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desse novo campo teórico leva um tempo, sendo um processo de assimilação
de leituras e reflexões.
A pesquisa pretende ser um estudo qualitativo sobre os relatos de uso
de Cannabis e derivados por pacientes e mães-cuidadoras (ou pais, etc) para o
tratamento de epilepsia refratária aos medicamentos convencionais no cenário
brasileiro proibicionista. Nessa jornada para o alívio dos problemas de saúde,
os pacientes e cuidadores passam por diversos obstáculos sociais, médicos,
psicológicos e existenciais. Pretendemos entender esse conjunto de
acontecimentos, com ênfase especial no cuidado. O texto que abordamos na
disciplina sobre a lógica do cuidado de Anne-Marie Mol (2008), onde é
apresentada a dinâmica entre lógica da escolha e lógica do cuidado, será um
bom referencial teórico para pensarmos nesta questão da Cannabis, cuidado,
proibicionismo e epilepsia.
Segundo Anne-Marie Mol (2008), pacientes que têm práticas de cuidado
nunca devem ser passivos, eles são ativos. Este conceito dialoga muito bem
com o conceito que encontramos sobre pacientes especialistas que foi
desenvolvido, sobretudo no Reino Unido, sendo que ambos os conceitos
tratam primariamente de doenças crônicas como diabetes, considerando que o
conceito de paciente especialista nasceu de um contexto biomédico e o
conceito de lógica de cuidado nasceu mais associado à Antropológia da Saúde.
No contexto de paciente especialista, segundo Tattersall (2002), parte da
premissa é que muitos pacientes são especialistas no manejo de sua doença, e
isso poderia ser usado para encorajar outros a se tornarem 'tomadores de
decisão-chave no processo de tratamento'. Importante destacar que este
conceito nasce dentro do âmbito biomédico e pela nossa ótica também ligada a
lógica da escolha de Anne-Marie Mol, mas também inclui a lógica do cuidado.
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e significado (Alves e Souza, 2009). Todo esse conceito será usado como
referencial de trabalho e teórico tentando amarrar com toda teoria de mídias
sociais no nosso projeto e do momento histórico que vivemos com o advento
das mídias sociais, pois tem extrema relação com o contexto sociocultural,
podendo ser atores no cuidado.
Uma coisa interessante no tratamento dos pacientes com Cannabis
Medicinal que vem sendo relatado por alguns autores é que o cuidado e a
expectativa do paciente/cuidadores tem papel fundamental na resposta ao
tratamento. Alguns pacientes que migraram de Estado nos EUA para ter
acesso ao tratamento, onde o uso de Cannabis passou a ser legalizado, têm
normalmente respostas melhores que os pacientes locais, levando a
suposições sobre a esperança de tratamento entre esses grupos pelo processo
de migração para o tratamento. (SANDS et al , 2018). Todos esses fenômenos
dialogam com Anne-Marie Mol (2008) sobre a lógica do cuidado, destacando
que esses pacientes receberam produtos a base de Cannabis purificados e
com os devidos controles de qualidade em testes clínicos.
Cuidado para Anne-Marie Mol também inclui a tecnologia, que no caso
da Cannabis no Brasil temos por diversas vias de acesso, seja o extrato
industrial ou artesanal, além dos produtos purificados disponíveis na indústria
farmacêutica nacional ou importados, os quais possuem preços pouco
acessíveis (2 salários mínimos). Os conceitos de Anne-Marie Mol ajudam a
entender melhor o fenômeno aqui no Brasil, onde os produtos são em certa
medida inacessíveis, mas as mães-cuidadoras desenvolvem estratégias de
cuidado e acesso para aliviar o sofrimento dos seus filhos-pacientes. Assim,
mesmo com a falta de condições ideais para acesso aos produtos derivados de
cannabis, os pacientes desenvolvem estratégias de cuidado para superar
esses obstáculos, fazendo cursos de formação sobre cannabis medicinal,
plantando em desobediência civil, participando ou criando associações de
pacientes, procurando médicos prescritores de cannabis medicinal e até
preparando um produto artesanal para uso com algum grau de eficácia.
Pelas nossas sondagens de campo, estas mães-cuidadoras buscam
informações sobre cannabis medicinal para solucionar os problemas de seus
filhos e muitas vezes as fontes de informações são: profissionais de saúde,
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amigos, associações de pacientes, associações científicas, universidades ou a
própria internet. Uma coisa que chama atenção, considerando toda a
problemática de acesso a derivados de Cannabis, é que essas mães-
cuidadoras lançam mão de várias estratégias para o cuidado dos seus filhos-
pacientes, mesmo com extratos de cannabis que muitas vezes têm a qualidade
questionável por metódos químico-analíticos, elas conseguem muitas vezes um
bom resultado, apesar de que outras vezes algum efeito colateral, muitas vezes
atribuído a uma dose excessiva de THC (Carvalho et al., 2020).
