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O AMBIENTE ESCOLAR COOPERATIVO E A CONSTRUÇÃO DO


JUÍZO MORAL INFANTIL : SETE ANOS DE ESTUDO
LONGITUDINAL

Ulisses F. Araújo

RESUMO: Neste artigo discutirei as relações entre o ambiente escolar democrático e sua
influência no desenvolvimento da cooperação e do juízo moral infantil. Para isso apresentarei
os resultados de experiências educacionais e de investigações que venho conduzindo nos
últimos 7 anos apontando que crianças que desenvolvem a capacidade de cooperação com
seus pares e vivenciam ambientes escolares democráticos tendem a desenvolver um juízo
moral mais autônomo.

PALAVRAS-CHAVE: Ambiente escolar cooperativo ; Juízo moral infantil

ABSTRACT: In this article I will argue the relations between the democratic pertaining to
school, environment and its influence in the development of the cooperation and the infantile
moral judgment. For this I will present the results of educational experiences and
inquiries that I come leading in last the 7 years pointing that children who develop the
capacity of cooperation with its pairs and live deeply democratic pertaining to school
environments tend to develop a stand alone moral judgment.

KEY-WORDS: Cooperative school environment ; Infantile moral judgment

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Iniciando a discussão, gostaria de porque isso contraria o próprio princípio


apresentar a concepção de construção de construção. Entender a construção de
defendida por Piaget, entendendo que o uma maneira radical implica romper com
princípio epistemológico que subjaz a o determinismo do desenvolvimento
esse conceito ajudará na compreensão do independente da cultura, para inseri-lo
papel ativo da criança na construção de num modelo complexo em que esse
sua moralidade. processo é ao mesmo tempo incerto e
não-aleatório. Ou seja, ao se constituir
A utilização do termo “construtivismo” nas trocas com o meio, que é diferenciado
surge na obra de Piaget somente na culturalmente, por exemplo, não é
década de 60, embora a concepção possível prever com exatidão as estruturas
epistemológica já estivesse presente em que serão construídas. Quando Piaget
suas obras iniciais, como em O estabelece um possível caminho
nascimento da inteligência na criança psicogenético para a construção dessas
(1936). Com esse princípio, Piaget estruturas ele fala de uma probabilidade
recusa tanto as teses aprioristas de que as seqüencial (1964). Isso, porém, não leva
estruturas de conhecimento estão ao extremo de um relativismo total, de
presentes na bagagem hereditária do construções aleatórias, já que o
sujeito, quanto as teses empiristas de um organismo humano e o universo em que
ser que só conhece o mundo a partir dos vive limita suas interações.
sentidos, pela pressão do meio físico e
social sobre ele. Em sua concepção de um A partir dessa discussão inicial podemos
construtivismo radical o conhecimento buscar respostas para como ocorre a
não está nem no sujeito nem no objeto, construção no dia a dia das pessoas. Com
não está pré-determinado e nem é simples base nessa teoria, as encontramos na
internalização, mas é resultante da ação interação e, mais específicamente, no
do sujeito sobre os objetos de processo de cooperação.
conhecimento. Portanto, ele é construído
nas ações sobre o mundo objetivo e Nas obras de Piaget sobre a moralidade
subjetivo, sendo esta construção (1932, 1944 e 1967), sobre as relações
constitutiva do próprio sujeito. sociais (1965 e 1976) e em algumas
relativas à cognição (1948 e 1967), a
Mas o que se constrói não são somente os cooperação surge como elemento central
conteúdos da interação, é a própria no processo de desenvolvimento tanto
capacidade de conhecer, de organizar, de cognitivo quanto moral. Isso solicita que,
reorganizar e estruturar as experiências ao discutir a psicogênese da moralidade
vividas, que vêm a ser as estruturas infantil, devamos começar por entender o
mentais. Essas estruturas que vão se que é a cooperação (ou co-operação no
tornando cada vez mais complexas sentido lógico do termo) e qual seu papel
funcionam classificando, ordenando, na descentração do pensamento infantil.
estabelecendo implicações e permitindo a
inserção dos objetos no espaço e no Na obra “Ecrits Sociologiques” (1978),
tempo. Piaget define a cooperação como sendo
“toda relação entre dois ou n indivíduos
Nesse sentido, a construção das estruturas iguais ou que se acreditem como tais.
mentais e dos conhecimentos não estão Dito de outra forma, toda relação social
pré-determinadas hereditariamente, na qual não intervém qualquer elemento

