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As fo nt e s p r i m á r i a s d e u m a h i st ó r i a

n at u ra l d a p a l et a d o a r t i st a

philip ball
t ra d u ç ã o : ro b e r t o o l i ve i ra
A pesar de todos os seus apelos transcendentais, a arte sempre foi inex-
tricavelmente fundamentada nas realidades materiais de sua produ-
ção, um entorno mais evidente na intrigante história das cores dos
artistas. Aprimorando-se no trio primário de pintura do vermelho, amarelo e
azul, Philip Ball explora a ciência e as histórias por trás dos pigmentos, desde
o ocre vermelho de Lascaux até o azul de Yves Klein.
Tendo levado muitos séculos para descobrir quais são as cores primá-
rias, estamos no processo de abandoná-las. Hoje, essa noção pode suscitar
discussões furiosas entre os especialistas. Para alguns, o trio que muitos de
nós aprendemos na escola – vermelho, amarelo e azul – aplica-se apenas à
mistura de pigmentos; caso se trate de luz, como nos pixels das telas de tele-
visão, as cores primárias são diferentes (aproximadamente, vermelho, azul,
verde). Mas, na impressão à tinta, usa-se outro sistema “primário”: amarelo,
ciano e magenta. E no espectro arco-íris da luz visível, não há hierarquia al-
guma: nada justifica promover a luz amarela mais do que a laranja, de com-
primento de onda ligeiramente mais longo.
Além disso, embora os pintores sejam ensinados a misturar cores –
como azul e amarelo para dar verde – aprendem logo que os resultados po-
dem ser decepcionantemente lamacentos em comparação a um pigmento
“puro” com a cor pretendida: é especialmente difícil obter um roxo vivo a
partir do vermelho e do azul. Em resultado, muitas vezes os artistas pensam
na cor não tanto como uma propriedade abstrata, mas em termos da subs-
tância que a produz: vermelho garança, azul ultramarino, amarelo cádmio.
Para entender verdadeiramente o que a cor significa para o artista, preci-
samos pensar em sua materialidade. Em outras palavras, o que a paleta do
artista é capaz de produzir sempre dependeu dos materiais à sua disposição
e de seu engenho em obtê-los.

3
Prancha 3 do Exposé d’un moyen de définir
et de nommer les couleurs (1861) de Michel
E. Chevreul
ve r
me
lho
5
E sse engenho nunca faltou. Durante a última Era do Gelo, a vida era
dura, brutal e curta, mas, ainda assim, se encontrava tempo para a
arte. Ferramentas de cerca de cem mil anos atrás foram encontradas
na caverna Blombos na costa da África do Sul: pedras de amolar e pedras
de martelo para esmagar um pigmento ocre vermelho natural, e conchas
de abalone para misturar o pó com gordura animal e urina para fazer uma
tinta que seria usada para decorar corpos, peles de animais, e talvez pare-
des de cavernas. As pinturas feitas há 15-35 milênios em Chauvet, Lascaux
e Altamira atestam a genuína arte que os primeiros seres humanos fize-
ram utilizando as cores facilmente à mão: carvão preto, giz branco e osso
moído, e os vermelhos terrosos e amarelos de ocre, uma forma mineral de
óxido de ferro.1
Mas os pigmentos vermelhos clássicos não dependem de minerais de
ferro – cuja tonalidade não é o vermelho glorioso de um pôr-do-sol ou de
sangue – mas da terra. Durante muitos séculos, o vermelho primário da pale-
ta veio de compostos de dois outros metais: chumbo e mercúrio. Para fazer o
pigmento conhecido como “chumbo vermelho” – utilizado na Antiga China,
Egito, Grécia e Roma – primeiro, oxidava-se o chumbo com vapor de vinagre,
tornando a superfície branca e, depois, se aquecia esse material no ar.
Romanos como Plínio chamavam qualquer vermelho brilhante de minium,
mas no Medievo esse termo latino era quase sinônimo de chumbo verme-
lho, extensamente usado na iluminação de manuscritos. Do verbo miniare
(pintar em miniatura) obtemos o termo “miniatura”: que, entretanto, não
tem nada a ver com o latim minimus. A associação hoje com uma escala di-
minutiva vem simplesmente das restrições de encaixar uma miniatura na
página de um manuscrito.

6
Ilustração para o poeta Kristan von
Hamle ( folio 71v), do Codex Manesse,
uma antologia poética do início do século
XIV feita em Zurich
Plínio considerava que o minium de melhor qualidade era um pigmento
vermelho diferente, chamado cinábrio, um mineral natural, quimicamente,
sulfeto de mercúrio. No Mundo Antigo, em parte, era extraído para ser usa-
do como corante vermelho, mas também porque o metal líquido mercúrio
podia ser facilmente extraído do mesmo através do aquecimento. Pensava-
-se que o mercúrio tinha propriedades quase milagrosas: os antigos alqui-
mistas chineses, em particular, o utilizavam em medicamentos.
Na Idade Média, alquimistas e artesãos sabiam como produzir artifi-
cialmente sulfato de mercúrio juntando mercúrio líquido e o enxofre ama-
relo, de aroma penetrante (disponível em forma mineral) em um recipiente
selado e aquecendo-os. Este processo, descrito no manual De diversis artibus
(ca. 1122) pelo monge alemão Theophilus, pode dar um pigmento de quali-
dade mais fina do que o cinábrio natural. Era um procedimento de grande
interesse também para os alquimistas, pois os estudiosos árabes dos séculos
VIII e IX haviam afirmado que o mercúrio e o enxofre eram os ingredientes
básicos de todos os metais – de modo que combiná-los poderia ser um ca-
minho para fazer ouro. Teófilo não tinha esse objetivo esotérico em mente;
só queria obter uma tinta vermelha de boa qualidade.
Este “cinábrio artificial” ficou conhecido com o nome de vermelhão.
A etimologia é curiosa e mostra o confuso e traiçoeiro fluxo dos termos re-
lativos às cores em uma época em que o matiz de uma substância parecia
mais significativo do que noções vagas e pré-científicas de sua identidade
química. Deriva do latim vermiculum (“pequeno verme”), uma vez que um
vermelho vivo era extraído de uma espécie de inseto esmagado: não um pig-
mento de tinta, mas um corante translúcido de cor escarlate, decorrente de
uma substância orgânica (à base de carbono) produzida por certos insetos.*

