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Microeconomia III – 2022.

1
Prof. Thomaz Gemignani

Aulas 1 e 2

Introdução

Nos modelos de oferta e de demanda por um bem utilizados nos cursos anteriores
de Microeconomia para a discussão de preços e quantidades de equilı́brio em um
mercado (e, de modo mais geral, para o funcionamento dos mercados), supunha-se
na maior parte do tempo (ainda que implicitamente) que variações em tais preços e
quantidades não afetavam as trocas realizadas em outros mercados. Em particular,
por mais que eventualmente se reconhecesse que a quantidade demandada de um
bem especı́fico por um certo indivı́duo (ou a quantidade ofertada de tal bem por
uma certa firma) dependesse de outros preços (de outros bens e de insumos) em
vigor, a prática comum ao se analisar o equilı́brio de um mercado era a de se supor
que os preços dos outros bens eram fixos.

No entanto, os mercados de diferentes bens são, em maior ou em menor grau, sem-


pre interrelacionados. Por exemplo, tem-se que o preço e as quantidades deman-
dadas/ofertadas de um bem serão diretamente afetados por mudanças nos preços
de bens que sejam substitutos ou complementares ao bem em questão. Além disso,
pode-se pensar que mudanças no preço de um bem que seja vendido por consu-
midores (como o seu trabalho) fazem com que a sua renda varie e seu padrão de
consumo (de outros bens, inclusive) consequentemente se altere.

A tı́tulo de ilustração, consideremos informalmente uma situação em que um certo


governo resolve reduzir as suas tarifas de importação de açúcar. Através da uti-
lização dos modelos microeconômicos de oferta/demanda (dos cursos anteriores)
aplicados a tal mercado de açúcar, não seria difı́cil calcular/estimar em quantas
unidades a quantidade demandada de açúcar variaria em consequência da queda
no preço (relativo) desse bem decorrente de tal redução tarifária (desde que se ti-
vesse um nı́vel suficiente de informação acerca das preferências dos indivı́duos e
das tecnologias das firmas, é claro). Porém, a desconsideração da influência de tal
redução sobre o funcionamento de outros mercados (e a desconsideração do modo
como as respectivas alterações em tais mercados se “refletiriam” de volta no mer-
cado de açúcar) faria com que um tal cálculo/estimativa estivesse provavelmente
equivocado. Seria razoável imaginar, por exemplo, que a referida queda no preço
do açúcar induziria os proprietários de terra arável a empregá-la para outros fins
(que não o plantio de cana de açúcar), levando a novas plantações de outros pro-
dutos e, consequentemente, a reduções nos preços (relativos) desses produtos. Por
sua vez, tais reduções aumentariam a renda real dos correspondentes consumidores,
fazendo com que a sua respectiva quantidade demandada por açúcar provavelmente
aumentasse (para um nı́vel ainda maior do que aquele resultando do efeito direto
da queda no preço do açúcar). E a história não para por aı́: é natural conceber que
a queda no preço do açúcar devida à redução tarifária levaria também a uma queda
do emprego no setor de cana de açúcar (já que os empregadores provavelmente não
estariam dispostos a manter os salários originais) e a um aumento das candidatu-
ras de (ex-)trabalhadores do setor de cana a outros empregos agrários, levando a
uma redução dos salários correspondentes a esses outros empregos e a uma redução
na renda (e possivelmente na quantidade demandada por açúcar) dos respectivos
trabalhadores.

Em suma, o cenário desenvolvido acima indica que o estudo apropriado do desem-


penho de uma economia (de mercado) inteira – em especial, da capacidade de seu
sistema de preços levar à concretização de trocas “vantajosas” –, de modo geral, e
a realização (e avaliação) adequada de intervenções de polı́tica econômica/pública,
em particular, requerem que as ligações entre os principais mercados sejam con-
sideradas explicitamente. Nesse sentido, o primeiro objetivo deste curso de Mi-
croeconomia III consiste em apresentar uma classe de modelos (conhecidos como
modelos de “equilı́brio geral”) que, ao contrário dos modelos (de “equilı́brio par-
cial”) desenvolvidos nos cursos anteriores (e voltados à análise de um mercado por
vez), contemplem as interações/repercussões entre diferentes mercados e permitam
analisá-los em conjunto.1

