Você está na página 1de 15

Tarefas do Cristianismo de Libertação (I): crítica da idolatria

Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade
Metodista de São Paulo

Adital
25.02.2011

Em um artigo recente, eu escrevi que uma das questões fundamentais do nosso tempo é que "o
Império global de hoje domina por sedução”. Diferentemente de todos os impérios anteriores, o atual
sistema capitalista global não tem no poder e força militar o seu principal instrumento de expansão e
dominação. Usa sedução e fascinação, a ostentação do seu modo de vida (na verdade da sua elite)
como sua arma de conquista.

Pessoas e povos que se sentem fascinação pelo modo de viver de um grupo assume este modo como
o seu modelo de vida, deseja ser incorporado neste mundo e não deseja nada diferente e, por isso, crê
que não há alternativas. E o seu medo é não ser reconhecido pela elite do mundo e ser expulso do
"banquete do mundo”.

Fascinação, medo e ausência de alternativa são características do "sagrado”. E os ideólogos do


Império sabem exploram muito bem essa aura religiosa em que está envolto o sistema capitalista
atual e reforçam esse processo de sacralização do Império. Em um mundo assim, as palavras do
jovem Marx se tornam atuais novamente: "A crítica da religião é a condição preliminar de toda
crítica”. Sem a crítica da religião, não é possível ou eficaz as críticas políticas e econômicas, pois o
que é visto como sagrado não pode ser criticado.

É claro que a crítica imprescindível da religião hoje não é a da cristandade da época de Marx, mas o
capitalismo como a "religião da vida cotidiana”. Esta consciência do caráter religioso, sagrado, do
capitalismo não é apenas de Marx ou de alguns teólogos da libertação que desenvolveram a crítica
da idolatria do mercado ou do capitalismo como a tarefa teológica principal – ao invés da
justificação da fé ou do sagrado para um mundo aparentemente não-religioso –, mas também
encontramos em autores como Max Weber e W. Benjamim. Permita-me fazer uma longa citação de
Weber: "[Hoje] Tudo se passa, portanto, exatamente como se passava no mundo antigo [...]. Os
gregos ofereciam sacrifícios a deus das cidades; nós continuamos a proceder de maneira semelhante,
embora nosso comportamento haja rompido o encanto e se haja despojado do mito que ainda vive
em nós. [...] A religião tornou-se, em nosso tempo, ‘rotina quotidiana’. Os deuses antigos
abandonam suas tumbas e, sob a forma de poderes impessoais, porque desencantados, esforçam-se
por ganhar poder sobre nossas vidas, reiniciando suas lutas eternas.”

Os sacrifícios religiosos continuam sendo oferecidos aos deuses, só que o deus de hoje é uma força
impessoal (o sistema de mercado global) que domina as nossas vidas cotidianas e demanda
sacrifícios de vidas humanas, as dos mais pobres. Como vivemos em uma sociedade "ilustrada” e
desencantada, as linguagens e os sacrifícios não são mais explicitamente religiosos, mas –como diz
Weber– tudo se passa como no mundo Antigo. Não perceber isso e pensar que a tarefa dos
cristianismos e teologias da libertação é apresentar e justificar o sagrado ou deus no mundo de hoje é
–penso eu– perder a criticidade teológica e a perspectiva profética do cristianismo.

Diante desta realidade, há uma tarefa que o cristianismo de libertação e, em particular, a teologia da
libertação precisam assumir como uma tarefa fundamental: a crítica da idolatria, a crítica prática e
teórica da religião dominante, do sagrado que gera fascinação, medo e senso de absoluto em torno do
capitalismo global. É uma crítica que, se os setores religiosos e teologias não fizerem, ficará uma
lacuna na luta por um por outro mundo, e outra globalização.

Teologias de libertação críticas de idolatrias não são necessárias e importantes porque alguns
teólogos querem manter a relevância social das teologias, mas sim porque podem contribuir de modo
substancial no desmascaramento da fascinação e absolutização do atual sistema de dominação e
opressão em escala global.

Se o que foi dito tem algum sentido, a pergunta que se segue é:em que consiste a crítica prática e
teórica da idolatria do mercado? (a continuar)

[Co-autor, com Hugo Assmann, do "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos
pobres”].

Tarefas do Cristianismo de Libertação (II): modernidade e a


idolatria

Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade
Metodista de São Paulo
Adital
No artigo anterior, eu apresentei a ideia de que o atual Império global domina por sedução,
fascinação, ao mesmo tempo em que impõe medo e a idéia de que não há alternativa ao sistema de
mercado capitalista. Características de um sistema sagrado, que por ser sagrado exige sacrifício de
vidas humanas. (Sagrado exige sacrifício, enquanto Deus da Bíblia quer misericórdia em lugar de
sacrifico. Os profetas chamaram o deus/sagrado que exige sacrifício de ídolo.) Diante deste tipo de
capitalismo, que Marx chamou de "religião da vida cotidiana” fundada na fetichização da mercadoria
e do capital, a crítica da religião se tornou novamente a condição preliminar de toda crítica.

