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Tendo a Análise de Discurso franco-brasileira como procedimento teórico-metodológico, este trabalho tem
como fim analisar a divulgação de dados estatísticos da sin/pandemia de Covid-19. Partindo do princípio de
que apesar da aparência de verdade os números não são transparentes, o trabalho analisa que, ao serem
divulgados, dados matemáticos podem silenciar nomes, apagar corpos e esconder a história das vítimas da
pandemia. Com base em Dias (2020), para analisar como dados (in)visibilizam sujeitos, e de Orlandi (2007a,
2007b), para embasar as discussões sobre o silêncio, o trabalho busca também estudar possíveis
contradições, pois ao mesmo tempo em que esses números não são transparentes, mostram a dimensão
desse acontecimento histórico e sujeitos mais vulneráveis, quando não incluídos nessas estatísticas,
também se tornam invisíveis para o Estado. Na análise, parte-se de um corpus constituído por três
reportagens, do Jornal Nacional, do O Globo e do Jornal Hoje, de 17 de março e de 8 e 19 de agosto de
2020, para investigar como a mídia tenta dar nomes, rostos e histórias às vítimas, mas nem sempre esse
feito é possível, pois números ainda apresentam uma opacidade por ocultar dramas e vidas.
INTRODUÇÃO
Acontecimento histórico de proporções mundiais, a crise sanitária da Covid-19 tem sido
considerada por muitos cientistas como uma sindemia. Conceito ainda pouco usado, sindemia
(neologismo que une as palavras sinergia e pandemia) foi cunhado por Merrill Singer na década de
1990. Médico e antropólogo, Singer usa o termo para denominar um contexto em que pelo menos
duas doenças passam a interagir e a provocar danos mais intensos do que o simples somatório de
ambas e esse somatório, por sua vez, atua em um contexto socioambiental e econômico marcado
pela desigualdade (PLITT, 2020).
No caso específico da crise atual, além da própria Covid-19 – causada pelo vírus Sars-CoV-
2 –, outras doenças não transmissíveis estariam relacionadas, configurando a sindemia. Entre
essas, estão as chamadas comorbidades, doenças preexistentes que se agravam e concorrem para
a morte das vítimas, e o adoecimento mental, fruto do isolamento, da impossibilidade de se viver
o luto, etc.2 Essa relação sinérgica, ‘aliada’ a uma conjuntura econômica, social e ambiental que
agrava uma grande desigualdade social já existente, faz com que a crise sanitária seja ainda mais
grave, configurando a sindemia.
A EPIDEMIA EM NÚMEROS
Desde que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o surto de coronavírus
era uma pandemia, em 11 de março de 2020, os dados estatísticos passaram a fazer parte do
cotidiano dos brasileiros, entrando nos lares por meio da mídia. O próprio termo pandemia traz
em seu bojo o sentido de quantidade e de dados matemáticos e estatísticos. Do grego
“pandēmía,as no sentido de ‘o povo inteiro’ (PANDEMIA, 2021b), o termo, próprio do discurso da
epidemiologia, faz parte de um sistema de classificação que inclui também surto e epidemia, os
quais, além dos aspectos numéricos, abrangem ainda aspectos geográficos (PANDEMIA, 2021a).
Considera-se pandemia quando ocorre o aumento de contágios de determinada doença
em diferentes países e continentes “com transmissão contínua entre humanos, seja ascendente ou
persistente” (PANDEMIA, 2021a, n. p). Ou seja, ao se dizer pandemia, coloca-se em circulação
sentidos de amplidão geográfica, de grande gravidade e de um alto número de vítimas. Mas,
apesar de os dados serem necessários do ponto de vista da epidemiologia e para dar uma
dimensão da crise sanitária, no caso da Covid-19 não são suficientes para demonstrar a dimensão
do drama pelo qual os sujeitos são impelidos a viver, sobretudo os mais vulneráveis. Essa falsa
transparência dos números escamoteia o fato de que a crise sanitária faz parte de um complexo
próprio do capitalismo.
Como destacam Figueira Sobrinho e Garcia (2021), com base em Mascaro (2020), o
surgimento ou agravamento de mazelas sociais em função da pandemia, como o desemprego,
habitações impróprias, precariedade do transporte público – situações que favorecem
transmissões da doença – são fruto das condições do modo de produção capitalista. Essas
condições, que justificam o uso do termo sindemia, são ainda mais alarmantes se levarmos em
consideração o gênero e a classe: de 1 de março a 31 de julho de 2020, o índice de mulheres
negras mortas por Covid era de 140 a cada 100 mil habitantes, contra 85 mortes por 100 mil entre
as brancas (id., ibid.). Todo esse contexto, mais uma vez, escamoteia, silencia e promove
apagamentos dessas mulheres, algo típico do conceito de “cuidado perigoso”, estudado por
Pimenta (2020).
