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O
as especilicidades que as carreiras de ministro do STF, procurador de
constituído por car- justiça e delegado de polícia apresentam quanto ao aspecto da conso- ensino superior), a auto-
lidação da ideologia do prolissionalismo, comparando-as às experiên-
reiras reservadas aos cias da advocacia e da magistratura, que loram as que primeiro
nomia para a realização
portadores do título de orientaram-se pelo princípio prolissional, tendo alcançado um alto grau de diagnósticos, a inde-
de consolidação dessa ideologia. A discussão se dá em torno das rela-
bacharel em direito, ções e dos embates entre a lógica da prolissão, do mercado, da buro-
pendência em relação
como advogados, magis- cracia e da política no processo de construção e organização dessas aos clientes, ao Estado
carreiras.
rados, membros do e ao mercado na presta-
Ministério Público e de- ABSTRACT - THE POLlTICS OF THE JURIDICAL PROFESSIONS: THE ção de um serviço espe-
AUTONOMY IN RELATlON TO THE MARKET, TO THE STATE AND TO THE
legados de polícia, entre CLlENT cializado e de qualidade,
outras. Este artigo foca- e o controle (monopó-
The article locuses the prolissionalization in the Law sphere approaching
liza a profissionalização the specilicities that the carriers 01the minister 01STF,solicito r 01justice lio) do mercado de tra-
no mundo do direito, and police delegate present according to the aspect 01 the ideology 01 balho. O autor assim
prolessionalism, comparing them to the experience 01 advocacy and
dando destaque a três the magistracy one, that were the prolessions that lirstly oriented by resume as principais ca-
carreiras: a de procura- the prolessional principie, having reached the high degree 01 racterísticas que definem
consolidation 01this ideology. The discussion occurs about the relations
dor de justiça, a de de- and collisions betwesn the logic 01 the prolession, the market and o profissionalismo:
bureaucracy ones and the construction and organization politicallogic
legado de polícia e a de 01 these carriers.
ministro do Supremo 1) um tipo de trabalho es-
• Respectivamente, prolessora do Departamento de Ciências Sociais/ pecializado da economia
Tribunal Federal (STF), UFSCar e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências
discutindo as especifi- formal, com um corpo de
base teórica de conhecimento e habili-
cidades que elas apresentam quanto ao aspecto
dades discricionários e que receba um
da consolidação do profissionalismo.
status especial na força de trabalho; 2)
O profissionalismo é, segundo Freidson
jurisdição exclusiva em uma dada divi-
2001), uma das três lógicas em que é possível são do trabalho controlada pela negocia-
pensar a organização do trabalho. As outras duas ção entre as ocupações; 3) uma posição
ão a lógica do mercado e a lógica da burocra- protegida no mercado de trabalho inter-
cia. Essas formas de organização são trabalha- no e externo, baseada em credenciais
das pelo autor como tipo-ideais, como modelos qualificadas criadas pela ocupação; 4) um
que, embora estáticos, possibilitam a análise e a programa formal de treinamento desen-
comparação de diferentes experiências. volvido fora do mercado de trabalho, que
O modelo de organização profissional é produza credenciais qualificadas contro-
construído com base em processos de profis- ladas pela ocupação em associação com
o ensino superior, e 5) uma ideologia que
ionalização de diferentes países em diferentes
priorize o compromisso com a realiza - o
momentos históricos, sendo então influenciado
de um bom trabalho em vez do
por diversos contextos econômicos, políticos e
financeiro, e da qualidade em vez
ociais. O princípio que rege o profissionalismo ciência econômica da atividade (Fre
é ocupacional, valorizando a expertise (conhe- 2001: 127).
BONELLI, MARIA DA GLÓRIA; OLIVEIRA, FABIANA LUCI: A POL/TlCA DAS PROFISSÕES JURíDICAS: AUTONOMIA EM RELAÇÃO AO •... P. 99
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assim como o controle dos poderes do Executi- lações das profissões do mundo do direito no
vo e do Legislativo. Mas a política da profissão é Brasil. Essa disputa se reflete no conteúdo da
distinta da política convencional. Pode-se afir- ideologia do profissionalismo, tornando-o hete-
mar que o sentido dela é pautado na anti-políti- rogêneo (Bonelli, 2002). Mas a tendência que
ca, ou seja, é na distinção do conhecimento, da predominou e predomina ainda hoje nas profis-
expertise que os profissionais vão buscar autori- sões do direito é a de manter a distinção apoia-
dade para obter influência na esfera da política. da na expertise, o que levou à concretização da
_'0 caso dos profissionais do direito, o discurso chamada judicialização da política, como avan-
político vai buscar autoridade em argumentos ço do direito na esfera política.
constitucionais, em formalidades técnico-jurídi- A eficácia da política do profissionalismo
as e na arquitetura institucional do sistema da está justamente na capacidade que os profissio-
ustiça. Outro fator que contribui para essa dis- nais têm de atuar politicamente, de influenciar
inção é a idéia de mandato moral que o concei- o jogo político sem serem identificados como
:0 de profissão implica, como um mandato da representantes de interesses específicos. A pro-
ciedade para que os profissionais atuem na fissão faz uma política própria, colocando-se
efesa dos interesses sociais (Halliday, 1999). acima da política convencional, argumentando
A ação política profissional é motivada por sempre em defesa de interesses reconhecidos
ma fusão de interesses materiais, interesses de como universais, como o Estado de direito e a
arreira e interesses universais relacionados ao democracia.
