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João Paulo dos Santos

O Outro Lado da
Ponte
Buttevant

Benjamin olhou pela janela do seu quarto tentando observar se havia


movimentação na rua logo abaixo. Havia nove meses que morava em Buttevant, ou Cill
na Mullach em irlandês, e poderia jurar que já tinha decorado a rotina do lugar e de
seus quase dois mil moradores. Não que se prestasse a acompanhar a vida alheia,
mas quando se é desconhecido (para não dizer ignorado), não se resta muito a fazer a
não ser observar. Na verdade, achava excelente passar despercebido, não incomodar
e não ser incomodado parecia um ótimo jeito de levar sua nova e pacata vida.
Seu quarto era um cômodo que ligava a parede de uma casa a de outra,
suspenso sobre uma ruela, formando uma espécie de portal bizarro, meio medieval.
Apesar de até charmoso, Ben sempre pensou que provavelmente era um erro de
arquitetônico. Havia uma janela curta e larga em cada parede, de forma que enxergava
os dois sentidos da via que passava abaixo dele. As vigas da estrutura estavam à
mostra e não havia forro, deixando as telhas de madeira expostas e propensas a
encher-se de aranhas e outros bichos. De móveis, só uma cama de solteiro, um criado-
mudo, um armário sem portas (aonde havia pendurado uma cortina) e uma mesa com
uma cadeira. A porta de acesso ao quarto era externa, na parte detrás da casa, ligada
ao quintal por uma escada de metal que descia em espiral em um ângulo absurdo.
Tinha a impressão que mais dia menos dia cairia dali e ficava imaginando se quebraria
algum osso ou passaria vergonha. Ambos provavelmente. Ben entrava muito pouco na
pensão, geralmente só para o jantar e para tomar banho. As vezes ficava conversando
com a Sra. Elsa McGrory, dona da pensão, mas eram momentos raros.
Desceu a rua divagando sobre dores de tombos e vergonhas. A cidade era
extremamente organizada. Quase todas as construções eram do século XIX ou
anteriores. Janelas estreitas e compridas, pequenos jardins na frente. Com exceção
das construções a beira da rodovia que cortava a vila de Buttevant, a maioria das
casas era de condomínios relativamente novos. Boa parte delas conjugadas e
praticamente idênticas, diferenciadas pelas portas que se alternavam em marrom-
escuro e branco. Era algo que beirava o monótono. Mas não para ele, tudo isso lhe
trazia uma sensação ótima. Normalmente acordava bem cedo, para andar ou correr
um pouco, mas com o frio chegando, ficava na cama até mais tarde. Adorava o outono
com seu vento frio, a coloração cinza do céu lhe trazia uma espécie de paz... para Ben,
era a melhor estação do ano. Caminhando, chegou a uma das ruas comerciais da
cidade, que seguia o padrão das ruas residenciais, com prédios bem parecidos Abriu a
porta do Hughes’s Café, e logo o frio do lado de fora foi trocado pelo calor do Café. O
cheiro de salsicha frita e bacon invadiu suas narinas. O local era modesto, minúsculo,
mas condizente com o tamanho da cidade. A decoração do local era algo que Ben
gostava. Diferente dos Cafes das capitais e grandes cidades europeias aonde já havia
morado ou conhecido, esse ali tinha um clima familiar, onde você realmente se sentia
em casa. Talvez a decoração modesta desse essa impressão. Basicamente era
composta por fotos de alguns pontos da cidade, igrejas, pontes, mosteiros, cemitérios,
monumentos de pedras, castelos. Mas as que ele mais gostava eram as fotografias da
Owl’s Bridge, uma ponte de pedra que os moradores afirmavam ser medieval. Ben a
achava magnífica, mas ainda não a conhecia, já que, pelo que sabia, ficava mais para
o interior, perto das fazendas, em uma propriedade particular de gente pouco amistosa.

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A maioria das mesas estava ocupada, por procurou seu lugar de costume no
canto do estabelecimento, ao lado da janela, mas estava ocupado por um casal
aparentemente de fora, que debatia alto sobre os problemas da União Europeia.
Debater era ser generoso, na verdade estavam quase brigando. O marido notou Ben
olhando para eles e tratou de baixar a voz. Esse se dirigiu ao balcão, pressentindo que
essa não seria a única interrupção da rotina do dia. A garçonete nem se deu ao
trabalho de perguntar o que ele queria, olhou o jovem por um instante e retirou-se para
a cozinha, voltando pouco depois com um prato de salchichas, pão preto e ovos fritos.
Fazia uns três meses que ela havia desistido de por feijão no seu prato, depois de
ignorar por outros seis meses que ele nunca os comia.
Quando já terminava a refeição, um garoto magrelo de cabelos vermelhos sentou-se
na banqueta ao lado e apoiou os braços no balcão. Tinha oito anos, mas o aspecto
físico era de alguém mais jovem. Ou mais doente. Ben nunca perguntou.
____ Terminei o desenho - disse o menino -, e ficou melhor que o de ontem.
Os olhos do menino fitaram o caderno em sua mão e voltaram para encarar os do
rapaz.
____Se isso for verdade, acho que você deve ser o melhor desenhista do
país, o de ontem estava muito bom, o melhor que você já fez. Acredito que irá tirar uma
ótima nota, jovenzinho.
O menino esboçou um grande sorriso.
____Tomara que a Sra. Marthil também ache -disse o menino balançou a
cabeça- ...este é melhor, demorei a tarde inteira para terminar. E aprendi a fazer
sombras, nos outros não tinham sombras.
____Deixe-me ver então... hmmm... é, é muito bom...mas não sei se está
melhor que o de ontem...estou brincando menino, não precisa fazer essa cara – disse
Ben devolvendo-lhe o caderno -, você tem um talento, e melhora a cada dia. Que
pensa em fazer quando for adulto?
____Não sei... a professora perguntou isso para nós...mas eu não sabia...eu
disse maquinista porque meu pai é maquinista. O ruim é que ele passa muito tempo
longe de casa.
____Deve ser um bom trabalho. Mas você desenha bem, aproveite isso –
disse o rapaz, dando um tapinha na cabeça do menino.
____Oliver! – disse irritada a atendente por detrás do balcão -, deixe o rapaz
em paz. Vá ajudar a mamãe lá dentro.
____ Ele não me incomoda... – o olhar de reprovação da atendente fez Ben
engolir o resto da frase - melhor obedecer a sua irmã.
Oliver pegou o caderno, deu uma olhadela no rapaz e foi para os fundos. Ben
pagou a conta e saiu para a rua novamente. Andou vagarosamente por mais alguns
minutos e atravessou a rua, parando em frente a prédio bege, que necessita
urgentemente de uma pintura. O prédio da Sociedade Literária de Buttvant. Ou a
biblioteca para a maioria. Destrancou a porta com a chave que carregava consigo e
entrou. A biblioteca estava curiosamente quente. Era curioso porque a construção era
bem grande para os padrões da localidade, de forma que era difícil ficar quente lá
dentro. Na parte de baixo havia um hall, circundado por pequenas e quadradas mesas
de estudo. No final desse espaço ficava o balcão no qual Ben trabalhava. Atrás dele
estavam filas de prateleiras de livros, somando onze no total, preenchidas pelos dois
lados. Na parte superior ficava outras prateleiras igualmente cheias, numa espécie de
mezanino, que cobria metade do piso inferior, de modo que era possível enxergar o
hall com as mesas lá de cima. O estilo vitoriano da biblioteca dava um ar de seriedade