Equilı́brio Geral

Para facilitar a exposição e a compreensão dos conceitos, desenvolveremos nos-


sos modelos de equilı́brio geral, ao menos em um primeiro momento, sob certas
hipóteses simplificadoras (já presentes nos cursos anteriores, especialmente em Mi-
croeconomia I). Primeiramente, suporemos, de modo geral (a menos que seja dito
explicitamente em sentido contrário), que, sempre que as trocas realizadas entre
os indivı́duos se derem de acordo com um sistema de preços, os respectivos mer-
cados são competitivos, no sentido de que nenhum agente econômico (consumidor
ou firma) detém poder de mercado; ou seja, todos os indivı́duos são tomadores de
preços. Além disso, suporemos (novamente, em um primeiro momento) a ausência
de externalidades, isto é, que as decisões de consumo/produção de cada consumi-
dor/firma não são diretamente afetadas pelas decisões de consumo/produção de
outros agentes.2 Trabalharemos também sob a hipótese de informação completa,
que estabelece que todos os agentes são plenamente informados sobre as carac-
terı́sticas dos bens disponı́veis para troca; um exemplo clássico em que tal hipótese

1
Assim como os modelos de equilı́brio parcial se baseiam em uma noção de equilı́brio entre oferta
e demanda em um mercado para propiciar a análise das trocas realizadas nesse mercado, tem-se que os
chamados modelos de equilı́brio geral propõem que uma tal análise seja baseada em uma noção de equilı́brio
segundo a qual todos os mercados conectados estejam simultaneamente “equilibrados”. Naturalmente, a
especificação das condições sob as quais se pode garantir que um tal “equilı́brio geral” de fato exista para
(e possa ser alcançado por) uma certa economia constitui um dos principais elementos da respectiva teoria.
2
Isso não seria verdade, por exemplo, no caso em que a decisão, por um certo indivı́duo, de utilizar (ou
não) o transporte público depende do nı́vel de utilização desse transporte por outros indivı́duos, ainda que
tal nı́vel não altere o valor da passagem. Se, por outro lado, ocorrer de uma decisão de consumo/produção
de um bem por um indivı́duo ser sensı́vel a decisões de outros agentes apenas por que tais decisões
influenciam o preço do bem em questão, consideraremos tal efeito como indireto (e não excluiremos a sua
possibilidade em nossa análise).
não é razoável é o mercado de carros usados.3 E admitiremos também a ausência de
custos de transação, ou seja, que nenhum bem (ou nenhuma quantidade monetária)
precisa ser gasto para se fazer meramente com que uma troca passe a ser possı́vel.

Além disso, suporemos inicialmente que os ambientes econômicos sob análise são
“economias de trocas puras”, ou seja, que não há nenhuma produção de bens (isto
é, que um bem não pode ser “transformado” em outro), e que os corresponden-
tes indivı́duos/consumidores podem apenas trocar entre si as suas dotações (pré-
definidas) de bens que já existam.4 Por fim, consideraremos geralmente que cada
economia seja composta por apenas dois consumidores (frequentemente denotados
por “a” e “b”), e que existam apenas dois bens (frequentemente denotados por “1”
e “2”, ou, ocasionalmente, “x” e “y”). É importante que se tenha em mente, no en-
tanto, que estas últimas hipóteses, apesar de desconfortavelmente irrealistas (ainda
mais levando-se em conta que, apesar de seu número reduzido, os consumidores
continuam sendo supostos tomadores de preços), não são fundamentais à obtenção
dos principais resultados que verificaremos (os quais continuam válidos para eco-
nomias mais complexas), mas permitem a utilização de ferramentas (especialmente
de caráter gráfico) que simplificam consideravelmente tal verificação.