m-comum, constituindo um amálgama de mo-
"ações "sagradas" e "profanas" (Shamir, apud A experiência dos advogados e manístrados'
lliday, 1999a). Na visão de Halliday 0999b),
condições são necessárias para que haja não Pensando no mundo do direito, a
motivação, mas mobilização política de fato: advocacia e a magistratura foram as carreiras que
uma relativa homogeneidade em relação aos primeiro moldaram-se pelo princípio do
ores de formalidade e procedimentos legais e profissionalismo e as que apresentam o mais
existência de uma aliança efetiva entre os elevado grau de consolidação da ideologia pro-
•. sionais do direito e o Poder Judiciário. fissional (Bonelli, 2002).
Halliday (999) afirma que duas alternati- Em sua trajetória de profissionalização os
.::ão colocadas às profissões do direito: ou advogados tiveram embates tanto com o princí-
e mantêm acima do jogo político e confi- pio de mercado, enfrentando a livre concorrên-
na autoridade do formalismo e na expertise cia e tendo dificuldades para controlar
:TI de exercerem uma influência nessa esfera jurisdicionalmente o mercado de trabalho, quan-
Ias descem até os meandros da luta políti- to com o burocrático, enfrentando o Estado que
posícíonando-se apenas como mais um gru- procurava sujeitá-I os à sua supervisão. Embora
e interesse, defendendo seus interesses o Estado tenha sido um adversário no aspecto
culares. O autor acredita que as profissões da autonomia e da independência da profissão,
muito a perder se optarem pela segunda ele foi um aliado na conquista da reserva de
pois embora possam alcançar questões subs- mercado, que se concretizou coma criação da
'as, elas terão menor prevalência, uma vez OAB em 1933.
é justamente sua atuação pautada na neu- A relação da advocacia com a política
de profissional, na anti-política, que as sempre foi de extrema proximidade. A identi-
gue, diferenciando suas reivindicações. dade dos bacharéis em direito forjou-se, desde
A tensão nas fronteiras que demarcam pro- o Império, em torno da imagem de "construto-
e política sempre esteve presente nas re- res do Estado acional", de "construtores da
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ordem" (Adorno, 1988 e Carvalho, 1996). Ain- a partir da valorização da ordem jurídica, e a
da hoje eles trazem essa herança, participando vocação profissional, assente na ideologia de
ativamente da política. Basta ver que a maioria prestar à sociedade um serviço de qualidade e
dos políticos é advogado. com independência.
Os advogados iniciam sua organização no Com a consolidação da OAB o IAB pa -
Império a partir de uma associação de elite, o sou a ser uma associação minoritária, apresen-
IAB, que tinha o objetivo de criar a OAB a fim tando tendências de esquerda e representando
de controlar o mercado, argumentando defen- novas propostas de profissionalismo.
der os clientes dos charlatães, e também atuar O aspecto identitário valorizador da or-
junto ao governo, influenciando e participando dem jurídica aproxima advogados e magistra-
de suas decisões. Mas, com o passar do tempo, dos. Mas essas carreiras experimentaram
outros valores, como a defesa de causas sociais, processos de profissionalização diferenciados.
foram sendo agregados. A atuação do instituto No caso da magistratura, o profissionalismo
oscilou, do momento de seu surgimento até a teve que enfrentar a lógica da burocracia e o aspecto
criação da OAB, entre uma atuação mais técni- de classe, tendo havido também em seus pri-
ca, profissional, a partir da emissão de parece- mórdios conflitos entre justiça leiga e justiça togada.
res jurídicos, e uma atuação mais partidária, com A política sempre fez parte das atividades do
seus integrantes participando diretamente do magistrados, mas, com o avanço da lógica profi -
governo. Essa variação dependia do perfil de sional, a ideologia que predominou foi aquela que
quem estivesse à frente do IAB, constituindo-o estabelece fronteiras entre profissão e política.
ora em elite política, ora em contra-elite. Entre as profissões jurídicas a advocacia e
Com o advento da República, o IAB pro- a magistratura foram as que obtiveram uma
curou se impor como uma instituição com perfil profissionalização mai rápida. Os magistrado
menos ligado à política partidária, a partir de foram os pioneiros na construção e afirmação
uma orientação mais técnica, apolítica e científi- da autonomia profissional, apoiada no controle
ca, o que colaborou para reforçar a ideologia do do treinamento e das credenciais para a entrada
profissionalismo. A reivindicação do instituto no mercado de trabalho, na valorização da
para a criação da OAB só veio a concretizar-se expertise, convertendo autoridade técnica em
em 1933, no governo de Getúlio Vargas. Os mandato moral, e na ideologia de servir ao bem
maiores empecilhos para estabelecer a Ordem comum com independência. O sucesso que
dos Advogados eram o receio por parte das ou- obtiveram nesse percurso é em grande parte
tras elites políticas de que OAB se constituísse devido ao fato de terem enfrentado o poder
em uma organização política de força e o fato político possuindo o mesmo tipo de força
de que ela atuaria em uma área na qual judiciá- (Bonelli, 2002).