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e austeridade, uma sensação mórbida até. O papel de parede escuro combinava com
a madeira trabalhada que enfeitava as colunas a vista. Dois grandes vitrais com temas
medievais na parte frontal davam um toque gótico àquele local. Era inegável que era a
construção mais bela da cidade, depois das igrejas. Pelo menos na opinião de Ben.
Na parede à esquerda do balcão havia duas aberturas de portas. A primeira,
mais à frente, levava a uma sala pequena, tapetada, aonde existia um sofá e algumas
poltronas posicionados ao redor de uma lareira. Na segunda abertura havia uma
escada estreita, de madeira escura, que levava até o terceiro piso, sem passar pelo
segundo. A escada que levava ao segundo ficava ao fundo das prateleiras do primeiro
piso.
Havia pilhas de livros no balcão de Ben, nas mesas de leitura, cadeiras, pelo chão e
até nos batentes das janelas. Boa parte das prateleiras da parte inferior estavam
vazias, algumas limpas, outras com uma grossa camada de poeira, acumulada ali há
uns bons anos. O trabalho de catalogação se mostrava mais complexo do que ele
supunha. Havia tanto tempo que ninguém mexia nos livros, que alguns entraram em
processo de deterioração por umidade e por traças, a exceção, claro, dos best-sellers,
dos livros de estudo e dos clássicos cuja leitura na escola era exigida. Organizar tudo
isso não estava sendo lá muito empolgante, tinha esperança de encontrar algumas
relíquias no meio da velharia, mas logo abandonou essa ideia. Mas Ben adorava
aquele trabalho. Adorava os livros, por muito tempo Don Quixote, Sherlock, Tom
Sawyer, Robinson Crusoé, Bilbo e outros foram seus melhores amigos. Encontrava na
literatura não uma distração ou um hobbie, mas sentido. A ficção pode substituir a
realidade de maneiras maravilhosas. Pelo menos para ele.
Depois de uma rápida olhada nas anotações do dia anterior, subiu ao terceiro
piso. Esse piso era dividido em uma grande sala cheia de armários, onde ficavam
documentos antigos da cidade, registros escriturários, jornais velhos, entre outros
papeis que, nesses meses que trabalhava ali, não tivera curiosidade alguma de olhar.
Na verdade ainda não tinha. No final dessa grande sala havia um corredor, com
algumas portas que levavam a salas menores e um banheiro, o único da construção.
As outras salas estavam abarrotadas de toda a sorte de entulhos, móveis antigos,
equipamentos ultrapassados e até umas chapas de metal que Ben julgava ser de
algum fogão antigo que nunca foi descartado. Procurava não mexer muito naquelas
coisas, pois o Sr. Griffiths, o bibliotecário que o precedeu, disse que algum dia toda
essa tralha iria compor um museu da paróquia.
O jovem desconhecia qualquer projeto para o tal museu, mas não quis
importunar o Sr. Griffiths com isso, afinal, ele aparentava ser uma excelente pessoa.
Alto, magro, nariz fino e comprido, recurvado, óculos meia-lua e cabelos
impecavelmente penteados para trás com uma barba bem feita compunha a aparência
desse senhor. Apesar do rosto sempre austero, reforçado pelas sobrancelhas negras
em contraste a barba e cabelos brancos, era de uma animosidade ímpar. Além de
tudo, Ben se identificava com ele pela paixão pelos livros. O velho já tinha lido todos os
livros canônicos da literatura irlandesa e inglesa e o jovem suspeitava que já
conhecesse uns dois terços de todos os clássicos da literatura universal. Na faculdade
não teve contato com um professor que tivesse o conhecimento crítico e analítico que
o velho bibliotecário daquele pacato lugarejo tinha. Apesar de não mostrar afetividade,
Ben gostava muito do velho, aprendeu a gostar mais dele em dois meses de
convivência do que da maioria das pessoas que conviveu por anos.
Depois que pegou as folhas que precisava, Ben desceu as escadas
novamente, decidido a concluir a metade do trabalho naquele dia. Tinha receio,

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contudo, de terminar aquilo muito rápido. Embora estivesse gostando da vida simples e
tranquila, detestava a ociosidade. Às vezes se perguntava se era isso ou se na
verdade tinha medo que sobrasse tempo demais para pensar. Terminou de preencher
um lado inteiro de uma prateleira com livros sobre agricultura e botânica, havia cabido
perfeitamente. Na verdade era o que ele pensava. Quando voltou ao balcão, lá estava
um exemplar do ‘Tratado sobre a criação de ovelhas”, de H.W. Smith. Olhou para o
livro e para a prateleira e viu que não haveria maneira de colocar aquele livros lá...quer
dizer, não havia espaço, estava tudo tão perfeitamente preenchido, que colocar um
livro por cima dos outros quebraria aquela harmonia tão perfeita. Ben ficou divagando
nisso por uns bons dois minutos, quando decidiu colocar o livro no que chamou de
arquivo, que nada mais era do que uma portinha no balcão onde colocava os livros
deteriorados ou que ainda não decidira aonde guardar. Apanhou uma pilha de livros
ainda por catalogar e retornou ao serviço.
O som do sino da porta o interrompeu. Olhou para ver quem era e ficou um
tanto surpreso. Era Victoria Hughes, a atendente, filha da Sr. Hughes, dona do café em
que ia todos os dias. A surpresa se deveu ao fato de que, em nove meses que estava
na cidade, essa era provavelmente a primeira vez que a via em um lugar que não fosse
à igreja ou o café, e a única vez que estava sozinha. Victoria era uma moça de beleza
peculiar. Ben já havia pensado nisso e chegou à conclusão de que ela não era
nenhuma modelo, mas que algo em seus traços delicados e gestos firmes atraiam a
atenção do rapaz. Dele e dos outros na cidade, pelo que ouvira em algumas conversas
no café, aonde descobriu, inclusive, que era mais fácil sair com todas as garotas em
um raio de cinquenta quilômetros do que sair com ela. A moça entrou na biblioteca e
caminhou até o balcão onde Ben estava trabalhando.
____Bom dia... Benjamin?
____Bom dia Srta. Hughes.
Ela olhou com estranheza, talvez nunca tivessem se dirigido a ela com esse pronome
de tratamento.
____Só Victoria está ótimo – respondeu a garota. Preciso de livros que
contem a história da Escócia. De nível fundamental, é para meu irmão.
____ Quer versão da história você quer?
____ Como assim?
____ Acredite, há uma enorme diferença entre os livros escritos por irlandeses
dos livros escritos por escoceses. Deve ter alguns com a visão inglesa...
____ É melhor a visão irlandesa.
____ Tenho esses aqui... tem esse também... – Ben colocou alguns volumes
em uma mesa. Seu irmão é inteligente, esse é um pouco avançado, mas acho que
não será problema para ele.
____ Inteligente? Não sei, ele é esperto, isso é.

___ Pode ser, mas é inteligente também, além do talento nato para o desenho.
Na verdade é o garoto mais inteligente que já conheci com a idade dele.
____ Acho que você não conheceu muitos garotos da idade dele então. Mas
a inteligência é de família, acredite – respondeu Victoria e dessa vez com um sorriso.
____ Eu não duvido – respondeu Ben tentando parecer simpático. Os livros
estão aqui, qualquer coisa, é só chamar.
Victoria logo se debruçou sobre eles, disse que não levaria os livros por que seu irmão
não leria. Preferia ela relembrar tudo e explicar para ele. E assim foram até o meio-dia.
Ela perguntou se não haveria problema de voltar a tarde e diante da resposta negativa,

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voltou. Ben continuou a catalogação dos livros. De vez em quando dava uma olhada
para a moça, que parecia extremamente concentrada. Tateou a pilha de livros abaixo
do balcão sem tirar os olhos de sua folha de anotações, mas o livro que sua mão
encontrou era pesado demais. Olhou para baixo e viu que não era um livro qualquer, a
julgar pela aparência. Tinha um formato diferente, era maior do que o padrão dos livros
da categoria que estava separando, sem dúvida estava no lugar errado, era mais
parecido com uma bíblia do que com um guia de cultivo de hortaliças. Bem olhou que
os cortes superior e inferior eram de um prateado pálido, e as páginas eram
aparentemente grossas. A capa sem dúvida era de couro cozido tingido de preto, era
possível ver e sentir um leve relevo, que ora prateados como as páginas, ora mais
escuros que o couro, mas devido à poeira, não conseguia visualiza-lo. No final da capa
havia uma extensão até a parte de trás, como um cinto, aonde se prendia em um fecho
metálico redondo, com os mesmos relevos da capa, que, aliás, eram parecidos em
toda a parte externa do livro. Na lombada havia uma faixa de metal, onde estava a
gravação, mas Ben não conseguiu ler. Procurou uma maneira de abrir o fecho, mas
não conseguiu. Não quis forçar para não estragar o livro.
Estava tão distraído com o livro que não percebeu que Victoria estava ao seu lado,
olhando com curiosidade para o empoeirado livro em suas mãos. Perguntava-se há
quanto tempo ela estava ali.
____Desculpe-me, onde fica o banheiro ... e por curiosidade, que livro é esse
que você tem nas mãos? Ah, me desculpe por vir aqui para trás, deveria ter te
chamado.
____Não tem problema – respondeu ele -, quanto ao livro, não faço ideia do
que é, estava misturado entre alguns de botânica e cultivos.
____Posso ver?
A moça pegou o livro e olhou com cuidado. Virou-o em todos os ângulos, repetindo
esse gesto pelo menos três vezes. Foi até perto da janela, de onde entrava a luz do sol
de fim de tarde. Observou o livro sob aquela luz por uns bons dois minutos, depois
retornou para junto do rapaz.
____Isso aqui precisa de uma ferramenta para ser aberto, uma chave melhor
dizendo. Está vendo esse orifício aqui? Aqui vai a chave, com a luz do sol dá para ver
o que parecem engrenagens minúsculas ali dentro.
O rapaz olhava para ela agora com mais curiosidade do que para o livro. Ela
percebeu isso e enrubesceu um pouco.
____Impressionante, eu sequer percebi que havia esse buraco aí. Na
verdade ainda não consigo ver essas engrenagens...-disse, forçando a vista o máximo
que podia.
____Você é um péssimo observador então – respondeu Victoria com
franqueza.
____Talvez... mas você disse que é preciso uma chave para abrir? Deve ser
minúscula então.
____Sim, olhe aqui – apontou para um buraco muito pequeno, camuflado
nos ornamentos de uma possível tranca.
Ben foi até sua mesa e pegou um clip de papel. Desentortou-o e dobrou a ponta. Com
a ajuda de outro clipe tentou enfiá-los no orifício, mas era muito pequeno, mal cabia um
clipe.
____Não consigo pensar que tipo de ferramenta caberia aí.
____Eu sim – disse Victoria com um brilho malicioso nos olhos -, você tem
compromisso amanhã à noite?

