e frustrando sua tentativa de negar-lhes o que eles
queriam. Os outros, incluindo meu anfitrião, que era um
membro mais velho de uma linhagem e o tio paterno de
muitos, ficaram impressionados com o poder fatal de sua
poesia. Isto foi, em parte, porque reconheciam que o tio
abusou de sua autoridade, mas também porque, aos olhos
dos beduínos, a legitimidade da autoridade está sempre em
questão. A resistência tem uma valência positiva, e a poesia
de amor de Fathalla era um tipo de resistência.
Infelizmente, tudo o que Fathalla podia fazer com
seus poemas era frustrar seu tio. Ele não conseguiu o que
queria. O final trágico da estória - a morte da mulher que
Fathalla amava - sugere o poder máximo do sistema e a

104
A mudança política da poesia de amor beduína

inutilidade da resistência. Talvez seja isso que tornou a


estória tão convincente e comovente. Ela capturava a
imaginação das pessoas porque retrata tão vividamente a
relação complexa entre a poesia de amor e poder na
sociedade beduína.

A fita cassete

O terceiro aspecto da estória de Fathalla que quero


abordar é o fato um pouco surpreendente de que suas
canções de amor estavam gravadas em uma fita cassete.
Quando deixei o Egito, depois do meu primeiro de trabalho
de campo em 1980, pensei que os ghinmwas beduínos
estavam desaparecendo. Os adolescentes que eu conhecia
não cantavam ou recitavam este tipo de poesia, nem
pareciam particularmente interessados nela. Eles estavam
começando a escutar rádios egípcias, e era de suas mães, tias
e avós, e às vezes de seus pais e alguns rapazes, que eu
coletava poesia. Estes adultos me ofereceram uma explicação
sobre o porquê de a poesia estar desaparecendo: eles
disseram que não havia mais ocasiões para cantar. Há uma
certa verdade em suas explicações enganosamente simples,
às quais voltarei.
No entanto, se era a ideologia do sistema político, com
sua valorização da autonomia, que dava valência positiva às

105
Lila Abu-Lughod

expressões do amor enquanto desafio, mesmo quando vinham


de baixo, então não seria surpresa encontrar tais discursos
desaparecendo tal como a autonomia política dos beduínos
Awlad 'Ali estava sendo minada. Isto vem acontecendo há
algum tempo, já que o Estado egípcio tem procurado, nos
últimos 35 anos, introduzir sua autoridade no deserto
Ocidental, um processo que está em andamento nas áreas
beduínas próximas ao vale do Nilo há 150 anos ou mais. Os
Awlad 'Ali desenvolveram uma gama impressionante de
estratégias para resistir, subverter e contornar a autoridade do
Estado, que eles consideram ilegítima. Como eles não se
amedrontam com armas de fogo, e as sentenças de prisão não
trazem estigma, é até difícil intimidá-los para a boa cidadania.
No entanto, há um processo que começou nos anos
1970 nesta região que está minando progressivamente a
resistência dos Awlad 'Ali ao Estado, mais efetivamente do
que os esforços do governo para desarmá-los, escolarizá-los,
colocá-los no exército, licenciá-los e registrá-los: é a
mudança gradual na sua vida econômica do pastoreio e das
atividades comerciais, incluindo o contrabando, para o
investimento em terras. Os esforços do governo de recuperar
terras estão transformando parte de seu deserto em terras
agrícolas, que eles estão cada vez mais comprando e
dependendo dela para seu meio de subsistência, mesmo que
não estejam necessariamente as cultivando. As terras ao

