Você está na página 1de 10

ANÁLISE DA VOZ DE USUÁRIOS DE IMPLANTE COCLEAR E

APARELHO DE AMPLIFICAÇÃO SONORA INDIVIDUAL

Ghirardi, Ana C.1; Estácio, Jaqueline C. 2; Pinheiro, Maria M C.3; Paul, Stephan.4

(1) Departamento de Fonoaudiologia, Universidade Federal de Santa Catarina, carolina.ghirardi@ufsc.br


(2)Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago (HU-UFSC), jaquelinestacio@gmail.com
(3)Departamento de Fonoaudiologia, Universidade Federal de Santa Catarina, madalena.pinheiro@ufsc.br
(4) Departamento de Engenharia Mecânica, Laboratório de Vibrações e Acústica, Universidade Federal de Santa
Catarina, stephan.paul@ufsc.br

RESUMO
Introdução: A voz é um importante fator para a comunicação e recebe influência de alguns fatores em
sua produção. Um deles, o feedback auditivo, está associado ao reconhecimento de fala e à produção
vocal, mostrando-se alterado em usuários de Aparelho de Amplificação Sonora Individual (AASI) e
Implante Coclear (IC). Assim, há algumas características marcantes na qualidade vocal destas pessoas.
Objetivo: analisar e comparar os parâmetros vocais de usuários de IC e usuários de AASI e entre os
grupos com surdez pré-lingual e pós-lingual. Método: Participaram 18 sujeitos, sendo eles 10 usuários
de IC e oito usuários de AASI. Realizou-se avaliação por meio da análise acústica da voz com o software
PRAAT. Os dados foram submetidos à análise estatística por meio do teste Mann Whitney U e pelo
teste de correlação de Spearman. Foram considerados significantes os valores p<0,05. Resultados: houve
diferença estatística entre o grupo de IC e AASI em relação aos valores de formantes (F1, F2, F3).
Observou-se, ainda, grande semelhança na maioria dos dados encontrados entre os grupos com relação
parâmetros avaliados. Conclusão: Não foi possível observar diferença entres os dispositivos auditivos
em relação a eventuais benefícios na qualidade vocal, principalmente devido aos vieses que compõem
a surdez e a voz.
Palavras-chave: surdez, auxiliares de audição, qualidade da voz.
ABSTRACT
Introduction: The voice is an important factor for communication and its production is influenced by
several factors. One of them, auditory feedback, is associated to speech recognition and voice production
and is impaired in hearing individual hearing aid and cochlear implant (CI) users. Thus, there are some
characteristic vocal quality parameters for these people. Aim: to compare the voice parameters of
cochlear implant and individual hearing aid users, considering pre and post-lingual deafness. Methods:
the participants were 18 subjects, 10 of whom were CI users and eight individual hearing aid users.
Acoustic voice assessment was performed using PRAAT. Data were submitted to statistical analyses,
using the Mann Whitney U test and Spearman’s Correlation test. Values p<0.05 were considered
significant. Results: there was a statistical difference between groups regarding Formant (F1, F2, F3)
values. There was a great similarity between both groups in most of the analyzed data. Conclusion: there
was no significant differences observed between the auditory devices regarding benefits to vocal quality,
mainly due to the factors interfering between hearing impairment and voice.
Keywords: hearing impairment, hearing aids, voice quality