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de autoridade ou de prestígio”. Para ele, o Em suma, ao libertar a criança da mística


que permite o surgimento das relações de da palavra adulta e da coação, a
cooperação é o enfraquecimento do cooperação será responsável pela
egocentrismo infantil e a convivência socialização da mente e abrirá caminho
cada vez maior com crianças da mesma para o desenvolvimento da autonomia da
idade, porque isso propicia que as trocas consciência.
sociais e cognitivas ocorram de forma
cada vez mais intensa. A construção dos AMBIENTE ESCOLAR
instrumentos lógicos ocorre quando o COOPERATIVO
sujeito coloca em reciprocidade seus
pontos de vista, adquirindo a
possibilidade de considerar o ponto de Nessa perspectiva, as condições ideais
vista dos outros. para a criança libertar-se do
egocentrismo, da submissão cega e do
A cooperação abre, então, novos respeito unilateral para com os mais
caminhos para a criança, tornando-se velhos, dependem de relações
fonte de transformações no pensamento democráticas baseadas na cooperação, no
infantil e permitindo uma maior respeito mútuo e na reciprocidade que
consciência das atividades intelectuais. estabelecem entre si crianças e adultos.
Em minha opinião, se a criança conviver
De toda essa discussão depreende-se a num "ambiente cooperativo" e
importância que pode ser atribuída à democrático, que solicite trocas sociais
cooperação, como processo e como por reciprocidade, no qual seja respeitada
procedimento, para o desenvolvimento pelo adulto e participe ativamente dos
infantil. O desenvolvimento da processos de tomada de decisões, por
consciência lógica e moral é fruto de hipótese, ela tenderá a desenvolver a
condições psicossociais presentes na autonomia moral e intelectual e poderá
interação do indivíduo com a sociedade e atingir níveis de moralidade mais
o mundo. Ao confrontar o sujeito com autônomos.
terceiros, a cooperação funciona como
elemento catalisador dos processos de A escola insere-se nessa discussão por ser
tomada de consciência e permite ao um local privilegiado para a criança
indivíduo normatizar a razão e os conviver com sujeitos da mesma faixa
equilíbrios funcionais da atividade etária, com quem possa manter relações
mental. em que não estejam presentes prestígio
e/ou autoridade, condição essencial para a
A autonomia moral pressupõe essa cooperação (sem negar que também
capacidade racional do sujeito ocorrem relações de coação entre
compreender as contradições em seu crianças). Seria possível estabelecer um
pensamento, em poder comparar suas ambiente escolar totalmente livre de
idéias e valores às de outras pessoas, prestígio e/ou autoridade? É claro que
estabelecendo critérios de justiça e não, mas existe a possibilidade de que
igualdade que muitas vezes o levarão a se esses elementos sejam reduzidos
contrapor à autoridade e às tradições da consideravelmente nas relações
sociedade para decidir entre o certo e o adulto/criança, a partir do respeito mútuo,
errado. ao ponto da criança sentir-se como um
agente que participa efetivamente da

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organização das regras e das decisões da desenvolvimento do juízo moral infantil.