106
A mudança política da poesia de amor beduína

longo da costa, por outro lado, tornaram-se valiosas para o


desenvolvimento turístico e muitos deles estão vendendo
propriedades à beira-mar. Eles também estão lutando entre
si por estas terras, que antes eram propriedade de tribos, e
não de propriedade individual. Com este envolvimento com
a terra, os beduínos se enredam no sistema jurídico do
Estado, pois precisam obter títulos e fazer reivindicações por
meio dele.11
Esta mudança na economia política beduína pode
ser ligada com o que vejo como sendo uma mudança na
dialética da deferência e do desafio em que as canções de
amor são empregadas. À medida que a base econômica do
sistema tribal está sendo corroída e, com ela, os fundamentos
políticos do valor da autonomia, a antiga realidade da
responsabilidade mútua dentro da família e da linhagem
começa a mudar. Antes havia uma divisão de trabalho
complexa, com os recursos sendo administrados pelos
anciãos, mas não sendo de propriedade privada. Agora a
propriedade privada coloca um imenso controle nas mãos
dos patriarcas. Os rapazes sofrem com isto, como discutirei,
mas as mulheres estão sendo mais dramaticamente afetadas.
Elas são agora economicamente dependentes dos homens,
têm pouco acesso ao dinheiro e seu trabalho está cada vez
mais confinado às tarefas domésticas. Com o valor moral da
modéstia ainda em vigor, estas mulheres que vivem nas

107
Lila Abu-Lughod

novas circunstâncias das comunidades sedentarizadas, onde


estão cercadas de vizinhos que, em sua maioria, não são
parentes, devem ser mais isoladas, estar mais frequentemente
com véu e menos livres para se movimentar.
As mulheres mais velhas comentam sobre estas
mudanças, relembrando as coisas que elas costumavam fazer
e que as moças de hoje não podem fazer - como encontrar
com seus amados e trocar canções com homens em
casamentos e tosquias de ovelhas.12 Mas também estão
convencidas de que elas eram mais modestas, uma
percepção que eu acho que se relaciona com a sensação de
que era mais uma imposição própria. Elas com frequência
reclamam que seus filhos, maridos, sobrinhos e netos
restringem duramente as meninas, não deixando-as irem a
lugar algum. As meninas, por sua vez, começam a queixar-se
que se sentem presas. A divisão da política doméstica agora
está alinhada às linhas de gênero, enquanto antes era os mais
velhos, de um lado, e as mulheres e os rapazes, de outro.
Todos os homens têm acesso ao mercado e a uma liberdade
crescente de movimento; nenhuma das mulheres os têm.
Esta mudança na economia política tem implicações
para os poemas de amor tradicionais, que, como descobri,
não estão, afinal, desaparecendo. As canções de amor
beduínas estão assumindo um significado e força diferentes,
tendo ganhado nova vida com a chegada da fita cassete. Os

108
A mudança política da poesia de amor beduína

beduínos disseram que as canções estavam desaparecendo


porque não havia ocasiões para cantá-las. De certo modo,
eles estavam corretos. Quando os conheci, em 1978, eles
recitavam poemas de amor apenas em situações sociais
íntimas. No entanto, como soube mais tarde, o fórum mais
importante para canções de amor era os casamentos, nos
quais rapazes e moças cantavam ao pé do ouvido e, às vezes,
de um para o outro.13 Esses tipos de celebrações já não
ocorriam mais, e os casamentos em que estive presente eram
segregados por sexo. As mulheres cantavam apenas canções
de bênçãos, congratulações e louvor, e os homens não faziam
nada além de ficar sentados. Hoje, fitas cassetes produzidas
localmente - copiadas, recopiadas e às vezes vendidas por
dinheiro - proporcionam uma nova ocasião para as canções,
assim como para um novo tipo de celebração de casamento
que está ficando na moda. Neste novo tipo casamento, que
conta com a presença de convidados, mas também atrai um
grupo crescente de rapazes um tanto bagunceiros,
apresentam-se as pequenas estrelas destas fitas cassetes
comerciais e de baixo orçamento. Devido à natureza pública
destas ocasiões, onde, ao contrário do passado, “público”
inclui uma ampla gama de pessoas não aparentadas e
desconhecidas, as mulheres estão ausentes. Elas também
estão ausentes, por causa da modéstia, das sessões de
gravação destas fitas. Elas não gravam fitas e não cantam