DOI: 10.17648/sobrac-87116
1. INTRODUÇÃO

O uso da voz depende de diversos fatores para que ela seja emitida de forma clara e
consiga transmitir a mensagem desejada. Dentre eles está o adequado funcionamento das
estruturas fonoarticulatórias, – que são componentes dos sistemas respiratório e
estomatognático – responsáveis pela força aerodinâmica, fonte de voz e articulação para a
produção da fala1. A fala de um indivíduo depende de parâmetros que são derivados de
características pessoais, uma vez que esses dependem da anatomia de cada um e também se há
algum tipo de fator determinante para a existência de alterações.
Dentre os diversos fatores que podem acarretar modificações vocais está a surdez,
responsável por uma série de aspectos que definem os marcadores vocais típicos da voz do
deficiente auditivo (DA), como tempo máximo de fonação reduzido e emissão entrecortada,
intensidade vocal aumentada e frequência fundamental elevada e/ou de extensa variabilidade,
além de tempos máximos de fonação entrecortados e articulação imprecisa, pelo
comprometimento da autopercepção da fala por meio da audição. Além disso, autores mostram
que parâmetros acústicos como frequência fundamental, shimmer (variação de amplitude), jitter
(variação de frequência), proporção harmônico-ruído e formantes F1, F2 e F3 podem estar
alterados em relação ao padrão de normalidade de um indivíduo ouvinte2. Dessa maneira, estes
marcadores fazem que o DA possa ser identificado como tal por meio da fala, causando
impactos sociais e psicológicos em sua vida3.
Ademais, outro fator determinante com grande influência na comunicação oral do
indivíduo com DA é o período no qual a deficiência auditiva se instalou, podendo ser pré ou
pós-lingual. O período pré-lingual corresponde ao momento da perda auditiva antes da
aquisição de linguagem, enquanto que o período pós-lingual ocorre após o sujeito já possuir
uma linguagem oral estabelecida4.
Visando à reabilitação desses sujeitos com deficiência auditiva e a sua inserção na
comunidade oralizada, diversas tecnologias assistivas à audição foram desenvolvidas, como o
aparelho de amplificação sonora individual (AASI) e o implante coclear (IC). O AASI consiste
em um aparelho de amplificação externo, que permite a habilitação ou reabilitação do indivíduo
com perda auditiva de grau leve à profunda. No entanto, em pacientes portadores de perdas
auditivas sensórioneurais severas e profundas bilateralmente, o ganho acústico é insuficiente,
restringindo-os a ouvir sons de alerta ou de alta intensidade sonora4. Como alternativa tem-se
atualmente o IC, um dispositivo eletrônico implantável que estimula diretamente os gânglios
espirais das fibras aferentes do nervo auditivo, para que o indivíduo possa receber novamente
os estímulos sonoros5,6. Dessa forma, pessoas com perdas auditivas de grau severo a profundo
– sem benefícios com o uso de AASI – podem escutar e compreender a fala7.
Estudos demonstram que o reconhecimento de fala para esses indivíduos necessita estar
associado ao feedback auditivo, para que o DA possa restabelecer ou melhorar sua qualidade
vocal, uma vez que o monitoramento auditivo parece ser importante no controle de frequência
fundamental e na melhora da precisão articulatória da fala2,8.
Não há dúvidas de que a voz é um importante meio de comunicação entre o interlocutor
e o ouvinte. Sendo assim, dado que sujeitos com deficiência auditiva tenham grandes
dificuldades de comunicação, é importante que haja uma atenção direcionada também sobre
sua voz, visto que essa muitas vezes é o principal meio e fonte de comunicação de deficientes

DOI: 10.17648/sobrac-87116
auditivos usuários de tecnologias auditivas e que por vezes apresenta alterações importantes e
dignas de atenção3.
Uma vez que no meio científico são diversos os estudos que comparam sujeitos normo-
ouvintes com sujeitos com deficiência auditiva, viu-se a necessidade da comparação entre as
vozes de sujeitos com deficiências auditivas que usam diferentes tecnologias de reabilitação
auditiva. Dessa forma, o objetivo deste trabalho foi comparar os parâmetros vocais de usuários
de IC e usuários de AASI em pessoas com surdez pré-lingual e pós-lingual, com a hipótese de
que talvez uma das tecnologias forneça melhores informações acústicas no feedback auditivo
para monitoramento da fala, estando este diretamente relacionado com a qualidade vocal e
inteligibilidade de fala9.

2. MÉTODO

Trata-se de estudo transversal, quanti-qualitativo e descritivo, realizado com usuários de


implante coclear e aparelho de amplificação sonora individual atendidos no Hospital
Universitário Polydoro Ernani de São Thiago (HU-UFSC), aprovado pelo Comitê de Ética para
Estudos com Seres Humanos da instituição. Todos os sujeitos assinaram o termo de
consentimento livre e esclarecido consentindo a sua participação na pesquisa.