sala de aula, e seja constantemente Durante um ano escolar inteiro estive um
solicitada a trabalhar em grupo. ou dois dias por semana dentro de uma
sala de aula de crianças de 6/7 anos de
O que está se chamando de “ambiente idade, de uma escola pública brasileira
escolar cooperativo”, é um ambiente que atendia crianças de nível sócio-
assim denominado porque nele a opressão econômico baixo. Nessa escola de
do adulto é reduzida o máximo possível e ambiente cooperativo os alunos tinham
nele encontram-se as condições que um papel ativo na construção de sua
engendram a cooperação, o respeito autonomia e das regras coletivas, e as
mútuo, as atividades grupais que relações de cooperação e de respeito
favorecem a reciprocidade, a ausência de mútuo eram privilegiadas.
sanções expiatórias e de recompensas, e
onde as crianças tem oportunidade Para melhor caracterizar esse ambiente,
constante de fazer escolhas, tomar apresento a seguir alguns exemplos de
decisões e de expressar-se livremente. atividades que ali ocorriam e de como se
estruturavam as relações interpessoais
Para a maioria das pessoas esse ambiente entre estudantes e deles com a professora:
não existe, é utópico, porque na
complexidade das situações vivenciadas COM RELAÇÃO À AUTONOMIA
pelos professores em sala de aula não
existe espaço para uma postura Lentamente, durante o ano, as crianças
exclusivamente democrática, sem a assumiram a coordenação e direção das
utilização de punições e recompensas atividades que ocorriam no dia a dia da
para manter o “controle” do sala de aula, decidindo sua seqüência e a
comportamento infantil. forma com que eram organizadas.

A aplicabilidade dessas idéias dentro das A professora continuava ativa na sala de


escolas é constantemente questionada por aula e atenta aos objetivos gerais de seu
professores e dirigentes que acreditam ser trabalho, mas evitava intervir
isso mera teoria. A experiência mostra desnecessariamente nas discussões que
que apesar de difícil é possível implantar comumente aconteciam entre as crianças,
esse tipo de ambiente cooperativo dentro deixando, sempre que possível, que elas
das escolas. Pelo fato de um número próprias resolvessem seus conflitos.
considerável de educadores não Durante as atividades, a professora
acreditarem nesses pressupostos sempre questionava os procedimentos que
educacionais, com apoio de muitos pais, estavam sendo utilizados, a fim de
isso não significa que eles estejam certos. possibilitar à criança a "tomada de
Esse é um dos papéis da ciência dentro do consciência" de suas ações e justificá-las.
contexto escolar: investigar de forma Encorajava-as também para que
objetiva as possibilidades e os resultados decidissem o quê fazer a fim de que
que uma experiência escolar democrática dessem prosseguimento à atividade que
tem para o desenvolvimento infantil. estavam realizando, sem dizer-lhes como
fazer ou quais os passos a seguir.
Em minha dissertação de Mestrado
(Araújo,1993), investiguei a relação entre Um momento muito interessante que
o “ambiente escolar cooperativo” e o também diz respeito à conquista da

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autonomia era a hora da comida, quando físicas e verbais, a professora questionava