Economia de Trocas Puras

Em nosso cenário inicial de uma economia de trocas puras com dois consumidores e
dois bens, denotaremos por ω1a e por ω2a as quantidades que o consumidor a tem ori-
ginalmente (isto é, antes que ocorra qualquer troca) dos bens 1 e 2, respectivamente,
e nos referiremos à cesta de bens ω a = (ω1a , ω2a ) como sendo a dotação inicial deste
consumidor. Analogamente, as quantidades ω1b e ω2b serão utilizadas para denotar
genericamente as quantidades dos bens 1 e 2 que o consumidor b tem originalmente,
de modo que a sua respectiva dotação inicial corresponderá a ω b = (ω1b , ω2b ). Com
isso, tem-se que a dotação agregada (dos bens 1 e 2) na economia corresponde a

Ω = ω a + ω b = (ω1a + ω1b , ω2a + ω2b ).5

Além disso, denotaremos por xi1 e por xi2 as quantidades dos bens 1 e 2 (respec-
tivamente) que o consumidor i (i = a, b) acaba efetivamente escolhendo consumir
(independentemente de quais sejam as regras do processo de trocas entre os in-
divı́duos). Sendo assim, a cesta de consumo do indivı́duo i (i = a, b) corresponde
ao par ordenado xi = (xi1 , xi2 ). Nesse cenário, um par (já que temos apenas dois
consumidores) qualquer de cestas de consumo (xa , xb ) listando as cestas que cada
indivı́duo consome (ou pelo menos deseja consumir) é chamado de alocação dos
bens na economia, e uma alocação é considerada factı́vel se

3
A existência de externalidades e a falta de informação completa em certos mercados (e suas respectivas
consequências sobre as propriedades alocativas de sistemas de preços competitivos constituem outros dos
principais tópicos a serem explorados neste curso.
4
A consideração de modelos de equilı́brio geral para economias com produção de bens será realizada
em um segundo momento.
5
De modo mais geral, caso houvesse n bens (e ainda dois consumidores) na economia, a dotação
agregada corresponderia a uma n-upla (ω1a + ω1b , . . . , ωna + ωnb ).
xa1 + xb1 ≤ ω1a + ω1b e xa2 + xb2 ≤ ω2a + ω2b ,

ou seja, se a quantidade total que os indivı́duos desejam consumir de cada bem é


menor ou igual ao total disponı́vel do bem na economia (o que, em uma economia
sem produção, equivale à soma das quantidades desse bem presentes nas dotações
iniciais dos indivı́duos).

Com tais definições, podemos prosseguir agora à definição da principal ferramenta


gráfica voltada à análise dos resultados dos processos de trocas em modelos de
equilı́brio geral. Isso será feito a partir do exemplo a seguir.

Exemplo
Exemplo 1.
1.

Suponhamos que as dotações iniciais dos consumidores a e b correspondam res-


pectivamente a wa = (5, 2) e a wb = (7, 8) (e, portanto, que a dotação agregada
seja Ω = (12, 10)), e que as preferências de consumo desses indivı́duos sejam re-
presentadas pelas funções utilidade ua (xa1 , xa2 ) = xa1 xa2 (do tipo “Cobb-Douglas”) e
ub (xb1 , xb2 ) = 2xb1 +xb2 (do tipo “linear”, ou “substitutos perfeitos”), respectivamente.
A Figura 1 abaixo ilustra, em cada um de seus painéis, algumas das curvas de indi-
ferença associadas às preferências do respectivo indivı́duo, bem como o ponto/cesta
correspondente à sua dotação inicial.6,7
Figura 1: Caracterı́sticas dos consumidores a e b

Fonte: Banerjee (2014)

Considere agora o procedimento geral consistindo das seguintes etapas:

(i) rotacionar em 180◦ (ou seja, virar “de ponta-cabeça”) o painel correspondente
ao consumidor b; e