Sem dúvida, uma das críticas mais potentes contra esta "idolatria do mercado” foi feita por alguns
teólogos da libertação, como Hugo Assmann, Franz Hinkelammert, Jon Sobrino e Júlio de Santa
Ana. Infelizmente a maioria destes livros está fora do catálogo das editoras e é pouco discutida ou
estudada pelas novas gerações. Muitas das discussões no campo da teologia não consideram o atual
sistema econômico-social como um tema teológico (no máximo como um tema da ética social ou da
doutrina social), e, por outro lado, muitos dos cientistas sociais críticos não percebem o caráter sacral
e religioso do atual sistema global. Entre cientistas sociais mais conhecidos no Brasil, Michael Löwy
é um dos poucos que aprofundaram essa questão.

Esta separação ou distinção entre a teologia/ciências da religião e as ciências sociais como dois
campos de conhecimento autônomos e independentes dificultam a compreensão mais acurada e
crítica do caráter religioso do capitalismo, que Marx, M. Weber e W. Benjamin, entre outros mestres
do passado, já haviam apontado. Por isso, eu penso que um dos passos fundamentais para fazermos
uma crítica teórica da idolatria do mercado é repensar a própria concepção da razão e do fazer
ciência gestada no mundo moderno.

Para entender melhor este desafio, é preciso primeiro criticar ou repensar a própria concepção do que
é a modernidade. Normalmente a modernidade é compreendida e também criticada pela pretensão de
construir um mundo baseado na razão e pela proposta de emancipação da humanidade ou de
revolução libertária. A crítica pós-moderna se concentra na crítica da razão moderna e na pretensão
de construir um "novo” mundo a partir da noção de revolução.

O problema é que nós assumimos a noção de modernidade que o próprio mundo Ocidental e
moderno, através dos seus intelectuais, pintou sobe si, isto é, assumimos a ideologia do mundo
moderno como a "verdade” sobre a modernidade. Se olharmos bem, veremos que a modernidade foi
construída sobre a exploração colonial do continente que eles chamaram de América. Para acumular
ouro e prata, escravizaram primeiro os nativos do Continente e depois os negros da África. Não
satisfeitos com milhões de mortes causadas em nome da acumulação "racional” da riqueza/capital,
colonizaram também os países da África e da Ásia. Em resumo, no outro lado da razão moderna está
o irracionalismo de genocídios em nome da acumulação do capital-ouro; o lado luminoso da
ilustração esconde o lado obscuro da modernidade, o seu lado irracional, sacrificial e opressivo.
Muito antes do holocausto –que no fundo é resultado extremado da razão moderna–, Europa
moderna já tinha causado genocídios na África, América e Ásia. Genocídios esses que pouco
escandalizaram a Europa por serem de povos considerados inferiores pela razão moderna.

A base material da ilustração-razão moderna foi construída com a conquista, escravidão e


exploração. Como Dussel já mostrou, a afirmação que iniciaria a modernidade, "Penso, logo sou!”,
foi procedida e tornada possível por "Conquisto, logo sou!”

Eu penso que a separação radical entre assuntos teológicos e sociais, entre a dimensão religiosa e a
racional da sociedade, tem a ver com esta tentativa de esconder o lado irracional, sacrificial,
idolátrico da modernidade do seu lado aparentemente racional e ilustrado.

O mundo moderno não é anti-religioso. Ele é contra religiões que se opõe à racionalidade da
acumulação do capital e utiliza-se das religiões ou grupos religiosos que servem ao seu objetivo. Pior
ainda, cria sua própria religião, que é expressão social do seu espírito idolátrico.

Sem uma compreensão crítica da modernidade e, portanto, também dos equívocos ou insuficiência
das críticas pós-modernas e da própria noção de pós-modernidade, não podemos repensar a relação
entre teologias críticas e teorias sociais críticas e fazer uma crítica teórica séria da idolatria do
mercado.

[Co-autor, junto com Hugo Assmann, do "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário
aos pobres”, Paulus].

Tarefas do Cristianismo de Libertação (III): crítica da


lógica sacrificial

Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião,
Universidade Metodista de São Paulo
Adital
No primeiro artigo desta série eu afirmei que o Império global hoje domina por sedução e que os
sacrifícios religiosos continuam sendo oferecidos aos deuses, só que o deus de hoje é uma força
impessoal (o sistema de mercado global) que domina as nossas vidas cotidianas e impõe sacrifícios
de vidas dos mais pobres. No segundo, eu expus a tese de que é preciso superar a imagem da
modernidade pintada pelo próprio mundo ocidental moderno e repensá-la, não como centrada na
razão e emancipação, mas como racionalidade a serviço da irracionalidade da acumulação de capital
à custa de escravidão, colonização e genocídios; emancipação construída sobre exploração de outros
povos.

Neste terceiro, eu quero aprofundar o tema da lógica sacrificial. Para entender a importância deste
tema, precisamos nos lembrar que nós vemos, analisamos e julgamos a vida pessoal, social e a
dinâmica da sociedade através do que Hinkelammert chama de "marco categorial”, isto é, um
conjunto de categorias articuladas por uma determinada lógica. E um das categorias fundamentais do
Ocidente tem sido a de "sacrifício”.