essas crianças de 6/7 anos tinham a os envolvidos no que havia acontecido,
oportunidade de escolher a quantidade deixando a solução do problema sob a
que iriam comer. A escola fornecia um responsabilidade das próprias crianças.
cardápio único para todos os alunos e Quando um colega tentava delatar outro a
desde o início do ano cada criança servia professora questionava a ação do delator,
sua própria comida, em pratos de louça, ou até mesmo ignorava o fato. No
sem ajuda da professora ou de qualquer momento da "Avaliação do Dia", que
funcionária. acontecia diariamente no final do período
Outro aspecto relevante é que as de aulas, todas essas questões eram
crianças tinham a liberdade de ir ao retomadas pelas crianças ou pela própria
banheiro sem precisar pedir a permissão professora que procurava promover a
da professora. Para organizar esse discussão entre as partes interessadas ou
funcionamento existia um pequeno cartaz entre a turma e aquele que havia quebrado
junto à porta que a criança pegava antes determinada regra. Dessa forma, eram
de sair para o banheiro. Tratava-se de criadas as condições a fim de que todos
uma regra que havia sido combinada para refletissem sobre as conseqüências
que saíssem um de cada vez. daquelas ações para o ambiente da classe.
Em momento algum discutiam-se
Esses fatos ilustram a oportunidade que sanções punitivas para as crianças que
as crianças tinham de tomar decisões e de cometessem alguma falta.
assumir a responsabilidade pelos seus
atos, o que contribuía para o COM RELAÇÃO À COOPERAÇÃO
desenvolvimento de sua autonomia.
Diversas atividades solicitavam a
COM RELAÇÃO ÀS REGRAS cooperação entre as crianças. Uma delas
era a limpeza da sala, que ocorria todos os
No início do ano, algumas regras comuns dias, e da qual todas as crianças
foram estabelecidas pelo grupo e pela participavam. Também na hora de reunir,
professora e registradas em um cartaz organizar e carregar o material utilizado
afixado no canto do quadro negro. As nas atividades várias crianças
regras eram simples e expressas por trabalhavam juntas, auxiliando-se
frases curtas e afirmativas, tais como: mutuamente.
falar um de cada vez, falar baixo, manter
a sala limpa, ir ao banheiro sem pedir, etc. A melhor oportunidade de observar como
a cooperação era solicitada nessa sala foi
Esse recurso pedagógico era usado como através dos trabalhos em grupo, que eram
referência para as relações na sala e realizados uma ou duas vezes por semana.
sempre que alguma daquelas regras era Se a atividade fosse de desenho, colagem
quebrada a professora, ou até mesmo ou de pintura, lhes era fornecida uma
algum colega, limitava-se a questionar o folha e, depois de definido o tema, os
transgressor sobre o que havia sido grupos tinham que fazer um só trabalho.
combinado ou qual a regra que ele não Acontecia o mesmo em atividades de
estava cumprindo. construção com blocos, em brincadeiras
de "faz de conta", jogos, etc. Parte da
Em outras situações em que o elo social investigação ocorreu observando o
era rompido, como discussões, agressões processo de descentração, de redução do

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egocentrismo e de aumento da forma com que lidava com seus alunos e


cooperação que esse tipo de trabalho alunas: em um ano de observações,
propiciava. jamais a vi alterando a voz ou tratando de
maneira agressiva os estudantes;
No início do ano letivo as crianças não respeitava sua individualidade e suas
conseguiam cooperar e estavam presas a diferenças; era sempre solícita diante de
um forte egocentrismo. Por exemplo, suas necessidades; adotava uma postura
fornecia-se em uma mesa uma folha de democrática por ocasião dos impasses e
papel retangular para quatro crianças e dilemas que ocorriam na sala de aula. Sua
notava-se que era comum cada uma fazer maturidade e calma eram marcantes no
seu próprio desenho, sem relacioná-lo aos encaminhamento dos problemas,
demais, apesar da solicitação constante da mantendo-se equilibrada
professora. Nos diálogos observados, emocionalmente, criando um ambiente
falavam sobre assuntos diversos ao do cordial, alegre e respeitoso.
trabalho, o que evidenciava que não
estavam colocando seu ponto de vista em Sabemos ser difícil explicitar no papel as
reciprocidade. características desse ambiente escolar
cooperativo, por isso também registramos
Passados alguns meses, com a solicitação em vídeo o que estamos descrevendo. O
constante dessa atividade, não só importante a salientar é que, de fato,
começaram a realizar um só desenho, encontramos nessa sala de aula um
colagem ou pintura quando solicitados, ambiente coerente com a definição
como também as observações mostraram apontada.
haver trocas efetivas nos diálogos.
Repartiam o trabalho, discutiam quem ia
fazer o quê na atividade e havia sempre a AMBIENTE ESCOLAR
tentativa de chegar a algum consenso na COOPERATIVO E O
solução dos problemas que apareciam. DESENVOLVIMENTO DO
JUÍZO MORAL INFANTIL