N.T.: Trata-se da cochonilha ou Kermes vermilio, corante de cor vermelho-escura utilizado em


larga escala pela indústria cosmética e alimentícia, emprestando sua cor a biscoitos, geléias,
sobremesas, também empregado em medicamentos e roupas, normalmente especificado como
“Corante natural carmim de Cochonilha.
8
Rafael, Retrato do Papa
Júlio II, 1511
Tais corantes também eram conhecidos como kermes (do sânscrito
kirmidja: “derivado de uma minhoca”), a raiz etimológica do carmesim.
Como os insetos que o produzem eram encontrados em árvores mediter-
râneas como cachos incrustados em uma resina, assemelhando-se a bagas,
os corantes também eram chamados de granum, ou seja, grãos. Daí vem o
termo granulado, implicando em um pano tingido em grãos: o corante era
tenaz e não desbotava facilmente. “’Esse granulado senhor, suportará o ven-
to e o tempo”, Olivia assegura Viola sobre uma pintura em Noite de Reis.2
As tintas vermelhas estavam associadas à majestade, opulência, status
e importância: eram as cores utilizadas para os trajes dos cardeais. Os pin-
tores precisavam de tintas vermelhas finas para pintar em madeira e tela
estes dignitários cujos retratos eram cada vez mais encomendados: O Papa
Júlio II, de Rafael (1511-12), deriva sua aura de poder, em parte, do brilho
de seus vermelhos.
O chumbo vermelho e o vermelhão serviram bem na Idade Média, mas
a crescente demanda por verossimilhança no Renascimento significou que
o matiz alaranjado de chumbo vermelho ou vermelhão não era adequado
para representar em tela a magnificência purpúrea dessas tinturas. Uma al-
ternativa era transformar os próprios corantes em pigmento de tinta, fixan-
do suas moléculas de cor a partículas sólidas e incolores que pudessem ser
secas e misturadas com óleos. Este processo envolvia alguma química de-
safiadora, mas até mesmo os Antigos Egípcios sabiam como fazê-lo. A ideia
básica é precipitar um sólido branco de grão fino dentro de uma solução do
corante: o corante se cola às partículas, que secam para fazer um pó verme-
lho escuro. Na Idade Média, este processo utilizava o alúmen mineral, que
pode ser convertido em hidróxido de alumínio branco insolúvel. O pigmen-
to feito desta forma era chamado de laca, a partir da palavra (persa, lak)
para uma resina vermelha exsudada por insetos originários da Índia e do
Sudeste Asiático.
Uma das melhores lacas vermelhas do final da Idade Média e do Re-
nascimento era feita a partir do corante extraído da raiz da garança. Como
10
a fabricação da laca foi aperfeiçoada, artistas como Tiziano e Tintoretto
começaram a usar estes pigmentos misturados com óleos, dando uma tin-
ta ligeiramente translúcida que eles aplicariam em muitas camadas para
uma coloração vermelho-vinho profunda ou passar por cima de um azul
para fazer roxo.
Além da criação de laca vermelha, muito pouco sobre os vermelhos
do pintor mudou desde a Idade Média até os tempos modernos. Os im-
pressionistas do final do século XIX fizeram um uso ávido dos novos
amarelos, laranjas, verdes, roxos e azuis que os avanços da química lhes
deram, mas seus vermelhos profundos não eram realmente diferentes
dos de Rafael e Tiziano.
Foi somente no início do século XX que um novo vermelho vibrante e
confiável entrou no repertório. A descoberta do cádmio, em 1817, produziu
imediatamente novos pigmentos amarelos e alaranjados, mas um vermelho
profundo foi feito a partir deste elemento apenas por volta da década de
1890. O amarelo e o laranja são ambos sulfeto de cádmio; mas para obter um
vermelho, parte do enxofre neste composto é substituído por selênio, um
elemento a ele relacionado. Só em 1910, o vermelho cádmio se tornou am-
plamente disponível como cor comercial, e sua produção passou a ser mais
econômica quando a empresa química Bayer modificou o método em 1919.
O vermelho cádmio é uma cor rica e quente – e sem dúvida o vermelho
preferido do pintor, exceto pelo preço. Isso era certamente verdade para
Henri Matisse, para quem o vermelho tinha uma valência especial – como
atestam seus interiores em La Desserte (também conhecida como The Red
Room, 1908), Red Studio (1911) e Large Red Interior (1948). Do segundo de-
les, o crítico de arte John Russell disse: “É um momento crucial na história
da pintura: a cor está no auge e aproveitada ao máximo”3.

11
Henri Matisse,
The Red Studio, 1911
ama
re l o

13
O s ocres usados pelos artistas da pré-história lhes ofereciam não ape-
nas vermelhos enferrujados, mas também uma espécie de amarelo
natural. Este ocre amarelo era, no entanto, o matiz de cabelo alourado
e madeira, mas, de modo algum próprio para tulipas ou túnicas de cetim de
um imperador.
Os amarelos mais brilhantes eram, desde a Antiguidade, feitos de com-
postos sintéticos de estanho, antimônio e chumbo. Os Antigos Egípcios sa-
biam como combinar chumbo com minério de antimônio e, de fato, uma
forma mineral natural desse composto amarelo (antimonato de chumbo)
também era usado como material de artistas. Ele podia ser encontrado nas
encostas vulcânicas do Monte Vesúvio, e, por isso, veio a ser associado a
Nápoles. Dessa forma, a partir do século XVII, um amarelo composto de
estanho, chumbo e antimônio era frequentemente chamado de “amarelo
de Nápoles”. Outras receitas para um amarelo de aparência semelhante
especificavam a mistura dos óxidos de chumbo e estanho. Os ingredien-
tes nem sempre eram muito claros. Assim, quando os pintores medievais
italianos se referem ao giallorino, não se pode ter certeza se estão falan-
do de um composto de chumbo-estanho ou de chumbo-antimônio, sendo
improvável que tenham reconhecido muita distinção. Antes da química
moderna esclarecer questões do final do século XVIII, os nomes para pig-
mentos podiam se referir à tonalidade, independentemente da composi-
ção ou origem, ou vice-versa. Tudo isso gerou muita confusão, e apenas
pelo nome nem sempre se podia ter certeza do que se estava adquirindo
– ou, para o historiador atual, o que um pintor de muito tempo atrás estava
usando ou se referindo.