rio e Legislativo já atuavam, havendo resistência Na literatura que aborda o papel da ma-
em ceder jurisdição. gistratura no Brasil, nos períodos da Colõnia
A criação da OAB trouxe uma preocupa- (Schwartz,1979) e do Império (Carvalho, 1996),
ção para a liderança dos advogados; estes temiam são atribuídos aos magistrados: homogeneidade
que a transformação de associação de elite em político-ideológica, enfatizando a importância de
associação de massa viesse a minar sua organi- sua formação em Coimbra para esta identifica-
zação e coesão, o que não ocorreu, já que o ção; espírito de corpo e perspectiva de carreira.
aumento do número de sócios acabou por fixar A burocratização começa a se firmar a partir
a identidade coletiva da instituição. Essa identi- da Constituição de 1824, através da vitaliciedade
dade, que predomina ainda hoje, é constituída dos juízes e de sua nomeação feita de cima para
por uma dupla vocação: a vocação institucional, baixo, pelo Imperador e Gabinete. Esses juíze
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PERiODiCOS
podiam ser transferidos a qualquer momento, sões do mundo do direito: neutralidade do co-
não havendo a garantia da inamovibilidade. nhecimento técnico versus compromisso com
Essa garantia assim como a irredutibilidade causas sociais e políticas.
e vencimentos e uma construção mais padroni- A ideologia profissional dominante, tanto
zada de carreira são conquistadas com a reforma entre os magistrados quanto entre os advoga-
que ocorreu em 1871. Até esse momento os ma- dos, é a do profissionalismo como uma forma
istrados exerciam além das funções judiciárias, diferenciada de influenciar a política sem se tor-
runções político-administrativas. Essa reforma nar um contendor específico. Esse foi o cami-
.::epara as funções policiais das judiciais e proíbe nho trilhado por advogados e desembargadores
a participação política com a conseqüente e é nele que procuradores, delegados e minis-
profissionalização" da magistratura, centrada em tros do STF buscam se espelhar para consolidar
ma prática técnico-jurídica e não mais política. a lógica do profissionalismo.
Com o advento da República e a Consti-
ruição de 1891 é estabelecida a dualidade da Os ministros do STF2
-ustiça, possibilitando um funcionamento autô-
nomo entre os estados e a federação. Outros O STF constitui-se em uma das mais rele-
aspectos relevantes para a profissionalização dos vantes instituições da democracia constitucional
magistrados são a instituição do concurso pú- no Brasil (Vieira, 2002), papel que veio constru-
blico para ingresso na profissão, em 1923, e com indo ao longo da República, e que estaria asso-
Reforma de 1926, o reforço da garantia dos di- ciado a mudanças no perfil biográfico e na
reitos da inamovibilidade, vitaliciedade e trajetória de carreira dos seus membros, que sa-
irredutibilidade de vencimentos para a magis- indo de carreiras mais abertas à política, passa-
tratura, que passa a sentir-se mais protegida dos ram a trilhar esse caminho, buscando uma maior
possíveis arbítrios do governo. inserção da instituição nas decisões dos rumos
A Constituição de 1934 proporciona o for- político, econômico e social do país.
talecimento da profissionalização por meio da O perfil dos ministros do Supremo variou
criação da carreira da magistratura. Essa Consti- de um passado mais homogêneo, com uma ori-
tuição torna obrigatória a submissão dos candi- gem social e trajetória de carreira centrados nas
datos ao concurso público e regulamenta o elites aristocráticas e na magistratura, respecti-
acesso dos magistrados às entrâncias e instânci- vamente, para um presente mais heterogêneo,
as. Confere também aos tribunais a exclusivida- em que a origem social se diversificou um pou-
de na prerrogativa de propor alterações no co, com o predomínio do estrato profissional e
número de juízes e em sua organização interna. participação significativa dos setores médios. Sua
São essas as reformas que, segundo trajetória de carreira deixou de centrar-se neces-
Koerner (998), tornam possível começar a pen- sariamente na magistratura, abrindo-se para perfis
sar em uma magistratura regida por critérios pro- mais "politizados", mesmo sendo ligados à
fissionais. Até então prevalecia a falta de expertise atribuída ao direito, como o Ministério
autonomia e o critério político das nomeações. da Justiça, a advocacia e o Ministério Público
A magistratura buscou afirmar a impes- (Oliveira, 2002).
soalidade frente ao personalismo das relações O Supremo foi instituído pelo decreto n.º
de classe e clientelistas, e o profissionalismo fren- 510 de 22 de junho de 1890, como órgão de
te à burocracia. Mas. nesse caminho enfrentou cúpula do Poder Judiciário e guardião da Cons-
uma polarização sobre qual seria a concepção tituição. O sistema de controle da constitu-
profissional dominante, semelhante a enfrenta- cionalidade das leis adotado foi o sistema
da por advogados e que caracteriza as profis- difuso-incidental (difuso porque qualquer órgão
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de, havendo também a possibilidade de acesso profissionais passar pelo Executivo e pelo Sena-
à carreira a partir do Quinto Constitucional - do, sendo extremamente política, impõe
mecanismo através do qual membros de desta- questionamentos quanto à isenção da atuação
que do Ministério Público e da advocacia in- desses profissionais, que ficaria minada pela
gressam na magistratura de segunda instância, cooptação ao Executivo, já que o ministro nome-
sem a necessidade de concurso, pautando-se sua ado estaria ligado ao Executivo e ao grupo polí-
nomeação pelo critério do mérito. tico presente no governo que o nomeou.
