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PANORÂMICA DA HERMENÊUTICA TEOLÓGICA EM GEFFRE

INTRODUÇÃO
Claude Geffré nasceu na França (Niort), em 1926. Teólogo herdeiro de uma grande
tradição do século XX, francês, pertence à Ordem dos Pregadores (Dominicanos). Por
mais de 20 anos foi professor de Teologia Dogmática em Le Saulchoir e em seguida, de
Hermenêutica Teológica, Teologia Fundamental e Teologia das Religiões, no Institute
Catholique de Paris. Em 1996 foi eleito diretor da École Biblique de Jerusalém e é,
ainda, membro fundador e colaborador permanente da Revista Internacional de
Teologia Concilium. Claude Geffré reside em Paris e é autor de alguns entre os mais
importantes textos sobre os efeitos do pluralismo religioso na Igreja e no mundo de
hoje.
Em Crer e interpretar, Geffré descreve, num sentido bem geral, uma teologia
hermenêutica que transpõe os limites da simples hermenêutica designada como
corrente teológica. Expõe, com propriedade, a necessidade premente de se
compreender a hermenêutica num sentido mais forte e critico, não apenas sob a
forma dogmática, mas também escriturística, para que assim se obtenha uma melhor
compreensão dos textos sagrados e inclusive da tradição da Igreja.
No entanto, procura, sobretudo, designar uma dimensão interior da razão teológica,
ou ainda fomentar um novo paradigma interpretativo, um novo modelo, isto é, uma
nova maneira de fazer teologia.
Destarte, Geffré nos apresenta um real e possível estatuto hermenêutico, o que
segundo ele se constitui numa virada hermenêutica da teologia.

1. A razão teológica como razão hermenêutica


A ciência é compreendida por Aristóteles como sendo uma ciência que procede a
partir de princípios necessários ou de axiomas, axiomas que a razão percebe
imediatamente.
Partindo dessa compreensão aristotélica da ciência é que Tomás de Aquino formula a
chamada teologia ciência, que identifica as verdades fundamentais da mensagem
cristã, a saber, os artigos de fé, com aquilo que Aristóteles chama de primeiros
princípios.
Para Agostinho, essa tendência de analisar ou verificar cientificamente os artigos de fé
é considerada uma teologia compreendida como inteligência da fé.
Para Claude Geffré, a teologia tende a ser compreendida não apenas como um
discurso sobre Deus, mas como um discurso que reflete sobre a linguagem a respeito
de Deus, isto é, um discurso sobre uma linguagem que fala humanamente de Deus.
Logo, não há como existir um saber direto ou imediato da realidade fora da linguagem,
e esta por sua vez constitui-se uma interpretação, que naturalmente se torna uma
hermenêutica.
A teologia, em seu bojo, procede por hipóteses e por verificação dessas hipóteses,
confrontando-se amiúde com os chamados textos fundadores, considerados clássicos
do cristianismo, o que a faz adotar um estatuto cientifico para tal fim. Desta forma, a
teologia ratifica os critérios de uma ciência hermenêutica, pois é certo que todo
conhecimento cientifico é um conhecimento interpretativo, ou seja, que se submete a
uma ciência interpretativa, a saber, a hermenêutica.

2. Experiência cristã e interpretação


A teologia tem se moldado nos últimos anos por um modelo que Geffré chama de
dogmático ou dogmatista. Pois, o discurso teológico tem sido um reflexo da Igreja
institucional, ou seja, o dogma é tomado como ponto de partida ou base para a feitura
da teologia, e isso tem colocado em xeque não somente a interpretação como
também a compreensibilidade dos textos cristãos.

Ante o exposto, se faz necessário adotar um modelo hermenêutico em teologia, o que


significa tomar como principiador da compreensão um texto. Pois, segundo Geffré,
quem diz hermenêutica não diz simplesmente a compreensão em geral, mas o tipo de
compreensão que esta engajado na leitura dos textos, quer se trate da Escritura ou das
releituras dessas Escrituras na tradição, uma vez que vivemos em determinada cultura.
Dai a importância da tradição como agente de interpretação dos textos pretéritos.

Vale ressaltar que, para a interpretação dos textos cristãos é imprescindível discernir
os elementos fundamentais da experiência cristã ou da tradição, separando-os das
linguagens nas quais esta experiência fora traduzida. Isso só é possível através dos
esquemas interpretativos que a própria tradição de linguagem, na qual o hermeneuta
esta inserido, fornece a este para a apreensão da realidade textual, o possibilitando
acima de tudo forjar novos conceitos.