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____Hã, acho que não...
____ Perfeito, oito horas na minha casa . Sabe onde é né?
____Hã..
____Bom, te explico amanhã durante o café. Vai tomar café no Hugue’s né?
Ótimo. Agora preciso ir que já está tarde. Cuide desse livro okay? Não te perdoarei se
abri-lo sem mim! – o rosto dela estava radiante, e dizendo isso saiu apressada para a
rua.
Ben fitou o livro, colocou-o na mochila e saiu
Chegou à pensão na hora do jantar. Ainda estava se acostumando com o
sabor da sopa de batatas feita pela Sra. McGrory,. Ben supunha que ela tivesse seus
70 ou 80 anos, mas era difícil definir, embora ela vivesse reclamando da saúde, tinha
uma disposição de dar inveja. Era uma mulher gorda e robusta, mas incrivelmente
vaidosa. No tempo que estava ali, nunca à vira sem maquiagem ou mal vestida.
Conversar com ela era uma experiência interessante, quase cômica. Pouco saía da
pensão, mas era impressionante como ela sabia tudo o que ocorria na cidade. Por
vezes ela contava acontecimentos de sessenta anos antes, citando nomes e mais
nomes, como se o rapaz conhecesse todos. Mesmo sem ter a menor ideia do que ela
estava falando, ele fingia atenção até onde podia, ao ponto de desconfiar que já
soubesse identificar algumas pessoas que apareciam nas histórias dela.
Já no seu quarto, Ben preparava-se para se deitar. Na verdade não estava com sono.
Olhou para a pilha de livros no criado mudo ao lado da cama, mas não se sentiu
tentado a ler nenhum. Então se lembrou do livro que achará na biblioteca. Lembrou-se
da empolgação da filha da Sra. Hugues Victoria.. Fazia tempo que sua rotina não
mudava e ainda não sabia se isso era algo bom ou ruim. Se socializar incomodava.
Pensando na moça e no livro negro, adormeceu.

O Velho

“Chegarei um pouco mais tarde”. A voz de Victoria fez com que Bem se
desconcentrasse do prato de café da manhã de comia rapidamente, pois acordara
atrasado naquela sexta-feira.
____Claro, – respondeu o rapaz, calmamente - te espero na biblioteca.
____Para ser sincera, só poderei ir depois do jantar... meus avós vieram nos
visitar.
____Podemos marcamos para outro dia – disse Ben, cuja curiosidade pelo
livro já diminuirá bastante.
____Não, não, vamos visitar alguém e esse “amigo” não costuma receber
visitas, será difícil marcar para outro dia... e bem, meus avós dormem cedo. Só
escutarei o vovô reclamar do clima da Irlanda, dos preços e do povo, como todo inglês
que se prese. Você sabe onde eu moro?
____Não exatamente.
____No acesso 31, uma casa de porta branca, é a única de porta branca da
rua. Você poderia estar lá pelas oito da noite?

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____Posso.
____Ótimo, estarei esperando. Ah, não se preocupe com o Bravo, ele não
morde.
O rapaz não conseguiu perceber se ela falava sério ou não, pois a garota foi atender
um homem que chegava ao café. Ele pensou ser um tanto estranho ir assim a casa
dela, afinal, conversaram apenas poucas vezes. Lembrou-se de sua cidade natal.
Havia tempo que não pensava nisso. Mas veio-lhe a memória que era comum esse
tipo de confiança em cidades menores. Tratou de deixar as vagas lembranças de lado,
terminou seu café da manhã rapidamente e foi para a biblioteca. Aquele dia foi
especialmente atarefado, o jovem sentia suas pernas e braços doloridos de tanto
carregar pilhas de livros para lá e para cá e praguejando por não conseguir parar de
espirrar. O trabalho do dia tirou a atenção de Ben para o compromisso da noite de
modo que ele só pensou nisso quase na hora de fechar. Depois de trancada a
biblioteca, com o livro na mochila, Ben foi jantar em um restaurante. Terminou de
comer pagou a refeição e dirigiu-se para o compromisso a passos lentos, calculando
em que velocidade deveria andar para chegar exatamente às oito horas.
Quando entrou na rua do acesso 31, não teve dificuldade para localizar a
casa de Victoria. Entrou pelo portãozinho, reparando no capricho do jardim da Sra.
Hughes. Do nada, sentiu um peso em suas pernas que o projetou violentamente para
frente, fazendo com que perdesse o equilíbrio e quase caísse. Assustado olhou para
trás e deparou-se com um cachorro de tamanho médio, cuja raça não reconheceu
imediatamente. “Você deve ser o Bravo”, disse ao cão, que depois de cheirá-lo
começou a lamber a suas mãos.
____Bravo! Saia daí, cão feio! Desculpe-me Ben, ele te sujou? – perguntou a
Sra. Hughes.
____Um pouco apenas, nada demais, – respondeu Ben, achando graça do
cachorro - acho que ele não faz jus ao nome né?
____Haha, realmente não...por favor, entre.
A casa dela era muito bonita e simples, lembrava a decoração do café. Na
parede havia mais um quadro da Ponte das Corujas, onde uma menininha sorria para
a câmera. A a Sra. Hughes percebeu a curiosidade de Ben.
____Sou eu, muitos anos atrás.
____A foto é muito bonita, essa ponte é magnífica. Ainda não tive a
oportunidade de vê-la de perto.
____E acho que nem verá, se depender do dono da propriedade. Zacarian
Wood – ela cerrou os olhos - não permite mais a entrada de ninguém. Quando aquelas
terras eram dos Quakles, todos podiam visitá-la, havia até algumas mesas em volta.
Essa foto foi tirada pelo meu pai, íamos lá quase todo final de semana de verão –
Benjamin não deixou de notar as lágrimas se formando nos olhos da mulher.
____Que pena que não se pode mais ir lá, eu pensei que a estradinha que
tem em cima dela ainda era usada. A senhora sabe o porquê desse nome? Não achei
nada na biblioteca.
____Ah não, não era usada nem na época dessa foto, sabe-se lá quando
que aquele caminho deixou de ser usado. Quanto ao nome, o bosque em volta é cheio
de corujas. Pelo menos era, mas dificilmente você saia de lá sem ver uma. No
entardecer era magnífico, a ponte se enxia delas...você me fez lembrar de um
dia...nossa, havia esquecido completamente...meus pais e irmãos guardavam as
coisas no carro, o poente estava avermelhado sabe? O que é bem raro aqui. E do
nada, como que sincronizado, todas as corujas revoaram da ponte e tudo pareceu tão