14
Em alguns aspectos, isso ainda é verdade hoje. Um tubo de “amare-
lo de Nápoles” moderno não conterá chumbo (evitado por sua toxicidade)
ou antimônio, mas pode ser uma mistura de branco titânio e amarelo cro-
mo, combinado para imitar a cor do material tradicional. Não há mal nisso;
pelo contrário, é provável que a tinta não só seja menos venenosa, como
também mais estável, para não dizer mais barata. Porém, exemplos como
este mostram como as cores casadas dos artistas são as cores das tradições
das quais surgiram. Quando se fala em vermelhão, amarelo indiano, marrom
Van Dyke, orpimento, o nome faz parte do fascínio, sugerindo uma profun-
da e rica ligação com os Velhos Mestres.
Uma coisa é certa: você não encontrará o belíssimo orpimento amarelo
na paleta do pintor moderno (a menos que, talvez, estejam ali consciente-
mente e, neste caso, de forma bastante ocasional, usando materiais arcai-
cos). É um amarelo profundo, dourado, mais fino que o amarelo de Nápoles
e o amarelo chumbo-estanho. O nome significa simplesmente “pigmento de
ouro”, e o material remonta à Antiguidade: os egípcios o faziam moendo um
raro mineral amarelo. Mas, na Idade Média, os perigos do orpimento eram
bem conhecidos. O artista italiano Cennino Cennini diz em seu manual Il
libro ‘dell arte, escrito no final do século XIV, que o mineral é “realmente
venenoso”, e aconselha a “ter cuidado para não sujar a boca com ele”.4 Isso
porque consiste no composto químico sulfeto de arsênico.
Orpimento era um dos pigmentos lindos, mas caros, importados do
Oriente para a Europa, especificamente, da Ásia Menor. (No início do sé-
culo XIX, também vinha da China, de modo que o orpimento era vendido
na Grã-Bretanha como amarelo chinês). Com frequência, tais importações
atraentes chegavam através do grande centro comercial de Veneza, e o or-
pimento era difícil de adquirir no norte da Europa durante a Idade Média
e Renascimento – a menos que, como o artista alemão Lucas Cranach, que
dirigia uma farmácia, você tivesse conexões especializadas com materiais
exóticos. Alguns orpimentos não eram feitos a partir do mineral natural,
mas artificialmente pelas manipulações químicas dos alquimistas. Este tipo
15
Rembrandt Harmenszoon van Rijn,
Retrato de um casal como Isaac e Rebecca
(conhecido como A Noiva Judia), ca. 1665
pode ser visto hoje em dia em pinturas antigas estudando as partículas de
pigmento sob o microscópio: aquelas feitas artificialmente tendem a ser
mais semelhantes em tamanho e têm grãos arredondados. A partir do sé-
culo XVIII, era comum se referir a este orpimento artificial como amarelo
do rei. Rembrandt evidentemente tinha um fornecedor do material, que foi
identificado em seu Retrato de um Casal como Isaac e Rebecca (frequente-
mente chamado de A Noiva Judia), pintado por volta de 1665.
Se os pintores holandeses queriam um orpimento amarelo dourado
sem o risco de envenenamento, a Era do Império forneceu outra opção. A
partir do século XVII, as pinturas holandesas (incluindo as de Jan Vermeer)
começam a apresentar um pigmento conhecido como amarelo indiano, tra-
zido do subcontinente pelos navios comerciais da Holanda. Chegou na for-
ma de bolas de um verde-amarelo sujo, embora brilhantes e imaculadas no
meio, que traziam o cheiro penetrante de urina. O que poderia ser este ma-
terial? De alguma forma, poderia ser realmente feito de urina? As especu-
lações a esse respeito eram abundantes; alguns diziam que o ingrediente
chave era a urina de cobras ou camelos, outros que era feito a partir da urina
de animais alimentados com cúrcuma.
O mistério parecia ter sido resolvido no final do século XIX por T. N.
Mukharji, um autor, funcionário público e curador do Museu Indiano de
Calcutá. Fazendo perguntas em Calcutá, Mukharji foi dirigido a uma aldeia
na periferia da cidade de Monghyr na província de Bihar, supostamente a
única fonte do material amarelo. Aqui, relatou ter descoberto que um gru-
po de proprietários de gado alimentava seus animais apenas com folhas de
manga. Eles coletavam a urina das vacas e a aqueciam para precipitar um
sólido amarelo que prensavam e secavam em pedaços.
As vacas (assim diz a história) não recebiam outra fonte de nutrição
e, portanto, estavam em condições precárias de saúde. (As folhas de manga
também poderiam conter substâncias levemente tóxicas.) Na Índia, tal falta
de cuidado com o gado era sacrílego, e a legislação efetivamente proibiu a
produção do amarelo indiano a partir dos anos 1890.
17
Ragamala (pintura na forma de miniatura)
do Rajput (grupo populacional do norte
da Índia), ca. 1700, mostrando o uso intenso
do “Indian yellow”
J. M. W. Turner, Teignmouth, 1812.
Uma das muitas pinturas de Turner usando
o “Indian yellow” e uma das poucas a
mostrar o animal cuja urina está no centro
da lenda dessa cor
Tem havido debates sobre o quanto desta história é verdadeira, mas o
esboço básico parece estar de pé – o pigmento tem uma composição quími-
ca complicada, mas contém sais de compostos produzidos a partir de subs-
tâncias existentes nas folhas de manga metabolizadas pelos rins.
Se os poderes mortíferos do arsênico ou a urina das vacas não agra-
davam aos artistas, a escolha dos amarelos, sem dúvida, literalmente,
não era muito brilhante. Havia extratos de plantas amarelas, tais como
solda ou açafrão, que desbotavam facilmente, ou compostos de estanho,
chumbo e antimônio com uma qualidade pálida e insípida. Não é difícil,
então, imaginar a excitação do químico francês Nicolas Louis Vauquelin
quando, no início do século XIX, descobriu que podia fazer um material
amarelo vibrante através da alteração química de um mineral da Sibéria
chamado crocoite.
Este material em si mesmo vermelho – era popularmente chamado
de chumbo vermelho siberiano, uma vez que realmente continha chumbo.
Mas, em 1797, Vauquelin também encontrou outra coisa: um elemento me-
tálico que ninguém tinha visto antes, e que nomeou com base na palavra
grega para cor, cromo ou cromium.
O nome foi escolhido apropriadamente, porque Vauquelin logo des-
cobriu que o cromo podia produzir compostos com várias cores brilhantes.
Crocoite é uma forma natural de cromato de chumbo e, quando Vauquelin
reconstituiu este composto artificialmente no laboratório, descobriu que po-
deria assumir uma forma amarela brilhante. Dependendo de como da forma
como era processado, este material poderia variar de um amarelo pálido de
prímula a uma tonalidade mais profunda, até o laranja. Vauquelin achou,
em 1804, que estes compostos poderiam ser pigmentos de artistas e, de fato,
eram sendo usados como tal, inclusive na época em que o químico francês
publicou seu relatório científico sobre eles, cinco anos depois.
O pigmento era caro, e assim permaneceu mesmo quando foram des-
cobertos depósitos de crocoite como fonte de cromo também na França,
Escócia e nos Estados Unidos. O cromo também podia fornecer verdes,
20
Georges Seurat, Gravelines, 1890
principalmente o pigmento que ficou conhecido como viridiano, avida-
mente utilizado pelos impressionistas e por Paul Cézanne.
As cores cromo desempenham um papel importante na explosão da
cor prismática durante o século XIX – evidente não apenas no Impressio-
nismo e sua progênie (Neo-Impressionismo, Fauvismo e o trabalho de Van
Gogh), mas também nas pinturas de J. M. W. Turner e dos Pré-Rafaelitas.
Depois das sombras escuras do século XVIII – pense nos retratos lamacen-
tos de Joshua Reynolds e na folhagem marrom de Poussin e Watteau – era
como se o sol tivesse saído e um arco-íris atravessado o céu. A própria luz
do sol, declarou o pós-Impressionista Georges Seurat, continha um amarelo
alaranjado dourado dentro dela.
Para seus amarelos beijados pelo sol, os Pré-Rafaelitas e Impressionis-
tas não precisavam depender apenas do cromo. Em 1817, o químico alemão
Friedrich Stromeyer notou que a fusão do zinco produzia um subproduto de
cor amarela no qual descobriu outro novo elemento metálico, partindo do
termo arcaico para minério de zinco, cadmia, ele o chamou cádmio. Dois
anos depois, enquanto experimentava a química deste elemento, descobriu
que se combinava com enxofre para fazer um amarelo particularmente bri-
lhante ou – com alguma modificação no processo – laranja. Em meados do
século, à medida que a fusão do zinco se expandia e mais do subproduto se
tornava disponível, esses materiais eram oferecidos para venda aos artistas
como amarelo de cádmio e laranja de cádmio.
Há uma lição nos pigmentos de cádmio que se aplica a todas as cores,
através de todas as idades: eles têm sido muitas vezes subprodutos de algum
outro processo químico, muitas vezes descobertos serendipiticamente quan-
do químicos e tecnólogos perseguem outros objetivos, como fazer, digamos,
pomadas, sabão, vidro ou metais.
Ou corantes. Se você comprar um tubo rotulado “amarelo indiano” hoje,
as mangas e vacas não tiveram nada a ver com isso. Provavelmente, ele con-
tém um pigmento sintético com o nome pouco romântico de PY (pigmento
amarelo) 139 - uma molécula à base de carbono que é uma das incontáveis
22
derivações da indústria que surgiu no século XIX para fornecer corantes
brilhantes para os têxteis. O primeiro destes corantes artificiais, descoberto
em 1856, foi a anilina malva. Um aniline yellow quimicamente relacionado
– membro da importante família de corantes chamados corantes azo – foi
vendido comercialmente a partir de 1863.
Esta fabricação de uma galáxia de cores sintéticas a partir de petroquí-
micos parece uma maneira profundamente pouco brilhante de iluminar o
mundo de hoje, em comparação com a era do amarelo do rei, açafrão e ama-
relo indiano. Poderia parecer que o que é salvo na bolsa é sacrificado no ro-
mance. Talvez sim. Mas os artistas são pessoas tipicamente pragmáticas, tão
sequiosos por novidade quanto apegados à tradição. Não houve tempo em
que não tenham rapidamente aproveitado novas fontes de cor tão logo estas
aparecessem, nem quando deixaram de confiar na química para gerá-las.
A colaboração entre arte e ciência, artesanato e comércio, acaso e design,
permanece tão vibrante como sempre.