2.1 Sujeitos

Participaram deste estudo usuários de implante coclear (IC) e usuários de aparelho de


amplificação sonora individual (AASI) com idades entre 18 e 45 anos e de ambos os sexos.
Foram incluídas 15 pessoas do sexo feminino e cinco do sexo masculino, sendo desses,
dois sujeitos para gravação controle, oito sujeitos do grupo de usuários de AASI e 10 sujeitos
do grupo de usuários de IC, totalizando 20 participantes.
Como critérios de inclusão, foram selecionados adultos usuários de IC em seguimento
em um serviço referência e pacientes usuários de AASI em avaliação inicial de seleção para a
cirurgia de IC com a equipe multidisciplinar. Ademais, esses pacientes deveriam ser maiores
de 18 anos e menores de 45 anos, a fim de se respeitar o limite do período de máxima eficiência
vocal10. Os pacientes usuários de IC deveriam estar com o dispositivo há pelo menos de 12
meses para atender ao período de ativação e tempo de início da reabilitação e por estabilização
dos limiares elétricos e cognitivos.
Foram excluídos pacientes com histórico de doenças neurológicas em ambos os grupos
de estudo; pacientes com dificuldades de compreender as instruções dadas durante a avaliação
dos parâmetros vocais ou de leitura, em ambos os grupos de estudo e pacientes que
compareceram à avaliação multidisciplinar sem utilizar o AASI, durante o período pré-
cirúrgico por pelo menos seis meses.
Finalmente, dois sujeitos ouvintes foram selecionados para referência, cumprindo os
critérios de inclusão e exclusão, além de necessariamente serem naturais da região de realização
da pesquisa para que não houvesse interferência do regionalismo local na avaliação da
qualidade vocal.

DOI: 10.17648/sobrac-87116
2.2 Procedimentos

Inicialmente foram coletados dados sócio demográficos por meio da aplicação de


questionário elaborado pelos autores e por meio de consulta de prontuário. Posteriormente,
como protocolo de gravação de amostra vocal, solicitou-se que os pacientes emitissem uma
vogal /a/ sustentada, emitissem uma sequência de seis sentenças foneticamente balanceadas, a
saber: Érica tomou suco de pêra e amora; Sônia sabe sambar sozinha; Olha lá o avião azul;
Agora é hora de acabar; Minha mãe namorou um anjo; Papai trouxe pipoca quente; além de
uma amostra de fala espontânea, conforme as orientações que constam do Protocolo Consenso
de Avaliação Perceptivo Auditiva da Voz (CAPE-V)11. As gravações foram realizadas em uma
cabina acusticamente tratada posicionando o microfone a aproximadamente seis centímetros da
boca do paciente. Os sinais foram gravados em formato .wav, em frequência de amostragem de
44100Hz e resolução de 16 bit. A duração da gravação foi em média de 15 minutos.
As análises dos sinais da fala foram realizadas por meio do do software PRAAT.
Analisou-se os parâmetros vocais de curta duração, tais como frequência fundamental f0,
shimmer (sh) e jitter (jit), proporção harmônico-ruído (PHR) e as médias das frequências dos
três primeiros formantes (F1, F2 e F3) das vogais /a/, /i/ e /u/.
A f0 foi extraída da vogal /a/ em tom habitual de fala, a partir de trecho estável da emissão
sustentada, analisando-se cerca de 30 ciclos para obtenção da média e do desvio padrão da f0.
A medida foi confirmada a partir da análise do traçado do formato de onda, da demarcação dos
pulsos pelo extrator automático e posteriormente no espectro obtido por Fast Fourier
Transform (FFT) a partir de um ponto isolado da mesma emissão., conforme demonstra a Figura
1. Após confirmação da f0, as demais medidas a ela relacionadas foram obtidas por meio do
extrator automático.

Figura 1. Seleção de trecho estável da forma de onda da emissão da vogal /a/ em posição
tônica de sentença veículo (“papAi trouxe pipoca quente”), utilizada para extração das medidas,
com marcação de ponto isolado em vermelho.

As frequências formânticas de três vogais orais do português /a/, /i/, /u/ foram obtidas por
meio da análise de emissões semiespontâneas a partir de frases veículo que constam do
protocolo CAPE-V. Foram selecionadas e demarcadas as vogais em posição tônica para serem
analisadas. De forma similar à análise da frequência fundamental f0, a vogal demarcada foi
analisada a partir do formato do traçado de onda, da geração de um espectrograma de banda
larga (Figura 2), e seleção de um ponto isolado do sinal para que as medidas fossem geradas
pelo extrator automático. A confirmação das frequências formânticas também foi realizada pela
análise do do espectro obtido por FFT do mesmo ponto.