6
Conforme a prática tradicional, suporemos ao longo do curso que os bens à disposição dos in-
divı́duos sejam “(infinitamente) divisı́veis”, isto é, que possam ser adquiridos (e produzidos, quando houver
produção) não
√ apenas em quantidades inteiras, mas em qualquer quantidade (inclusive números irracio-
nais, como “ 3 unidades do bem 1”). Em particular, tal suposição faz com que o conjunto de curvas de
indiferença representando as preferências de cada consumidor seja infinito.
7
Como feito na Figura 1, é frequentemente conveniente associar, às curvas de indiferença represen-
tando as preferências de um consumidor, setas que indiquem a direção em que a satisfação/utilidade do
consumidor aumentaria. No caso em questão, as setas apontando para a direção “nordeste” significam
que tanto o consumidor a quanto o consumidor b alcançariam um maior bem-estar caso consumissem mais
do bem 1 e/ou mais do bem 2.
(ii) sobrepor tal painel rotacionado ao painel (original) relativo ao consumidor a
de modo que os pontos correspondentes às dotações iniciais wa e wb fiquem um
sobre o outro.

Como ilustrado na Figura 2 (em que as dotações iniciais são ambas representadas
pelo ponto ω) para os indivı́duos caracterizados acima, o resultado de tal procedi-
mento (tanto no caso especı́fico que estamos analisando quanto de modo geral) leva
à construção de uma representação conjunta – denominada Caixa de Edgeworth
– das caracterı́sticas de todos os indivı́duos e bens na economia, com uma série de
propriedades importantes. Note primeiramente que as dimensões do retângulo as-
sociado a tal “caixa” correspondem à disponibilidade de bens na economia (ou seja,
à dotação agregada): a caixa na Figura 2 tem uma largura igual a 12 (equivalendo
à soma das quantidades do bem 1 presentes nas dotações iniciais de a e de b) e
uma altura igual a 10 (equivalendo à soma das quantidades do bem 2 presentes nas
dotações iniciais de a e de b).

Figura 2: Uma Caixa de Edgeworth

Fonte: Banerjee (2014)

Além disso, a Caixa de Edgeworth apresenta um aspecto fundamental relativo a


alocações factı́veis. Consideremos, por exemplo, o ponto C no centro da caixa
ilustrada na Figura 2. Temos que a distância horizontal entre tal ponto e a “origem”
do consumidor a, Oa , é igual a 6, e a distância vertical entre C e Oa é igual a 5.
De modo similar, temos também que a distância horizontal e a distância vertical
entre C e a origem do consumidor b, Ob , são iguais a 6 e a 5, respectivamente.
Nesse sentido, podemos então entender o ponto C como representando a alocação
((6, 5), (6, 5)), que é uma alocação factı́vel (por quê?).

Pela mesma lógica, vê-se também que o ponto ω na Figura 2 corresponde à alocação
(factı́vel) ((5, 2), (7, 8)), formada pelas dotações iniciais dos dois consumidores. E, de
modo mais geral, é válido que todo ponto na caixa de Edgeworth corresponde a uma
alocação factı́vel. Por outro lado, se supusermos que não haja desperdı́cio, ou seja,
que o consumo total de qualquer bem é sempre igual à quantidade total disponı́vel
do mesmo bem (uma suposição que geralmente faremos), então também é verdade
que toda alocação factı́vel dos bens entre os consumidores pode ser representada
através um certo ponto na Caixa de Edgeworth da correspondente economia, sendo a
respectiva cesta de consumo do indivı́duo a lida a partir da origem deste consumidor
(Oa ), e a respectiva cesta de consumo do indivı́duo b lida a partir da origem Ob . Em
particular, temos que a alocação (factı́vel) em que o consumidor b possui tudo aquilo
que existe na economia (e o consumidor a não possui nada) corresponde ao ponto
sobre a origem Oa , e a alocação (factı́vel) em que a possui todas as quantidades de
todos os bens (e b não possui nada) corresponde ao ponto sobre a origem Ob .

Exemplo
Exemplo 2.
2.