Sacrifício (ato sagrado), no sentido mais primitivo, é uma oferenda – geralmente a vida de uma
pessoa ou animal – que um sacerdote (pessoa sagrada) oferece a Deus, cumprindo com a exigência
divina em troca de um benefício ou da suspensão de algum castigo. Nas teologias sacrificiais, Deus
ou deuses são sempre exigentes, não dão nada de graça e nem perdoam. O não cumprimento das
suas leis produz uma grande desgraça, por isso o contínuo oferecimento de sacrifícios para evitar a
ira divina.

O segredo é a aceitação de um pequeno mal – como sacrificar a vida de alguém ou aceitar algum
sofrimento na vida pessoal – para conseguir um bem maior. Assim, na lógica sacrificial, a imposição
de sofrimento ou morte sobre alguns se transformam no bem. Isto é, a lógica sacrificial inverte o mal
em um bem! É uma completa inversão de valores humanos-éticos em nome de deus, ou, segundo a
crítica bíblica, em nome do ídolo.
Esta é a razão pela qual Jesus, retomando uma afirmação de Oséias, acusa o sistema social e
religioso do seu tempo de não ter entendido que Deus quer misericórdia e não o sacrifício!

Infelizmente a cristandade – o cristianismo que se alia ao império – retomou a teologia sacrificial e


assim reforçou a lógica sacrificial dominante nos impérios. Quando a sociedade crê que deus não
pode salvar sem exigir sacrifícios, até mesmo do seu próprio filho amado, é claro que vai aceitar
como "natural” o discurso do sistema de mercado capitalista quando fala dos sacrifícios necessários
exigidos pelo mercado. Assim como aceitou a escravidão e exploração colonial como sacrifícios
necessários para o progresso e, também, para a salvação da alma desses sacrificados.

Sem uma crítica radical à lógica sacrificial presente no inconsciente coletivo ou no fundo das nossas
culturas, a crítica radical ao sistema de mercado global não será eficaz. Para isso, é preciso começar
com uma afirmação teológica básica: Deus não quer sacrifícios, mas sim misericórdia e justiça para
os pobres e oprimidos! Esta é uma tarefa que a teologia e o cristianismo de libertação precisam
assumir.

E a morte de Jesus na cruz? Jesus e os evangelhos não interpretaram a cruz como uma exigência
sacrificial de Deus que deveria ser aceita. Pelo contrário, Jesus afirmou que ele dava a sua vida
livremente, não como obediência uma exigência da lei divina. Isto é "dom de si”, doar a sua vida na
luta pela vida dos mais fracos. Pedro, no primeiro discurso após pentecoste diz claramente que o
Templo matou Jesus e Deus ressuscitou. A ação de Deus não está presente na crucificação, pois não
era sua vontade, mas só na ressurreição para mostrar o erro da lógica sacrificial.

Os sacrifícios exigidos e aceitos só se justificam através do cumprimento das promessas da


recompensa. Quando isto não ocorre, foi um sacrifício em vão e os sacrificadores não são mais
vistos como sacerdotes, mas como assassinos. É por isso que os "sacerdotes” do Império dizem que
a razão do não cumprimento das promessas do mercado para o mundo todo é que ainda faltam mais
sacrifícios. Se reconhecessem que estão impondo sacrifícios em vão, eles se perceberiam como
assassinos.

Por outro lado, quem doa sua vida pela vida do seu próximo, não faz por obediência a uma lei
divina, mas livremente, deixando-se levar pela força interna da compaixão e do amor-solidário. Por
isso, quem luta livremente por amor ao próximo, mesmo que não logre o objetivo político-social,
não sente como se tivesse feito um sacrifício em vão. Sabe que a luta valeu por ela mesma, porque
foi expressão da sua liberdade e solidariedade e assim se tornou mais livre e mais humano.

[Autor, de "Sujeitos e sociedades complexas”, Vozes. No twitter: @jungmosung].


Tarefas do Cristianismo de Libertação (IV): a
metáfora do Êxodo

Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião,
Universidade Metodista de São Paulo
Adital
Nos três primeiros artigos desta série, eu coloquei o foco mais sobre alguns aspectos do capitalismo
global que o cristianismo e teologia da libertação precisam levar em conta. Neste quarto, eu quero
propor algumas reflexões sobre um aspecto interno do cristianismo de libertação (CL) que pode
provocar estranhamento em alguns leitores. Mas penso que é preciso correr risco de ser mal
entendido e criticado.

Eu penso que a principal metáfora que norteou reflexões e ações do CL foi e, em muitos lugares
continua sendo, a do Êxodo. É claro que Êxodo tem um fundamento histórico, mas a imagem da
passagem da escravidão para a terra da liberdade "onde corre leite e mel”, foi usado como metáfora
que oferece a estrutura de fundo para ações e pensamentos mais imediato e até para reflexões
teóricas.

Para perceber melhor a importância da discussão sobre metáforas, é preciso lembrar que o
pensamento humano é construído com o uso de metáforas. Sempre que precisamos fazer uma síntese
ou oferecer uma visão global, utilizamos uma figura de um outro campo ou área como instrumento.
Por ex., quando alguém diz que o mercado evoluiu como a natureza ou que o universo funciona
como um relógio está se utilizando de metáforas. Este "como” mostra isso. E a escolha adequada de
metáforas é importante porque elas influenciam e, de certa forma, direcionam o modo de pensar e de
viver.

