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Nunca foi fácil lutar contra a insônia. No século XVII, pessoas com distúrbios do sono
recebiam uma prescrição inusitada do médico e poeta gaulês William Vaughan: "corte, na
extremidade de seu gorro de dormir, um buraco pelo qual o vapor possa sair". A receita sugere que
todos os remédios disponíveis já haviam sido experimentados. Atualmente, a Classificação
Internacional De Distúrbios Do Sono (Cids) enumera cerca de 90 distúrbios, numa lista que
contém desde os mais comuns, como a insônia, até os mais raros, quase desconhecidos.
Entre 10% e 20% das pessoas afirmam dormir pouco e mal. Nesse universo, há mais
mulheres que homens e mais idosos que jovens. A insônia parece ser uma verdadeira epidemia nos
países industrializados, muito difícil de curar, se for verdade que - como afirma Elio Lugaresi, um
dos pioneiros da medicina do sono e diretor do Instituto de Clínica Neurológica da Universidade
de Bolonha, Itália - "cada insone é um problema em si". Marcel Proust, por exemplo, não podia ir
para a cama se suas ceroulas não estivessem presas na cintura por um determinado alfinete, conta o
pesquisador da Universidade de Cambridge Paul Martin em Counting Sheep: The Science And
Pleasures Of Sleep And Dreams. Junto com o alfinete, proust perdia o sono.
Regras elementares, geralmente bem conhecidas dos insones - não beber café e dormir
sempre no mesmo horário -, e os fármacos, especialmente aqueles de última geração, podem
funcionar quando o distúrbio ainda está no começo. A insônia crônica, porém, escreveu Jean-
Anthelme Brillat-Savarin, advogado e gourmet francês do século XVIII, é "uma verdadeira
maldição". Muitos especialistas concordam.
NOITES DE PESADELO
FENÔMENOS ENIGMÁTICOS
Insônia Fatal
A privação do sono representa um tormento tão grande que foi usada até como instrumento
de tortura. Talvez isso baste para dar uma idéia de quanto pode ser trágica e sinistra uma doença
que priva da capacidade de dormir até levar à morte. A insônia familiar fatal, doença rara e de
caráter hereditário, foi descoberta na Universidade de Bolonha, pelo grupo de Elio Lugaresi, em
1986, mas a história começou muito antes. Em 1973, uma mulher da província de Treviso começa
a perceber estranhos distúrbios que parecem ser de origem neurológica, tanto que os médicos
falam de demência ou Alzheimer, sem nunca chegar a um diagnóstico preciso. A mulher morre em
12 meses, aos 49 anos, e no fim pesa apenas 30 quilos.
Cinco anos depois, sua irmã, de 54 anos, manifesta os mesmos sintomas, e a história de sua
doença é uma réplica do primeiro caso. Ignazio Roiter, o médico da família, decide enviar o
cérebro da mulher a um neuropatologista suíço, que não detecta nenhuma anomalia no cérebro, a
não ser uma pequena lesão do tálamo.
Em 1983, o irmão das duas mulheres começa a exibir os mesmos sintomas assustadores. No
começo, parece ansioso e deprimido e reclama de dormir mal. Depois passa a comportar-se como
sonâmbulo. Tomado por um cansaço invencível, procura deitar-se de qualquer jeito. Com o tempo,
cai em uma espécie de torpor, do qual desperta raras vezes, quando é solicitado. Enquanto isso,
suas funções vitais parecem entrar em curto-circuito: transpira continuamente, sofre de pressão
alta, come com voracidade. Segundo o dr. Roiter, o sintoma-chave, mascarado pela sonolência do
paciente durante o dia, parece ser a impossibilidade de dormir, mas ninguém está disposto a dar-
lhe atenção. Determinado a resolver o problema, o médico empreende uma busca nos arquivos da
paróquia para reconstruir a genealogia da família.
Roiter encontra registros narrando casos de parentes que morreram por um estranho
"esgotamento" e reconstrói a árvore genealógica até o século XVIII. Descobre que muitos outros
membros da família foram atacados por esse mal que os médicos tomam por encefalite, demência,
alcoolismo. Ele decide então telefonar para Lugaresi para dizer-lhe que acreditava estar lidando
com um caso de insônia letal de caráter familiar. "Em vez de rir na minha cara, como outros
haviam feito, me convidou para encontrá-lo no dia seguinte", conta.
Quando decidem internar o paciente, os exames confirmam aquilo que parecia
inacreditável: o eletroencefalograma mostrava um estado de vigília contínua, interrompida apenas
por breves fases de sono REM. O paciente parecia acometido pela mesma "peste da insônia",
descrita por Gabriel García Márquez em Cem Anos de Solidão. O distúrbio, como foi esclarecido
mais tarde, consiste justamente na incapacidade de gerar o sono lento. Algumas imagens do
homem filmadas na fase terminal da doença o mostram com as pálpebras caídas, a ponto de
adormecer sentado.
Mas o sono verdadeiro nunca chegava para ele. Depois de alguns meses, caiu em um estado
de torpor contínuo, interrompido somente por breves momentos de sonhos revelados por gestos.
Em uma imagem, o homem faz o gesto de abotoar o paletó: quando lhe perguntam o que estava
fazendo, responde que se preparava para ir a uma festa. Com a morte do paciente, Lugaresi envia o
cérebro a Cleveland, nos Estados Unidos, para Pierluigi Gambetti, seu antigo colaborador.
Gambetti nada encontra de anormal, exceto uma lesão do tálamo. Essa estrutura, até então
considerada pouco importante para os mecanismos do sono, revela-se um nó crucial nos circuitos
que o governam. A hipótese de Lugaresi, elaborada ao longo dos anos, depois de ver outros
membros da família morrer por causa da insônia fatal é simples. As lesões do tálamo, espécie de
estação intermediária, desconectariam o hipotálamo - o regulador das funções autônomas e
promotor do sono - estrutura que controla seu funcionamento, o córtex cerebral. Enfim, é como se
o organismo nunca recebesse um sinal "pare" dos estímulos e, com isso, superaquecesse até a
exaustão.
Mas a descoberta tem outros desdobramentos. Já nos primeiros anos, Lugaresi percebe que
o eletroencefalograma do doente de insônia fatal se assemelha ao das pessoas que sofrem da
doença de Creutzfeldt-Jakob. Além disso, as características da lesão fizeram Gambetti pensar que
se tratava de uma doença causada por príons, proteínas que Stanley Prusiner, prêmio Nobel em
1997, estudava naqueles anos. No fim, Gambetti, a quem Prusiner forneceu os anticorpos
necessários para confirmar o diagnóstico, demonstrou, com uma série de experiências, que a partir
do material extraído do cérebro das pessoas mortas por insônia fatal pode-se desenvolver a doença
nos ratos. O mesmo acontece quando injetamos nos animais material cerebral de vítimas da doença
de Creutzfeldt-Jakob. É a demonstração de que os príons são agentes infecciosos.
A insônia fatal encontra-se, portanto, no cruzamento de dois importantes campos de
pesquisa: o estudo do sono e as doenças causadas por príons. Nos últimos tempos, foram
identificadas 27 famílias, no mundo todo, nas quais a doença se transmite de geração em geração.
Sabe-se também qual gene está em sua origem, e um teste permite identificá-lo. Infelizmente,
ainda não existe cura.