O ingresso no STF requer apenas a posse A carreira de ministro do TF é criticada
de notório saber jurídico, reputação ilibada e tanto como uma carreira burocrática, regida pelo
ser brasileiro maior de 35 anos. O único requisi- princípio da hierarquia, com a nomeação vinda
to profissional necessário, portanto, é a posse de cima para baixo, sendo o nomeado ubordi-
desse saber, o que pode ser entendido como a nado e representante dos intere e de quem o
posse do título de bacharel em direito, não sen- nomeou, quanto como uma carreira política, já
do ministros necessariamente (embora o sejam que a nomeação dos ministros não obedece ao
em sua maioria) pertencentes às carreiras do di- processo de seleção dos magistrados.
reito. Assim, muitos deles saem diretamente de O questionamento quanto ao proce o de
carreiras políticas para ocupar um lugar no STF. nomeação foi constante na história do tribunal toda
Os ministros são nomeados pelo chefe do Po- vez que esteve em pauta a reforma do Judiciário,
der Executivo, passando por argüição pública intensificando-se no governo Fernando Henrique,
para aprovação do Senado. O único ministro a que nomeou três ministros para o STF, e desper-
integrar o STF sem possuir o título de bacharel tando grande preocupação quanto ao governo
em direito foi o médico Barata Ribeiro (no go- Lula, que já fez três nomeações devendo realizar
verno de Floriano Peixoto), que teve sua nome- mais duas, o que segundo os críticos, configuraria
ação suspensa pelo Senado alguns meses após uma maioria governamental no tribunal.
sua posse no tribunal, justamente por ser enten- O embate com a política é mais acentua-
dido que não possuía o "notório saber", que após do para os ministros do STF do que para as ou-
tal fato passou a vigorar na Constituição como tras carreiras do direito, com a fronteira entre
"notório saber jurídico". profissão e política chegando mesmo a se con-
A posição que o STF ocupa é extrema- fundir em alguns momentos. Mas a solução en-
mente delicada, estando exatamente na frontei- contrada é semelhante: é no apego à ideologia
ra entre profissão e política, porque embora seus profissional que esses ministros vão procurar
membros tenham a distinção do mérito jurídico, legitimidade para sua atuação.
a ascensão a tal posto se dá a partir de uma O STF desfruta de um poder político, mas
estratégia política. Assim, seus ministros estari- busca distingui-lo da política convencional pro-
am no limiar entre esses dois campos. É essa curando não se ligar às disputas partidárias. Esse
grande proximidade com a política que coloca poder político seria diferenciado, na medida em
barreiras e dificulta a consolidação do profis- que assente em uma capacidade de diagnóstico
sionalismo, no caso dos ministros do STF. baseada no saber profissional (jurídico-formal)
O aspecto mais fragilizado é a questão da e na ideologia da prestação de um serviço de
autonomia de sua atuação, especialmente frente qualidade à sociedade de forma independente.
aos outros poderes do Estado. O Supremo é uma Os ministros do STF buscam se diferenciar das
elite profissional, com valores meritocráticos, mas outras elites políticas a partir da sua identidade
é também uma instituição com poder de veto ao profissional: enquanto o campo da política é mais
Executivo, tendo a possibilidade de exercer um facilmente identificado na opinião pública com
forte papel político. O fato de a nomeação desses a corrupção e com a parcialidade, sendo seus
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membros parte de uma elite com interesses ego- são da lógica técnico-jurídica no mundo da po-
ístas e demagógicos, o campo profissional tem lítica. O STF afirma sua posição de poder políti-
a ideologia da imparcialidade, da neutralidade, co não só como guardião da Constituição, mas
sendo seus membros uma elite meritocrática, também como intérprete mais autorizado a
com saber de nível superior e menos identificada adaptá-Ia às necessidades do momento político,
como comprometida com o capital ou com a quando o legislador não cumpre essa função.