23
azul
O azul sempre falou com algo além de nós mesmos: é uma cor que nos
atrai para o vazio, para o céu infinito. “Azul é a cor típica do céu”,
disse Wassily Kandinsky em seu livro O Espiritual na Arte (1912).5
E quem duvidaria depois de ver o teto da Capela da Arena em Pádua, pin-
tada por Giotto por volta de 1305, uma abóbada colorida como os últimos
momentos de um claro crepúsculo italiano? Algumas culturas nem sequer
consideram que o céu tenha uma tonalidade, como se reconhecessem que
nenhum espectro terrestre o pode conter. Na antiga teoria grega da cor, o
azul era uma espécie de escuridão com apenas um pouco de luz adicionada.
Assim, há uma base sólida para se acreditar que os tons da meia-noite
sempre foram as cores mais preciosas dos artistas. De fato, um dos primei-
ros pigmentos azuis complexos feitos pela química deriva de uma indústria
antiga em si mesma. As esculturas de pedra sabão azul conhecidas atual-
mente como faiança, produzidas no Oriente Médio, eram comercializadas
em toda a Europa no segundo milênio a.C. Hoje, a faiança é tipicamente
associada ao Antigo Egito, mas foi produzida na Mesopotâmia em tempos
tão remotos quanto 4500 a.C., bem antes da época dos Faraós. É uma es-
pécie de esmalte azul vítreo, feito por aquecimento de quartzo triturado
ou areia com minerais de cobre e uma pequena quantidade de cal ou giz e
cinzas vegetais. A tonalidade azul vem do cobre – é da mesma família dos
azuis vivos dos cristais de sulfato de cobre do laboratório de química da
escola, embora a faiança possa variar de verde-turquesa a um azul-escuro
profundo. Tipicamente, estes minerais eram os que se conhece hoje por
azurita e malaquita, ambas formas do carbonato de cobre. Não é absurdo
pensar, embora quase impossível de provar, que a fabricação do próprio
vidro a partir de areia e cinza alcalina ou soda mineral começou em expe-
rimentos com faiança em um forno, de algum lugar da Mesopotâmia.