109
Lila Abu-Lughod

mais em público. Não tendo mais tanto apoio social e


político para desafiar, as mulheres parecem estar perdendo
também um dos meios para isso - a poesia de amor.
Os poemas cantados nas fitas cassete e nos
casamentos de mikrofon parecem agora fazer parte de um
discurso desafiante dos rapazes contra a autoridade mais
absoluta e o controle econômico de seus pais e tios paternos.
Ao mesmo tempo, este é um período em que os rapazes
começam a ter mais possibilidades de independência de seu
grupo de parentes, por meio do trabalho assalariado e mais
conhecimentos sobre o Estado do que seus pais, por meio de
suas experiências no exército e na escola. Um novo tipo de
conflito geracional produzido por estas circunstâncias
transitórias é expresso, em parte, na linguagem do amor.
Tive uma confirmação inesperada deste novo uso do
“amor” na minha visita em janeiro de 1987, quando estava
escutando com amigos uma das fitas cassetes mais recentes
de canções populares beduínas de um gênero diferente. Era
uma canção longa e um tanto bem-humorada sobre as
tribulações de um rapaz cujo pai e tio arranjaram três
casamentos terríveis para ele com mulheres que ele nunca
havia conhecido. A primeira mulher era careca, a segunda
era surda e a terceira era louca e violenta. No verso final de
sua canção, o poeta, falando em nome de todos os rapazes
que sofreram esta tirania de tais pais e tios, canta:

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A mudança política da poesia de amor beduína

Meus avisos são para o velho


que aprisiona a liberdade dos jovens
que já se esqueceu de uma coisa chamada amor
afeto, desejo e chamas ardentes
que já se esqueceu de quão forte é o fogo dos amantes
de quão forte é o fogo dos amantes que anseiam um
pelo outro
O que é belo e delicado é que eles têm medo
eles dizem, a qualquer minuto aparece meu guarda à
espreita
oh meu pai está prestes a nos pegar

A relação entre amor e liberdade nesta canção é


complexa - porque, embora ele não queira que os mais velhos
forcem seus filhos a casamentos sem amor, o poeta
reconhece que o que torna o amor belo e delicado é o fato de
ele ser roubado - ele é contra a autoridade dos parentes mais
velhos. Em outras palavras, ele quer a liberdade para desafiar
um pouco os idosos, uma liberdade que ele os lembra que
eles costumavam querer, mas ele não rejeita o sistema como
um todo nem quer ter um amor fácil ou aberto.
A continuidade da forma nas canções de amor é
consistente com esta atitude. Ao contrário do rock and roll,
que segundo alguns teria desempenhado ou ainda
desempenha um papel semelhante na nossa sociedade, os
protestos ocorrem em um idioma que os mais velhos podem
apreciar: a poesia que eles próprios amam e devem respeitar,
dado seus próprios valores. Isto é verdade mesmo que eles

111
Lila Abu-Lughod

desaprovem as cabeças descobertas dos rapazes, os


ocasionais cabelos compridos, as experimentações com
drogas e bebidas alcoólicas e uma perda generalizada de
hashatn. Todos agora comentam sobre isto - este novo tipo
de rapaz não é modesto diante de seus pais. Segundo as
meninas com quem conversei, diante de seus pais estes
rapazes não só fumam cigarros sem nenhuma vergonha,
mas, pior ainda, tocam canções de amor em seus gravadores.
Esta é apenas uma análise parcial das mudanças
políticas dos discursos beduínos sobre o amor, um assunto
complexo sobre o qual não quero impor uma coerência falsa.
No entanto, deve ser suficiente para deixar claro meu ponto
analítico mais amplo a respeito da antropologia das
emoções. Enquanto as emoções continuarem a ser objeto de
estudo, não poderemos romper nem com o idealismo e o
mentalismo da abordagem interpretativa, nem com as
premissas que animaram o projeto do terapeuta do rádio.14
Estas premissas continuam dificultando para nós o
entendimento de como as emoções servem como símbolos
na construção da nossa subjetividade, como elas reforçam
nossas crenças na verdade da nossa individualidade e como
tudo isto pode ser também político e específico de nosso
lugar e tempo - isto é, algo que merece ser analisado
criticamente, e não universalmente.15
Se, em vez disso, tomarmos os discursos como objeto