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escuro, o barulho das asas batendo, as sombras. Eu me assustei e chorei muito, meu
pai disse que foi só alguma coisa que as assustou e que elas haviam tapado a luz do
sol. Acho que demorei um pouco para perder o medo de corujas.
____Você ainda tem medo de corujas, mãe – disse Victoria sorrindo, que
descia as escadas colocando uma toca na cabeça.
____Tenho respeito, isso é bem diferente – retrucou a mulher, com cara de
ironia.
____Okay, finjo que acredito. Estamos indo mãe, acredito que não
demoraremos,, não se preocupe.
____Olhe rapaz, ela não é muito boa em cumprir horários, confio em você
para lembrar a ela da hora de voltar. Aliás, eu normalmente não deixaria minha filha
sair com um desconhecido..mas como você já mora aqui há algum tempo e jamais
pareceu incomodar alguém, darei esse voto de confiança.
____Mãe! Não estamos saindo! Eu expliquei, é um livro, que O Velho pode
nos ajudar a entender, só isso.
____Não chame assim o Sr. Chisholm! – repreendeu a Sra. Hugues - , só o
seu pai tem essa liberdade.
____Está bem mãe, está bem...olha, estamos indo, senão teremos que voltar
mais tarde ainda.
____Prometo que não demoraremos Sra. Hugues.
____Assim espero rapaz. Se cuidem e juízo, por favor.
Victoria se despediu na mãe com um beijo e ambos saíram caminhando pela
rua. A noite estava gelada. Em boa parte do caminho a moça comentava da relação
com a mãe, e que na verdade foi bem difícil convence-la a deixa que ela saísse nesse
horário com um “desconhecido”. Ben sorria da maneira elétrica que a menina se
portava, estava realmente muito entusiasmada com o livro. Mas ele entendia a razão.
Para quem cresceu naquela cidade, qualquer coisa fora do normal se tornava
interessante. Não que para ele não fosse algo curioso também, muito pelo contrário,
mas ela realmente estava empolgada. A noite foi ficando cada vez mais fria e ele se
arrependia de não ter passado em casa pegar um casaco. Andaram por uns dez
minutos, tempo suficiente para quase atravessarem a cidade.
____O que acha que tem? – perguntou ela.
____O que?
____No livro, o que acha que tem nele? Algo de valor?
____Não sei, pensava nisso...mas é difícil chegar à uma conclusão. Talvez
seja um diário, ou algo assim.
____Diário? Espero que não...quer dizer, eu tenho um diário, mas nem por
isso faço uma super fechadura complexa nele... – Victoria deixou morrer a voz, dando
a entender que se arrependia de ter mencionado que tinha um diário.
____É...quem escreveu aquele talvez tivesse muito a esconder...mas não
sei, pode ser sobre qualquer coisa.
____Se alguém pode abrir ele é o O Velho.
____Quem é esse velho?
____É “O Velho”. O Sr. Chisholm é o antigo joalheiro da cidade.
____Ah sim, sabia que tinha visto esse sobrenome em algum lugar. Aquela
joalheria perto do mercado é dele?
____Sim, na verdade é o filho quem cuida dos negócios agora. Ele é um
designer incrível, ganhou vários prêmios, muita gente vem de longe para comprar com
ele. Eles vendem pouco de mostruário, a maioria das peças é sob encomenda. Há

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quem jure que ele fez uma joia para a coroa britânica! Ele nunca confirmou... nem
negou.
____Muito esperto da parte dele. Mas ele nunca quis ir para fora?
____Não, ele sempre falou para meu pai que jamais sairia dessa cidade. Ele
e papai são bons amigos, sempre ele e Sra. Chisholm, que por sinal é um amor de
pessoa, estavam lá em casa ou nós na casa deles. Mas faz um bom tempo que não
nos visitamos.
____E não é ruim para ele nos receber tão tarde?
____Se fosse eu não te convidaria para ir lá – dizendo isso, a moça apertou
o passo, forçando Ben a andar mais rapidamente -, vamos que estamos perto da casa
dele.
Eles entraram em uma rua que ele não conhecia, na verdade nunca reparou que ela
existia. Ficava no extremo norte da área urbana, exatamente num pequeno bosque.
Nos primeiros passos a casa já era visível. “Casa” é quase uma ofensa para descrever
a moradia do Sr. Chisholm. Era praticamente um palacete, pensou Ben consigo
mesmo. Bom, talvez nem tanto, mas era enorme, com uma faixada gigante de paredes
enxaimel e telhado para frente, em estilo normando. No lado esquerdo, sobressaindo
da parede, existia uma espécie de simulacro de torre, uma parte arredondada,
preenchida quase toda por janelas, assim como o restante da parede, e logo ao lado
uma grande chaminé, que provavelmente deveria ser de uma lareira. Não havia muros,
apenas grama e um caminho de pedras, por onde os dois se dirigiam agora. Chegaram
a frente à porta, mas nem precisaram tocar a campainha, a porta abriu-se
imediatamente.
____ Mensura omnium...
Uma figura grande projetou sua sombra para fora. Nariz redondo como o rosto,
grandes entradas nos cabelos grisalhos e um olhar gentil. A imagem mental que ele
tinha do “O Velho” que o rapaz tinha se desfez instantaneamente. Ele imaginou um
senhor de idade, pacato, algo como um comerciante de interior mesmo..
____... rerum optima! – completou Victoria.
____Vejo que seu latim ainda está razoável Srta. Hugues – disse o Sr.
Chisholm com sua voz grave, mas ao mesmo tempo tranquila e limpa.
____Digamos que tive um ótimo professor – dizendo isso, deu um passo à
frente abraçou o homem.
____Você está cada dia mais inteligente...ah, esse deve ser o seu amigo,
Sr..
____Benjamin – respondeu Ben - , Benjamin... é um prazer.
____O prazer é meu rapaz. A Srta. Hugues respondeu com destreza a senha
para entrar em minha casa...vamos ver como você se sai. Como anda o seu latim?
____Receio que ele nunca tenha aprendido a andar senhor.
____Ora, isso é uma pena, terrível...mas é o novo bibliotecário não? Pois
bem, você deve saber que “É prova de alta cultura dizer as coisas mais profundas...
____.., do modo mais simples.” Ralph Emerson?
____Muito bem, meu rapaz! Entrem, entrem, está muito frio aqui. Perdoe a
brincadeira, é um costume antigo já, uma liberdade que tenho com os Hugues e que
estendi a você.
Enquanto o Sr. Chisholm falava, recolhia os casacos dos dois e encaminhava-os para
a sala. O interior da casa não era menos impressionante que a parte de fora. As
paredes eram mais altas que já vira e uma casa, cobertas com papéis de parede
floreados, que, pelo que se podia ver, alternavam de cor de cômoda para cômodo.

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Foram introduzidos pelo dono da casa numa grande sala, a qual Ben não conseguiu
disfarçar a admiração. No início da sala, perto de uma das oito janelas que se
enfileiravam, havia um grande piano, que, como Ben notou pela poeira na banqueta,
não era utilizado há algum tempo. Na parede atrás do piano estava a falsa torre que
viram da faixada. Ela era preenchida em sua curvatura por um sofá e no meio havia
uma mesa de centro. Imediatamente ao lado existia uma grande lareira que crepitava
um fogo voraz, quase exagerado. Era de mármore escuro, trabalhado com detalhes
invisíveis àquela distância. A frente da lareira estava alguns sofás e poltronas,
espalhados impecavelmente, imitavam modelos da era vitoriana, mas aparentavam ser
mais confortáveis. Na parede oposta às janelas, do outro lado da sala, estavam
dispostas algumas estantes com portas de vidro. Dentro da primeira delas havia
pedras, das mais belas que Ben jamais vira, de várias cores, tamanhos e formatos.
Todas estavam em suportes, com uma plaquinha que trazia o nome e a origem. A que
Ben mais se admirou da beleza foi a ônix, que, pelo pouco que pode interpretar do
latim escrito na plaquinha, veio da Grécia. Na outra estante Victoria admirava algumas
peças com pedras incrustradas, em especial um relicário de prata trabalhada, com
opalas nas bordas. Acima das estantes de vidro, estava pendurado um gigantesco
mapa, no qual Ben reconheceu estar boa parte da região. O mapa era muito velho,
obviamente estavam faltando algumas estradas, mas reconhecia algumas outras que
virá nos mapas da biblioteca.
____Aí guardo minhas peças prediletas, as que nunca tive coragem de
vender- disse o velho. Está vendo este bracelete? Foi encomendado á mim por um
milionário indiano, mas ao final do trabalho, fiz outro para ele, que por sinal ele gostou
muito. Esse é o tipo de obra que se faz uma vez só na vida.
Era nítido o olhar de orgulho do velho, e com razão, a peça, mesmo para Ben
que pouco entendia do assunto, era magnífica. Era como se alguém houvesse pegado
algum ramo da mais bela árvore, com as mais belas folhas, o tivesse moldado em um
pulso e o transformasse em um metal tão vivo quanto o ouro, mas pálido e delicado.
____São magníficas. Gostei do mapa também, deve ser muito antigo não?
____Está a pelo menos duzentos anos na minha família, é uma relíquia!
Sabia um amigo dono de antiquário em Londres me ofereceu mil libras por ele? E
pensar que estava trancado em um baú por sabe-se lá quanto tempo, foi meu pai que
o mandou enquadrar. A moldura foi presente do primeiro bibliotecário sabia? O senhor
Griffiths sempre questiona isso quando vêm aqui, pois o bibliotecário afirmou ao meu
pai que era propriedade da biblioteca, mas estava vazia, ele então a comprou e deu ela
para meu pai, já que é totalmente fora de padrão, e pelo visto não havia nada lá que
pudesse ser enquadrada nela. Mas o rabugento do Griffiths afirma que ela não consta
nos inventários, acredita que ele implica com isso?
____Acredito – respondeu o rapaz sorrindo. Desde a primeira hora que
esteve com o antigo proprietário percebeu o qual metódico e disciplinado (para não
dizer paranoico) o senhor Griffiths poderia ser.
Os dois admiravam o mapa, quando o Sr. Chisholm gentilmente os convidou
para sentarem-se.
____Embora, sem modéstia, eu deva dizer que minhas peças são
belíssimas, acredito que não foi para admirá-las que vieram, não é? E acho que
tampouco pela conversa de um velho – e dizendo isso, abriu um largo sorriso.
____Sua conversas são sempre agradáveis, mesmo as que não são. Mas,
para ser sincera, precisamos da sua ajuda Sr. Chisholm. Eu e Ben, na verdade Ben,
achou um livro curioso na biblioteca, mas não conseguimos abri-lo.