No final do ano escolar de 1992 decidiu-


COM RELAÇÃO AO RESPEITO se avaliar o possível nível de
MÚTUO desenvolvimento do juízo moral que essas
crianças apresentaram após conviverem
Uma das dificuldades para o em um "ambiente escolar cooperativo",
estabelecimento de relações de respeito nessa escola que de agora em diante será
mútuo entre o adulto e a criança é a chamada de escola A. Para isso aplicou-
autoridade que emana do adulto e que faz se oito provas elaboradas por Piaget e
com que a criança o respeite descritas em seu livro "El criterio moral
unilateralmente. Por isso, para que esse del niño (1932)", adaptadas à realidade
tipo de relação se desenvolva é necessário das crianças brasileiras. Essas provas
que o adulto minimize sua autoridade e foram apresentadas aplicando o método
reduza a tendência autoritária de suas clínico piagetiano, na forma de histórias e
ações em relação às crianças. dilemas e acompanhadas de desenhos
ilustrativos dos fatos, visando uma
Da parte da professora esse tipo de melhor compreensão por parte das
relação pôde ser estabelecida por causa da crianças. Dessa forma, buscou-se

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entender o princípio subjacente às determinado. Constantemente ouviam-se


respostas de juízo, ao invés de coletar gritos exigindo silêncio e certos
dados meramente estatísticos e com base comportamentos. Todos os exercícios
somente nos enunciados verbais. eram vistados e avaliados pelas
professoras, por meio de conceitos de
Essas 8 provas sobre o juízo moral eram recompensa.
relativas a 5 aspectos de moralidade: a) a
noção de sanção (2 provas); b) o conflito Sintetizando, eram classes em que as
entre a justiça retributiva e a distributiva crianças não tinham oportunidade de
(2 provas); c) o conflito entre a igualdade fazer escolhas e tomar decisões. As
e a autoridade (2 provas); d) o juízo entre professoras mantinham relações em que
a intenção e a consequência material dos predominavam a coação, os castigos e
atos (1 prova); e) a consciência das recompensas, e exigiam o respeito
regras (1 prova). unilateral. Tratava-se, portanto, de
ambientes escolares autoritários que
Trata-se de aspectos diversos da estariam fortalecendo sensivelmente a
moralidade infantil, e com o seu estudo heteronomia daquelas crianças e
acreditava-se ser possível fazer uma impedindo o desenvolvimento da
avaliação consistente do nível de juízo autonomia, tanto cognitiva como moral.
moral apresentado por essas crianças.
Os resultados finais favoreceram
Para efeito de comparação essas mesmas consideravelmente as crianças que
provas foram aplicadas em crianças de conviveram em um ambiente democrático
outras duas escolas, que tinham como (ou cooperativo). Elas apresentaram um
característica principal um ambiente em juízo moral mais autônomo (os resultados
que as relações ali presentes eram serão apresentados na pagina xx).
autoritárias e se baseavam no respeito
unilateral, nas punições e recompensas, e Dentre as principais conclusões retiradas
na coação exercida pelos adultos sobre as desse primeiro trabalho, duas merecem
crianças. Uma das escolas era privada maior destaque:
(escola B), com crianças de nível sócio-
econômico médio e médio-alto, e a outra 1. O nível sócio-econômico não é o fator
era pública (escola C), com população de determinante para o desenvolvimento do
nível sócio-econômico baixo, semelhante juízo moral na criança.
às crianças da primeira escola (A). 2. O que parece ter grande influência
nesse desenvolvimento é o tipo das
Para exemplificar o ambiente nessas duas relações sociais presentes no ambiente
escolas, salienta-se que as crianças não experienciado pela criança, se
tinham o direito de opinar e tudo o que cooperativo ou autoritário.
acontecia na classe era determinado pela
professora. O que predominava eram Sempre que os resultados dessa
atitudes autoritárias e até mesmo investigação eram apresentados em
agressivas por parte das professoras, que conferências e congressos, surgia uma
estabeleciam sanções punitivas quando o questão fundamental: o que aconteceria
aluno se levantava da carteira, corria no quando essas crianças da escola A fossem
corredor, não fazia determinada tarefa ou para ambientes autoritários, tradicionais
não cumpria o que lhe havia sido nas escolas brasileiras? Essa dúvida