112
A mudança política da poesia de amor beduína

de análise, poderemos chegar a algo mais interessante. Não


estou fazendo um apelo estreito à sociolinguística ou à
etnografia da comunicação, embora elas estejam também
envolvidas nesta sugestão. “Discurso” é um conceito que
reconhece que o que as pessoas dizem, em uma definição
generosa (que é, afinal, aquilo com que se trata no estudo
antropológico das emoções), é inseparável e interpenetrado
pelas relações de poder em constante mudança na vida
social. Há um duplo movimento implícito nesta noção.
Primeiro, a vida social e política deve ser vista como um
produto das interações entre indivíduos cujas práticas são
informadas pelos discursos disponíveis; segundo, a
linguagem e a cultura devem ser entendidas de maneira
pragmática, em vez de referencial. Elas devem ser entendidas
como parte da vida social e política. Analisar os discursos
emotivos como discursos, e não como de dados para nossos
próprios discursos científicos sobre emoção, fornece-nos
uma técnica para evitar a falsa atribuição do projeto de
psicologizar aos outros, pois nos lembra continuamente da
natureza social da expressão emocional.16

Um discurso reempregado

Se alguma evidência adicional precisar ser oferecida


da importância fundamental de manter um sentido do

113
Lila Abu-Lughod

caráter sempre social do discurso emotivo, considere o


quarto e último aspecto desta estória de amor beduína: o
contexto em que ela foi contada. Como narrei, a estória de
Fathalla foi contada para mim por meu anfitrião, um homem
em cuja família eu vivi durante dois anos. Ele tocou para
mim a fita daquelas pungentes canções de amor quando eu
estava prestes a partir novamente para os Estados Unidos. Eu
estive ausente por cinco anos na primeira vez, e agora eles
não sabiam quando eu voltaria. Prometi que seria em breve.17
Embora meu anfitrião e sua família me implorassem para
que eu ficasse, e meu anfitrião chegou ao ponto de me
oferecer um trabalho para dirigir uma escola particular que
ele próprio financiaria, eu insisti que minha vida estava na
amrika e que provavelmente eu não iria viver permanentemente
no Egito. Quando ele me mostrou esta fita e me contou sua
triste estória, ele não estava interessado em explicar os
conceitos beduínos da emoção ou em entender a si mesmo,
mas sim em me impressionar com a força da poesia. Não
estava ele, de certa forma, usando a força da poesia em mim?
Claro, ele sabia que eu estava escrevendo um livro sobre
poesia, e muitas vezes discutimos poemas. Havia mais? Será
que ele queria me comover, resistir à minha partida por meio
destas canções e de sua narrativa sobre os efeitos que elas
tiveram em outra mulher?
Senti que isto talvez fizesse parte de sua intenção

114
A mudança política da poesia de amor beduína

quando, dois anos depois, ao rever os poemas de amor de


Fathalla com a esposa de meu anfitrião, uma mulher com
quem sempre conversei sobre poesia e que era boa em
explicá-las, ouvi algo surpreendente. Ela conhecia tanto estes
poemas como a estória de Fathalla, mas disse que não havia
ouvido falar que a moça tinha morrido. Na verdade, ela tinha
quase certeza de que a moça estava viva, e vivendo com o
marido de seu casamento arranjado.
Este incidente pode servir como um lembrete de que
os discursos emocionais que podemos querer usar em nosso
discurso antropológico sobre emoção dificilmente são inertes.
Eles podem realmente ter um contexto cultural, porém o mais
importante sobre eles é que participam de projetos sociais -
sejam aqueles mais amplos, como nas disputas geracionais
pelo poder em um sistema tribal em erosão, sejam aqueles
locais e particulares, como em uma conversa entre um homem
beduíno e uma jovem antropóloga dirigindo para o Cairo em
uma Mercedes.

