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A transformação

“¡Claridad! ¡Claridad! ¡Bendita claridad,


que al matar lo indeterminado, lo penumbroso,
lo vago, lo informe, mata la vida!”

Miguel de Unamuno

Por pouco Fidélio não encontrava Maria em casa. Trazia afoito um informe
importante que devia ser do coletivo ou do partidão, não sabia ao certo. Contudo não
tinha dúvidas: era a tal oportunidade que, sem dúvida, mudaria a vida dela. Mas Maria
não estava em casa, havia saído a poucos minutos acompanhada de não sei quem.
Acreditando ter ouvido sua voz, entrou agitado e quase histérico num dos quartos que
ela alugava com outras meninas, gritando em voz alta: “Arrasou Maria, arrasou”. As
três colegas de quarto da moça, sem entender bulhufas, deram uma resposta vaga sobre
sua ausência. Buscando desanimado a saída, ele atravessou apressado os cômodos de
uma daquelas casas velhas que ficava num bairro próximo ao centro antigo de Santos,
mas acabou trancado numa espécie de antessala que conectava a sala e o quintal de
saída. Neste espaço fechado e exíguo, dava pra ouvir a conversa delas que estavam
sentadas no sofá no cômodo anterior. Ao ouvir as melosas e melancólicas vozes das
meninas que comiam amendoim frio, deixou de lado a resistência pra fugir dali, e se
ateve a conversa, pondo seus ouvidos atentos ao que se relatava, enquanto reparava
naquele ambiente tradicional com mesinha de centro, toda de ferro branco com
estranhos trançados ao gosto da época, onde antigamente se repousavam os livros e os
mates gelados; as cadeiras e apoiadores da mesma cor, onde descansavam as xícaras e
os biscoitos, lembravam as antigas tertúlias dos moradores de outrora, encontros de
outrora na varanda ao melhor sabor provinciano. Encerrado neste espaço, Fidélio
escutava a prosa das meninas:

- Eis o tal que ela havia dito

- Mentira? Bem apessoado, menina

- Nossa!, um gato mesmo

- Mas e aí, qual a boa?


- Fala Janaina, vai

- Bem, na verdade não sei bem de toda a história, mas posso contar as partes
principais. Eu soube pela Maria num dia em que estavamos almoçando, ou melhor,
fazendo um lanche, ela contou sobre um evento, uma palestra sei lá, em que ele óbvio
discursava. Não podia tirar os olhos dele, reparava em tudo, sua respiração, seu
movimento, quando ele ficava sem fôlego e vermelho, emocionado no tom da voz,
empolgado, vixi, era uma loucura só, ela dizia. Ela o chamava de Fidélio, dizia que
Tolentino de Moraes era nome de época. Era um desses caras estranhos, provavelmente
vindos da capital, metido a intelectual e sabe-se lá revolucionário.

Não tardou para que ela o reencontrasse e o reconhecesse. Foi assim que ela
desaguou do interior aqui na área, num dia em que tinha pouco trampo, e ela tinha
decidido sair um pouco, ver o movimento, dar uma volta, tomar um ar. Estava aqui em
frente da porta de casa mesmo, observando aleatoriamente o jeito das pessoas, esse
andar despojado do caiçara. Até que cruzou a esquina um homem bem engomado para
uma cidade litorânea. Subiu uma quentura, não sabia se vinha de vê-lo naquelas roupas,
ou da surpresa de revê-lo. A verdade é que o jeito dele, assim meio insinuante, mexeu
com ela, que parou ele e começaram a conversar. Com muito pouco e já estavam
relembrando de onde se conheciam. Era de uma palestra de sindicalista que ela havia
sido encaminhada quase a força por alguma enfermeira ou assistente social sei lá de
onde... Enfim.

Trocaram poucas ideias e então foram tomar um café, ou um suco, ai meninas, já


nem lembro mais, mas sei que foi nessa padaria daqui da esquina mesmo. Era de dia
ainda. Começaram a conversar, ele, na verdade, quem mais falava do seu trabalho como
militante, ela, naturalmente, de novo prestando atenção nos movimentos de sua boca e
percebendo melhor todo o jeito como ele falava. Me disse vagamente algo sobre seu
corpo, não tinha musculatura forte, mas vestia roupas chiques e aparentemente caras.
Tinha nas mãos um exemplar de um livro escrito com letras vermelhas, Crime e
Castigo, e um nome estranho que se não me engano era russo ou polonês, por já ter
ouvido essa pronuncia de uma das meninas descendentes de mulheres dessas bandas daí
que andava por aqui. Andava pra cima e pra baixo com ele, dizia que tinha dificuldade
de terminar a leitura. Entre um silêncio e outro, ele, como quase todo homem para
começar o assunto, elogiou as mãos dela, que pareciam belas e rápidas, ela sem graça,
com vergonha de suas veias, das cutículas e unhas aparentemente comidas, disformes.
Sentiu alguma coisa estranha nesse comentário dele, no brilho faiscante de seus olhos....
Já ele parecia empolgado com o que via, ela me contou que permanecera quieta mas
atenta ao que ele falava, discreta nos modos e nas modas das roupas, comportada né.