[…] toda pandemia é racializada, não apenas aqueles que morrem são mais pretos
do que brancos, bem como aquelas que cuidam são mais pardas e pretas do que
brancas. Além disso, uma pandemia tem rosto de mulher não pelo fato de serem a
maioria das cuidadoras na área da saúde, são também as cuidadoras no âmbito
doméstico […] (PIMENTA, 2020, p. 16).
A especificidade brasileira inclui ainda o fato de muitas dessas mulheres serem obrigadas
a cuidar daqueles que a agridem3 e a deixar suas famílias para cuidar de outras, aumentando o
risco de adoecimento (o “cuidado perigoso”), como fazem as diaristas e as empregadas
domésticas.
3 Em 2020, uma a cada quatro mulheres maiores de 16 anos disse ter sofrido algum tipo de violência ou agressão no
país, o que corresponde a 17 milhões de mulheres. O índice é maior entre as mulheres negras (28%). Cerca de 50%
das agressões aconteceram em casa, sendo que 73% dos agressores eram íntimos das vítimas (GONÇALVES, 2021).
oficialmente a primeira morte no Brasil, que ocorrera um dia antes. Essa confirmação é a pauta da
reportagem exibida pelo JN.
Quando os dois materiais seguintes foram postos em circulação (8 e 19 de agosto de
2020), o Brasil já vivia seis meses de sin/pandemia. Exatamente em 8 de agosto, o país
ultrapassava a marca de 100 mil mortos pela doença. Um dia antes da exibição do segundo
material, era rompida a marcada dos 110 mil óbitos – ou seja, foram registrados dez mil óbitos em
apenas dez dias.
Na época em que esses materiais foram colocados em circulação, o país havia passado
pela saída de dois ministros da Saúde, mesmo em meio à crise sanitária: Luiz Henrique Mandetta e
Nelson Teich. No lugar de Teich, assumiu interinamente o general Eduardo Pazuello, empossado
definitivamente apenas em 16 de setembro, quando o país já superava 134 mil mortes.
Na análise dessa SD, percebemos inicialmente que, embora haja dados matemáticos, não
há uma informação importante: o nome da vítima. Quem seria o primeiro paciente? Quando há
referência a ele, apresentam-se mais dados numéricos “62 anos”. Em outros termos, a vítima, que
até então seria a primeira a vir a óbito no país em razão do Sars-CoV-2, não tinha um nome ou
história para as autoridades e para o JN. Isso tornaria uma constante na cobertura midiática,
independentemente do meio:
Entre gráficos, formas e funções matemáticas, nos habituamos aos números e aos
cálculos, seja para sobrevivermos, seja para contarmos os mortos. Mas se a
matemática ajuda a contar os mortos ela diz pouco sobre os mortos que contam
(DIAS, 2020, p. 78).
Fato discursivo produzido nos limites de FDs distintas, a censura, da forma como é
concebida por Orlandi (2007a) – ou seja, aos olhos da AD –, é compreendida como uma interdição
imposta aos sujeitos na inscrição destes em determinadas formações discursivas. Com isso, a
identidade do sujeito é afetada como sujeito-do-discurso, pois, como define Pêcheux ([1975]
2014b), a identidade resulta de processos de identificação conforme os quais esse tem se se
inscrever em uma ou outra formação discursiva (ORLANDI, 2007a, p. 50).
Em outros termos, se, com base em Pêcheux, consideramos como formação discursiva
aquilo que, em uma dada formação ideológica, ou seja, em dadas posições e conjunturas,
determinadas pela luta de classes, “determina o que pode e deve ser dito” (PÊCHEUX, 2014b, p.
147). Do contrário, a censura vem estabelecer o que não deve e não pode ser dito quando o
sujeito fala (ORLANDI, 2007a, p. 50).
Aplicando ao nosso objeto de análise, inferimos que, ao não trazer nomes, histórias da
vida, ao não dizer sobre o sujeito, as autoridades de saúde e o próprio JN impedem que sujeitos
ascendam a determinadas FDs, afetam a inscrição desses a dadas FDs. Há, portanto, um silêncio
local (a censura), aqui caracterizada mais por aquilo que ela produz (a não inscrição dos sujeitos
em determinadas FDs) do que pela sua forma de manifestação. Aliado a esse silêncio local, o JN
utiliza o outro tipo de política do silêncio, o silêncio constitutivo, o qual demonstra que para dizer é
preciso não-dizer, como veremos a seguir.
Em SD1, ao dizer “nesse hospital particular”, o repórter não menciona qual hospital, mas
não preciso. É possível saber, pelas imagens, tratar-se do Sancta Maggiore, unidade frequentada
por pacientes de determinado poder aquisitivo, em um contexto de classe média. Em outras
como refrão: “Se números frios não tocam a gente. Espero que nomes consigam tocar”.
palavras: apesar de não dizer, o jornal informa que a vítima não é um trabalhador das classes
menos favorecidas. Esse não-dito é reforçado na mesma SD por meio do dizer “a poucos
quarteirões da Avenida Paulista”.