De modo alternativo e mais genérico, a Caixa de Edgeworth representando as ca-


racterı́sticas de consumidores que tivessem curvas de indiferença “curvadas” seria
como a ilustrada na Figura 3 abaixo.
Figura 3: Outra Caixa de Edgeworth (genérica)

Fonte: Varian (2015) e elaboração própria

Por conta das propriedades enunciadas acima, segue que qualquer troca de bens que
venha a (ou possa) ser realizada entre os consumidores corresponde a um movimento
da alocação inicial (isto é, a alocação formada pelas dotações iniciais) ω para outro
ponto na Caixa de Edgeworth (em seu interior ou sobre suas bordas), já que os
resultados das trocas devem necessariamente constituir uma alocação factı́vel.8 Por
esse e outros motivos (que analisaremos a seguir), tem-se que a construção da Caixa
de Edgeworth configura uma ferramenta bastante poderosa para a análise de tais
resultados e para o estudo das interrelações entre os diferentes mercados.

Como ocorrem as trocas?

Um outro aspecto essencial da Caixa de Edgeworth é a sua representação (si-


multânea) das preferências de todos os consumidores (através do mapeamento de
suas respectivas curvas de indiferença), o que nos permite desenvolver uma com-

8
É importante salientar nesse ponto que, se as preferências dos consumidores forem (fortemente)
monotônicas, ou seja, se um consumo maior de qualquer um dos bens necessariamente aumenta a utilidade
dos consumidores, então movimentos no sentido “nordeste” (como o de ω para C, na Figura 2) deixariam
o consumidor a melhor e o consumidor b pior.
preensão razoável acerca de quais trocas se mostram mais promissoras e quais com
certeza não ocorrerão (ou não deveriam ocorrer, para indivı́duos racionais), por
exemplo.

Tendo em vista que cada indivı́duo desejará (ou pelo menos aceitará) efetuar tro-
cas apenas se elas não lhe forem prejudiciais, pode-se concluir diretamente que
qualquer alocação (factı́vel) que seja resultante de trocas deverá necessariamente
ser composta de cestas de consumo (para a e b) que deem aos respectivos con-
sumidores uma utilidade maior do que (ou igual a) aquela que obteriam com sua
respectiva dotação inicial. As alocações (factı́veis) com tal propriedade recebem o
nome de alocações individualmente racionais. Graficamente, tem-se então que
as alocações individualmente racionais são aquelas localizadas “entre” as curvas de
indiferença de a e de b passando pela alocação inicial ω.9

Para fixar as ideias, consideremos, por exemplo, a ilustração na Figura 4 (baseada


na situação descrita no Exemplo 1). Nela, são descritas a curva de indiferença do
consumidor a e a curva de indiferença do consumidor b que passam pela alocação
inicial. O conjunto de alocações situadas entre tais curvas (indicado por “IR” e pela
área azul) corresponde, então, às alocações individualmente racionais da respectiva
economia. Ou seja, ambos os indivı́duos estariam dispostos a realizar uma/qualquer
troca que os levasse da alocação ω para uma/qualquer alocação na região azul. Em
particular, supondo que a alocação A em tal figura estabeleça a cesta (xa1 , xa2 ) para
o consumidor a e a cesta (xb1 , xb2 ) para o consumidor b, temos que o movimento de ω
para A corresponderia a o consumidor a abrir mão de ω1a −xa1 unidades do bem 1 em
troca de mais xa2 − ω2a unidades do bem 2, e a o consumidor b abrir mão de ω2b − xb2
(= xa2 − ω2a ) unidades do bem 2 em troca de mais xb1 − ω1b (= ω1a − xa1 ) unidades do
bem 1; e uma vez que, na perspectiva de cada consumidor, a alocação A se situa
em uma curva de indiferença “superior” à respectiva curva passando por ω, ambos
os consumidores teriam um aumento em suas utilidades ao irem de ω para A.
Figura 4: Alocações Individualmente Racionais

Fonte: Banerjee (2014)