- Hum, não é que ela fez direitinho...

- É, tá aprendendo a sujeita... Então, que mais rolou entre eles?

- Sim, e o encontro?

- Calma lá, suas assanhadas, eu não contei tudo ainda ... Bom, depois de dar toda
essa brecha pra ele, ficaram enfim a sós num apartamento próximo aqui mesmo, mas
que ele descolou, onde ficou sendo o cantinho dos rolês deles. No primeiro deles, o
rapaz estava meio tímido com a presença segura dela diante da situação, mas se soltou a
seguir. Ela curtia a fusão do cheiro deles, era deliciosa, ele usava a língua como um
gato, apertava bastante com as duas mãos suas costas, sua cintura, cheirava seus
cabelos. Se sentia surpresa com o fôlego que ele tinha na cama, o que ela havia
percebido dele se cumpria, embora sua pele não ardesse tanto, tinha pouco sangue nas
veias, era lento, uma natureza mais bondosa, pacífica. Além de jovem, usava mal a
cabeça, um corpo viril que não era seu... Ela dizia que o tal pensava demais e de forma
sempre inadequada para as situações da vida. Tinha dinheiro, é verdade, provinha de
família rica, burguesa como dizem. Mas não dava conta, ela dizia, Fidélio não era o tipo
de homem que lhe arrebataria, queria alguém mais inteiro, em plena forma e que não lhe
trouxesse mais problemas. Achava como eu que homens assim não se fazem só com
dinheiro e nome de família, pois nobreza não tem nada a ver com riqueza nem pobreza,
né meninas. Vocês sabem, um homem não nasce nobre, ele vai se transformando...

- Olha só, falou bonito agora, com quem você tem andado hein?

- Isso é de algum intelectual, sei lá?

- Com ninguém de especial, suas loucas... Parece né, poderia ser de um escritor,
mas não, nada disso, as vezes penso essas coisas. Nós mulheres também temos nosso
modo de perceber as coisas. Não à toa tem se falado de feminismo agora né. Mas, então,
essa fraqueza dele logo se confirmou nos dias seguintes, quando ele ouviu vagamente
dizer, mas não demonstrou tanto ciúmes assim, de um caso dela com outro. Ficou
estranho. Mesmo tentando esconder o que sentia, ela foi sagaz de perceber sua
insegurança, que não era homem para ela, não suportaria conhecê-la a fundo. Enorme
tolice. Imagina, ele sequer poderia imaginar ela sendo beijada, pegada fortemente,
apertada, chupada, mordida..., naquela loucura que ele experimentou em poucas doses.
E ela fazendo tudo isso aqui então, não, nem pensar... Por mais pra frente que fosse, não
daria conta... Ela já tinha percebido que ele queria algo diferente, dava muitos conselhos
de mudança disso e daquilo... mas ela enfraqueceu daí em diante, e a paixão não cresceu
neles... Já ele alimentava esperanças de que os encontros se refortalecessem com a
presença dela nos círculos que ele frequenta, de política, sei lá, convivendo com uns
tipos militantes e intelectuais amigos dele

- Ham, sei...

- Pois é... Agora, não entendi bem o porquê dessa euforia dele de agora a pouco.
Será que era alguma oportunidade boa pra ela largar essa vida? E ela, vai entrar nessa?
Eu não sei não viu, a bicha é geniosa pra mudanças assim... Bom, talvez fosse uma boa
pra nossa Tais né...

Nesta hora, ouviu-se um barulho forte próximo de onde elas estavam. Era
Tolentino que, numa pancada brusca, conseguia enfim abrir a maldita maçaneta da
porta. Em seguida outra pancada. Era ele batendo a porta e escapando daquele pesadelo
que acabara de ouvir. Estava transtornado. Saiu chutando as cadeirinhas que a pouco
admirava, de certo não voltaria mais ali. Quem o visse percebia que estava emocionado,
desorientado da consciência. Saia puto da casa das meninas. O que acabara de ouvir não
só distorcia a realidade mas contrariava completamente suas ideias.

- Não pode ser, não é possível... Não é da Maria que elas estão falando. Deve ser
de alguma outra amiga de república. Ou talvez seja mesmo companheiras de quarto e
alguma delas trabalhe com isso. Mas Maria não...

Ao alcançar a rua, viu o dia brilhando em seu esplendor, estava lindo, radiante,
um sol forte, era quase onze horas de um dia qualquer de novembro, mês de grandes
irrupções. Uma lufada de bafo quente, pensou que podia ser o tal do vento noroeste.
Logo se reprimiu. - É cada crendice desse povo.

Na ausência dos arranha-céus da orla da praia, ele via como poucas vezes o céu
azul por sobre as divisas desses bairros de casas, e uma sensação de alívio invadia seu
corpo pela primeira vez, já que não aprovava muito o clima caloroso e tropical daquela
região. Tinha vindo de São Paulo assumir não se sabe que função na cena política da
região. Andava esbaforido, esbarrando distraído no povo, procurando uma calçada com
sombra. Apressado, ainda iria à uma reunião de seu grupo, enquanto lá dentro elas se
aprontavam para mais um dia de trabalho.

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