política convencional. O fato de atuarem politicamente faz com
Os ministros do STF têm buscado construir que os ministros sejam constantemente ataca-
e defender uma identidade profissional que dê dos pelos outros poderes e pela mídia a partir
coesão ao grupo e funcione como fator de legiti- do argumento da conseqüente politização de
midade dele no mundo do direito e também como suas decisões. Esse argumento visa emplacar a
estratégia da instituição para manter e justificar necessidade do controle externo ao Poder Judi-
sua aquisição e reivindicação cada vez maior de ciário. E seria esse motivo que levou o STF a
poder político, especialmente em face do debate posicionar-se na Constituinte contra sua trans-
sobre a possibilidade da adoção de um controle formação em uma corte constitucional, pois a
externo a esse poder, debate este sempre presen- partir do momento em que perdesse a posição
te na história política da República. de cúpula do PJ, perderia a distinção, transfor-
O fato de a nomeação envolver um caráter mando-se em elite política como as outras. Esse
político, não retira dos ministros a condição pro- é o posicionamento dominante no tribunal. Um
fissional, pois a socialização, a identidade com a exemplo é o discurso do ministro Décio Miranda,
instituição e a vitaliciedade são características que publicado na Revista Forense:
possibilitam a esses profissionais o desempenho A limitação da competência do STFàs ques-
de um papel político autônomo. Ainda que o tões constitucionais (com as reduzidas exceções
ministro leve para o tribunal suas relações com o que os projetos a respeito costumam admitir) é o
governo que o nomeou, ele leva também a soci- ponto mais sensível e delicado de qualquer proje-
alização nos valores partilhados nas carreiras do to global de reforma judiciária. Exigindo estudo à
mundo do direito. Além disso, a garantia da vita- parte, nele não vamos penetrar senão para referir
liciedade preserva-o no posto, mesmo depois da a nossa convicção pessoal de que, desvestido de
alternância dos grupos no poder. Assim, mesmo sua função de intérprete máximo da lei ordinária
quando os ministros não têm experiência anteri- federal, o STFperderia grande parte de sua impor-
or na magistratura eles permanecem no convívio tância na ordenação política da sociedade brasileira.
com os outros profissionais, interagindo com os Parece paradoxal a afirmativa, pois, se se concen-
valores e construindo uma identidade comum trasse na matéria constitucional e de ordem políti-
como ministros do STF.A média geral de perma- co-jurídica, o esperado seria que, exercidas essas
nência dos ministros no cargo é de 10.8 anos funções com exclusividade, seu papel se fortale-
para os ministros com experiência anterior na cesse, e, conseqüentemente, ganhasse maior peso
magistratura e de 8.5 anos para os que não têm sua presença na balança dos Poderes do Estado
essa experiência (Oliveira, 2002). (Décio Miranda, RF,vol. 292, 1985: 497).
Esses ministros almejam entrar na esfera Esse é um ponto bastante polêmico nas
da política como uma elite diferenciada. Assim, discussões sobre o Poder Judiciário. alini (in
apegados a sua identidade de profissionais, rei- Sadek, 1995) afirma a impossibilidade do STF
vindicam a expansão dos seus poderes políticos permanecer como cúpula do P], argumentando
buscando não politizar suas funções. A estraté- que "o Supremo é uma Corte com outras carac-
gia política adotada é então a defesa da terísticas, não podendo ser considerado um ór-
judicialização da política, referindo-se à expan- gão de cúpula do Poder Judiciário" 0995: 50).
ARTIGO iftRIÓDICOS
Os mrrustros defendem sua condição de vinha se firmando entre os seus membros. Mas
última instância do judiciário justamente para as lideranças da instituição não desistem de lu-
se desvencilharem do "ranço" político que tra- tar pelo aspecto da profissionalização, apresen-
zem com sua nomeação, reforçando para isso o tando no governo Geisel uma emenda que
mérito, a expertise, o ideal profissional da auto- incluía o MP na reforma do P] que esse governo
nomia e da neutralidade jurídico-formal. Eles estava realizando. Essa reforma resultou no "Pa-
procuram sustentar uma imagem pública que os cote de Abril" de 1977, que teve conseqüências
distancie do mundo político convencional, con- nefastas para a autonomia do judiciário, mas que
olidando um ethos comum, baseado na identi- em relação ao MP proporcionou uma melhor
dade profissional. E como todas as profissões, estruturação de carreira, prevendo uma lei com-
apresentam conflitos internos, mas externamen- plementar que estabeleceria seu estatuto legal.
te são percebidos como mais homogêneos. As A atuação do MP ora como auxiliar do
disputas ideológicas internas dão liga ao grupo, Poder judiciário, ora do Poder Executivo perdu-
a partir da experiência partilhada de serem mem- raria até a década de 1980, quando a ideologia
bros de uma mesma profissão. do profissionalismo avança ainda mais entre os
O apoio na autoridade do conhecimento membros do MP. Nesse período ocorrem mu-
jurídico como distinção não vem em oposição à danças institucionais e a ampliação das atribui-
política, mas sim em complementação. Os mi- ções do MP, com a Lei Orgânica aciona I do
nistros não negam o papel político que exercem Ministério Público, de 1981. Em 1985 foi criada,
e sim procuram diferenciá-Io a partir dos valo- pela lei n.º 7.347, a ação civil pública, que pos-
res da imparcialidade, da transparência e da se- sibilitou o questionamento da atuação do Esta-
gurança jurídica. do, a partir da responsabilização dos danos
causados ao meio ambiente, aos consumidores
Os procuradores de justiça3 e aos bens e direitos de valores artístico, estéti-
co, histórico, turístico e paisagístico, incorpo-
As carreiras do Ministério Público (MP) no rando ao MP a defesa dos interesses difusos,
Brasil têm origem no Império. Os promotores coletivos e metaindividuais.
eram nomeados pela Corte e pelos presidentes Mas é somente com a Constituição de 1988
de província para atuação criminal, podendo que o MP configura-se como uma instituição in-
atuar também como fiscais das leis. Durante a dependente, com novas e mais amplas atribuições.