Contra uma teologia que colocava toda atenção no "sair do mundo em direção ao céu”, negando o
valor da história humana, a TL deu uma grande contribuição chamando atenção para a o fato de que
a missão do cristianismo se dá no interior da história humana. E para isso apresentou a metáfora do
Êxodo como modelo fundamental do pensar e agir: a passagem da opressão para o Reino de Deus.
Nas palavras de L. Boff, na década de 1970: que "'por um lado, a libertação é concebida como
superação de toda escravidão; por outro, como vocação a ser homens novos, criadores de um mundo
novo'."

A metáfora do Êxodo pressupõe que na "Terra prometida” não haverá nada que lembre a escravidão
e será completamente novo, até com novo homem e nova mulher. Em termos de hoje, na nova
sociedade que devemos construir não haverá e nem deverá haver nada que nos lembre do tempo da
exploração e opressão, o mercado. Como a marca da opressão hoje é o sistema de mercado global,
na nova sociedade não deveria haver nada de mercado, nada que nos lembre do capitalismo. Esta
forma de pensar, muitas vezes inconsciente, leva alguns, por ex, a criticar de forma radical os
governos Lula e Dilma, mesmo sendo ou tendo sido petistas porque eles, apesar de avanços na área
social, não acabaram com o mercado. E se eles não lutam radicalmente contra o mercado estão fora
do paradigma do Êxodo. É quase como "tudo ou nada”.

É interessante notar que no NT essa metáfora perde espaço. A história do povo de Israel e a situação
histórica levam, por ex, a Jesusa optar por outras metáforas. Na imagem do "sal da terra”, por ex, o
caminho não é de saída da opressão para liberdade, mas de imersão no mundo para modificá-lo a
partir de dentro, aproveitando e interagindo com o que o mundo tem. Paulo de Tarso também opta
por uma "estratégia” de missão que privilegia a criação de comunidades no interior do Império para
modificá-lo desde dentro. Na minha juventude eu taxaria essas propostas de reformistas, mas hoje eu
penso que a clássica divisão entre pastoral assistencialista, reformista e libertadora precisa ser
repensada. (Eu analisei as questões dos dois últimos parágrafos com mais detalhes, e não de forma
tão "bruta” como aqui, no livro "Deus em nós: o reinado que acontece no amor-solidário com os
pobres”, co-autoria com H. Assmann).

A mudança de metáfora não é simplesmente escolha de uma outra imagem, mas pressupõe uma nova
visão da realidade e das possibilidades históricas. "Sal da terra e luz do mundo” revela uma nova
opção "estratégica” em relação ao êxodo. É claro que Jesus e o NT oferecem outros tipos de
metáforas, mas estou propondo essas reflexões como provocação para repensarmos seriamente a
metáfora do êxodo. Porque por mais que desejemos um mundo sem relações mercantis e mercado –
que sempre provocam distorções sociais –, não é possível construir outra sociedade viável sem
mercado e algumas outras instituições que existem no capitalismo. Vários delas existiam antes do
capitalismo e vão (ou podem existir) após a sua superação.

Em uma situação como a nossa, a de Império Global (extremamente amplo e complexo), talvez seja
interessante aprofundar a discussão sobre o uso de outras metáforas, como a do "sal da terra e luz do
mundo” para nossas ações e reflexões.

[Autor de "Sujeito e sociedades complexas”, Ed. Vozes; no twitter: @jungmosung].

Tarefas do Cristianismo de Libertação (V): para além


das Cebs?

Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião,
Universidade Metodista de São Paulo
Adital
No artigo anterior, eu propus repensar a metáfora do Êxodo que norteou uma boa parte do
pensamento teológico e estratégico do cristianismo de libertação nos últimos 40 anos. Neste artigo,
quero continuar a reflexão sobre esse assunto com algumas reflexões sobre as comunidades de base.
Durante 30 primeiros anos da experiência das Cebs, estas foram apresentadas como um modelo de
Igreja que supera o modelo de cristandade (aliança entre a Igreja e o Estado e a elite da sociedade) e
propostas como "um novo modo de toda Igreja (deveria) ser”. Eu penso que as principais
características das cebs, que as diferenciava do modelo "tradicional” da igreja católica eram: a)
relações interpessoais e comunitárias entre seus membros, possibilitadas pelo número menor de
membros e pelo incentivo de participação e diálogo; b) rompimento do clericalismo e a vivência de
uma igreja "povo de Deus”, onde o padre não era alguém especial, sagrado, mas todos eram cristãos
pelo batismo e padre (ou pastor, porque mesmo em menor número houve experiência semelhante no
mundo protestante) tinha uma função especial; c) a centralidade da Bíblia, substituindo o
"catecismo” como o meio principal de formação e de argumentação religiosa; d) abertura aos
problemas concretos da vida social, que trazia para dentro da cebs e da discussão religioso-teológica
temas econômico-social-político; e) a opção pelos pobres e articulação entre práticas pastorais e
movimentos populares e sociais como resultado da nova compreensão da missão: "construir” o
Reino de Deus e não mais aumentar o número de batizados e catequizados.