Notas

Este artigo foi concluído enquanto eu era membro do Institute


for Advanced Study, uma instituição única à qual sou grata por
várias razões, incluindo o apoio financeiro para a escrita, por
meio do National Endowment for the Humanities. Versões
anteriores foram apresentadas nos Colóquios do Departamento
de Antropologia da York University e do Centro de Pós-

115
Lila Abu-Lughod

Graduação da City University of New York, onde as perguntas do


público ajudaram-me a aperfeiçoar meus argumentos. Várias
pessoas, incluindo Timothy Mitchell, Catherine Lutz e Buck
Schieffelin, leram e comentaram cuidadosamente os rascunhos,
e suas sugestões, às vezes tomadas, às vezes não, são reconhecidas
com gratidão. Como sempre, minha maior dívida é com as
famílias beduínas do Egito, que me permitiram participar de
suas vidas e aprender com elas. Os financiamentos do NEH, do
Williams College e da Commission Fulbright me permitiram
passar mais tempo com elas no Egito em 1985, 1986 e 1987.

1. Para uma revisão abrangente desta literatura, ver Lutz and


White (1986).
2. Este etnocentrismo está expresso lindamente no título de
um dos artigos de Lutz (1985), “Ethnopsychology
Compared to What?”.
3. Para referências extensas a estes trabalhos, ver Lutz e
White (1986, p. 417-20). Além disso, para uma reflexão
maravilhosamente perspicaz e lúdica sobre alguns dos
problemas espinhosos compartilhados por antropólogos
e filósofos comprometidos com a tradução cultural dos
sentimentos, ver a discussão de Rorty (1979, p. 70-127)
sobre os Antipodeans (pessoas sem mente).
4. Eles citam o meu trabalho, assim como os de Myers (1979,
1986), Appadurai (1985), Keeler (1983), Riesman (1977),
Lindholm (1982) e outros, como exemplos deste tipo de
trabalho.
5. Tanto Buck Schieffelin quanto Ward Keeler, em
comunicações pessoais, expressaram este tipo de
preocupação até mesmo sobre seus próprios trabalhos
exemplares.
6. Estou parafraseando Foucault (1972, p. 218, 229) sobre o
discurso.

116
A mudança política da poesia de amor beduína

7. Estou usando “discurso”, aquele termo reconhecidamente


escorregadio e excessivamente usado, não apenas como
os linguistas o fazem para se referirem às falas dos
indivíduos, mas também no sentido foucaultiano de uma
gama de afirmações culturalmente disponíveis e
historicamente específicas. Ver nossa introdução a este
volume (ABU-LUGHOD; LUTZ, 1990).
8. Para uma discussão mais completa sobre o Awlad 'Ali, ver
Abu-Lughod (1986).
9. A maior parte dos argumentos nesta seção foi
desenvolvida em Abu-Lughod (1986).
10. Em outras palavras, ter certos sentimentos ou, pelo
menos, expressar sentimentos específicos torna-se uma
declaração política, senão um ato político. Embora na
estória de Fathalla os poemas pareçam ter o poder de
matar, os beduínos normalmente dizem apenas que eles
comovem as pessoas ou as fazem com que mudem suas
ações. Ou seja, eles os veem como sendo persuasivos.
11. Quando estive lá fazendo trabalho de campo pela última
vez (em 1987), cada beduíno que eu conhecia parecia ter
um advogado. Eles ainda tentaram resolver as disputas
por meio de seu próprio sistema tribal de mediação, e meu
anfitrião, que era um mediador, estava sobrecarregado
com o número de casos tensos que ele foi solicitado a
ajudar a resolver. Todavia, o que estava acontecendo era
que eles tinham que trabalhar tanto por meio de seu
próprio sistema quanto dos tribunais.
12. Eles falam sobre uma instituição chamada mijlas, na qual
uma moça solteira recebia todos os rapazes elegíveis em
uma tenda, desafiando-os a responder às suas canções.
13. Assim como a dissolução do discurso da tecelagem das
mulheres no Norte da África, discutida por Messick (1987),
parece estar relacionada à transformação capitalista da