República essas carreiras estiveram ora subordi- Essa mudança na posição do MP é de âmbito na-
nadas ao Executivo ora ao Poder judiciário. Com cional, mas ela foi implementada diferencialmen-
a Constituição de 1946 o MP é diferenciado, não te em cada um dos Estados. Aqui, para a análise
endo atrelado a nenhum dos três poderes. Essa da ideologia do profissionalismo entre os procu-
Constituição institui os Ministérios Públicos Fe- radores de justiça, é focalizado o MP paulista, que
deral e Estadual, estabelecendo o concurso pú- entre os demais Ministérios Públicos foi o pionei-
blico para ingresso na carreira, dando a seus ro na organização e afirmação da instituição com
membros estabilidade na função, sendo as pro- um perfil mais autônomo e profissional.
moções e remoções controladas pela Procura- Comparados à magistratura e à advocacia,
doria Geral (Macedo jr., 1997). os procuradores de justiça tiveram dificuldades
A Constituição de 1967 atrela novamente de consolidar o profissionalismo. Isso tem rela-
o MP ao Poder judiciário e em 1969, com o AI- ção com o fato de integrarem uma carreira mais
S, o Ministério Público volta a ser ligado ao Exe- recente, tendo despendido mais tempo para ad-
cutivo. Isso tudo acaba enfraquecendo a quirir o controle de sua jurisdição, para con-
ideologia de autonomia e independência que quistar a autonomia e independência em relação
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ao Executivo. Por essa proximidade com o go- de serviço, tendo o controle da atividade pelo
verno a estrutura de carreira foi, durante muito pares e o monopólio do exercício profissional.
tempo, mais próxima do modelo burocrático que Mas apresenta alguns aspectos ainda não con o-
do profissional. Mas, na década de 1980, a ideo- lidados da ideologia profissional, especialmente
logia do profissionalismo ganha força no grupo no que se refere às relações entre profissão e
e é organizado um "lobby profissional" para pres- política e na dedicação exclusiva à carreira.
sionar os constituintes de 1987 a redefinirem as Os embates em torno da fronteira entre
funções do MP, o que, como dito, é conquistado profissão e política são extremamente acirrado .
e consagrado na Constituição de 1988. O procu- envolvendo disputas pelo poder de nomear qua,
rador Camargo Ferraz assim descreve sua con- é a ideologia profissional, com disputas, inclusi-
cepção do papel que o MP alcançou com essas ve, no direito dos promotores/procuradores
transformações: candidatarem-se a e exercerem funções políti-
cas. Até 1988 as disputas se davam em torno da
o que mudou acima de tudo foi a mudan- escolha de tendências político-partidárias a se-
ça do Ministério Público no cenário políti- rem defendidas e seguidas. Com a proibição do
co nacional, no cenário político institucional
desempenho de funções eletivas e executivas
do país. Por que isso? Porque antes de 88,
o Ministério Público desempenhava uma
na gestão pública para os membros que ingre -
série de atribuições, mas nenhuma delas saram na instituição depois de 1988 (direito pre-
fazia dele, Ministério Público, o que hoje servado para os antigos membros), as disputas
costuma ser destacado em trabalhos socio- passaram a ser em torno do conteúdo da ideo-
lógicos: um novo ator político. Ele não ti- logia profissional, no que se refere às relações
nha esse perfil, e não por falha dele. ão
do MP com o Estado, com a sociedade e, princi-
tinha porque o sistema não lhe conferia
esse papel. (...)Por que o papel do Minis- palmente, com a política.
tério Público mudou da água para o vi- No caso específico do MP paulista, que
nho? ão foi uma simples evolução, porque teve membros atuando diretamente no governe
o Ministério Público, se analisarmos do estadual (como Antônio Fleury Filho e Cláudio
ponto de vista jurídico-político-institucional, Ferraz de Alvarenga), os custos desse atrelamento
é uma das poucas válvulas hoje existentes,
ao governo foram altos, sendo questionadas a
além do voto, do próprio voto, que permi-
te quebrar um pouco esse círculo vicioso, idoneidade e independência da instituição. E -
uma vez que ele é um órgão do Estado ses elos com a política convencional foram se
que tem nas mãos poderes efetivos, instru- enfraquecendo a partir da entrada de novo
mentos reais, como a ação penal, a ação membros na década de 1990, portadores de um
civil pública, o inquérito civil, a notifica- ethos profissional mais bem incorporado.