25
Detalhe mostrando a Virgem Maria, teto da Capella
degli Scrovegni, em Padova, magnificamente adornada
com afrescos de Giotto, ca. 1305. Para o azul luminoso
que se espalha por toda parte, Giotto usou ultramarino,
que, devido à sua química e preço, tinha de ser aplicado
em cima do afresco já seco (fresco secco) (Foto: José Luiz
Bernardes Ribeiro, CC BY-SA 4.0)
Experimentos similares poderiam ter dado origem à descoberta do
pigmento azul, marca registrada dos egípcios, simplesmente conhecido
como azul ou frita do Egito. A receita, em todo caso, é quase a mesma: areia,
minério de cobre e giz ou calcário. Mas, ao contrário do esmalte de faiança,
este material não é vítreo, mas cristalino, o que significa que os átomos que
o compõem formam matrizes ordenadas em vez de um aglomerado. A pro-
dução do pigmento requer alguma habilidade artesanal: tanto a composição
quanto a temperatura do forno devem ser exatas, atestando o fato de que os
químicos egípcios (como os chamaríamos hoje) conheciam seu ofício – e
que a produção de cores era vista como uma importante tarefa social. Afi-
nal, a pintura estava longe de ser frívola: a maioria tinha um significado re-
ligioso, e os artistas eram sacerdotes.
Os minerais azurita e malaquita fornecem bons pigmentos por si sós –
o primeiro mais azulado, o segundo com uma tonalidade verde, só precisam
ser moídos e misturados com um aglutinante líquido. Este, na Idade Média,
geralmente, era gema de ovo para pintura em painéis de madeira, e clara
de ovo (chamada glair) para iluminação de manuscritos. A azurita de boa
qualidade não era barata, mas havia depósitos do mineral em toda a Europa.
Para os ingleses (que não tinham fontes locais), era azul alemão; para os ale-
mães, azul de montanha (Bergblau).
Um azul mais barato era o extrato vegetal anil, usado como corante des-
de a Antiguidade. Ao contrário da maioria dos corantes orgânicos – aqueles
extraídos de plantas e animais – ele não se dissolve na água, mas pode ser se-
cado e moído até virar pó, e, depois, como um pigmento mineral, misturado
com agentes ligantes padrão (como óleos) para fazer uma tinta. Ele dá um azul
escuro, às vezes arroxeado, às vezes mais claro com chumbo branco; Cennino
descreveu uma “espécie de azul celeste parecido com a azurita” feito desta
forma a partir do “índigo de Bagdá”.6 Como o nome sugere – o indicum latino
compartilha a mesma raiz de “Índia” – as principais fontes para um artista
medieval europeu estavam no Oriente, embora uma forma de índigo também
pudesse ser extraída de uma planta lanígera, cultivada na Europa.
27
Albrecht Altdorfer, Cristo se
despedindo de sua mãe, ca. 1520
Mas o artista que pudesse encontrar um patrono com bolsos cheios
estaria inclinado a um azul mais fino do que qualquer um destes. Quando o
viajante italiano Marco Polo chegou ao que é hoje o Afeganistão, por volta
de 1271, visitou uma pedreira nas remotas cabeceiras do Rio Oxus. “Aqui há
uma montanha alta”, escreveu, “da qual o melhor e mais fino azul é extraí-
do”.7 Hoje, a região é chamada Badakshan, e a pedra azul é o lápis-lazúli,
fonte do pigmento ultramarino.
Cennino nos mostra quão profundamente o azul ultramarino era reve-
renciado na Idade Média, escrevendo que “é uma cor ilustre, bela e perfeita,
além de todas as outras cores; não se podia dizer nada sobre ele, nem fazer
nada com ele, que sua qualidade ainda não ultrapassasse”.8 Como o nome
indica, veio de “além dos mares” – importado, desde por volta do século
XIII, com grandes custos, das minas de Badakshan.
O Ultramarino era precioso não só porque era um produto importado
raro, mas porque era extremamente trabalhoso de se fazer. O lápis-lazúli
é folheado com o mais belo azul profundo, mas quando da extração é ex-
tremamente decepcionante: torna-se cinzento por causa das impurezas do
mineral. Estas impurezas têm que ser separadas do material azul, o que é
feito amassando o mineral em pó com cera e lavando a cera na água, o pig-
mento azul jorra para a água. Isto tem que ser feito repetidamente para pu-
rificar completamente o pigmento. Os melhores graus de ultramarino saem
primeiro, e os enxágues finais dão apenas um produto de baixa qualidade
e mais barato, chamado cinza ultramarina. O melhor ultramarino custava
mais do que seu peso em ouro na Idade Média e, por isso, era normalmente
usado com parcimônia. Pintar um teto inteiro com a cor, como fez Giotto na
Capela da Arena, era luxuoso ao extremo.
Mais frequentemente, o pintor medieval usava o ultramarino apenas
para os componentes mais preciosos de uma pintura. Esta parece ser a
verdadeira razão pela qual a maioria dos retábulos deste período que re-
tratam a Virgem Maria mostram-na com vestes azuis. Por tudo isso, os
teóricos da arte têm tentado explicar o significado simbólico da cor – o
29
Detalhe de “A Ascensão” ( folio 184r)
das Très Riches Heures du duc
de Berry, ca. 1412
matiz da humildade ou virtude, digamos – era em grande parte uma ques-
tão de economia ou, pode-se dizer, de fazer dos materiais preciosos uma
oferta devocional a Deus.
Pode-se comparar a azurita e o ultramarino lado a lado na explosão da
cor renascentista de Tiziano, Baco e Ariadne (1523). Eis aqui aquela abóboda
estrelada, virando dia diante de nossos olhos, pintada em ultramarino, as-
sim como o manto de Ariadne, que domina a cena. Mas o mar em si, no qual
vemos o barco de Teseu se afastar de sua amante abandonada, é azurita,
com sua tonalidade esverdeada.
Ao longo dos séculos, os artistas também acumularam alguns outros
azuis. Por volta de 1704, um colorista chamado Johann Jacob Diesbach, tra-
balhando no laboratório do alquimista Johann Conrad Dippel, em Berlin,
estava tentando fazer um pigmento de laca vermelha quando descobriu que
havia produzido algo bem diferente: um material azul profundo. Ele havia
usado um pacote de potassa cáustica em sua receita, fornecido por Dippel,
mas que estava contaminado com óleo animal supostamente preparado a
partir de sangue. O ferro usado por Diesbach reagiu com o material no óleo
para fazer um composto que – excepcionalmente para o ferro – é de cor
azul. Em 1710, ele era produzido como material para artistas, geralmente
conhecido como azul da Prússia.
Não era totalmente claro o que tinha entrado nesta mistura e, assim,
por alguns anos, a receita para fazer azul da Prússia estava rodeada de
confusão e sigilo. Em 1762, um químico francês declarou que “talvez nada
seja mais peculiar do que o processo pelo qual se obtém o azul da Prússia,
e deve-se considerar que, se o acaso não tivesse dado uma mão, seria ne-
cessária uma teoria profunda para inventá-lo”.9 Mas o acaso foi um com-
panheiro constante na história da fabricação de cores. De qualquer forma,
o azul da Prússia era atraente e barato – um décimo do custo do ultrama-
rino – e popular entre os artistas, incluindo Thomas Gainsborough e An-
toine Watteau. Ele responde por alguns dos belos céus azuis venezianos
de Canaletto.
31
Tiziano, Baco e Ariadne, 1523
Canaletto, Praça São Marcos,
ca. 1725
Outro azul do período renascentista e barroco que recebeu o nome de
esmalte é uma versão em pó, apenas um pouco diferente do vidro azul-co-
balto de catedrais góticas, como Chartres. Suas origens são obscuras, mas