DOI: 10.17648/sobrac-87116
Figura 2. Ilustração da vogal /a/ em posição tônica na palavra “papAi”, utilizada para
extração das frequências dos três primeiros formantes (F1, F2,F3).

Os resultados obtidos foram submetidos à análise estatística. Inicialmente a normalidade de


distribuição foi avaliada por meio do teste de Kolmogorov-Smirnof. Uma vez que a distribuição
dos dados foi considerada não gaussiana, foram utilizados para as análises posteriores técnicas
não-paramétricas, em particular o teste de Mann-Whitney U para comparação dos grupos e o
teste de correlação de Spearman, considerando significantes os valores de p < 0,05. As
frequências dos formantes produzidos pelos portadores de IC foram ainda comparadas às
frequências dos formantes produzidas pelos dois sujeitos-referência, além de serem analisados
de forma descritiva.

4. RESULTADOS

A amostra foi composta por quatro sujeitos do sexo masculino e 14 sujeitos do sexo
feminino, distribuídos em dois grupos, sendo um sujeito do sexo masculino no grupo AASI e
três sujeitos do sexo masculino no grupo IC. Foram gravados ainda as vozes de dois sujeitos
referência, um do sexo masculino e um do sexo feminino, para comparação descritiva.
A média de idade (32,6 anos no grupo AASI e 32,8 anos no grupo IC) e o tempo médio
de surdez (24,4 anos nos dois grupos) são praticamente iguais em ambos os grupos AASI e IC.
O grupo AASI apresentou mediana da média tritonal (frequências de 0,5, 1 e 2kHz) dos limiares
acústicos em 50dB (dp = 13,3), enquanto a mediana no grupo IC foi de 25 dB (dp = 3,6)
Ainda com relação à caracterização dos grupos, ao grupo AASI pertencem mais
indivíduos (cinco) com surdez pós-lingual, enquanto que ao grupo IC pertencem seis pessoas
com surdez pré-lingual. O tempo de utilização da tecnologia (em anos) foi maior no grupo
AASI, variando entre três e 28 anos, do que no grupo IC, em que esse variou entre um e 10
anos. A causa de surdez é desconhecida para 50% dos participantes do grupo AASI, enquanto
50% dos sujeitos do grupo IC tem como causa da surdez a rubéola congênita. Observou-se
grande semelhança entre os dois grupos em relação ao tempo de surdez, ao ganho acústico e
idade dos sujeitos. Os parâmetros vocais frequência fundamental (f0), jitter, shimmer e PHR
não apresentaram diferença estatística significante entre os grupos, conforme mostra Tabela 1.

DOI: 10.17648/sobrac-87116
TABELA 1 – Medianas da frequência fundamental f0 (Hz), jitter (%), do shimmer (%) e da
proporção harmônico-ruído PHR (%), com respectivos valores de p obtidos com o teste de
Mann-Whitney U, dos grupos de AASI (n=8; nfem=7; nmasc=1) e IC (n=10; nfem=9; nmasc=1) e
referências masculina (M) (nmasc=1) e feminina (F) (nfem=1).