[ 11 ]
Ben tirou o livro da mochila e o entregou à moça, que por sua vez entregou ao velho.
Ele o pegou, mas pediu licença por um instante para buscar os óculos. Retornando,
olhou com curiosidade e apalpou a capa e a lombada. “Muito interessante”, ele dizia.
Repetiu os toques em outras partes do livro, como se suas mãos enxergassem algo
que seus olhos não podiam.
____Esperem um momento. Aliás, me esperem naquela mesa ali – disse,
apontando para uma grande mesa de madeira com seis cadeiras, postada atrás do
sofá em que estava sentado e desapareceu por uma porta no final da sala.
Ben andou para um estante atrás dessa mesa, onde pelo menos uns mil livros estavam
dispostos.
____Parece ser um homem gentil - disse ele para Victoria.
____E realmente é...é a alma mais caridosa que eu conheço, não que
conheça muita gente também.
____Não me lembro de tê-lo visto pela cidade nenhuma vez.
____O Sr. Chisholm não é de sair muito, ele e a esposa Martha gostam de
sair à noite, sempre os verá nas apresentações musicais de verão no coreto da praça.
Ela também é uma pessoa excepcional e cuida do jardim mais lindo que eu já vi. Pena
que está noite, senão eu pediria para o Sr. Chisholm te mostrar.
____A esposa dele está aí?
____Segundo a mamãe, ela foi para Cork.
____Exatamente – disse o Sr. Chisholm, que retornava com uma maletinha
de couro marrom -, e pelo que me disse hoje ao telefone, estará de volta amanhã à
tarde, trazendo metade das lojas da cidade. Mas enfim, vamos ao que interessa.
Realmente vocês tem um livro bem curioso aí. O correto seria levar ele para um
relojoeiro, mas na falta desse, um curso que fiz há umas quatro décadas deve bastar.
Sentiram como essa parte da lombada é mais macia? Não sei, mas tem algo de
estranho aqui. Meu jovem, alcance-me aquele abajur. Muito bem, obrigado..agora, todo
cuidado é pouco.
O velho colocou uma ferramenta extremamente fina, quase invisível, no
buraco por onde imaginavam entrar uma chave. Remexeu, fazendo caretas, tentando
sentir com os dedos, algo que ajudasse a abrir. Nenhum deles falava, o único som
ouvido na sala eram os dos metais se batendo. “Plec”. O Sr. Chisholm encarou os dois
por cima dos óculos com um olhar que dizia “não sei se é um bom sinal” e voltou ao
trabalho. Introduziu mais uma ferramenta e continuou a mexer na fechadura. Já havia
se passado quinze minutos, mas ele não dava sinal de inquietação e prosseguiu assim
por mais quarenta minutos.
____Okay, acho que todos merecemos beber algo...um conhaque talvez?
____Ah, para mim não Sr. Chisholm, acho que mamãe não iria gostar.
____Obviamente, ela é a mulher mais terrivelmente sensata que conheço...e
para você rapaz?
____Café seria bom.
____Café? Olhe só...pois bem. Também sou apreciador desse ouro negro
líquido, que nossos compatriotas não sabem apreciar devidamente.
Pouco tempo depois ele voltou com três grandes canecas de café numa bandeja.
Sentara-se em frente à lareira enquanto bebiam e conversavam sobre os livros
favoritos de casa um. Victoria era fã declarada de Julio Verne, embora gostasse dos
clássicos. O Sr. Chisholm divagava sobre Tolstói, mas ainda preferia Dostoiévski.
Lamentava não ter comprado uma edição raríssima do Irmãos Karamazov quando
tivera oportunidade. Quanto a Ben, realmente não conseguiu pensar em um autor

[ 12 ]
favorito. Na verdade considerava que não tinha nenhum. Depois do café, o Sr.
Chisholm voltou ao trabalho, por mais uma hora pelo menos até que “plec”. A tranca se
soltou.
____Estava achando que os deixaria decepcionados esta noite jovens, abrir
a tranca do cofre das joias da coroa deve ser mais fácil – disse o velho com expressão
de triunfo.
Os três se aproximaram do livro e o Sr. Chisholm abriu a capa. As páginas eram de um
amarelo forte, um papel mais grosso que o normal. A primeira página do livro estava
ensopada de um líquido gosmento, escuro e pegajoso. Victoria virou vagarosamente a
segunda folha, mas ela também estava molhada. Com um nó na garganta constataram
que pelo menos as trinta primeiras páginas haviam sido perdidas.
____O que é isso? – apontou bem para um pequeno orifício no centro da
emenda do livro, por entre os dois lados de páginas – Há outros aqui, olhem.
____Permitam-me – disse o Sr. Chisholm enquanto pegava o livro -, deixa
eu...ah, engenhoso, terrivelmente engenhoso. Vejam, na lombada no livro havia esse
líquido acumulado, em uma bolsinha. Devo ter liberado ele em cima das páginas
enquanto tentava abrir. Sei que as pessoas costumam por armadilhas em muitos
lugares, mas é a primeira vez que vejo isso em um livro. Vamos ver mais a frente,
estou rezando para que alguma página tenha sobrado! Não tinha tanta emoção
desde que tive que tirar um anzol do dedo do seu irmão na última pescaria de verão!
Virando página por página chegaram até um cartão, colocado no meio do
livro, que felizmente poupou as seguintes de serem manchadas pela gosma. As
páginas não afetadas pela armadilha estavam rabiscadas com símbolos, signos, letras.
A primeira vista, nenhum deles era conhecido dos três. Chegaram à conclusão que
deveria ser uma espécie de código. Olharam página a página, tecendo comentários
sobre o que achavam que podia significar algumas letras, procurando padrões e
referências, mas sem muito sucesso. Ao final de uma hora e eia, estavam com as
vistas cansadas de tanto observar aquelas páginas.
____É...bem, acho que esse livro seria mais interessante se não o
tivéssemos aberto – disse a moça, tentando ser cômica.
____Se eu não conhecesse o velho Griffiths, diria que ele quis pregar uma
peça em você, meu rapaz! Pena que nenhum de nós é versado em simbologia –
apesar de desapontado, o velho estava risonho.
____Antes surpresa nenhuma do que uma surpresa ruim – disse Ben.
____Ah, e isso foi o que? – respondeu a moça – Foi legal vai? Aliás, está sendo, pode
ter algo muito interessante escrito aí, só temos que decifrar.
____Ora, o que é isso rapaz, Vic tem razão... além do mais, isso nos
proporcionou algumas horas de conversa agradável! Se me permitem, gostaria de ficar
com esse livro por mais algum tempo para analisar aquele sistema de tranca e os
símbolos, seria possível? Eu passo na biblioteca devolvê-lo na próxima semana.
____Claro senhor, fique a vontade – respondeu Bem.
____Meu Deus, já são onze horas! Já está tarde, mamãe já deve estar
preocupada. Me acompanha Ben? Ótimo. Vale et gratias tibi ago, Sr. Chisholm. Tenha
uma boa noite.
____ Boa noite jovens, carpe noctem!
Ben e Victoria andaram rapidamente na volta, pois uma chuva se aprontava, e apesar
de ela dizer que não era necessário, acompanhou-a até a porta de casa. Por um lado,
embora a cidade fosse pacata, ele sempre optou por exagerar no cuidado. E depois,
não queria que a Sra. Hugues pensasse que era do tipo de cara que deixaria a filha

[ 13 ]
dela voltar para casa desacompanhada. Depois de um breve boa noite, Ben correu
para pensão, mas não escapou da chuva gelada. Ensopado, subiu tentando fazer o
mínimo de barulho para não acordar a Sra. McGrory. Ao cair na cama, dormiu como a
muito não dormirá.