Como existe uma demanda desses extratos de Cannabis, então é
comum ver a venda de produtos sem procedência em grupos de facebook de
cannabis medicinal ou canabidiol (um derivado de cannabis não pisicoativo) e a
troca de informações entre os usuários dos mais diversos problemas de saúde
sobre a qualidade dos extratos fornecidos pelos diversos fabricantes. Todas
estas interações em mídias sociais também são atores no processo de
cuidado, então teremos como atores, segundo os conceitos de Ana-Marie Mol:
pacientes, mães-cuidadoras, médicos prescritores de cannabis medicinal,
terapeutas cannábicos, associações de pacientes, grupos de mídia sociais,
movimentos para regulamentação da cannabis.
O texto de Ana-Marie Mol contribuiu para um maior despertar para a
importância do cuidado. Apesar de que a tecnologia também fazer parte do
cuidado e uma tecnologia apurada e acessível tenha importância fundamental
para o tratamento, o olhar das Ciências Sociais pode ajudar a melhor entender
que mesmo em um cenário proibicionista em relação à Cannabis, onde o
acesso é limitado, mesmo com uma tecnologia artesanal, existem casos de
sucesso, muitas vezes correlacionados tanto a presença de THC nos extratos
ou outros canabinoides (questionado e controverso, pois segundo alguns
pesquisadores o fato do THC também possui um efeito anticonvulsivante, mas
com menor segurança), quanto ao cuidado dessas mães. Importante destacar
que outros autores como Sands (2018), em relação ao tratamento com
Canabidiol purificado nos EUA, já tinham notado a influência do itinerário
terapêutico para o tratamento que influenciava nos resultados. Assim, o
cuidado, sendo de difícil mensuração nos ensaios clínicos, também influencia
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em muito na eficácia das preparações, sejam essas altamente purificadas ou
artesanais.
Pensando no cuidado de epilepsia refratária com Cannabis Medicinal
pela ótica de Ana-Marie Mol, vemos que o cuidado é um processo, não tem
fronteiras claras. Ele está em aberto, não é uma questão de tamanho, ao invés
disso é uma questão de tempo; seja tratando da doença ou buscando
informações sobre cannabis, epilepsia e outros métodos de cuidado. Para
cuidar não é um produto derivado de cannabis que muda as mãos, mas uma
questão de varias mãos que trabalham e aprendem juntas na especificidade do
caso e muitas vezes da planta. Para Ana-Marie Mol, o cuidado não é a
transação, no qual alguma coisa é trocada, mas uma interação na qual a ação,
vai para frente ou para trás, num processo em andamento, uma coisa que as
mães-cuidadoras sentem na prática, com o crescimento de seus filhos e a
mudança no tratamento e eficácia, sempre numa busca constante por maior
qualidade de vida, em que o cuidado pode muitas vezes melhorar mesmo
quando os profissionais estão usando menos produtos e os pacientes estão
fazendo por eles mesmos.
Neste vai e vem do cuidado em relação à Cannabis no tratamento de
epilepsia refratária, Sands (2018) destaca um período de "lua de mel" com taxa
de resposta de 38-57% durante os primeiros meses de terapia com Canabidiol
puro industrializado e após esse período um declínio gradativo da eficácia.
Refletindo sobre o cuidado e as preparações artesanais de Cannabis
medicinal, onde os trabalhos recentes demonstram a baixa qualidade de rótulo
dos produtos artesanais e de associações no Brasil (Carvalho et al., 2020)
levando a alguns relatos de reações adversas devido a concentrações maiores
de THC. Por outro lado, pelo alto número de pacientes tratados com sucessos
com essas preparações, além de que o próprio THC tem um efeito
anticonvulsivante, mas com curva em “U” invertido, onde as doses terapêuticas
estão muito próximas à dose não terapêutica, levando assim aos efeitos
adversos. Assim, isso tudo leva-nos a refletir sobre o cuidado como processo
que interfere nesta efetividade, pois segundo Mol o que importa na lógica do
cuidado é o resultado. Devemos considerar que corpos doentes são
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imprevisíveis, o que mostra que o cuidado não é um produto bem delineado,
mas um processo que continua por toda vida.
A epilepsia refratária na maioria dos casos nunca será curada, como
Ana-Marie Mol coloca para outras doenças crônicas, também pode continuar
alterando o estado patológico, então, o que caracteriza um bom cuidado é
calma persistência para melhorar a situação do paciente.
Considerações Finais
Bibliografia
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CARVALHO, V. M. et al . QUANTIFICAÇÃO DE CANABINOIDES EM
EXTRATOS MEDICINAIS DE Cannabis POR CROMATOGRAFIA LÍQUIDA DE
ALTA EFICIÊNCIA. Quím. Nova, São Paulo , v. 43, n. 1, p. 90-97, Jan. 2020
MOL, ANNE-MARIE. The logic of care. Health and the problem of patient
choice. London, Routledge, 2008