AASI IC p-valor Referência M Referência F

122,7 220,0
f0 199,5 193,5 1

1,21 0,04
Jitter 0,48 0,44 0,505

6,78 2,06
Shimmer 7,80 4,80 0,534

12,3 21,9
PHR 14,5 16,5 0,131

Em relação aos formantes F1, F2 e F3 das vogais /a/, /i/ e /u/, observa-se na Tabela 2
que as medianas dos grupos AASI e IC são semelhantes em sua grande maioria, havendo
diferença com significância estatística apenas na F1 da vogal /u/, com p=0,013. Além disso, os
parâmetros característicos das vozes dos sujeitos referência também constam na tabela, sendo
possível observar grande semelhança entre os parâmetros destes e os dos grupos de estudo.
Considera-se aceitável uma variação de até 10% nas frequências dos formantes das vogais orais
do português brasileiro12. Variações superiores podem ser consideradas desviantes em relação
ao padrão de normalidade, que é, em si, dependente de variáveis como sexo e idade, que
implicam variações mais ou menos expressivas de f0, e também da região do falante, devido
aos ajustes articulatórios específicos impostos pelos regionalismos na fala . Ainda, no que
concerne a percepção de variações da frequência pelo indivíduo cabe lembrar que para tons
puros com frequências inferiores a 500 Hz a diferença no limiar do observável é de 3Hz e em
frequências superiores a 1800 Hz é de 0,7%, havendo um regime de transição entre 500 Hz e
1800 Hz. Já para formantes do inglês estudos sugerem que uma variação de 1,9% é perceptível
13
.

TABELA 2 – Medianas das frequências dos formantes F1, F2 e F3 (em Hz) das vogais /a/,
/i/ e /u/ dos grupos AASI (n=8; nfem=7; nmasc=1) e IC (n=10; nfem=9; nmasc=1) e das
referências masculina (M) (nmasc=1) e feminina (F) (nfem=1). Valores p obtidos pelo teste de
Mann-Whitney U.

AASI IC p-valor Referência M Referência F

F1/a/ 847,09 813,33 0,534 705,95 868,10

DOI: 10.17648/sobrac-87116
F2/a/ 1629,79 1545,50 0,248 1273,61 1691,96

F3/a/ 2727,39 2537,81 0,241 2621,25 3226,33

F1/i/ 337,31 359,76 0,722 327,90 388,70

F2/i/ 2314,84 2192,84 0,594 1947,15 2358,22

F3/i/ 2910,82 2792,12 0,131 2689,66 2849,09

F1/u/ 314,48 396,19 0,013* 411,02 317,53

F2/u/ 1202,61 1163,20 0,657 2151,20 1002,66


F3/u/ 2844,27 2694,56 0,424 3574,09 2792,91

O teste de correlação de Spearman, utilizado para correlacionar os parâmetros


frequência fundamental f0, shimmer, jitter e proporção harmônico-ruído (PHR) observados na
Tabela 1, demonstrou, no geral, semelhança entre os parâmetros analisados para o grupo IC e
o grupo AASI. Em contrapartida, algumas correlações significantes foram encontradas, como,
por exemplo, o jitter em relação à PHR (p-valor=0,05 e r= -0,46), bem como média do formante
F2/i/ com correlação direta com valores de F1e F2/a/ e correlação inversa com F2/u/.

5. DISCUSSÃO

É importante refletir sobre as diferentes formas de reabilitação da comunicação do


deficiente auditivo e seus algoritmos cada vez mais avançados em meio a diferentes dados dos
sujeitos, como tempo de surdez, ganho acústico entre outros, com o intuito de entender quais
desses fatores realmente pode trazer benefícios para a qualidade vocal dos usuários. Um estudo
de revisão sistemática constatou um número pequeno de estudos sobre a qualidade vocal do DA
e ressalta que esses estudos não demonstraram, com precisão, os efeitos da tecnologia do
implante coclear na melhora da qualidade vocal dos usuários14.
Nesse mesmo sentido, verificou-se, no presente estudo, que a mediana do limiar
acústico (média tritonal dos limiares em 0,5, 1 e 2 kHz) foi menor no grupo de IC, quando
comparada ao grupo de ASSI, mostrando que o IC reestabeleceu os limiares auditivos de forma
melhor que o AASI nos grupos estudados. Ainda assim, não houve diferenças significativas
entre os grupos, com relação aos parâmetros de qualidade vocal analisados.
Ressalta-se que há uma distribuição muito parecida de sujeitos com surdez pré e pós-
lingual nos dois grupos. Dessa forma, a comparação entre os diferentes dispositivos de
reabilitação auditiva pode ter sofrido interferência dessa variável, que é um fator fundamental
no desenvolvimento da fala. É plausível que pessoas com surdez pré-lingual apresentem mais
alterações na qualidade vocal devido ao maior tempo de privação de feedback auditivo4.
Os parâmetros frequência fundamental (f0), jitter, shimmer e PHR apresentaram grande
semelhança nos grupos IC e AASI. Todavia, estudos mostram que as vozes de pacientes
deficientes auditivos usuários de IC ou AASI apresentam alterações nestes parâmetros quando