podem muito bem vir da tecnologia vidreira; uma fonte atribui a invenção
a um fabricante de vidro, nascido na Boêmia, em meados do século XVI,
embora na verdade o esmalte apareça em pinturas anteriores a esta data.
Minerais de cobalto foram encontrados em minas de prata, nas quais sua
suposta toxicidade (na verdade, o cobalto só é venenoso em altas doses, e
quantidades vestigiais são essenciais para a saúde humana) os identificou
com o nome de kobolds, criaturas semelhantes a goblins que dizem assom-
brar esses reinos subterrâneos e atormentar os mineiros. Minérios naturais
de cobalto, tais como esmaltita, eram usados desde a Antiguidade para dar
ao vidro uma cor azul viva, e o esmalte era produzido simplesmente moen-
do-o – não muito fino, porque então o azul fica muito pálido à medida que
mais luz é espalhada pelas partículas. Como resultado de seus grãos gros-
seiros, o esmalte era um material granuloso e não fácil de usar.
Alguns historiadores de arte não fazem distinção entre este “azul co-
balto” e aqueles que receberam tal nome no século XIX. Mas estes últimos
eram pigmentos muito mais finos e ricos, feitos artificialmente por uma
química sistemática. No final do século XVIII, o governo francês pediu ao
renomado químico Louis-Jacques Thénard que procurasse um substituto
sintético para o caro ultramarino. Após consultar os oleiros, que usavam um
esmalte azul-esverdeado com cobalto, em 1802, Thénard concebeu um pig-
mento fortemente colorido com uma constituição química tecnicamente
semelhante: o aluminato de cobalto. O cobalto produziu várias outras cores
além do azul profundo. Na década de 1850, um pigmento amarelo à base
de cobalto chamado aureolina tornou-se disponível na França, seguido logo
depois por um pigmento roxo chamado violeta cobalto: o primeiro de todos
os pigmentos roxos puro, com exceção de alguns extratos vegetais bastante
instáveis. Um pigmento azul celeste chamado azul cerúleo, um composto de
cobalto e estanho, era um dos preferidos de alguns dos pós-Impressionistas.
34
Claude Monet, A Gare
Saint-Lazare, 1877
Mas o que os artistas ansiavam acima de tudo era o próprio ultra-
marino – se não fosse tão caro. Mesmo em meados do século XIX, seu pre-
ço era muito alto, e é por isso que o Pré-Rafaelita Dante Gabriel Rossetti
causou muita consternação (para não falar em despesas adicionais) quando
derrubou um grande pote de tinta ultramarina, enquanto trabalhava em um
mural para a Universidade de Oxford.
Na época de Rossetti, porém, os artistas tinham finalmente uma alter-
nativa – apesar de muitos deles ainda não terem aprendido a confiar nela.
A medida que os conhecimentos e proezas químicas se expandiam no início
do século XIX trazendo novos pigmentos como o azul cobalto para o mer-
cado, parecia estar dentro dos limites da possibilidade tentar fazer o ultra-
marino artificialmente.
Era um prêmio pelo qual valia a pena lutar, pois a fabricação de pig-
mentos havia se tornado um grande negócio. A fabricação de cores e tintas
não visava aos artistas. Agora, a cor havia caído no gosto do mundo em ge-
ral e, em particular, da decoração de interiores. Fábricas foram criadas no
século XIX para produzir e moer pigmentos, enquanto outras os vendiam
em forma pura aos fornecedores dos artistas, que então misturavam tintas
para seus clientes a partir do pigmento e do óleo. Mas alguns fabricantes de
pigmentos, tais como Reeves e Winsor & Newton na Inglaterra, começaram
a fornecer tintas a óleo prontas; a partir dos anos 1840, vendendo-as em tu-
bos de estanho dobráveis, que podiam ser selados para evitar que as tintas
secassem e convenientemente transportadas para pintura na natureza.
Ciente da importância do mercado de pigmentos, a Sociedade France-
sa de Incentivo à Indústria Nacional ofereceu, em 1824, um prêmio para a
primeira síntese prática do ultramarino. É um composto complicado para
fazer – excepcionalmente para um pigmento inorgânico, a cor azul não vem
de um metal, mas da presença do elemento enxofre nos cristais minerais.
Esta composição do ultramarino foi deduzida pela primeira vez por dois
químicos franceses em 1806, oferecendo pistas sobre o que era necessário en-
trar em uma receita de fabricação. Em 1828, um químico industrial chamado
36
Páginas de um catálogo da firma
Winsor & Newton, ca. 1895
Jean-Baptiste Guimet, em Toulouse, descreveu uma maneira de fazer o ma-
terial azul a partir de argila, soda, carvão, areia e enxofre, e recebeu o prêmio
(apesar de uma reivindicação rival da Alemanha). Mais tarde, na Inglaterra,
este ultramarino sintético ficou amplamente conhecido como ultramarino
francês, e Guimet conseguiu vendê-lo a um décimo do custo do pigmento
natural. Na década de 1830, havia fábricas que produziam ultramarinos sin-
téticos em toda a Europa.
No entanto, os artistas encaravam tal substituto com considerável caute-
la. O ultramarino ainda mantinha um pouco de sua antiga mística e majestade,
e os pintores estavam relutantes em acreditar que ele pudesse ser produzido
em escala industrial. Talvez a variedade sintética fosse inferior –iria desbotar
ou descolorir? Na verdade, o ultramarino sintético é (ao contrário de alguns
pigmentos sintéticos) muito estável e confiável, mas, evidentemente, J. M. W.
Turner ainda estava inseguro a esse respeito, em meados do século, quando
estava prestes a se valer do ultramarino da paleta de outro artista em um dos
“dias finais” na Academia Real, época em que os artistas davam seus últimos
retoques em pinturas já penduradas para exibição nas paredes. Ao ouvir o
grito de que este ultramarino era “francês”, Turner se recusou a usá-lo..
Mas no final do século, o ultramarino sintético era um ingrediente pa-
drão da paleta: nenhuma surpresa, já que poderia ser cem ou até mil vezes
mais barato do que a variedade natural. O ultramarino sintético é o pigmento
do International Klein Blue, patenteado por Yves Klein e utilizado por ele em
uma série de pinturas monocromáticas, nos anos 50 e início dos anos 60. Mas
o ultramarino nunca teve este aspecto antes, pelo menos, não em uma tela.
Klein notou que os pigmentos tendem a ficar mais intensos e bonitos
como um pó seco do que quando misturados com um aglutinante – outra con-
sequência de como a luz é transmitida e refratada – e procurou capturar esta
aparência em uma tinta. Em 1955, encontrou a resposta em uma resina sinté-
tica fixadora chamada Rhodopas M60A, feita pela empresa química Rhone-
-Poulenc, que podia ser diluída para atuar como aglutinante sem prejudicar a
resistência cromática do pigmento. Isto deu à superfície da tinta uma textura
38
Yves Klein, IKB 191, 1962, um de vários
trabalhos de Klein pintado com
o International Klein Blue
fosca e aveludada. Klein colaborou com Edouard Adam, um fabricante quími-
co parisiense e revendedor de materiais para artistas, a fim de desenvolver uma
receita de ligante ultramarino nesta resina, misturado com outros solventes.
Deste modo, mesmo na era moderna, alguns artistas ainda dependiam
de assistência química e de expertise. Apesar da profusão de novos pigmentos
com formulações químicas complicadas e obscuras, a relação íntima dos pin-
tores com seus materiais não foi totalmente rompida.