Tudo isso era resumido no próprio nome: comunidade (diferente de grandes e, muitas vezes, frias
paróquias) eclesial (centrada na Bíblia e na consciência da missão cristã) de base (formada por
pessoas da base da sociedade e da igreja lutando pela vida das pessoas que vivem na "base” da
sociedade).

Passadas dezenas de anos após o fervor, tanto dentro quanto fora da igrejas, em torno das cebs
,devemos reconhecer: foi uma novidade "revolucionária” na Igreja e também na sociedade. Apesar
das grandes conquistas, muitos de nós ficamos frustrados ao olhar por essa caminhada e ver hoje que
o "fogo” passou e parece que o velho modelo conservador venceu. Eu penso que uma boa parte desta
percepção se deve à metáfora do Êxodo.

Tendo como pano de fundo a expectativa da "passagem plena” de um modelo tradicional, vertical,
sufocante e desvinculado dos problemas reais da vida para uma Igreja que seria cebs, é claro que o
resultado final é decepcionante. Mas, se julgarmos os resultados a partir de uma outra metáfora, a do
"sal da terra (igreja)”, podemos ver que conseguimos muitas coisas, o jeito de a Igreja ser mudou.
Até mesmo a reação mais conservadora do interior da Igreja também teve que se adaptar e assumir
certas novidades das cebs.

Além disso, o enfraquecimento é também devido ao seu sucesso. Na medida em que as cebs fazem
diferença positiva na vida local, elas crescem e com o número maior de pessoas, as relações
interpessoais e comunitárias se enfraquecem. Mais, comunidades maiores "atraem” párocos,
enviados por bispos mais preocupados com o crescimento da igreja do que com RD. Párocos pensam
a partir do modelo de paróquia, (que não é problema quando só expressa o tamanho da comunidade)
que reintroduz o clericalismo, a diferença qualitativa (e não só de ministério) entre padre e o leigo.

As CEBs, como sal, deram mais sabor à vida de muitas pessoas na sociedade e nas igrejas, mas,
como sal, também se modificam e são modificados na realização da sua missão. É preciso deixar um
pouco de lado o saudosismo e pensar em novos modelos que possam hoje fazer o papel do "sal da
terra”. Novos modelos que mantenha o espírito de relações comunitárias, a centralidade da Bíblia (e
não a doutrina ou catecismo), inserção na vida social e a opção pelos pobres, dentro de um novo
marco de organização e funcionamento.
Comblim, na conferência publicada aqui na Adital, sobre evangelho e a atual situação da Igreja
Católica, pensava que o futuro da Igreja Católica está ligado aos leigos. E diante de bispos e padres
que não lhes permitem atuação relevante na sociedade em nome da fé, ele propõe que leigos/as
procurem formar "um sistema de comunicação, um sistema de espiritualidade, um sistema de
organização de presença na vida pública, na vida política, na vida social” que seja autônomo. Acho
que vale a pena pensar com profundidade esta sabedoria do nosso saudoso padre Comblin.

[Autor de "Sujeito e sociedades complexas”, Vozes. No twitter: @jungmosung].

Tarefas do Cristianismo de Libertação (VI): desafio da


espiritualidade

Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião,
Universidade Metodista de São Paulo
Adital
Em uma das aulas no curso de mestrado em teologia, em 1986, Hugo Assmann nos disse que se a
teologia da libertação perder a bandeira da espiritualidade para setores mais conservadores e
carismáticos será o seu fim. É claro que ele não falava do fim no sentido literal, mas da perda da sua
força social e eclesial, pois há teologias que sobrevivem por anos mesmo sem muito impacto na vida
das igrejas ou na sociedade. Hoje, tantos anos depois, depois de tantos debates e textos sobre as
causas do declínio da força e influência da teologia da libertação, das cebs e no sentido mais amplo
do próprio cristianismo de libertação, não é difícil reconhecer que Assmann tinha apontado para um
problema real.

Desde o início, os principais teólogos da libertação afirmaram que a TL é o momento segundo,


sendo que o primeiro é a prática de libertação e o momento "zero”, a experiência espiritual de
encontrar nos pobres a face de Jesus. Com o passar do tempo, foi se perdendo referência a este
momento "zero” e o discurso se tornou cada vez mais "árido”, marcado pelo tom sócio-político.
Mais do que isso, podemos dizer que a TL, mesmo que inconscientemente, acabou reproduzindo a
lógica teológica mais tradicional de pensar que tinha uma verdade (no caso aqui a libertadora) que
deveria ser transmitida (através da "conscientização” ou de cursos) às igrejas e ao povo.