3. Hermenêutica e ontologia
A teologia compreendida como hermenêutica não renuncia a dimensão ontológica dos
enunciados teológicos, embora considere a ruptura com o pensamento metafísico,
como sendo este um pensamento da representação. O objeto desta teologia não é
uma série de exposições dogmáticas, mas é o conjunto dos textos compreendidos no
âmbito hermenêutico, que é aberto pela revelação.

Assim sendo, esta compreensão há de se precaver das armadilhas da representação


conceitual preparadas pelo pensamento metafísico, doravante adotando um caminho
mais simples, porém perigoso, que é o da interpretação. Por conseguinte, a teologia
hermenêutica reivindicará uma verdade da ordem da comprovação ou ainda da
manifestação, ou seja, ela exigirá uma plenitude de verdade.

De acordo com Geffré, a manifestação da verdade é sempre manifestação do devir, e


compete, ao sujeito interpretante, se resignar diante da imponderabilidade deste fato
hermenêutico. A cada nova descoberta se instaura sempre uma nova releitura, que
desembocará, outrossim, em uma nova necessidade cognitiva, “pois a verdade
reveste-se de uma universalidade que é comunicada por meio da linguagem”
(CHAMPLIN, 2006, p. 96).

Para Heidegger, a linguagem antes de ser o instrumento do pensamento e da


comunicação entre os humanos, é um certo dizer do mundo, uma certa “ostentação”
do mundo. Assim, a prática teológica ou o fazer teológico iguala-se com a escuta
atenta do que nos é dito.

Uma teologia da Palavra de Deus, segundo Geffré, tem como pressuposto a função
ontofônica da linguagem, isto é, sua manifestação de ser. Isto porque a linguagem já
possui um alcance ostensivo quanto ao ser do mundo que ela pode ser retomada pelo
teólogo para ser então a manifestação não simplesmente do ser do mundo, mas do
próprio ser de Deus.

Portanto, a hermenêutica é o caminho de ligação que tornará a realidade desejada


pela fé uma realidade inteligível, e a verdade que dela se desdobra uma possibilidade
hermeneuticamente alcançável, ainda que de maneira progressiva e escatológica, pois
simplesmente temos o sentido da distância entre a posse sempre relativa da verdade
no plano humano e o fato de que esta verdade aponta para uma verdade inacessível
que coincide com a própria realidade do mistério de Deus.

4. A boa situação hermenêutica


Uma das tarefas da hermenêutica é nos fornecer uma interpretação correta da
mensagem cristã em sua originalidade, isto é, em seus primórdios. E isso apenas é
possível quando se faz uso dos recursos da exegese, a saber, da critica histórica, critica
textual e da critica literária, para que se tenha uma melhor compreensão do conteúdo
desta mensagem.

Contudo, esta boa situação hermenêutica, compreendida por tradição versus cultura


ou passado versus presente, deve se basear numa relação, numa correlação critica
entre a experiência cristã da primeira comunidade cristã e nossa experiência histórica
de hoje, ou seja, é fundamental que se faça uma análise seletiva dos textos que
permitem uma interpretação a partir da própria linguagem do leitor, a partir dos
próprios esquemas de pensamentos estabelecidos por este, realizando assim uma
releitura da tradição, o que segundo Geffré seria uma hermenêutica de reapropriação
ou ainda de atualização, trazendo tais textos da tradição ao alcance da compreensão
hodierna.

Geffré, por exemplo, diz que a experiência de Jesus Cristo como salvação da parte de
Deus não pode ser recebida a não ser com base numa certa experiência do que é
Messias, do que é salvação, do que é a expectativa messiânica, do que é a verdade da
relação religiosa do ser humano com Deus.

Não obstante, para se ter uma boa situação hermenêutica é imprescindível estabelecer
um diálogo, uma conversação com o texto, estando o leitor submetido ao processo de
perguntas e respostas. Segundo Geffré, é esta dialética do texto e do leitor que fornece
progressivamente o horizonte justo que nos permite atingir a verdade cujo portador é
o texto.

5. Uma nova abordagem da escritura


A proposta duma teologia compreendida como hermenêutica é suscitar no
hermeneuta a aptidão por uma nova abordagem da Escritura, do texto, da tradição, da
então chamada hermenêutica conciliar. Segundo o ideal proposto por Schleiermacher,
tratar-se-ia de compreender melhor o texto do que o próprio autor o teria
compreendido. Não é uma tarefa fácil, todavia é necessária para a compreensão.

