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Arminio Fraga – Folha SP 31/10

Banco Central age como se estivesse pescando com uma linha fina /Uma vez que a
inflação saia de controle, os custos sociais estão contratados

A principal tarefa de qualquer banco central é manter a inflação sob controle. No caso do
Brasil, desde 1999 o BC administra um sistema de meta explícita para a inflação. O
principal instrumento à disposição do BC é a fixação da taxa de juros de curto prazo.

As variações na taxa de juros afetam o consumo, o investimento, as expectativas de


demanda no futuro, o custo do crédito e a taxa de câmbio.

Quando há excesso de demanda na economia, o BC eleva as taxas de juros de forma a


contrair a demanda e trazer a inflação de volta para a meta. O BC reage também a
alterações nas expectativas de inflação, medidas de diversas maneiras.

Quando o BC age de forma transparente e sistemática, os participantes da economia agem


incorporando o modo de agir do BC às suas decisões.

O BC, por sua vez, tem seu trabalho facilitado por esse entendimento, que tende a ancorar
as expectativas e, assim, minimizar os custos sociais de seus ajustes (que trazem mais
benefícios do que custos, por certo).

Nos países mais avançados, o sistema levou a uma extraordinária convergência das taxas de
inflação, para 1% a 2%. No Brasil, há anos a inflação tem se comportado bem se
comparada com padrões históricos.

Quando a inflação é de demanda, o tratamento é relativamente fácil. Mais complicado é o


caso de um choque de oferta. Refiro-me aqui a aumentos de preços de alimentos,
combustíveis e insumos e a quebras de confiança que reduzem a produção.

Nesses casos, a inflação aumenta ao mesmo tempo que a economia se desacelera.


Recomenda-se então uma volta gradual da inflação à meta, de forma a minimizar os
impactos sociais do ajuste.

Vale reforçar que, uma vez que a inflação saia de controle, os custos sociais estão
contratados. O desafio reside em minimizá-los. O BC age como se estivesse pescando com
uma linha fina e não dá um tranco muito forte no peixe, sob pena de a linha social se
romper.

Há um segundo caso que pode afinar ainda mais a linha do pescador monetário: aquele em
que o aumento da taxa de juros contribui para um crescimento descontrolado da dívida
pública, fenômeno conhecido entre os especialistas como "dominância fiscal".

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Como bem sabemos, tal crescimento pode se transformar em paralisante fonte de incerteza,
que por sua vez pressiona para cima o custo do crédito, a taxa de câmbio e a inflação, e
para baixo a atividade econômica, o emprego e os salários.

Não é por outra razão que política monetária só funciona bem com o apoio de uma política
fiscal responsável, que garanta a sustentabilidade das contas públicas e possa assim
colaborar no esforço anticíclico, nas duas direções.

Duas outras situações de dominância também devem ser evitadas: a cambial, quando o BC
tenta fixar o dólar em nível artificialmente baixo vendendo reservas e aumentando os juros
(uma tradicional e custosa fonte de crises no passado), e a financeira, quando a dívida
pública aumenta em função dos custos de se administrar uma crise bancária (tivemos
muitas em nossa história, envolvendo bancos tanto públicos como privados).

Para consolidar o extraordinário sucesso inicial do Plano Real, foi necessário enfrentar as
três dominâncias. Destacaram-se nas respostas o Proer, a restruturação das finanças
estaduais (e seus bancos), o ajuste fiscal de 1998/99 e a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Esses pilares sustentaram a adoção do tripé macroeconômico —meta para inflação, câmbio
flutuante e responsabilidade fiscal— que eliminou a dominância cambial e vem prestando
bons serviços desde então, mesmo em condições de estresse.

O ajuste fiscal e as reformas permitiram a manutenção de um superávit primário nas contas


públicas entre 1999 e 2013, o que reduziu a pressão sobre os juros. Esse quadro virtuoso
durou até o colapso fiscal que ocorreu em 2014 (ainda não revertido) e levou a um aumento
na dívida federal de 25 pontos do PIB.

Com o correr do tempo, foi ficando cada vez mais claro que restava ainda reverter a
insustentável situação em que o gasto público crescia, todo ano, mais do que o PIB.

Como resposta a essa situação e à necessidade de se retornar a um saldo primário positivo,


o Congresso aprovou em 2016 a importante PEC do Teto, que limitou o crescimento do
gasto à taxa de inflação do ano anterior.

O teto sinalizou um desejo implícito de reduzir o tamanho do Estado, que cairia (também
como proporção do PIB) à medida que a economia crescesse.

A título de exemplo, se a economia crescesse 2,5% ao ano por dez anos, a parte federal do
gasto cairia de 20 para 15,6% do PIB, um ajuste ambicioso e politicamente inviável e, a
meu ver, indesejável.

Uma alternativa que tenho defendido neste espaço alocaria parte dessas economias para
outros gastos (SUS, proteção social, investimentos). Eliminaria subsídios também.

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Se a arrecadação crescesse em linha com a economia, em alguns anos o saldo primário
passaria para território positivo, o que eventualmente estabilizaria ou até mesmo reduziria o
tamanho da dívida pública, algo recomendável.

Sabia-se que o teto só se sustentaria se reforçado por reformas estruturais, que afetassem
sobretudo gastos com a folha de salários e a Previdência.

Algum movimento nessa direção ocorreu com a reforma da Previdência de 2019. Mas
faltam pelo menos uma reforma do RH do Estado e um reforço adicional na área da
Previdência (sobretudo para incluir o que ficou de fora).

A partir de 2020, a dívida federal cresceu em cerca de 5 pontos do PIB. Não cresceu mais,
apesar dos gastos com a pandemia, em função do congelamento (temporário) de salários no
setor público e da alta da inflação (que permitiu uma redução temporária da conta de juros).

Recentemente, incapaz de redefinir prioridades para o gasto público e pressionado pelo


ciclo eleitoral, o governo tomou duas decisões que expuseram a fragilidade do teto: o
parcelamento do pagamento de precatórios (calote) e a modificação do indexador do teto
(casuísmo).

A reação dos mercados foi forte: o dólar subiu ainda mais, as bolsas caíram e as taxas de
juros de longo prazo (nominais e reais) dispararam. Preocupado com a inflação, o BC
aumentou os juros em 1,5% e sinalizou repetição da dose no próximo Copom.

Com juros elevados e perspectivas cada vez piores para o crescimento a partir do ano que
vem, a dívida pública deve voltar a uma trajetória de crescimento acelerado. O espectro da
dominância fiscal segue assombrando o Brasil.

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