A Fotografia

O cavalheirismo em acompanhar Victoria até em casa custou caro a Ben. Uma febre
alta e a baixa imunidade o deixaram de cama. A sra. McGrory sequer permitia que ele
abrisse as janelas do seu quarto. Insistiu para que ele procurasse um médico, mas
nesse assunto, ele conseguiu ser mais teimoso do que ela. Os antibióticos,
antitérmicos, infusões e chás teriam que servir. A verdade é que Ben sabia do custo da
saúde, monetariamente falando, e sequer tinha dinheiro para os remédios. De qualquer
maneira, melhorava a cada dia. Levantou-se e colocou algumas melodias de violino
para ouvir. Adorava violinos. Lembrou-se de sua mãe. Ela era uma grande violinista,
certamente poderia ter escolhido a música como profissão se não amasse mais a
pintura. Seu coração ficou apertado de saudade, sentiu um nó na garganta e as
lágrimas se formando. Conseguiu se controlar para que elas não rolassem. Começou a
procurar um livro na caixa separada pelo sr. Griffs de volumes para consertar, qualquer
coisa que o distraísse e mandasse embora os pensamentos tristes. Pegou um quase
em pedaços, mas notou que não era um livro, era um álbum, um álbum antigo. Abriu
na primeira página, onde tinha uma dedicatória escrita na parte inferior. Mas não
entendeu uma palavra, a letra estava fraca demais, além de a escrita ser cursiva, de
modo que só as pontas de algumas consoantes eram identificáveis. As primeiras fotos
retratavam o interior de Buttevant, casas antigas e pessoas com rostos impassíveis.
Reconheceu as Igrejas de São João e Santa Maria,e algumas outras construções.
Havia bem menos ruas em 1910, como viu na foto que olhava agora. Lá ao fundo
estava a biblioteca, mas já era do tamanho que é hoje, então as obras que alteraram
seu tamanho eram anteriores. Estava ficando meio monótono ver tantas fotos, mas
quando pretendia fechar o álbum, uma chama a sua atenção. Era a fotografia do
interior da biblioteca, a escada no hall ao fundo não deixava dúvidas. Dois homens e
uma mulher compunham o retrato. Um dos homens usava cartola e tinha uma barba
espessa, estava apoiado em uma bengala branca. Era o mais alto do grupo,
considerando a distância que estava , devia ter pelo menos uns dois metros. Estava
apoiado numa bengala de coloração clara, marfim provavelmente. O outro homem era
mais baixo e aparentemente mais jovem. Trazia um colar pendurado do pescoço, mas
impossível de definir o que exatamente. Segurava um livro bem grosso, mas não fazia
questão de mostra-lo. E no meio estava a mulher. Sua posse era suave, mas
desafiadora, esboçando um sorriso nos lábios finos. Um chapéu encobria parte do seu
olho direito. Em suas mãos enluvadas trazia um espelho, todo ornamentado ao que

[ 14 ]
parecia. “Curioso”, pensou Ben, já que os objetos nas mãos dos homens eram até
normais, mas nunca vira ninguém pousando com espelhos. Forçou um pouco a visão
no espelho e pode ver algo refletido. A luz fraca do seu quarto e a idade da foto não
facilitavam as coisas, mas teve a impressão de ser um móvel. Sim, era um móvel, as
pernas tortas revelavam o que deveria ser um aparador... ou seria coisa da sua
cabeça? Ficou intrigado, porque reconhecia todos os móveis dali, com exceção
daquele. Olhou o restante do álbum procurando por alguma outra foto interna da
biblioteca, mas não encontrou nada. Frustrado resolveu deixar aquela bobagem de
lado, apagou a luz e adormeceu, sem fazia ideia do impacto que aquela fotografia teria
na vida dele.
Ben passou o dia nos trabalhos de restauração dos livros, não saiu sequer
para almoçar. O frio deixava seu pequeno quarto mais aconchegante. A desvantagem
do quarto pequeno era compensada pela vantagem de ser o único quarto da pensão
com um fogão próprio. Nunca havia utilizado antes daquele dia, mas sabia que a
pensionista tinha lenha o suficiente para mais invernos do que provavelmente veria,
então não achou mal fazer fogo. Continuava a folear o álbum quando a Sra. MacGrory
bateu à porta.
____ Você tem visita – disse ela com um sorriso enigmático, que ele
ainda não havia conhecido.
____ Desculpa vir sem avisar – disse Victoria aparecendo por detrás da
pensionista.
____Imagina querida, tenho certeza que Ben não se importa, uma boa
conversa, que não sejam as lembranças de uma velha caduca, com certeza o ajudarão
a recuperar-se mais rápido! Mas irei deixar que conversem em paz, logo trarei um chá
para vocês! – e saiu porta a fora, mais animada do que normalmente era.
____Olá – disse o rapaz meio sem jeito, afinal, estava de pijamas -, não ligue
a bagunça, estava indisposto para limpar meu quarto nesses dias.
____Se você morasse com meu irmão, iria achar seu quarto super
organizado. No dele parece que alguém jogou uma granada e fechou a porta. Mas não
se preocupe, não vim aqui para reparar em nada. Ficamos preocupados, você não
apareceu na igreja e nem no almoço. Mamãe apostou que havia ficado doente por
causa da chuva, inclusive ela me recriminou por permitir que partisse aquela noite,
quando era óbvio que cairia uma tempestade. Eu devia ter lhe emprestado um guarda-
chuva ao menos.
____Não iria adiantar, vi dois voando pela rua, provavelmente não fui só eu
que me molhei.
____Que seja..mas então, como está?
____Bem, amanhã já volto para o trablaho.
____Ah, que bom...ou não, não sei, você gosta de trabalhar lá?
____Gosto, por que não gostaria?
____Olha, sem ofensas, mas a Sociedade Literária de Buttevant não é o
local dos sonhos da maioria dos jovens.
____E quem lhe disse que sou jovem?
____Para com isso, não pode ser muito mais velho que eu. Desculpa a
pergunta, mas você é formado em que?
____Bibliotecomia.
____É sério? – ela fez uma cara de estranhamento. Quer dizer nada contra,
mas...tipo..

[ 15 ]
____Eu sei que não é uma profissão comum, nem empolgante. Mas eu não
sou comum. Nem empolgante.
____Ou é muito modesto ou está querendo elogios – disse a garota com o
olhar de sarcasmo.
____Nem um nem outro, sou orgulhoso demais para me fingir de modesto ou
mendigar elogios.
____Não ligue para mim, estava só brincando...ei – disse de repente, fixando
o olhar na mesa de Ben – que fotos são essas? Eu adoro fotos antigas!
____São de um álbum da biblioteca que eu trouxe para consertar...por favor,
sente-se.
____Uau, mamãe ficaria fascinada, você deve ter reparado que ela também
gosta..olha, só, essa é perto da ******. E essa aqui, estou reconhecendo aquela casa,
fica na *******. E, nossa, que mulher bonita!
Ben levantou o olhar para Victoria.
____Não, não quis dizer nesse sentido, quer dizer...só estou dizendo que ela
é bonita, tá? Não me olhe assim.
____Eu não disse nada...
____Mas pensou que eu sei.

____Deixe-me ver, acho que pulei essa foto..ah sim, a mulher do


espelho...de fato é linda...engraçado que essa foto parece mais antigas que as
outras..mas os rostos de todos estão tão nítidos.
____O povo daquela época sabia se vestir né? Olhe esse vestido, esse
chapéu...e que cintura, JAMAIS terei uma assim.
____Ela deve estar usando um...como se chama mesmo?
____Corselet? Provavelmente, mas não deixa de ser bonita. Ela parece
quase viva, que pose desafiadora para uma mulher daquela época.
____Sim...e não é estranho a nitidez da foto? Quer dizer, ela está amarelada,
muito mais que as outras, mas é quase possível ver a luz refletindo nos olhos deles.
Olhe no espelho que ela tem na mão, dá para ver o reflexo! Chega a ser assustador.
____Tem razão..ai, agora que você falou, um calafrio me correu pela
espinha...tome, guarde essa foto, ela já está me assustando.
____Mesmo? Iria ficar legal uma versão aumentada dela no Café da sua
mãe...
____Não ouse mostrar isso a ela – falou Victoria com o dedo em riste -,
tenho certeza de que ela mandaria fazer uma cópia para colocar lá em casa!
____Está bem, só estava brincando, ha ha.
____Ben, você não é engraçado. Ah! – a moça falou de repente, chegando a
assustar Ben-, o Velho falou que quer nos ver de volta essa semana! Ligou lá para
casa ontem, disse que fez umas descobertas sobre o nosso livro e...
____Nosso livro?
___O livro oras, não me interrompa, e disse que precisa nos mostrar
urgentemente!
___ Deixou-me curioso agora, o que será que ele descobriu?
___ Eu não sei, mas ele estava empolgadíssimo na ligação! Você pode
quarta-feira? Ele nos convidou para jantarmos com eles. Sua esposa estará lá. Mamãe
e meu irmão também irão...bem, se for algo que te incomode, não precisa ir, está bem?
___É lógico que irei, nunca recuso uma refeição. E nem um café.
___Excelente!