40
Notas
1. Durante a Revolução Industrial, os químicos aperfeiçoaram um método para fazer óxido
de ferro artificialmente, permitindo que a cor vermelha fosse controlada com mais
precisão. Foi um resultado da fabricação de ácido sulfúrico, ingrediente importante para
o branqueamento de têxteis. Esta substância vermelha foi vendida aos artistas como
“vermelho de Marte”, um eco do antigo termo alquímico para compostos de ferro.

2. William Shakespeare, Twelfth Night, Ato 1, cena 5. https://www.opensourceshakespeare.


org/views/plays/play_view.php?WorkID=12night&Act=1&Scene=5&Scope=scene Edição
brasileira: Noite de Reis, Porto Alegre: LPM, 2015.

3. John Russell, The Meanings of Modern Art (New York: Museum of Modern Art, 1981), 67.

4. Cennino d’Andrea Cennini, The Craftsman’s Handbook: The Italian “Il libro dell’arte”, transl.
D. V. Thompson (New York: Dover, 1954) 28–29.

5. Wassily Kandinsky, Concerning the Spiritual in Art, transl. M. T. H. Sadler (New York:
Dover, 1977), 38. Edição brasileira: Do Espiritual na Arte, São Paulo:Martins Fontes:2015.

6. Cennini, Craftsman’s Handbook, 36.

7. Marco Polo, Il milione, ed. D. Ponchiroli (Turin: Einaudi, 1954), 40. As Viagens de Marco
Polo, São Paulo:Martin Claret, 2020.

8. Cennini, Craftsman’s Handbook, 36.

Jean Hellot, “Sur la préparation du Bleu de Prusse”, Histoire del’Académie Royale des Sciences,
avec les Mémoires de mathématique &de physique pour la même année MDCCLVI (Paris:
1762), 53–9.