Uma análise horizontal, apenas conteudística, poderia levar à interpretação de que o
repórter busca, ao mencionar o nome da avenida, localizar geograficamente o telespectador. No
entanto, não podemos nos deixar levar pela suposta transparência da língua, uma vez que “o
sentido, como efeito da relação entre língua e discurso, é ideológico” e por isso não reside na
palavra, mas fora dela (VINHAS, 2020, p. 257).
Quando o repórter diz Avenida Paulista, nesta condição de produção específica, há um
deslizamento de sentido, pois Avenida Paulista não possui apenas o sentido de via, de avenida,
mas de centro financeiro do país. Severiano, ao dizer que o hospital está próximo do principal
centro financeiro do país, o diz justamente para marcar essa diferenciação: de que a vítima
pertence a uma elite.
Avenida Brasil, nesse caso específico, deve ser tomada não apenas como uma indicação
geográfica ou toponímica. Do ponto de vista da AD, há ali um processo de metaforização que faz
com que o sentido seja outro: “[…] o sentido é sempre uma palavra, uma expressão ou uma
proposição por uma outra palavra, uma outra expressão ou proposição […]”, nos ensina Pêcheux,
(2014c, p. 239, grifos do autor).
Esse processo de metaforização (“meta-phora”), caracterizado por relacionamento,
superposição e transferência em que elementos significantes se conflitam e ganham sentido, não é
determinado anteriormente pela língua, numa relação entre o léxico (o significado) com a sintaxe
(a função). O sentido existe nas relações de metáfora. Relações essas “das quais certa formação
discursiva vem a ser historicamente o lugar mais ou menos provisório: as palavras, expressões e
proposições recebem seus sentidos da formação discursiva à qual pertencem” (PÊCHEUX, 2014c, p.
240). Concluindo a análise, apontamos que ao substituir o nome, o rosto, a história daquele que,
até então, seria o primeiro brasileiro a morrer de Covid-19, tanto as autoridades de saúde ouvidas
pelo JN quanto o próprio telejornal procederam a uma política do silêncio: tanto em sua categoria
local (censura) quanto constitutiva (não-dito).
Mas, como citado anteriormente, o oposto também ocorre: ao não serem incluídas nas
estatísticas, vítimas da Covid-19 não são reconhecidas como tais pelas autoridades. Esse processo,
como tentaremos mostrar a seguir, também se configura em um efeito do silêncio e atinge
sobretudo os sujeitos em vulnerabilidade social.
Além de perceber com mais nitidez como o silêncio limitou os sujeitos da família de Thaís
no percurso de sentidos, essa SD permite ainda identificar como os contextos das mortes da
senhora, moradora da periferia, e do senhor, internado a “poucos quarteirões da Avenida Paulista”,
mostram como a sin/pandemia de Covid-19 apresentou faces distintas, de acordo com a região em
que as vítimas viviam ou eram atendidas. No primeiro caso mostrado, o resultado do exame veio
um dia após a morte. No segundo, quarenta dias depois e sem que a família fosse informada – o
que só aconteceria quatro meses depois.
Voltando à reportagem de O Globo, temos as seguintes SDs:
SD 3: No início, a pandemia do coronavírus no Brasil foi associada principalmente
às camadas mais ricas da população, sobretudo entre aqueles que haviam visitado
a Europa recentemente. A confirmação da morte de Rosana como a primeira do
país revela a real face da pandemia no Brasil e seu peso entre os mais pobres […].
SD 4: — […] a desigualdade foi determinante para aumentar a vulnerabilidade à
doença no Brasil. SD 5: Mas a disparidade não surgiu com a pandemia. Ela foi
sempre constante em espaços segregados, em que há muito tempo a população
sofre com problemas diversos [...] (MARTINS; ROXO, p. 2021).
Como sabemos, os grandes veículos pertencem a grandes grupos, muitos deles familiares,
como as organizações Globo, que não têm interesse em contribuir para a resolução das questões
socioeconômicas não por essas serem de difícil solução, mas porque sua resolução implica em
mudanças no próprio sistema capitalista. No entanto, na análise do corpus, constamos que, se num
primeiro momento houve uma política do silêncio, silêncio constitutivo e silêncio local, o que
resultou na invisibilização de um sujeito, num segundo momento esse silenciamento foi
sobreposto pelo O Globo e pelo JH.
Ao dar nome, rosto e uma história à dona Rosana, ambos meios midiáticos promoveram
uma singularização desse sujeito, possibilitando sua inscrição na história, ainda que tardiamente.
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