De modo similar, podemos ver que um movimento de ω para a alocação B au-


9
Mais precisamente, uma alocação é individualmente racional caso se situe “acima”, na perspectiva
de a, da curva de indiferença de a passando pela alocação inicial (ou sobre tal curva), e caso se situe, na
perspectiva de b, “acima” (ou sobre) a curva de indiferença de b passando pela alocação inicial.
mentaria a utilidade do consumidor b e manteria a utilidade de a inalterada, e um
movimento de ω para C elevaria a utilidade do consumidor a e manteria inalterada
a utilidade de b. Nesses dois casos, as correspondentes trocas (levando de ω para
B ou de ω para C) poderiam muito bem acontecer entre consumidores racionais,
uma vez que, apesar de um dos consumidores não se beneficiar delas, ninguém seria
prejudicado. Em outras palavras, as alocações B e C (e todas as outras alocações
factı́veis na fronteira da região azul) também são alocações individualmente racio-
nais nessa economia. Por outro lado, temos que um movimento de ω para a alocação
D ou para a alocação E, por exemplo, deixaria um dos dois consumidores em pior
situação, e um movimento de ω para a alocação F reduziria a utilidade de ambos;
portanto, as alocações D, E e F são exemplos de alocações que não são individual-
mente racionais e que não deveriam configurar o resultado de um processo de trocas
entre dois consumidores racionais que tenham em ω as suas dotações iniciais.

Além disso, é importante observar que nem todas as alocações individualmente ra-
cionais de uma economia são igualmente “benéficas”. Pode ser o caso, por exemplo,
que, ao se traçar a curva de indiferença de cada consumidor passando por uma
certa alocação individualmente racional – como a alocação A na Figura 4 – exista
uma nova “região de vantagem mútua” entre tais curvas, contendo alocações es-
tritamente preferidas à alocação individualmente racional em questão na visão de
ambos os consumidores.

Com isso em mente, passaremos a ver agora certos conceitos fundamentais à ava-
liação de “até quando” as trocas entre dois indivı́duos tendem a ser feitas, ou seja,
em que situação deixa de ser vantajoso para os indivı́duos fazer trocas adicionais.
Primeiramente, diz-se que uma alocação (x̄a , x̄b ) (envolvendo a cesta x̄a para o
consumidor a e a cesta x̄b para o consumidor b) é Pareto-superior a (ou uma
“melhoria de Pareto” sobre) uma outra alocação (xa , xb ) se nenhum dos consumi-
dores fica pior (em termos de utilidade) sob (x̄a , x̄b ) do que sob (xa , xb ), e se ao
menos um dos consumidores fica melhor. Em particular, na situação ilustrada na
Figura 4, podemos ver que as alocações A, B e C são Pareto-superiores tanto à
alocação inicial ω quanto à alocação F , por exemplo. Por outro lado, a alocação
E não é Pareto-superior a nenhuma das alocações A, B, C ou D, já que o con-
sumidor b teria uma utilidade menor sob E do que sob qualquer uma das outras
quatro alocações mencionadas. Note ainda que não é possı́vel afirmar, com as in-
formações disponibilizadas em tal figura, se a alocação A é ou não Pareto-superior
à alocação C, por exemplo, apesar de o indivı́duo b claramente preferir A a C; para
tal avaliação, seria necessário que também conhecêssemos ou a curva de indiferença
do consumidor a passando pela alocação A ou a curva de indiferença deste mesmo
consumidor passando pela alocação C.

Adicionalmente, diz-se que uma alocação é Pareto-eficiente (ou “eficiente no sen-


tido de Pareto”) se não houver nenhuma outra alocação (factı́vel) que seja Pareto-
superior a ela. Em uma alocação Pareto-eficiente, portanto, ocorre que, para que
qualquer um dos indivı́duos alcançasse uma outra alocação que o deixasse melhor,
seria necessário realizar alguma troca que deixasse o outro indivı́duo pior (o que
naturalmente não ocorreria). Ou seja, se indivı́duos se encontram em uma alocação
Pareto-eficiente, então pode-se dizer que todos os ganhos resultantes de trocas já
foram exauridos. Sendo assim, seria de certa forma “desejável” que quaisquer in-
divı́duos realizando trocas entre si viessem a alcançar uma alocação Pareto-eficiente.