DOI: 10.17648/sobrac-87116
comparadas às vozes de sujeitos normo-ouvintes2,15-19. Ubrig et al encontraram redução de f0
nos sujeitos com deficiência auditiva após a cirurgia de implante coclear em ambos os sexos,
quando comparado ao mesmo grupo antes da cirurgia. No presente estudo, as comparações com
os dois sujeitos-referência foram realizadas apenas de forma descritiva, uma vez que não foi
utilizado grupo controle20.
Considerando-se a análise dos três primeiros formantes (F1, F2 e F3) das vogais /a/, /i/
e /u/, observou-se maior frequência de F1/u/ no grupo IC (p= 0,01), indicando que houve
diferença significante no F1 para a produção da vogal /u/ entre o grupo de usuários de AASI e
de IC. Isso indica que houve maior elevação da língua na produção do /u/ pelos participantes
do grupo AASI em comparação aos do grupo IC, o que está mais semelhante à produção de /u/
por normo-ouvintes21. Cukier e Camargo, observaram que o F1 da vogal /a/ no usuário de AASI
é diferente do F1 de indivíduos ouvintes, sugerindo dificuldade na manutenção do formato do
trato vocal, em especial na posição da língua, para a produção dessa vogal, fato que poderia
confirmar os valores encontrados neste estudo15. É válido ressaltar que a comparação realizada
na presente pesquisa foi entre sujeitos com deficiência auditiva e não com sujeitos normo-
ouvintes.
No entanto, Horga e Liker, realizaram um estudo comparativo entre crianças usuárias
de IC e usuárias de AASI, e observaram que a vogal /a/ é menos inteligível quando produzida
por usuários de IC se comparado ao grupo AASI. Também verificaram que os F1 do grupo
AASI se encontram mais próximos dos padrões de normalidade de ouvintes do que os F1 do
grupo IC22.
Ainda sobre os formantes, uma vez que F2 é determinado pelo movimento da língua no
eixo horizontal e ao deslocamento anterior e posterior dessa estrutura na cavidade oral, é
possível inferir também que a língua encontra-se em posição mais anteriorizada durante a
articulação das vogais em ambos os grupos de estudo. Esses dados podem ser comparados com
o estudo de Prado que verificou que indivíduos com deficiência auditiva apresentam
comumente frequências de F2 que indicam a anteriorização de língua17. Ademais, Hocevar-
Bolcevar verificaram que F1 e F2 da vogal /a/ em sujeitos com IC diminuíram ligeiramente em
frequência, enquanto as frequência dos mesmos formantes de /i/ e /u/ aumentaram23. Sendo
assim, a diversidade de achados nessa dimensão de análise sugere que, de fato, vários fatores
podem interferir na qualidade vocal do deficiente auditivo, como tempo de surdez, tempo de
uso e tipo de tecnologia utilizada7,24.
No entanto, é importante ressaltar que a frequência de F2 da vogal /i/ apresentou
correlação inversa com a frequência de F2 da vogal /u/ nos os dois grupos (p=0,02), indicando
que tanto os usuários de AASI como os de IC realizam movimentos articulatórios suficientes
para a discriminação fonética das vogais, fator de extrema importância para inteligibilidade de
fala, uma vez que esses são sons específicos com pontos articulatórios muito diferentes entre
si25. No que diz respeito à idade dos sujeitos, foi possível observar correlação direta (p=0,03)
com a frequência de F2 da vogal /a/. Sendo assim, quanto maior a idade do sujeito, maior a
frequência de F2/a/, podendo esse fator estar relacionado à diminuição do tônus, característico
dos indivíduos com o avançar da idade que poderia causar um espalhamento da língua,
diminuindo o espaço na cavidade oral. Teles e Rosinha, encontraram em um estudo com
mulheres sem queixas e/ou alterações vocais, que o grupo com maior idade apresentou menores