[ 16 ]
Ben sentou-se na cama e ambos passaram a tarde conversando sobre
trivialidades. Descobriu que Victoria iria ingressar na Universidade de Cork naquele
ano, com a pretensão de estudar Ciências Geográficas e Arqueológicas. Isso explicava
um pouco da empolgação pelo achado do livro. Contou que escolhera o curso de
última hora, pois inicialmente iria fazer Arte. Contou praticamente de toda a sua vida
colegial, desde conflitos com as amigas até fofocas dos professores. O rapaz apenas
ria e perguntava mais. Tinha esquecido como banalidades podiam ser divertidas.
Foram interrompidos apenas pela Sra. McGrory trazendo chá. Ben convidou-a a ficar
lá, ao que a senhora ficou surpresa, normalmente jovens dessa idade dispensam a
companhia de velhos. Foi uma tarde divertida para os três, ao final, os dois jovens já
passavam mal com os causos da cidade que a pensionista tinha na memória, e com
certeza olhariam para certos moradores de Buttevant com outros olhos.

Priorado de Ballybeg

Depois que Victoria foi embora, Ben resolveu sair para dar uma volta. Não
aguentava mais ficar trancado naquele quarto. A Sra. MacGrory o repreendeu por sair
com um tempo tão frio, mas o rapaz conseguiu convence-la que um pouco de ar puro
poderia ajuda-lo a melhorar rápido. Já estava escurecendo quando desceu pela rua até
chegar a rodovia que cortava o centro. Os pubs estavam movimentados, era possível
escutar as conversas e risadas de muito longe. Diferente de alguns pubs que Ben
frequentou em Dublin, os dali era familiares. Quer dizer, nem sempre havia famílias,
mas era onde os moradores gostavam de se encontrar no final do dia para conversar,
falar de futebol; mesmo os fazendeiros estavam por ali algumas vezes na semana. O
fato é que os pubs e alguns restaurantes estavam sempre cheios. Até porque Cill na
Mullach era uma das maiores paradas entre Mallow e Charleville, logo, os viajantes
que não gostavam de viajar de barriga vazia ou com sede, paravam por ali. De
qualquer forma, Ben tinha ido poucas vezes aos pubs. E essa era uma noite na qual
ele dispensaria novamente. Andou por dois quilômetros pela beira da rodovia.
Pouquíssimos automóveis passavam por ali àquela hora.
Ben se aproximava da entrada que levava às ruínas do priorado de Ballybeg.
Sentiu um impulso em ir lá. Estava ficando escuro e mais frio, o lugar estava deserto e
a estrada sem movimento. Cinco minutos e não havia decidido. Não era algo muito
racional, mas afinal, qual era o problema? Envergou pela estrada lateral e foi em
direção às ruínas. O rapaz pensava o quanto estranho ele podia ser, afinal, morava há
quase um ano ali, nunca tinha ido até o antigo priorado e do nada, numa noite gelada
em que estava doente, resolveu fazer isso. A construção era muito mais imponente de
perto. As pedras que compunham o que sobrou do antigo mosteiro estavam
espalhadas por todos os lados; restos de colunas, pilastras, paredes, chão, tudo
enegrecido pelo tempo. O rapaz ficou por algum tempo parado, tentando imaginar a
composição daquela antiga construção, onde seriam os corredores, as salas. A lua
começava a subir ao céu, sua luz pálida criava um ambiente intimidante. Ben andou
acompanhando uma parede até chegar a uma abertura, a qual dava para o que

[ 17 ]
deveria ser o claustro. Imaginou quantas pessoas, assim como ele, estiveram nesse
mesmo lugar nos séculos anteriores, apenas contemplando e pensando, sem a
indelicada e apática curiosidade turística. A parede que se levantava alta a sua frente
possivelmente pertenceu à capela, como denunciavam suas janelas altas e compridas.
Ben adentrou nela. Apesar de não haver mais teto e terem sobrado poucas paredes,
as sombras causadas pelas que restavam deixavam o lugar mais escuro. Deveria ter
sido belíssima em seu apogeu, pensou o jovem.
Caminhou novamente até o claustro, quando viu as luzes de um automóvel
vindo pela via de acesso ao mosteiro. Sentiu-se mais normal naquele momento, afinal
não era só ele que gostava de passeios noturnos em ruínas milenares. O veículo parou
a uns cinquenta metros de onde o jovem estava, manteve-se ligado e de faróis acesos.
Ben decidiu retornar para a pensão, pensando que talvez fosse algum jovem casal
querendo “privacidade”. Quando Ben caminhou em direção à via, o veículo deu marcha
à ré abruptamente, e virou em direção à saída. O coração do jovem disparou com o
susto, mas manteve-se impassível, ou tentou demonstrar isso pelo menos. O carro
agora estava parado de ré, ele sabia que estava sendo observado. Mesmo assim,
continuou andando. O motorista arrancou lentamente e foi em direção à rodovia,
virando na direção contrária do centro de Buttevant. Ben acompanhou a luz dos faróis
por cima das árvores até sumirem, já que as mesmas não deixavam que ele
enxergasse o veículo. Foi andando em direção à rodovia, achando que talvez as
intenções do ocupante ou ocupantes do veículo não fossem das melhores. Seus
batimentos já voltavam ao normal quando chegou a beira da rodovia. Olhou para a
direção que o veículo tinha ido. Ele estava lá. Aparentemente estava desligado. A
sensação incômoda de estar sendo observado voltou mais forte, mas Ben manteve o
olhar fixo no carro. Tudo quieto. Decidiu voltar para a vila, mas mantendo a audição em
alerta para qualquer barulho de automóvel se aproximando, e por precaução,
caminhou pela contramão. Já estava caminhando por cinco minutos, tendo tido a
impressão que algo o seguia. Ainda estava muito longe de qualquer casa, qualquer
lugar que desse a sensação de segurança. Vários pensamentos desagradáveis vieram
a cabeça. “Assaltantes? Não, não faz sentido, não em um carro tão
bom...Sequestradores? Menos sentido ainda, mesmo que me conhecessem, a quem
pediriam resgate?...Mas, e se fosse algum maluco? Isso era bem possível, já conheci
muita gente maluca...mas não a ponto de fazer mal a alguém, se bem sabia que esse
tipo de maluco existe... mas não, não faz sentido, um veículo caro, ruínas, noite
gelada... não consigo ligar os fatos.”
Ben estava perdido em seus pensamentos e teorias quando a luz de um farol
projetou por suas costas. Um calafrio correu por sua espinha, o carro que vinha atrás
dele estava reduzindo a velocidade. Não olhou para trás como fizera em todo percurso
até ali. Instintivamente seu olhar vagou pelo chão, tentando achar algo com o qual
pudesse se defender. O veículo estava mais próximo agora, conseguiu ouvir o barulho
dos freios sendo acionados vagarosamente. O carro parou a seu lado. Ben parou.
Olhou para o lado. Não era o mesmo veículo. “Graças a Deus”, pensou consigo. A
janela do carona abaixou. Lá estava uma mulher de considerável idade, com rosto
simpático, que em muito lembrava sua avó. Do banco do motorista veio uma voz rouca
e grossa, que, para sua alegria, reconheceu imediatamente.
____Boa noite meu jovem. Que faz há essa hora e com esse frio andando
por aqui?
____Boa noite Sr. Griffiths. Apenas caminhando, tomando um ar puro...