Em geral, haverá várias (possivelmente infinitas) alocações Pareto-eficientes em uma


economia. Para se encontrar cada uma delas graficamente (na Caixa de Edgeworth),
pode-se seguir o seguinte procedimento:

(i) para um dos consumidores – digamos, o consumidor b – fixe a sua utilidade


em um certo nı́vel ūb (ou, equivalentemente, escolha uma de suas curvas de
indiferença);
(ii) dentre as alocações situadas em tal curva de indiferença, determine aquela
que maximiza a utilidade do outro consumidor. Se as preferências de todos os
consumidores forem (fortemente) monotônicas (algo que geralmente suporemos),
uma tal alocação será Pareto-eficiente (por quê?).
(iii) Para encontrar outras alocações Pareto-eficientes, repita o processo consi-
derando outros nı́veis de utilidade (ou seja, outras curvas de indiferença) para o
consumidor b no passo (i).

Para tornar as coisas menos abstratas, considere a situação ilustrada na Figura 5,


em que se supõe que os correspondentes indivı́duos têm preferências (fortemente)
monotônicas. Nela, encontra-se em evidência (em vermelho) uma das curvas de
indiferença do consumidor b, de acordo com a prescrição da primeira etapa do
procedimento descrito acima. A segunda etapa de tal procedimento diz então que
devemos encontrar, dentre as alocações que compõem tal curva, aquela que levaria à
maior utilidade possı́vel para o consumidor a. Note então que, em uma tal alocação,
a curva de indiferença do consumidor a passando por ela deve “encostar” na curva
de indiferença (em vermelho) de b, mas sem cruzá-la. A alocação N (em que a
correspondente curva de indiferença de a cruza a curva de indiferença de b), por
exemplo, não poderia ser a alocação procurada, já que há uma conjunto não-vazio
de alocações entre as curvas de indiferença de a e de b passando pela alocação N ,
e, portanto, há alocações que ambos os consumidores prefeririam a N .
Figura 5: Alocações Pareto-eficientes e Curva de Contrato

Fonte: Varian (2015) e elaboração própria

Por outro lado, vê-se na figura que a curva de indiferença do consumidor a passando
pela alocação M tem a propriedade que desejamos: ela encosta na curva de indife-
rença pré-fixada de b (no ponto M ), e não há nenhuma alocação que se localize tanto
“acima” da curva de indiferença de a (na perspectiva de a) quanto “acima” da curva
de indiferença de b (na perspectiva de b). Em outras palavras, não seria possı́vel
a tais consumidores sair da alocação M e ir para qualquer outra alocação (através
das devidas trocas) sem que ao menos um deles piorasse. Portanto, a alocação M é
uma alocação Pareto-eficiente da correspondente economia.10 O conjunto de todas
as alocações Pareto-eficientes na Caixa de Edgeworth de uma economia é chamado
de curva de contrato (ou “conjunto de Pareto”) dessa economia.

Pelo procedimento gráfico acima, fica claro então que, para uma alocação Pareto-
eficiente que se localize no interior da Caixa de Edgeworth (isto é, que não esteja
em nenhuma borda da Caixa), as curvas de indiferença de a e de b passando por
ela se tangenciam no ponto que a representa; ou seja, as duas curvas têm a mesma
inclinação nesse ponto. Uma vez que a inclinação da curva de indiferença de um
consumidor em um certo ponto corresponde ao negativo da sua Taxa Marginal de
Substituição (TMS) em tal ponto, temos então que as alocações Pareto-eficientes no
interior da Caixa de Edgeworth podem ser caracterizadas pela condição de que, em
qualquer uma delas, as TMSs dos dois consumidores (com suas respectivas cestas
de consumo) são iguais:

T M S a (xa1 , xa2 ) = T M S b (xb1 , xb2 ).

A seguir, veremos como tal “condição de tangência” pode ser utilizada para se
determinar algebricamente a curva de contrato de uma economia (ou pelo menos a
sua porção localizada no interior da Caixa de Edgeworth).

Exemplo
Exemplo 3.
3.