Na medida em que se pensa que possui a verdade sobre o evangelho da libertação, passa a ter muita
dificuldade em lidar com pessoas e grupos que pensam diferente ou que expressavam a mesma
experiência espiritual (momento zero) com uma linguagem religiosa ou social diferente. Para
aqueles que crêem que têm a verdade, quem pensa diferente não pensa diferente, mas errado. Esta
postura, além de errada, é contraproducente, pois há, por ex, pessoas com linguagem espiritual-
religiosa carismática (católicos e protestantes) ou pentecostal (evangélicos e pentecostais) que
compartilham da mesma experiência espiritual e a mesma indignação ética frente a injustiças e
pobreza. E, ao invés de um diálogo e aliança, passa a ter uma relação de confronto ou de rivalidade.
É claro que muitos no cristianismo de libertação trataram do tema da espiritualidade. Temas como
"mística e revolução” e livros sobre espiritualidade a partir da Bíblia são provas disso. Mas algo
aconteceu e não conseguimos criar uma espiritualidade forte no interior das lutas sociais e políticas
ou uma espiritualidade com a marca da libertação. Justapomos o tema da espiritualidade e mística ao
lado de temas sócio-políticos, mas tivemos muita dificuldade em fortalecer a vivência e reflexão da
espiritualidade que está na origem e impulsiona as práticas de libertação de dentro. O que exige
reflexões e práticas espirituais (como retiros espirituais) que respondam aos problemas e perguntas
que surgem na luta. Tais como, frustrações diante de expectativas não realizadas, o mistério do mal
no nosso meio, como manter se fiel à causa dos pobres quando participamos do poder ou de
privilégios econômicos etc.

Eu penso que devemos retomar alguns dos princípios fundantes da TL. Gustavo Gutierrez nos dá
uma pista: "Seguir a Jesus define o cristão. Refletir sobre esta experiência é o tema central de toda
teologia sadia. [...]

A firmeza e a força de uma reflexão teológica estão, precisamente, na experiência espiritual que lhe
serve de respaldo. Esta experiência é, antes de tudo, um encontro profundo com o Senhor e sua
vontade. [...] Uma reflexão que não nos ajuda a viver segundo o Espírito não é uma teologia cristã.
[...] uma teologia que não se prende a um contexto de vivência da fé corre o risco de converter-se
numa espécie de metafísica religiosa, numa roda que gira no ar sem mover o veículo” (Beber do
próprio poço).

Fortalecer a espiritualidade de libertação que seja expressão da "vida espiritual” no interior das
práticas de libertação e construir diálogo e aliança com outros setores do cristianismo que expressam
a mesma experiência espiritual (momento "zero”) com linguagens e símbolos diferentes são
caminhos fundamentais para o futuro do cristianismo comprometido com a vida dos pobres e
oprimidos/as.

[Autor, com Hugo Assmann, do "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos
pobres”, Paulus. No twitter: @jungmosung].
Tarefas do Cristianismo de Libertação (VII): teologia
crítica e a nova geração

Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião,
Universidade Metodista de São Paulo
Adital
Não haverá um cristianismo de libertação sem que haja um pensamento teológico crítico que reflita
criticamente a experiência de fé e práticas sociais de libertação, além de criticar a idolatria que move
a sociedade atual. Muito já se escreveu sobre teoria ou um pensamento crítico, por isso, quero
mencionar aqui somente alguns aspectos de um pensamento teológico crítico que penso serem
importantes para o cristianismo de libertação.

O primeiro é a consciência de que o oposto da verdade não é o erro ou a falsidade, mas sim a
"injustiça dos homens que mantém a verdade prisioneira da injustiça” (Rom 1,18). Não estamos
falando aqui sobre a verdade em termos da ciência, que trabalha com o binômio "afirmação correta
X a errada”, mas sim em termos da "verdade que liberta”, no sentido da verdade que realiza o
sentido humano da vida, o que deveria ser, versus a mentira que mata.

Entendida a verdade desta forma, o critério fundamental não é mais a ortodoxia, que se preocupa
com a formulação correta da doutrina religiosa, mas a ortopraxis, a prática que realiza ou liberta a
verdade das injustiças e, portanto, da mentira que encobre os assassinatos e injustiças. Este tipo de
pensamento assume como uma das suas tarefas fundamentais o desvelamento e a crítica das
ideologias que encobrem a idolatria (sacrifícios de vidas humanas em nome de alguma instituição
elevada à categoria de sagrada, no caso do capitalismo neoliberal, o "mercado livre”). Por isso, como
diz Hinkelammert, citando Marx, no "imperativo categórico de lançar por terra todas as relações em
que o ser humano seja um ser humilhado, subjugado, abandonado e desprezado”.

Sem teologia(s) crítica(s), não há um cristianismo de libertação. E sem uma nova geração de
teólogos e teólogas que produzam esse tipo de teologia, também não haverá esse tipo de
cristianismo. Isso nos leva ao grande desafio hoje de formar a futura geração de pensadores críticos
– seja no campo da teologia ou nas outras áreas de conhecimento humano e social – que sejam
capazes de articular a experiência da fé, a sabedoria (ou a revelação) contida na tradição bíblico-
cristã e a análise crítica da realidade social hoje. Quem conhece um pouco da realidade dos
seminários ou faculdades de teologia, seja no mundo católico, protestante ou evangélico, sabe que
este tipo de teologia não goza de muito prestígio ou aceitação. O que não quer dizer que não haja
grupos que estão lendo e discutindo livros dessa linha.