117
Lila Abu-Lughod

tecelagem doméstica, com o desaparecimento de uma


ocasião para a cantar também desapareceram as canções
apropriadas a ela entre os Awlad Ali. A tosquia de ovelhas,
que costumava ser uma ocasião para que grupos de
rapazes fosse de casa em casa tosquiando as ovelhas, não
ocorre mais, pois agora profissionais do Sinai assumiram
este trabalho. As canções que acompanhavam a tosquia de
ovelhas eram mais explicitamente sexuais do que os
ghinnowa, e suas insinuações se referiam às relações entre
homens e mulheres. Estas canções não são mais ouvidas, e
não ouvi falar de gêneros sexuais equivalentes.
14. Para uma crítica ao idealismo implícito na antropologia
interpretativa, ver Asad (1983).
15. Lutz (1986) apresenta alguns destes pontos, mas penso
que três outros conjuntos de questões que ela delineou
sobre os conceitos de emoção euro-americanos precisam
ser pesquisados. Primeiro, quais conceitos culturais são
mais salientes, e este padrão difere entre subculturas?
Segundo, quando certas formas de pensar historicamente
sobre emoção emergem, e a quais instituições e práticas
elas estão ligadas? Terceiro, quando as formas de
conceituar a emoção entram retoricamente em jogo na
conversa?
16. Ver também LeVine (1984, p. 82-3) para uma discussão
sobre a relativa ausência de psicologização entre os Gusii
na África Oriental.
17. Voltei um ano e meio depois.

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A mudança política da poesia de amor beduína

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121
Sobre as autoras

123
Catherine Lutz: Professora Emérita de Antropologia na Brown University. É

autora, entre outras publicações, de Unnatural Emotions: Everyday Sentiments

on a Micronesian Atoll and their Challenge to Western eory (1988); (ed. com

Lila Abu-Lughod) Language and the Politics of Emotion (1990); (ed. com Jane

Collins) Reading National Geographic (1993); Homefront: A Military City and

the American 20th Century (2001); (ed. Cynthia Enloe) e Bases of Empire: e

Global Struggle against U.S. Military Posts (2009); (ed. com Anne Fernandez)

Carjacked: e Culture of the Automobile and Its Effect on Our (2010); e (ed.

com A. Mazzarino) War and Health: e Medical Consequences of the Wars in

Iraq and Afghanistan (2019).

Chiara Albino: Doutoranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-

Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina,

com bolsa CAPES. Professora dos Cursos de Bacharelado e Licenciatura em

Ciências Sociais da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, unidade de

Paranaíba.

Jainara Oliveira: Pesquisadora de pós-doutorado vinculada ao Programa de

Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Grande Dourados,

com bolsa CAPES, e professora colaboradora do mesmo programa.

Lila Abu-Lughod: Professora de Ciências Sociais na Columbia University. É

autora, entre outras publicações, de Veiled Sentiments: Honor and Poetry in a

Bedouin Society ([1986] 2016); (ed. com Catherine Lutz) Language and the

Politics of Emotion (1990); Writing women's worlds ([1993] 2008); Dramas of

Nationhood: e Politics of Television in Egypt (2004); e Do Muslim Women Need

Saving? (2013).
A Coleção Mandacaru inaugura uma série de publicações
em acesso aberto e gratuito. Esse tipo de licença permite a
reprodução total ou parcial das obras publicadas, desde que
os direitos autorais da publicação sejam protegidos.
Seriguela
Editora

Coleção Mandacaru

“Falar sobre controle emocional nas e pelas mulheres é falar


sobre o poder e seu exercício”
Catherine A. Lutz

“Eu argumentaria que o primeiro passo deve ser perguntar


como os discursos emotivos são empregados nos contextos
sociais”
Lila Abu-Lughod

www.editoraseriguela.com
ISBN: 978-65-995519-6-3

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