Suponhamos que os consumidores a e b tenham suas preferências representadas


pelas utilidades ua (xa1 , xa2 ) = xa1 xa2 e ub (xb1 , xb2 ) = (xb1 )2 xb2 , respectivamente, e que a
dotação agregada da correspondente economia seja Ω = (10, 10).11

Das utilidades acima, temos que as utilidades marginais dos bens 1 e 2 para o
consumidor a correspondem a

∂ua a a ∂ua a a
U M1a (xa1 , xa2 ) = a
a a a a
(x1 , x2 ) = x2 e U M2 (x1 , x2 ) = a
(x1 , x2 ) = xa1 ,
∂x1 ∂x2

10
Nas situações em que as preferências dos consumidores são (fortemente) monotônicas, as alocações
em que um dos consumidores tem tudo de todos os bens e o outro consumidor não tem nada – ou seja,
as alocações representadas por pontos sobre as origens Oa e Ob da Caixa de Edgeworth – são também
alocações Pareto-eficientes. Por quê?
11
Note que essas são todas as informações de que necessitamos para determinar a correspondente curva
de contrato. Em particular, tal determinação não requer o conhecimento de quais sejam as dotações
iniciais dos indivı́duos, já que o fato de uma alocação ser ou não Pareto-eficiente (ou seja, de pertencer ou
não à curva de contrato) não depende das quantidades que cada consumidor tem de cada bem inicialmente,
e nem é alterado caso tais dotações iniciais sejam modificadas (desde que a dotação agregada se mantenha
a mesma).
de modo que a Taxa Marginal de Substituição deste consumidor é dada por

U M1a (xa1 , xa2 ) xa2


T M S a (xa1 , xa2 ) = = .
U M2a (xa1 , xa2 ) xa1

Analogamente, as utilidades marginais dos bens 1 e 2 para o consumidor b são

∂ub b b ∂ub b b
U M1b (xb1 , xb2 ) = b
b b b b b
(x1 , x2 ) = 2x1 x2 e U M2 (x1 , x2 ) = b
(x1 , x2 ) = (xb1 )2 ,
∂x1 ∂x2

e, portanto, a Taxa Marginal de Substituição de tal consumidor corresponde a

b 2xb2
T MS (xb1 , xb2 ) = b .
x1

Ao igualarmos então as TMSs dos dois consumidores (para determinar quais seriam
as alocações Pareto-eficientes interiores desta economia), temos que

xa2 2xb2
T M S a (xa1 , xa2 ) = T M S b (xb1 , xb2 ) =⇒ = .
xa1 xb1

Mas note que, como a dotação agregada da economia é de 10 unidades de cada


bem, é válido que, quaisquer que sejam as quantidades consumidas xa1 , xa2 , xb1 e xb2 ,
deve-se ter xb1 = 10 − xa1 e xb2 = 10 − xa2 . Logo, a igualdade das TMSs acima implica
que, em alocações Pareto-eficientes (interiores),

xa2 2(10 − xa2 )


= =⇒ xa2 (10 − xa1 ) = 2(10 − xa2 )xa1 =⇒
xa1 (10 − xa1 )

=⇒ 10xa2 − xa1 xa2 = 20xa1 − 2xa1 xa2 =⇒ 10xa2 + xa1 xa2 = 20xa1 =⇒

20xa1
=⇒ xa2 = ,
10 + xa1

com 0 ≤ xa1 ≤ 10. Observe que a última equação acima envolve apenas as quantida-
des referentes a um dos consumidores (no caso, o consumidor a) e, portanto, pode
ser descrita graficamente (através do gráfico de xa2 como função de xa1 ) na Caixa
de Edgeworth como se faria normalmente em um plano cartesiano bidimensional
(tomando Oa como a origem de tal plano). Por esse motivo, a equação

20xa1
xa2 =
10 + xa1

(com 0 ≤ xa1 ≤ 10) corresponde à expressão algébrica da curva de contrato da


economia em questão.12
12
Alternativamente, se poderia ter descrito algebricamente a mesma curva de contrato através de uma
equação envolvendo apenas as quantidades relativas ao consumidor b; mas, nesse caso, a correspondente
Exercı́cio: graficamente, qual é o formato (aproximado) dessa curva de contrato?

Referências
Banerjee, S. (2014). Intermediate microeconomics: a tool-building approach. Routledge.
Varian, H. (2015). Microeconomia: uma abordagem moderna. Elsevier.

representação gráfica deveria tomar Ob como origem do plano e seria provavelmente um pouco mais difı́cil.

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