DOI: 10.17648/sobrac-87116
frequências de F2, podendo esse fator ter relação com a redução de tônus de língua em virtude,
ou não, da idade26 e não especificamente devido à perda de audição.
Foi observada ainda diferença estatisticamente significativa em relação às frequências
dos formantes F2/a/ e F3/u/ no grupo com surdez pós-lingual. Sendo assim, é possível inferir
que esse grupo encontra-se com a língua mais anteriorizada na produção da vogal /a/ e realiza
maior constrição do trato vocal durante a produção da vogal /u/.
Sabe-se que as características individuais da voz não podem ser definidas apenas pela
surdez ou tempo de privação de feedback auditivo, embora este seja um fator importante nos
sujeitos da pesquisa. Ademais, é preciso considerar que a qualidade vocal, principalmente
quando entendida em uma perspectiva fonética, é definida por fatores que são tanto anatômicos
como individuais e que são oriundos de uma série de ajustes de fala, usados durante um longo
período de tempo. Fatores como sexo e idade, por exemplo, influenciam a geometria do trato
vocal, e desta forma também são determinantes na definição da qualidade vocal do sujeito,
independentemente da presença de feedback auditivo27.

6. CONCLUSÃO

Observou-se grande semelhança na maioria dos parâmetros que caracterizam as vozes


dos integrantes dos grupos de usuários de IC e AASI. Dessa forma, não foi possível observar
diferença nos benefícios para a qualidade vocal entre as tecnologias analisadas como previsto
na hipótese inicial, uma vez que são diversos fatores que podem influenciar nessa qualidade
vocal, como por exemplo, o tempo de privação auditiva. No entanto, é válido acrescentar que
os grupos de estudos da pesquisa possuem características individuais, além da surdez, que são
fatores imprescindíveis para a definição de sua qualidade vocal. A análise dos dados sugere que
uma amostra maior de sujeitos pode conferir uma compreensão mais abrangente dos fenômenos
estudados e das reais diferenças entre os grupos.

7. REFERÊNCIAS

[1] Chávez, F.S.; Chocano, A.D. "Órgãos" ou "estruturas" fonoarticulatórias: um deslinde teórico - conceitual.
Rev. Cefac. v. 12, p. 721-726, 2010.
[2] Hocevar-Boltezar, I.; Radsel, Z.; Vatovec, J.; Geczy, B.; Cernele, S.; Gros, A. et al. Change of phonation
control after cochlear implantation. Otology & Neurology. v. 27, p. 499-503, 2006.
[3] Giusti, M.C.; Padovani, M.M.P.; Behlau, M.; Granato, L. A voz de crianças com deficiência auditiva. Jornal
Brasileiro de Otorrinolaringologia, v. 67, p. 29-35, 2001.
[4] Fabron, E.M.G.; Garcia, Y.S.; Delgado-Pinheiro, E.M.C. A voz do deficiente auditivo: revisão bibliográfica.
Rev. Dist. Comunic, v. 29, p. 55-67, 2017.
[5] Zandavalli, M.B.; Christmann, L.S.; Garcez, V.R.C. Rotina de procedimentos utilizados na seleção e adaptação
de aparelho de amplificação sonora individual em centros auditivos na cidade de porto alegre, Brasil – RS. Rev.
Cefac, v. 11, p. 106-115, 2008.
[6] Costa, A.O.; Bevilacqua, M.C.; Amantini, R.C. Considerações sobre o implante coclear em crianças In:
Bevilacqua, M.C.; Moret, A.L.M. Deficiência auditiva: conversando com familiares e profissionais da saúde. 1ª
ed. São José dos Campos: Pulso. p. 123-138, 2005.
[7] Moret, A.L.M.; Bevilacqua, M.C.; Costa, A.O. Implante coclear: audição e linguagem em crianças deficientes
auditivas pré-linguais. Rev. Pró Fono. v. 19, p. 295-304, 2007.
[8] Coelho, A.C.C.; Bevilacqua, M.C.; Oliveira, G.; Behlau, M. Relação entre voz e percepção de fala em crianças
com implante coclear. Rev. Pró Fono. v. 21, p. 7-12, 2009.