ção ... Porque não adianta nada você dar a
Com isso trava-se uma disputa interna na
função se não tiver meios para exercê-Ia. E
ele tem esses meios para falar em nome da instituição entre os setores que defendem a proi-
maioria (Antônio Augusto de Mello bição de afastamento tanto para o exercício de
Camargo Ferraz, inBonelli, 2002: 167-168). cargos de assessoria quanto para a ocupação de
postos diretos no governo, afirmando a diferen-
As novas atribuições do MP são um indi- ça entre profissão e política, e os setores que
cativo do predomínio do profissionalismo sobre defendem uma certa flexibilização quanto ao
as formas burocráticas de organização, com a afir- envolvimento dos membros do MP com o gover-
mação da autonomia em detrimento da hierar- no, sendo favorável à prestação do serviço de
quia. A instituição é agora centrada em um perfil assessoria ao Estado, impondo resistência a uma
mais independente, apoiado no mérito, no co- maior demarcação da fronteira entre profissão e
nhecimento abstrato e especializado e no ideal política, questionando o tipo de política das pro-
fissões, afirmando o vínculo entre compromisso patíveis, mas não é um dirigente de classe,
político, responsabilidade social e profissional. dirigente de classe é o presidente da Asso-
ciação. Esse tem a função sindical, o procu-
Essa cIivagem nas relações internas do MP é
rador geral não. ão há instituição política
que gera o maior problema para a consolidação
perfeita. Você pode ter alguém eleito pelo
da ideologia profissional, causando um rompimen- grupo profissional que seja independente e
to nas redes de sociabilidade que davam liga ao voltado para a sociedade, como você pode
conjunto da corporação, fragilizando o insulamento ter uma posição corporativa, fechada, ensi-
institucional. Isso é o que mais diferencia a trajetó- mesmada, voltada para dentro. Eu acho que
ria da profissionalização dos procuradores da tra- é um sistema de freios e contrapesos, já dis-
se que não tem fórmula perfeita. Por vezes,
jetória dos advogados e desembargadores.
a gente pergunta: "Bom, mas e os ministros
Mas o segmento que tem mais força é o do Supremo são nomeados pelo presiden-
que busca diferenciar a profissão da política con- te, são nomeados, aprovados pelo Senado,
vencional. A ideologia predominante no grupo a partir daí eles se desligam. Eles têm obri-
é a que busca construir uma identidade comum gação de se desligar. Já outros que ingres-
com base em uma vocação dual, institucional e saram por carreira e, portanto, de uma outra
profissional, agregando a importância política, forma, na hora H não se mostram indepen-
o mandato moral e a autoridade técnica na de- dentes na atuação. Não sei se há uma solu-
ção para isso, uma solução perfeita não há,
fesa da sociedade e da independência do Minis-
quer dizer, quantos falam no noticiário, na
tério Público. Para isso, os procuradores buscam história do Brasil, nós vamos ter, por vezes,
inspiração e apoio nas experiências da advoca- juízes que não foram nomeados pelo Exe-
cia e da magistratura, que consolidaram a lógica cutivo e que não foram independentes. Eu
do profissionalismo a partir da conquista e da acho que vai muito do sistema de garantias
proteção de sua autonomia e independência fren- e de freios e contrapesos,. O procurador
te ao Executivo, a partir da força e da coesão de geral pode ser destituído por impeachment
por grave violação do dever do seu cargo,
sua organização interna, do apoio dos poderes
então dá consciência da necessidade de
do Estado e do respaldo da sociedade, da mídia
cumprir sua obrigação. Não há uma fórmu-
e de outros setores formadores da opinião pú- la perfeita para isso (Luiz Antônio Guima-
blica (BoneIli, 2002). rães Marrey, in Bonelli, 2002: 163-164).
Segundo o Procurador Guimarães Marrey,
não há uma solução perfeita para o impasse entre A experiência do MP é bem mais recente,
política e o exercício do cargo de procurador, se comparada às da advocacia e da magistratura
comparando o impasse sofrido no MP ao sofri- e caminha no sentido de firmar cada vez mais a
do pelos ministros do STF: lógica da profissão, especialmente com a apo-
sentadoria dos membros que ingressaram na
o Ministério Público, assim como o Judiciá- instituição antes de 1988. Esse movimento em
rio, como a Assembléia ou o Executivo são
busca do profissionalismo tende a se completar
funções de Estado. Na verdade, o cargo do
procurador geral, ele não é um cargo dos na próxima década, desde que o impedimento
promotores, ele é um cargo da sociedade. para a ocupação de cargos políticos seja manti-
Ele chefia aquela instituição. O procurador do para os novos membros do MP.
geral é escolhido entre membros profissio-
nais da instituição, mas ele não pode ser Os delegados de pollcla!
um cargo com visão corporativa, ele tem
que ter uma visão mais ampla do que sim-
plesmente ser o mais graduado dos promo- A carreira de delegado de polícia começa a
tores. Há uma necessária fidelidade à ser organizada no Brasil durante o Império, a partir
sociedade, eu não acho que sejam incom- de uma iniciativa centralizadora do Estado em
BONELlI, MARIA DA GLÓRIA; OLIVEIRA, FABIANA LUCI: A POLíTICA DAS PROFISSÕES JURíDICAS: AUTONOMIA EM RELAÇÃO AO ..•• P. 99 A 114 109
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1841. Surge, portanto, com uma conotação políti- do instituído o requisito da posse do título de
ca muito forte, já que tal iniciativa buscava con- bacharel em direito para o desempenho da fun-
trolar o poder local, atribuindo aos delegados ção. Mas as promoções, transferências e remo-
muitas das funções que até então cabiam aos ções permaneceram como instrumentos de
juízes de paz. Esses delegados eram inseridos em controle nas mãos do governo.