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originou o interesse da realização de um razão da contraposição do entrevistador


estudo longitudinal, ou seja, um estudo utilizando o método clínico, o conceito
que acompanhasse o desenvolvimento do era 0,5.
juízo moral dessas crianças através dos
anos. Essa investigação longitudinal Com base em toda a discussão anterior
partiu da hipótese de que a conquista da foram estabelecidos três critérios para
autonomia pela criança a partir da classificar o desenvolvimento do juízo
experiência democrática vivenciada de moral das crianças que constituíram a
maneira significativa, sobreviverá nelas amostra, consolidando os resultados: em
de alguma forma, apesar das pressões primeiro lugar aquelas que são
autoritárias exercidas por professores e tipicamente heterônomas; em segundo
pela sociedade. aquelas que podem ser consideradas
como em um estado de autonomia
Confirmamos que após esse primeiro ano crescente; e em terceiro lugar aquelas que
escolar todas as crianças sempre se encontram em transição entre os dois
estudaram em escolas autoritárias, no critérios anteriores.
sentido definido anteriormente, inclusive As crianças classificadas como em
aquelas que estudaram em um ambiente autonomia crescente são aquelas que
cooperativo em 1992. Desenvolvendo um emitiram juízos claros de autonomia
estudo longitudinal de 7 anos, o mesmo (tendo obtido 1,0 ponto) em pelo menos
pesquisador aplicou as mesmas 8 provas cinco das oito provas; por outro lado
de avaliação do juízo moral nessas aquelas que emitiram juízos de
crianças em 1995 e 1999. Para melhor heteronomia e, portanto, não obtiveram
compreender os resultados, resolveu-se pontos em pelo menos cinco provas
criar dois critérios de avaliação que foram classificadas como heterônomas; e
indicassem seu possível nível de as demais como estando em transição.
desenvolvimento do juízo moral.
A segunda forma de analisar os resultados
O primeiro é o ÍNDICE GLOBAL individuais foi por meio da determinação
INDIVIDUAL (IGI), que consiste na de um ÍNDICE GLOBAL DA ESCOLA
soma dos pontos obtidos em cada prova, (IGE), que é uma média aritmética obtida
procurando demonstrar com clareza como somando-se os índices individuais globais
cada criança se saiu no geral da pesquisa, de cada criança e dividindo-os pelo
isto é, nas oito provas aplicadas. Os número de crianças de cada escola.
pontos variavam entre 0,0 ; 0,5 e 1,0 ,
de acordo com o juízo apresentado pelas A tabelas a seguir apresentam os dados
crianças nas respostas. Se o juízo era de longitudinais obtidos em 1992, 1995 e
heteronomia pura, o conceito era 0,0; se 1999.
era de autonomia pura, o conceito era 1,0;
e se a criança oscilava em seu juízo, em

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TABELA 1:Resultados longitudinais consolidados dos Índices Individuais Globais (IGI)

1992 1995 1999


Escola Escola Escola Escola Escola Escola Escola Escola Escola
A B C A B C A B C
Heteronomia 13% 58% 62% 0% 0% 9% 0% 0% 8%

Transição 65% 42% 38% 60% 77% 64% 17% 29% 67%

Autonomia 22% 0% 0% 40% 23% 27% 83% 71% 25%


crescente

Total 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%

TABELA 2: Resultados longitudinais consolidados do Índice Global das Escolas (IGE)

