Você está na página 1de 70

Língua contra língua.

Reunindo textos produzidos esparsamente


no correr dos anos, esta publicação, como
bem lembra seu autor, é testemunha de
um modo significativo de produção e
circulação do pensamento contemporâneo
em nosso país. Mas longe de representar
uma espécie de capitulação daquela
chamada escrita de fôlego de outros
tempos - como não deixarão de insistir
algumas almas mais saudosistas-, uma
publicação dessa natureza se oferece, Língua contra língua
antes, como evidência de que esse
modo de produção intelectual, quando
insistente e consistentemente pautado por
um conjunto comum de inquietações,
é perfeitamente capaz de gerar mais do
que a mera antologia de movimentos
reflexivos dispersos. Nos melhores casos,
pode mesmo resultar em uma publicação
que, ao fazer conviver como conjunto o
que outrora fora produzido isoladamente,
delineia os contornos e entornos de um
pensamento singular em construção. Em
outras palavras, uma publicação dessa
natureza também é capaz de fazer obra.E
ganhando corpo como tal, esta se explicita
de imediato como linha de força do campo
em que se inscreve: seja pelo que mobiliza
do pensamento contemporâneo nas
discussões que enceta, seja por colocar esse
mesmo pensamento em movimento. Este é
exatamente o caso de Língua contralíngua,
de Marcelo Jacques de Moraes.
Podemos dizer com todas as letras que se
trata, aqui, de uma obra sobre tradução,no
sentido das vertentes mais contemporâneas
de discussão do fenômeno tradutório. Isso
significa dizer que o leitor encontrará,
neste livro, um conjunto de reflexões
Marcelo Jacques de Moraes

Língua contra língua

~---~--"--
•~APERJ
..__do ____ __
© 2017 Marcelo Jacques de Moraes
Sumário
Este livrosegueas normas do AcordoOrtográfico
da LínguaPortuguesade 1990, adotado no Brasilem 2009.

Coordenaçãoeditorial
Isadora Travassos

Produçãoeditorial
Ana Cecília Menescal
Julia Roveri
Rodrigo Fontoura
Victoria Rabello

Imagem de capa Apresentação e agradecimentos 9


Helena Trindade
Afetos de leitura: reverência e irreverência na tradução 17
Instalação Poética da Letra
[teclas de máquinas de escrever remontadas em linha, 2012] Sobre a relação entre as línguas desde A tarefa do tradutor 27
Língua, lugar da experiência 35
Sobre a violência da relação tradutória 45
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO Envelhecimento e esquecimento, contratempos da tradução
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
(com Walter Benjamin e Marcel Proust) 57
Aurélio e os poemas em prosa de Baudelaire:
Moraes, Marcelo Jacques de notas sobre uma tradução rebuscada
Língua contra língua/ Marcelo Jacques de Moraes. - 1. ed. - Rio de Janeiro :
7Letras, 2017. Mallarmé traduzindo Israfel,de Poe: sobre três "erros" de tradução
ISBN 978-85-421-0593-3 Língua contra (a) língua: traduzindo Christian Prigent
1. Ensaio brasileiro. I. I. Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Pode-se comer um figo de palavras?
Estado do Rio de Janeiro. II. Título. Uma questão (antropofágica?) com/ a Francis Ponge 111

CDD: 869.94
CDU: 821.134.3(81)-4
Referências bibliográficas 125

Notas bibliográficas sobre os textos 131

2017
Viveiros de Castro Editora Ltda.
Rua Visconde de Pirajá, 580 - sl. 320 - Ipanema
Rio de Janeiro - RJ - cep 22420-902
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br - www.7letras.com.br
1

Para Simone,
André, Laura e Miguel
por todosos dias, todosestesanos
Apresentação e agradecimentos

Esta coletânea constitui o terceiro volume de uma série constituída


pelos seguintes títulos: A incertezadasformas, O fracasso do poema e Lín-
gua contralíngua.
Compostos por ensaios produzidos ao longo dos últimos 20 anos, os
volumes refletem não apenas parte de minha trajetória de pesquisador e
professor de literatura francesa no Brasil - implicando frequentemente a
preocupação de apresentar os autores e questões em jogo numa perspec-
tiva teórica e histórica bastante ampla -, como também um certo modo de
produção e de circulação do conhecimento dominante em nossas universi-
dades, que induz à publicação de pesquisas em andamento de modo relati-
vamente contínuo e fragmentário, sem o tempo de maturação necessário à
sua composição como um todo. Contudo, se, de fato, quase todos os textos
reunidos em cada um dos volumes vieram à luz de maneira mais ou menos
isolada, visando à participação em eventos acadêmicos e/ou à publicação
em periódicos ou em livros organizados por outros pesquisadores, e guar-
dam, assim, alguma autonomia, parece-me que este seu remanejamento
como um conjunto configura, a despeito da dispersão de origem, uma visão
relativamente abrangente de certa reflexão estética de ascendência francesa
de cunho materialista, visão que privilegia constantemente o contraponto
entre a tradição moderna e o que quer se oferecer como produção, teóri-
co-crítica ou prática, do contemporâneo. Por isso, como certamente notará
o leitor, nem sempre evitei a reincidência de determinadas referências -
ideias, conceitos, autores-, cuja insistência ao longo dos volumes constitui,
a meu ver, mais do que um recorte de objetos ou de temas de interesse pri-
vilegiado, um certo modo de olhar.
Nesse sentido, o que reúne as três séries de ensaios é a perspectiva da
instabilidade da relação entre forma e sentido tal como pensada no - ou