[ 18 ]
____A dois quilômetros da civilização? Não quero julga-lo, mas isso parece
bem estúpido – disse o Sr. Griffiths olhando por cima dos óculos.
____Tenho que concordar – endossou a mulher ao lado dele. Já que meu
marido não me apresenta, deixa que eu faça as honras. Martha Griffiths, é um prazer
conhece-lo rapaz, Thomas falou muito bem de você.
____O prazer é meu Sra. Griffiths – respondeu Ben esticando a mão.
____Posso tentar convence-lo a aceitar uma carona? – perguntou a mulher.
____Nem precisa, aceito com certeza. Acho que está frio demais para
caminhar – respondeu Ben, olhando por alguns instantes para trás antes de entrar no
carro -; acaso havia um carro parado lá atrás?
____Não que eu tenha reparado rapaz, mas sou extremamente concentrado
para dirigir. Viu algo Martha?
____Não, não cruzamos com nenhum carro desde New Twopothouse.
Estava esperando alguém? Já sei, uma garota talvez? – respondeu a mulher olhando
para trás.
____Ah não, só havia um carro parado antes, deve ter pegado alguma
estrada secundária.
Ben achou que não era interessante incomodar o Sr. e Sra. Griffiths com
aquela história do automóvel.
____Deveria ser alguém perdido ou tirando água do joelho – disse o Sr.
Griffiths com uma risadinha.
____Provavelmente – disse Ben.
____Mas conte-me meu rapaz, como estão as coisas na Sociedade? Muito
trabalho na catalogação?
____Não muito, gosto de fazer isso. Acabo encontrando livros interessantes
por ali. Falando nisso Sr. Griffiths, o senhor sabe do que se trata aquele livro grosso,
de capa preta de couro, com fechos e detalhes prateados.
____Ah sim, esse livro, como pude me esquecer disso? Encontrei-o no
último dia que trabalho quando fui lhe mostrar o porão, lembra-se? Quando você saiu
para ligar o interruptor. Estava vagando pelos fundos do porão quando me deparei com
um balcão que guardamos lá embaixo muitos anos atrás. Não havia reparado que ele
tinha uma porta. Francamente, eu evitava descer lá. Além de claustrofobia, há relatos
de que algo assombra aquele lugar. Não que eu tivesse medo, mas por que arriscar,
não é verdade? Na minha idade qualquer susto pode ser o último – disse o Sr. Griffiths
rindo alto. Quando você me chamou por não achar o interruptor, deixei-o numa pilha de
livros lá em cima. Acabei me esquecendo completamente depois.
____Disso eu não duvido – falou a Sra. Griffiths olhando par ao marido –,
acredita que quando estávamos saindo da casa de nosso filho em Cork, ele estava me
esquecendo? Cinquenta e três anos de casados e ele estava se esquecendo da
esposa!
____Cinquenta e três anos, dezenove dias e... – olhou no relógio – onze
horas.
A Sra. Griffiths olhou para ele com uma cara que era uma mescla de
surpresa e desconfiança.
____Está bem, acho que depois dessa, posso lhe perdoar – disse ela
sorrindo. Mas ainda irá me levar para uma visita a minha irmã no sábado, afinal, já
havia prometido essa compensação.
____ Claro querida, tudo o que quiser- respondeu o velho, retribuindo o
sorriso. Mas então Ben, do que se tratava o livro.

[ 19 ]
____Ainda estamos tentando descobrir.
____Estamos?
____Eu e a Vic...Srta. Hugues. Ela estava lá quando o achei. Ficou mais
interessada que para ser sincero. Ah, e o Sr. Chrisholm também.
____ O joalheiro também estava lá? Ora, posso contar nos dedos de uma
mão as vezes que esse cretino me visitou nos sete anos que fiquei lá.
____Ah não, nós levamos o livro para ele. O livro tinha uma trava minúscula.
Ele levou oras para conseguir abri-lo.
O Sr. Griffiths parou o carro na frente da pensão e virou-se para trás
mostrando-se muito curioso, e quase arrependido por ter esquecido do livro.
____Mas o que havia nele?
____Bom, quando ele acionou algo naquela tranca, ativou uma armadilha no
livro. Uma gosma preta manchou boa parte das páginas da frente.
____Armadilha? Em um livro? Não seria bolor, algo assim? Nunca vi uma
armadilha em um livro. Mas se Chrisholm disse que era, não tenho porque duvidar.
____Acho que nenhum de nós viu.
____Mas não sobrou nenhuma página? – perguntou a Sra. Griffiths,
mostrando-se agora tão interessada quanto o marido.
____Sim, sobraram. Mas estavam cheia de algo como símbolos, traços,
números. Um código talvez, eu não sei – respondeu Ben.
____Fantástico! – respondeu um empolgado Sr. O livro está na biblioteca.
____Não, o Sr. Chrisholm pediu para ficar com ele essa semana, queria ver
se descobria algo.
____Ah, é claro que ele iria querer! – Ben nunca tinha visto o Sr. Griffths tão
empolgado. Irei falar com ele essa semana, preciso ver esse livro, não admito ter sido
tutor dele por sete anos, por mais que não soubesse que ele existia, sem ter a chance
de folheá-lo um pouco.
____É claro, me parece muito justo – disse Ben sorrindo -; agradeço a
carona.
____Não tem de que. Obrigado por ter comentado desse livro para mim,
fazer palavras cruzadas já estava ficando monótono.
____Se ele não me deixar dormir por ficar teorizando sobre esse livro, vou
lhe responsabilizar pessoalmente rapaz – falou a mulher.
Ben apenas sorriu e se despediu dos dois, entrando na pensão. Alguns
hóspedes estavam na sala principal, conversando alto sobre negócios. Na mesa da
cozinha, a Sra. McGrory e algumas amigas jogavam cartas rindo alto. Ben
cumprimentou todos e subiu para o quarto. O ocorrido com o carro lhe voltou a mente,
mas tratou logo de esquecer. Deitou e adormeceu.

O jantar

Ben acordou empolgado. Foi trabalhar mais animado do que o comum e não
sabia explicar o porquê. No café da manhã no Hugues’s se lembrou. Era quarta-feira.
Tinha um jantar. Toda essa empolgação em torno desse livro misterioso conseguiu

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contamina-lo. Vic não estava lá de manhã, tinha ido para Cork lidar com uma
documentação da universidade.
____ Dez!
Ben levantou os olhos. O garoto magrelo de cabelos vermelhos ostentava
orgulhosamente o desenho que havia mostrado a Ben na semana anterior.
____O que eu lhe disse Liam? Se eu falei que o desenho estava bom, acha
mesmo que a Sra. Marthill iria discordar de mim? - respondeu bem com a maior cara
de arrogância que conseguiu dissimular.
____E nove e meio no trabalho sobre a história da Escócia – disse orgulhoso
o garoto.
____Agradeça sua irmã por isso.
____Sim, sim. Ah, - era óbvio que ele não gradeceria – veja isso – Liam tirou
um bloco de folhas debaixo do balcão.
____Vejamos o que você tem aqui... olha, muito bom...esse daqui é bem
bacana...espera esse sou eu?
____Sim, você sentado no seu lugar de sempre.
____Mas nunca te vi desenhando por aqui...
____Ele tem memória fotográfica – disse a senhora Hugues colocando o
prato para Ben –, pelo menos foi o que o psicólogo dele disse.
____ Não sei por que a mamão me leva nesse cara...
____Desculpa querido, mas não tem do que se envergonhar, é algo normal...
____Isso mesmo rapazinho. Eu também já fui a um psicólogo.
A senhora Hugues e Liam olharam para Ben com curiosidade e certa
surpresa até.
____Você era louco também?! – perguntou o menino.
Ben riu.
____Não Liam, eu não era louco e você também não é. Já faz muitos anos,
mas foi muito bom para mim.
____Viu só Liam? Não tem do que se envergonhar... e pare com essa mania
de dizer que está louco! – disse a Sra. Hugues dando um tapa carinhoso na cabeça do
filho.
____Posso ficar com esse desenho? – perguntou Ben.
____Pode sim!
____Então assine ele para mim.
____O que?
____O desenho, ora. Quando você ficar famoso eu posso vendê-lo por
milhões.
O garoto sabia que era brincadeira de Ben, mas ficou orgulhoso por estar
assinando mesmo assim.
____Pronto senhor artista, agora vá recolher as louças das mesas.
____Bem, até mais Sra. Hugues.
____Até o jantar Ben – respondeu a mulher.
____Claro, o jantar – Ben sorriu e saiu.

A Sra. McGrory ficou visivelmente decepcionada quando Ben lhe disse do


jantar. Havia feito scones de morango para que comessem juntamente com os outros
pensionistas depois do jantar. Mesmo o rapaz insistindo que havia escovado os
dentes, foi obrigado a levar um em seu bolso.
Bateu à porta do Sr. Chisholm pontualmente.

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____Mas vejam só – disse o homem consultando o relógio - , pontualidade
inglesa! Tem parentesco com ingleses meu rapaz?
____Há uma grande chance de que sim – disse Ben cumprimentando o
anfitrião.
____Ora, por favor, entre! Deixe-me que penduro seu casaco...mas vejam
só, corte italiano, tem bom gosto para alguém tão jovem!
____Otávio! Isso é maneira de se falar com um convidado?
____Ora Bridget, deixe disso, é só uma brincadeira de um velho...Ben, essa
é a verdadeira dona da casa, minha esposa.
____Muito prazer Sr. Chisholm.
____O prazer é meu Ben

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