1992 1995 1999

Escola A 4,3 5,2 6,0

Escola B 2,9 4,2 6,0

Escola C 2,5 3,7 4,5

Inicialmente esses resultados trouxeram 2. Existe uma diferença significativa nos


dois aspectos a serem analisados: dados encontrados entre 1995 e 1999,
1. Ao conviver em um "ambiente principalmente relacionado às crianças
cooperativo" durante um ano escolar, as das escolas B e C. Até 1995 ambos os
crianças oriundas da escola A tiveram a grupos mantiveram nível semelhante de
oportunidade de experienciar e, desenvolvimento do juízo moral. Em
consequentemente, de construir valores 1999, porém, enquanto as crianças
democráticos com base em relações oriundas da escola C mantiveram o
sociais de reciprocidade, cooperação e mesmo nível de juízo moral as crianças
respeito mútuo. Isso lhes permitiu a oriundas da escola B alcançaram um nível
redução do egocentrismo e a ter um juízos bem alto de autonomia pessoal, próximos
morais mais autônomos. Mesmo após 7 aos encontrados nas crianças oriundas da
anos de convivência em ambientes escola A. Investigando o ambiente da
baseados em relações autoritárias, de escola B em 1999 descobrimos que ela
coação e de respeito unilateral, a vêm desenvolvendo, nos últimos 2 anos,
autonomia construída por esses sujeitos se um programa de educação em valores,
manteve mais alta em relação aos sujeitos enquanto na escola C isso nunca
que sempre estudaram em escolas aconteceu. Esse dado reforça a
autoritárias. importância que programas de educação
moral podem ter na construção da
autonomia do juízo moral.

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professor com a cognição, o psicólogo


O PROFESSOR E A CONSTRUÇÃO com a afetividade, o médico com o corpo
DE PERSONALIDADES MORAIS e o assistente social com as relações
sociais. Em geral, esses profissionais
Nos tópicos anteriores relatou-se as estão distanciados da instituição escolar
características de um ambiente escolar (portanto não conhecem a teia de relações
democrático ou cooperativo e os ali presentes). Eles não têm em sua
resultados de investigações demonstrando formação profissional estudos mais
sua influência no desenvolvimento do elaborados sobre a aprendizagem humana
pensamento moral infantil. Para concluir e sobre o que é a educação. Assim, com
este artigo discutir-se-á o papel da escola essa atuação compartimentalizada, forma-
e dos docentes na construção de se um quadro propício para leituras
personalidades morais. parciais da realidade, em que os
problemas de aprendizagem tanto dos
O papel da escola é o de uma instituição conteúdos escolares quanto da moralidade
socialmente responsável não só pela são transferidos para as crianças, que
democratização do acesso aos conteúdos passam facilmente a serem rotuladas de
culturais historicamente construídos, mas incapazes, de deficientes ou de
também o de co-responsável pelo indisciplinadas.
desenvolvimento individual de seus Para superar este quadro, o trabalho com
membros (em todos os seus aspectos), problemas de aprendizagem e de condutas
objetivando sua inserção como cidadãos morais passa necessariamente pela busca
autônomos e conscientes em uma de uma não homogeneização da escola.
sociedade plural e democrática. Para Ou seja, pela tomada de consciência de
isso, ela deve tomar para si a que devem se transformar os princípios
responsabilidade de também trabalhar o sobre os quais assentam-se as relações no
desenvolvimento das capacidades interior da escola, aqui incluído o seu
cooperativas ao mesmo tempo que “modus operandi” e a formação de seus
respeitando as diversidades das crianças. profissionais. O que está sendo dito é que
ela precisa abandonar um modelo em que
Quando se discute o papel mais amplo espera alunos homogêneos, onde trata
que a sociedade contemporânea cobra das como iguais os diferentes, e incorporar
escolas surgem questionamentos sobre uma concepção que considere a
como deveriam ser preparados os diversidade tanto no âmbito do trabalho
profissionais que ali trabalham. Nesse com os conteúdos escolares quanto no das
sentido, a proposta não é de que a escola relações interpessoais.
deva ter “superprofessores”, com
conhecimentos aprofundados sobre todos A homogeneização leva facilmente à
os elementos constituintes da discriminação e ao preconceito. Um
personalidade humana, além dos professor que estabelece rigidamente
conteúdos específicos com que trabalha. valores que definem quem é o “bom” e o
“mau” estudante e padrões pré-
Isso não significa, porém, que a escola determinados para as condutas e respostas
deva estar cercada por profissionais que de seus alunos, baseando-se em seus
atuem isoladamente sobre a natureza de próprios valores, estará próximo de
cada um dos aspectos constituintes do estabelecer discriminações e matizar
sujeito psicológico. Por exemplo, o