DOI: 10.17648/sobrac-87116
[9] Bittencourt, A.G.; Torre, A.A.G.D.; Bento, R.F.; Tsuji, R.K.; Brito, R. Surdez pré-lingual: os benefícios do
implante coclear versus prótese auditiva convencional. Arq. Int. Otorrinolaringol. v. 16, p. 387-390, 2012.
[10] Behlau, M.S.; Azevedo, R.; Pontes, P. Conceito de voz normal e classificação das disfonias. In: Behlau M.
Voz: o livro do especialista. 1ª ed. Rio de Janeiro: Revinter. p. 53-84, 2001.
[11] Behlau M. Consensus Auditory – Perceptual Evaluation of Voice (CAPE-V). ASHA. 2003. Rev. Soc. Bras.
Fonoaudiol. v. 9, p. 187-189, 2004.
[12] Svicero, M.A.F. Caracterização acústica de imagens de ultrassonografia das vogais do português brasileiro
[dissertação]. São Paulo; Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2012
[13] Hawks, JW. Difference limens for formant patterns of vowel sounds. J Acoust. Soc. Am. 1995 (2): 1074-84
[14] Coelho, A.C.; Brasolotto, A.G.; Bevilacqua, M.C. Análise sistemática dos benefícios do implante coclear na
produção vocal. Jrl. Soc. Brasil. Fonoaudiol. v. 24, p. 395-402, 2012.
[15] Cukier, S.; Camargo, Z. Abordagem da qualidade vocal em um falante com deficiência auditiva: aspectos
acústicos relevantes do sinal de fala. Rev. Cefac. v. 7, p. 93-101, 2005.
[16] Evans, M.K.; Deliyski, D.D. Acoustic voice analysis of prelingually deaf adults before and after cochlear
implantation. Journal of voice. v. 21, p. 669-682, 2007.
[17] Prado, A.C. Principais características da produção vocal do deficiente auditivo. Rev. Cefac. v. 9, p. 404-410,
2007.
[18] Hocevar-Boltezar, I.; Vatovec, J.; Gros, A.; Zargi, M. The influence of cochlear implantation on some voice
parameters. Int. Jrl. of Pediat. Otorhinolol. v. 69, p. 1635-40, 2005.
[19] Knight, K.; Ducasse, S.; Coetzee, A.; Van der Linde, J.; Louw, A. The effect of age of cochlear implantation
on vocal characteristics in children. South African Journal of Communication Disorders. v. 63, p. 142-148, 2016.
[20] Ubrig, M.T.; Goffi-Gomez, M.V.; Weber, R; Menezes, M.H.M.; Nemr, N.K.; Tsuji, D.H. Voice analysis of
postlingually deaf adults pre na postcochlear implantation. Journal of Voice. v. 25, p. 692-9, 2010.
[21] Mendonça, C.S.I. A nasalidade vocálica do português brasileiro: Contribuições de uma análise acústica e
aerodinâmica da fala. Tese [Doutorado em Linguística]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina,
2017.
[22] Horga, D.; Liker, M. Voice and pronunciation of cochlear implant speakers. Clinical Linguistics & Phonetics.
v. 20, p. 211-7, 2006.
[23] Hocevar-Boltezar, I.; Boltezar, M.; Zargi, M. The influence of cochlear implantation on vowel articulation.
Wien Klin Wochenschr. v. 120, p. 228-33, 2008.
[24] Melo, T.M.; Moret, A.L.M.; Bevilacqua, M.C. Avaliação da produção de fala em crianças deficientes
auditivas usuárias de implante coclear multicanal. Rev. Soc. Bras. Fonoaudiol. v. 13, p. 45-51, 2008.
[25] Schenk, B.S.; Baumgartner, W.D.; Hamzavi, J.S. Effect of the loss of auditory feedback on segmental
parameters of vowels os postlingually deafened speakers. Auris Nasus Larynx. v. 30, p.333-9, 2003.
[26] Teles, V.C.; Rosinha, A.C.U. Análise acústica dos formantes e das medidas de perturbação do sinal sonoro
em mulheres sem queixas vocais, não fumantes e não etilistas. Arq. Int. Otorrinolaringol. v. 12, p. 523-30, 2008.
[27] Camargo, Z.A. Análise da qualidade vocal de um grupo de indivíduos disfônicos: uma abordagem
interpretativa e integrada de dados de natureza acústica, perceptiva e eletroglotográfica. Tese [Doutorado em
Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2002.

DOI: 10.17648/sobrac-87116
Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)

Você também pode gostar