Anos atrás, o saudoso José Comblin escreveu que atual geração, que é mais pietista-carismática, não
quer saber de teologia (séria), porque teologia faz mal ao pietismo ou ao carismatismo atual. Mas
que é preciso continuar escrevendo teologia para que as próximas gerações não tenham que começar
do zero. Eu não sei se essas palavras ainda valem; mas é verdade que livros de teologia mais crítica
estão vendendo bem menos e mesmo editoras antes bastante comprometidas com essa linha estão
relutantes em publicar livros desse tipo também por conta da pouca venda.

Livros devocionais (que não deixam de ter a sua função) são consumidos como se fossem de
teologia, levando os leitores e estudantes a perderem a dimensão crítica da teologia. Com isso, vai se
erodindo um dos pilares fundamentais de um cristianismo crítico, o seu pensamento teológico
crítico.

O cristianismo de libertação enfrenta um desafio geracional: a formação de uma nova geração de


pensadores críticos competentes e a produção de teologias e pensamentos cristãos críticos que
correspondam ao nosso tempo e à atual geração. Pois, a repetição de teologias e teorias que foram
críticas nas décadas de 1980 e 90 e a mera sistematização dos autores clássicos não cumprem mais a
função de teoria crítica e nem formará a nova geração.

Penso que é uma tarefa difícil, mas fundamental, que exige alianças e trabalho conjunto entre grupos
e instituições do campo do conhecimento e de formação teológica. Trabalho conjunto este que só
será possível se diferenças menores (e também certas rivalidades) forem deixadas de lado.

[Autor, junto com Hugo Assmann, de "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos
pobres”, Paulus].

Tarefas do Cristianismo de Libertação (VIII): ética e


auto-organização

Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião,
Universidade Metodista de São Paulo
Adital
Neste penúltimo artigo desta série, quero apresentar algumas reflexões sobre uns conceitos que têm
sido cada vez mais usados no campo das ciências econômicas e sociais: a auto-organização e auto-
poiese (auto-produção) de sistemas complexos. Não é uma tarefa fácil em um espaço pequeno como
este artigo, mas o meu objetivo é de simplesmente provocar debates e reflexões.

As principais teorias de transformação social elaboradas no mundo moderno têm como sua estrutura
fundamental a relação sujeito-objeto: há um sujeito de ação ou transformação (por ex., proletários ou
a burguesia como sujeitos históricos) e um objeto que recebe esta ação (por ex, a sociedade ou
alguma instituição). Mesmo que se reconheça que estes objetos possam opor certa resistência às
ações dos sujeitos, não se reconhecia neles a possibilidade de uma ação própria.

Neste sentido, não há muita diferença com teorias de transformação social do mundo antigo. A
grande novidade do mundo moderno foi a de substituir Deus pelo ser humano no papel do sujeito
que dirige a história. Por isso, quando setores do cristianismo de libertação (e também de outras
religiões que assumiram a luta social) assumiram o discurso de "construção de nova sociedade e da
história” ou "a construção do Reino de Deus” não tiveram muita dificuldade em dialogar com
ciências sociais modernas. A relação sujeito-objeto –um sujeito com uma vontade e com valores
morais e sociais corretos atuando para transformar o objeto– estava mantida; o único desafio era
compatibilizar os termos do discurso religioso com o discurso político moderno.

A tomada de consciência que os sistemas sociais complexos (também os biológicos e físico-


químicos) possuem propriedades de auto-organização e auto-poiese –isto é, esses sistemas se
organizam (pelo menos parcialmente) e geram novas propriedades sem intervenção de um ser
consciente e externo ao sistema– modifica profundamente a relação sujeito-objeto e, com isso, as
teorias de transformação social.

Isto não quer dizer que sistema social é algo mágico, mas que não há nenhum sujeito externo ao
sistema organizando-o. Seres humanos e grupos sociais que agem com a intenção de modificar ou
mesmo de manter o sistema social são partes do mesmo sistema. Além disso, suas ações produzem
efeitos intencionais e também não-intencionais que vão provocar reações e interações no interior do
sistema que, ao final, o resultado não é expressão da vontade de nenhum dos agentes.

Os neoliberais, no fundo, pressupõem este processo de auto-organização do mercado e tiram a


conclusão indevida de que o mercado sempre produzirá benefícios para todos. Em reação a isso, o
que não podemos é negar a existência de mecanismos auto-regulares do mercado e também de
outros sistemas sociais complexos.

Hugo Assmann, um dos primeiros teólogos da libertação assumir essas noções, disse que a questão
crucial na análise de sistema econômico, "não está em admitir que o mercado tem mecanismos auto-
reguladores, mas em saber até que ponto são includentes e/ou excludentes.” (Desafios e falácias:
ensaios sobre a conjuntura atual , 1991). Não podemos cair no erro de críticas metafísicas que só
enfatizam o aspecto excludente, sem perceber e valorizar também os aspectos de inclusão e de
eficiência na solução de questões econômicas e sociais.

Além disso, não podemos esquecer que sistemas sociais complexos só chegam a se constituir e
funcionar por um período longo na medida que operam neles mecanismos auto-organizadores. Neste
sentido, o desafio é sabermos conjugar consciência social e sujeito ético com a auto-organização do
mercado. Reconhecendo que, em sociedades amplas e complexas, não é possível organizar economia
sem relações mercantis.