Obras em domínio público


I. Il libro dell’arte (The Book of the Art) Cennino Cennini ca.1400
• Internet Archive 1844 tradução de Mary Philadelphia Merrifield
• Internet Archive 1922 tradução e notas de Christiana Herringham
II. De diversis artibus (On Various Arts) Theophilus Presbyterca. 1122
• Internet Archive 1847 Tradução inglesa e notas de Robert Hendrie
III. Experiments and Considerations Touching Colours Robert Boyle1664
• Project Gutenberg
IV. The Painter’s Companion, or, A Treatise on Colours John Hoofnail1823
• Internet Archive
V. The Compleat Gentleman Henry Peacham1622
• EEBO
VI. Theory of Colours Johann Wolfgang von Goethe 1810
• 1840 Tradução inglesa Internet Archive Project Gutenberg

41
Leituras Adicionais

Bright Earth:
Art and the Invention of Color 
Philip Ball
Um fascinante estudo histórico sobre como a arte e a
tecnologia interagiram ao longo dos séculos para nos
trazer arte em cor.

An Atlas of Rare and Familiar Colour:


The Harvard Art Museums’ Forbes
Pigment Collection
Kingston Trinder
Escavando visualmente a extraordinária coleção dos
Museus de Arte de Harvard, este livro examina os
pigmentos e artefatos ali contidos - sua proveniência,
composição, simbologia e aplicação. Também explora
os maiores campos relacionados à cromática, as nar-
rativas históricas da arte e da química, e as inovações
com as quais procuramos ilustrar melhor nossas com-
pulsões estéticas e expressivas.
42
Chromatopia:
An Illustrated History of Color
David Coles
Esta história da origem dos mais vívidos pigmentos
de cor da história é perfeita para artistas, entusiastas
da história, amantes da ciência e fanáticos por de-
sign. Abrangendo desde o mundo antigo até os saltos
modernos na tecnologia, e vibrante e inteiramente
ilustrado, este livro acrescentará um pouco de cor
ao entendimento de qualquer pessoa sobre a história
das cores.

The Secret Lives of Colour


Kassia St Clair
Histórias incomuns das mais fascinantes 75 tonali-
dades, tinturas e matizes. Do loiro ao gengibre, do
marrom que mudou a maneira como as batalhas
eram travadas ao branco que protegia contra a peste,
do período azul de Picasso ao carvão nas paredes das
cavernas em Lascaux.

Philip Ball é um escritor e divulgador científico freelancer. Anteriormente, traba-


lhou na revista Nature por mais de 20 anos, primeiro como editor de ciências físicas
e depois como Editor Consultor. Seus escritos sobre ciência para a imprensa popular
cobriram temas atuais que vão desde a cosmologia até o futuro da biologia molecular.
Seus livros incluem Bright Earth: The Invention of Colour (Penguin, 2002), Invisible:
The Dangerous Allure of the Unseen (University Of Chicago Press, 2015) e mais recen-
temente, How To Grow a Human (William Collins, 2019).
N o mundo moderno, tintas e pigmentos apontam não somente para
o mundo das artes, mas também para o rico carrossel, envolvendo
as indústrias químicas, têxteis e farmacêuticas, iniciado na Alema-
nha, entre meados do século XIX e início do século XX.
O giro começa a partir do conhecimento de que telas, têxteis, célu-
las e patógenos possuem em comum o caráter orgânico e que pigmentos
e corantes realçam detalhes nas telas e protegem tecidos naturais contra
o ataque de fungos, aumentando sua durabilidade. Assim, os corantes não
demoraram a ser empregados pela indústria farmacêutica então nascente
para evidenciar células e microorganismos observados nos microscópios;
levando adiante tais ideias, começaram a ser utilizados também no ataque
aos germes.
As tintas, impulsionadas pelos avanços da química, encontraram ainda
outros empregos. Com o aperfeiçoamento da canetas tinteiro, firmas como
a Pelikan Künstlerfarben Fabrik (Fábrica Pelikan de Cores para Artistas),
passaram a produzir também tinta para escrever, no final do século XIX. Do
mesmo modo, com a popularização da fotografia, várias empresas começa-
ram a fabricar pigmentos dissolvidos em óleo, especialmente, para pintar os
retratos, após a revelação.
Assim, ligados à coloração, surgem, na segunda metade do século XIX,
os grandes laboratórios alemães, como a Bayer Farbenfabrik (Bayer Indústria
de Corantes), AGFA (Sociedade para a Fabricação de Anilina), BASF (In-
dústria de Anilina e Soda da Região de Baden). Cassella Farbwerke (Cassella
Indústria de Corantes), Chemische Fabrik Kalle (Kalle Indústria Química)
e a Hoechst Farbwerke (Hoechst Indústria de Corantes).
Embora produtoras de tintas e corantes para os mais diversos usos, de-
vido aos prêmios que obtiveram, essas firmas talvez tenham se tornado mais
conhecidas do grande público por seus produtos farmacêuticos – como o
Salvarsan, primeiro medicamento efetivo contra a sífilis, sintetizado em
45
1910, pela Hoechst, partindo da síntese da anilina – e biológicos, como os
corantes que possibilitaram a Robert Koch isolar o bacilo da tuberculose,
trabalho que recebeu o Prêmio Nobel de Medicina, em 1905.

Cartaz da “Fábrica de Tintas Artísticas”


Pelikan, em Hannover e Viena, artista
desconhecido, 1909.

Roberto Oliveira, médico e professor da Universidade Federal do Estado do Rio de


Janeiro, onde desenvolve pesquisas sobre Bioética e Mídia, além de tradutor e escritor.
Copyright © 2020 Ateliê Editorial
Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610
de 19 de fevereiro de 1998.
É proibida a reprodução total ou parcial sem
autorização, por escrito, da editora.
isbn 978-65-5580-026-5

Conselho editorial
Beatriz Mugayar Kühl
Gustavo Piqueira
João Angelo Oliva Neto
José de Paula Ramos Jr.
Lincoln Secco
Luiz Tatit
Marcelino Freire
Marcus Vinicius Mazzari
Marisa Midori Deaecto
Paulo Franchetti
Solange Fiúza
Vagner Camilo

Título 
As fontes primárias de uma história natural
da paleta do artista
Autor 
Philip Ball
Tradutor 
Roberto Oliveira
Editor 
Plinio Martins Filho
Projeto gráfico 
Gustavo Piqueira e Samia Jacintho / Casa Rex
Editoração 
Gustavo Piqueira e Carol Vapsys / Casa Rex

Direitos reservados à Ateliê Editorial


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2020

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