uma estrutura hierárquica composta por chefe de Com a Constituição de 1988 a carreira de
polícia (escolhido entre desembargadores e delegado de polícia vai se aproximar um pouco
juizes), delegados de polícia e subdelegados (es- mais do perfil profissional. Essa Constituição
colhidos entre juízes e outros cidadãos) e exerciam proporciona aos delegados praticamente as mes-
funções de polícia administrativa e judiciária. Sua mas garantias de carreira de que dispõem os
organização inicial é extremamente atrelada à magistrados e os procuradores, o que colabora
lógica de classe e à burocrática. para a coibição de nomeações políticas e mani-
Em 1871 ocorre uma reforma importante pulações de cargos, evitando demissões e re-
que separa a função policial da judicial e restrin- moções não previstas na carreira.
ge as funções dos delegados, embora regulamente Segundo Kfouri Filho (1991), em 1988
o inquérito policial como sendo de sua respon- os delegados conseguem o reconhecimento
sabilidade exclusiva. Essa mudança na origem dos constitucional:
delegados provoca uma queda de prestígio des-
sa função, já que eles deixaram de ser necessari- Merece destaque, além do primeiro regis-
amente bacharéis e muitos passaram a ser tro constitucional, a definitiva institucio-
nalização da carreira de Delegado de
dependentes das elites locais, visto não serem
Polícia, consolidando sua profissiona-
remunerados na maior parte das localidades.
lização em nível nacional e dando fim a
Com a República essa estrutura organi- nomeações de leigos e "afilhados
zacional vai ser modificada. Aqui é focalizado políticos". Releva gizar também a institu-
como a carreira de delegado de polícia se cionalização do inquérito policial (art.l29,
estruturou no Estado de São Paulo. Essa carreira inciso VIII, da CF), como definitivo ins-
se inicia em 1905, com os delegados nomeados trumento formal da polícia judiciária
(Kfouri Filho, 1991: 29).
pelo presidente do Estado sendo passíveis de
remoção e demissão. A estrutura da carreira é
A carreira de delegado obedece hoje à di-
extremamente burocrática e politicamente con-
visão em 6 classes C1ª, 2ª, 3ª, 4ª, 5ª e especial),
trolada, de cima para baixo, pelo governo.
sendo o posto mais alto o de Delegado Geral de
a década de 1910 tem início um proces-
so de valorização da especialização e de técni- Polícia, que é escolhido e dispensado pelo go-
cas científicas aplicadas à investigação criminal. vernador, não havendo um período específico
Muitas modificações e reformas foram sendo pro- de mandato. Os delegados possuem vitalicieda-
cessadas na carreira durante esse período até a de e irredutibilidade de vencimentos, mas não
Constituição de 1946, mas, embora tenha havi- gozam da inamovibilidade, o que fragiliza o as-
do uma melhor definição dos seus patamares, a pecto da independência, já que podem ser trans-
autonomia, característica essencial do profis- feridos. O critério de promoção na carreira
sionalismo, não foi incorporada à carreira, que obedece à divisão por mérito e antigüidade.
permanecia sujeita às nomeações pelo governo, Apesar das conquistas obtidas pelos dele-
à demissão e à transferência, aos valores do gados de polícia, no mundo do direito eles per-
clientelismo e à perseguição política. manecem como a carreira mais fragilizada no
Em 1946 o ingresso na carreira passa a se aspecto da ideologia profissional. Muitos são os
dar através de concurso de provas e títulos, sen- fatores que colaboram para essa fragilidade, en-
BONELlI, MARIA OA GLÓRIA; OLIVEIRA, FABIANA LUCI: A POlÍTICA OAS PROFISSÕES JURíOICAS: AUTONOMIA EM RELAÇÃO AO .... P. 99 A 114 111
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que contribui para essa dualidade é a forma Tanto os ministros do STF quanto os pro-
de estruturação da carreira e o fato desses pro- curadores espelharam-se, e ainda se espelham
fissionais estarem sujeitos a transferências e bem, na experiência de profissionalismo da ad-
remoções, indicando a falta de independên- vocacia e da magistratura, sendo os delegados
cia da instituição. de polícia os mais vulneráveis e distantes na
Aqui é necessário fazer uma ressalva: não busca desse modelo, o que é explicado em gran-
se deve tomar o processo de diferenciação ca- de parte pelo pouco enraizamento que a ideo-
racterístico das profissões como um indicativo logia profissional alcançou nesse grupo.
de burocratização. Segundo Freidson (1996),
os membros da profissão não são homogêne- Notas
os entre si, devido à diferenciação por fun-
ções. Os segmentos da profissão seriam 1 Baseia-se no estudo de Bonelli (2002) sobre o Ins-
administradores (que determinam como e onde tituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e a Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB), entre 1843-1997,
os praticantes podem atuar), praticantes (que
e sobre o Tribunal de Justiça do Estado de São Pau-
divulgam a profissão, se relacionando direta-
lo (TJESP), entre 1873-1997.
mente com os clientes) e acadêmicos (que 2 Essa discussão baseia-se no estudo de Oliveira
produzem o conhecimento abstrato e formal (2002) sobre o Supremo Tribunal Federal, entre os
no qual a profissão se apoia). Outras caracte- anos de 1979-1999.
rísticas que os diferenciam são as especialida- 3 Focaliza o Ministério Público Paulista (MPP), entre
BONELLI, MARIA DA GLÓRIA; OLIVEIRA, FABIANA LUCI: A POLiTlCA DAS PROFISSÕES JURíDICAS: AUTONOMIA EM RELAÇÃO AO •... P. 99 A 114 113
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