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preconceitos contra determinados tipos de atividades em grupo, assembléias de


alunos e de ações por eles realizadas. classe e a busca de relações interpessoais
mais democráticas podem ser um
Se queremos romper com essa tradição caminho nessa direção.
autoritária de imposição dos valores
pessoais de quem detém o poder É deste ponto de vista que não vejo a
institucional dentro da escola, sobre necessidade de formação de
aqueles a ele subordinados, necessitamos “superprofessores”, e sim de educadores
pensar em uma escola mais democrática não-autoritários, conscientes da
baseada em relações que respeitem a importância que ambientes cooperativos e
diversidade e a pluralidade de democráticos têm na constituição
pensamento, de sentimento, de conduta e psíquica, social e cognitiva de seus
do corpo de seus membros. Estou falando alunos. Educadores que percebam que os
de uma escola que propicie um ambiente conteúdos tradicionais da escola, apesar
cooperativo, pautado em princípios de de essenciais para o pleno
auto-regulações pessoais e coletivas, desenvolvimento do aluno, não devem ser
como as definidas anteriormente. encarados como um fim na educação e
Este ambiente escolar, quando sim como instrumentos para a construção
construído, permite a inserção de da cidadania. Educadores que
metodologias de trabalho em que compreendam que devem respeitar as
professores respeitam em suas salas de diversidades do corpo, do pensamento,
aula o ritmo de aprendizado e de das ações e dos sentimentos; utilizando
desenvolvimento de cada aluno, metodologias cooperativas e
conscientes de que a diversidade leva à democráticas, ricas na solicitação de
trocas significativas do sujeito consigo trocas sociais e interpessoais. Dessa
mesmo e com o meio à sua volta. Essas maneira, entendemos que a escola
trocas mais livres e democráticas, quando contribuirá de maneira efetiva para que os
os sujeitos têm a oportunidade de fato de alunos construam personalidades morais
colocar suas idéias, condutas e autônomas e equilibradas.
sentimentos em reciprocidade com os
demais, exercitam o funcionamento
cognitivo dentro de situações reais do
cotidiano e não em cima de situações
clínicas artificiais, ou de conteúdos
dissociados de sua realidade.

Dessa maneira, muda-se o enfoque dado


pela escola ao lidar com as competências
cognitivas e morais de seus alunos. Parte-
se do princípio de valorização da
diversidade e, ao invés de se tentar
intervenções isoladas sobre as
deficiências dos alunos, sobre suas
estruturas cognitivas ou sobre as formas
de transmissão dos conteúdos escolares,
prioriza-se o funcionamento cognitivo e
social. Procedimentos como o estímulo às

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REFERÊNCIAS

ARAÚJO, U. F. Um estudo da relação


entre o ambiente cooperativo e o
julgamento moral na criança. 1993.
Dissertação (Mestrado em Educação) -
Faculdade de Educação, Universidade
Estadual de Campinas. Campinas, SP.

______. O ambiente escolar cooperativo e


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Coordenador da Área de Ensino
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Faculdade de Educação da UNICAMP
e-mail: uliarau@.unicamp.br

Rev. Online Bibl.Prof. Joel Martins, Campinas, SP, v.2, n.2 , p.1-12, fev.2001 12

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