Assmann expressa de uma forma muito clara esse desafio: "Aceitar, crítica mas positivamente, o
mercado, sem desistir de metas solidárias, exige uma reflexão nova sobre a própria concepção do
sujeito ético, individual e coletivo. (...) Trata-se de pensar conjuntamente as opções éticas
individuais e a objetivação, material e institucional, de valores, sob a forma de normatização do
convívio humano com fortes conotações auto-reguladoras.”( Metáforas novas para reencantar a
educação, 1996)

[Autor de "Sujeito e sociedades complexas”, Vozes; no twitter: @jungmosung]


Tarefas do Cristianismo de Libertação (IX):
pessimismo e esperança

Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião,
Universidade Metodista de São Paulo
Adital
Cheguei ao último artigo desta série. Não porque eu tenha esgotado o tema, ou a lista de desafios e
tarefas deste setor do cristianismo que compreende e vive a sua fé a partir da "opção pelos pobres” e
da perspectiva da libertação. Simplesmente porque uma série tem que acabar uma hora, e nove
artigos (em dez semanas) já são suficientes para paciência de qualquer leitor que está a seguindo. O
objetivo da série, mais do que dar resposta aos problemas, foi provocar debates e reflexões sobre a
crise ou enfraquecimento do cristianismo de libertação na América Latina (ou qualquer outro
adjetivo que queiram usar) e seu refortalecimento.

Devo confessar que neste momento estou com humor pessimista. Participei nesta semana no III
Congresso do Anptecre (Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação e Pesquisa em
Teologia e Ciências da Religião) e aproveitei para conversar com vários colegas e amigos/as sobre a
situação e o futuro do cristianismo de libertação. Talvez o cansaço desses três intensos dias de
debates e reuniões esteja interferindo, mas estou mais para pessimismo.

Estou relatando o meu estado de espírito aqui para apontar duas questões. Primeira é a necessidade
de pensarmos criticamente – seja em termos teológicos ou de mais sociológico – a partir da
experiência dos sujeitos ou das pessoas envolvidas com a luta. Nos últimos anos, a linguagem tem
mudado bastante, mas ainda eu sinto que a "linguagem estruturalista”, que enfatiza as questões
estruturais da economia, política e sociedade, tem prevalecido e, assim, as expectativas, angústias e
questões de fé das pessoas ocupam muito pouco espaço. É claro que não estou propondo uma
"subjetivização” da linguagem e das análises do cristianismo de libertação, mas resgatar um dos
princípios fundantes da teologia da libertação: o momento zero é o da indignação ética diante das
injustiças e sofrimentos dos pobres e vítimas das relações opressivas. A TL é ou deve ser uma
teologia que reflete criticamente a experiência de fé no meio de um mundo marcado pelo sofrimento
dos inocentes (cf Gutierrez, no seu importante livro "Beber do próprio poço”).

As análises mais estruturais nos ajudam a compreender os desafios e problemas das lutas de
libertação, mas elas não podem sufocar ou "empurrar” para um segundo plano as questões espirituais
das pessoas e das comunidades; muitos dos quais nascem no meio desta luta. Só para evitar mal
entendidos, por espiritual não entendo o que se opõe ao material ou social, mas a força que move as
pessoas, comunidades e sociedades em direção ao seu objetivo ou à sua utopia.

Segunda tem a ver com a postura que deve marcar a reflexão teórica que se pretende estar articulada
com movimentos sociais de "libertação”. (A palavra libertação vem aqui entre aspas porque penso
que é preciso fazer uma reflexão sobre os diversos sentidos que esta palavra foi adquirindo durante
os 40 anos do cristianismo de libertação.) Eu penso, seguindo a grandes autores, que a postura de
quem faz essas reflexões precisa ser mais pessimista do que otimista. Otimismo, normalmente
baseada mais em desejos do que fatos, leva a uma reflexão não muito crítica, que normalmente
agrada mais ao "publico” no primeiro momento, mas que traz conseqüências problemáticas a médio
e longo prazo.

Este pessimismo intelectual deve ser contraposta à atitude de esperança. Esperança é diferente de
otimismo, pois este parece ter razões para isso; enquanto que esperança é algo que se tem ou vive
"apesar de”.

Ao final deste artigo, posso dizer que o meu humor está menos negativo do que no início, mas
continuo meio pessimista com o futuro do cristianismo de libertação. Pelo menos na forma como eu
tenho experienciado e visto. Mas tenho esperança de que outras formas podem estar surgindo por aí,
formas essas que, por serem novas, não estão sendo compreendidas ou captadas pelas teorias e
conceitos "velhos” que ainda usamos para ler a realidade.

Enquanto isso, continuo fazendo o que posso para contribuir na constituição de um novo "bloco” de
cristianismo que seja profético e libertador. Eu penso que um dos caminhos possíveis é criar uma
articulação entre setores católicos, evangélicos e pentecostais que, meio à margem das tendências
majoritárias das suas igrejas ou tradições, estão querendo viver um cristianismo profético no meio
deste mundo.

Amém!

[Autor, com Hugo Assmann, de "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos
pobres].

Você também pode gostar