Convém aqui, enunciar algumas regras suscetíveis a fim de ajudar-nos a encontrar a


uma interpretação pertinente das fórmulas dogmáticas, as quais mantêm coerência
com uma hermenêutica definida como um diálogo entre um texto e um leitor.
1) Para compreender o alcance de um enunciado dogmático é preciso forjar a situação
hermenêutica correta que é determinada pelo jogo da pergunta e da resposta;
2) As definições conciliares devem ser lidas à luz de nossa leitura critica da Escritura;
3) As definições conciliares devem ser interpretadas à luz do aspecto de correlação
critica entre a experiência cristã fundamental e nossas experiências humanas de hoje;
4) Em alguns casos, a reinterpretação de um enunciado dogmático pode levar a uma
reformulação.

Na visão de Geffré, sempre se deve passar pela objetividade do texto, na medida em


que ele escapa definitivamente a seu próprio autor e encerra potencialidades de que o
próprio autor não tinha idéia. Isso o faz declarar, categoricamente, que toda leitura
importante o transforma.

Sendo assim, o trabalho do interpretante é adentrar no mundo do texto, que abarca


não somente as formas do discurso como também as variegadas percepções que o
leitor tem do mesmo. Desta forma, compete a este chegar mais próximo possível do
texto, bem como a sua interpretação, sobretudo à mensagem e sua aplicabilidade.

6. Hermenêutica do sentido e Hermenêutica da ação


A hermenêutica teológica não deve somente seguir pelos meandros da interpretação
textual sem se esmerar na praticidade da verdade, que torna possível a transformação
das ações e reações humanas. Noutras palavras, a teologia compreendida como
hermenêutica não pode ser unicamente uma hermenêutica do sentido, enclausurada a
meras hipóteses e esquemas interpretativos, que visam apenas interpretar o texto,
escamoteando assim a sua mensagem, mas também deve ser uma hermenêutica de
ação, que conduz a uma certa prática, ou seja, a um certo fazer, que via de regra esta
relacionado com a ação/reação do interpretante logo após o trabalho de interpretação
de determinado texto.

Podemos ver expressa a critica de Schleiermacher acerca da interpretação feita de


modo mecânico e sem espírito ou ainda puramente baseada em experiências e meras
observações, nos seguintes termos:
Assim é praticada a interpretação em nossas escolas e faculdades, e os comentários
esclarecedores dos filólogos e teólogos – pois ambos têm o campo previamente
cultivado -, contem um tesouro de observações e informações instrutivas, as quais
provam suficientemente o quanto eles são verdadeiros artistas na interpretação, ao
passo que seguramente ao lado deles, sobre o mesmo assunto, em parte nas
passagens mais difíceis, emerge o mais selvagem arbítrio, em parte a mediocridade
pedante insensivelmente omite ou totalmente deturpa o mais belo. Mas ao lado de
todos esses tesouros, aquele que precisa exercer este trabalho sem se colocar no nível
dos artistas indiscutíveis e, além disso, ao mesmo tempo deverá na interpretação
mostrar o caminho a uma juventude ávida de saber e lhe dar as diretivas, este
experimenta o desejo de uma instrução tal que, como metodologia propriamente dita,
não somente que ela seja o fruto sempre alcançado dos trabalhos magistrais dos
artistas nesse domínio, mas que ela exponha também sob uma forma adequada e
científica toda a extensão e as razões de ser do processo. (SCHLEIERMACHER, 2009, p.
26)
Por fim, Geffré nos diz que a insistência da dimensão prática da teologia não nos leva a
uma espécie de pragmatismo teológico, pois a teologia como hermenêutica guarda
necessariamente uma dimensão especulativa ou argumentativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Claude Geffré é bem sucedido na sua tentativa de reformular o estatuto
hermenêutico, a fim de suscitar em nós, sujeitos interpretantes, a busca pela verdade,
pelo real sentido do texto, que se desencadeia somente após a compreensão e
aplicação da tríade fé-experiência-linguagem.

A fé, neste estatuto hermenêutico, tem uma natureza compreensivo-interpretativa de


desvelamento, e não de esvaziamento de sentido. A experiência diz respeito ao
relacionamento vital entre autor-texto-intérprete. E a linguagem torna-se critério de
demonstrabilidade interpretativa de uma realidade ainda não descoberta, cuja
veracidade só pode ser ontologicamente concebida em termos da hermenêutica.

Portanto, compete ao sujeito interpretante se desvencilhar dos enunciados


dogmáticos, no tocante à interpretação dos textos sagrados, para que possa
compreender o sentido do texto, os pensamentos do autor, sua linguagem, os
tornando compreensíveis na tradição.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar: a virada hermenêutica da teologia. Petrópolis:
Vozes, 2004.
CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. São Paulo:
Hagnos, 8ª Ed. Vol. 3, 2006.
SCHLEIERMACHER, Friedrich D.E. Hermenêutica – Arte e técnica da
interpretação. Petrópolis: Vozes, 7ª Ed. 2009.

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