9
pelo - objeto estético ou literário, desenvolvida teoricamente ao longo dos desde as sucessivas, e também intermitentes, encenações desse seu fim. Os
textos, quase sempre tendo como móbil um corpus específico. demais ensaios apresentam eixos e matizes importantes do debate a partir da
A incertezadasformas, que abre a série, gira sobretudo em torno da poesia contemporânea - mas sem deixar de atentar para o modo como ela
especulação sobre as noções de forma e representação, a partir de tex- recoloca suas relações com os modernos. A começar com Jude Stéfan, que,
tos literários, críticos e/ou ensaísticos de escritores franceses dos séculos enraizado na tradição mas ávido da leitura de seus jovens contemporâneos,
XVIII ao XX. Nos dois primeiros textos, abordo a relação entre transito- expõe em sua poesia a palavra feita corpo a toda espécie de violação. Com
riedade da matéria e errância do pensamento estabelecida e encenada nos Philippe Beck, procuro interrogar certas modulações de sentido dô enlace
ensaios sobre a arte e nos romances de Denis Diderot. Passo em seguida, entre atenção poética, pensamento e música - e silêncio - que começam
com André Malraux, à consciência do devir imprevisível do "imaginário a se fazer ouvir nas reflexões e práticas poéticas desde a segunda metade
do aleatório" que marcaria decisivamente, segundo o escritor, a história das do século XIX. Entre Francis Ponge e Christophe Tarkos, exploro especial-
formas desde o século XX. No ensaio sobre Gilles Deleuze, busco apresen- mente os efeitos do trabalho poético de construção da distância - ou de sua
tar em linhas gerais o sentido das questões da arte tal como se formulam abolição - entre palavras e coisas. Segue-se uma tentativa de refletir sobre a
na obra do filósofo, discutindo especialmente o modo como a apreensão possibilidade de pensar a poesia como lugar de partilha do comum, de uma
sensível das diversas formas artísticas força o pensamento a mover-se para língua comum, de constituição de comunidade, antes de terminar, em tex-
fora de si mesmo e a irromper, por assim dizer, no seio da própria vida. tos sobre Jean-Marie Gleize e Michel Deguy, com uma reabertura do debate
Com Roland Barthes, procuro reconstituir a problematização da questão sobre novas configurações do fim - do fracasso - do poema.
da autoria - para a qual o escritor contribuiria de modo algo espetacular Em Língua contralíngua,terceiro e último volume da série, apresento
com o seu famoso ensaio sobre "a morte do autor" - a partir da formula- reflexões sobre o trabalho entre línguas e a relação com o estrangeiro, algu-
ção moderna da escrita - do "começo da escrità' - como experiência da mas delas de cunho mais predominantemente teórico-especulativo, outras
alteridade. Encerram o volume dois textos sobre Georges Bataille. O pri- a partir de experiências mais específicas de tradução. Nos quatro primei-
meiro se pauta essencialmente na dimensão performativa da forma - ou ros ensaios, abordo questões teóricas diversas sobre a tradução literária,
do informe -, numa discussão que se estabelece no entrecruzamento entre procurando dialogar com nuances do pensamento de autores fundamen-
invenção literária e pensamento estético e antropológico, como é sempre o tais para o campo como Walter Benjamin, Antoine Berman, Jacques Der-
caso nos ensaios do escritor. No segundo, viso esboçar uma abordagem de rida, Haroldo de Campos, ou mesmo Sigmund Freud, entre outros, e, ao
uma noção bataillana fundamental - a de "soberanià' - a partir de uma de mesmo tempo, infletir aqui e ali, a partir dessas nuances, algumas reflexões
suas narrativas eróticas. de cunho mais prático sobre a experiência da tradução - seja como leitor,
Em O fracasso do poema, segundo volume da série, exploro ao longo seja como tradutor. Em seguida, explorando as noções de envelhecimento
dos textos o modo como se tematiza e se dramatiza na poesia francesa e esquecimento na obra de Marcel Proust, retorno uma vez mais ao pen-
moderna e contemporânea a tensão entre experiência e escrita, interro- samento de Benjamin sobre a literatura e a tradução, sobre suas "correla-
gando especialmente, entre os séculos XIX e XXI, as relações críticas da ções de vidà: para especular mais especialmente sobre a destinação de toda
poesia com a época e com a língua, de um lado, e com seus próprios limites escrita - literária ou tradutória - ao inacabamento e à "vida continuadà'.
formais, de outro. Os três primeiros ensaios são protagonizados por Char- Os três ensaios subsequentes incidem sobre questões concretas de tradu-
les Baudelaire. No primeiro deles, procuro apresentar uma das questões ção em obras específicas: uma abordagem comparativa de dois traduto-
fundamentais do debate poético do século XX, em torno da finalidade, ou res dos poemas em prosa de Charles Baudelaire; uma discussão relativa
do fim, da poesia. Nos dois que se seguem, especulo, sob diferentes pers- a alguns detalhes da tradução de um poema de Edgar Poe por Stéphane
pectivas de pensamento - e tomando diferentes poetas contemporâneos Mallarmé; e uma exposição de alguns aspectos de minha própria tradu-
como contraponto -, sobre o sentido da reabertura intermitente da poesia ção de um texto de Christian Prigent. Por fim, valho-me de um pequeno

10 11
'ii

problema de tradução para o português de um título de Francis Ponge para eventos e projetos na área. Inês Oseki-Dépré, tradutora e professora de lite-
especular sobre a dimensão antropofágica de sua poética. ratura comparada da Universidade Aix-Marseille, que desde 2007 me aco-
Assim, reitero, se os três volumes se propõem como um conjunto, cada lhe em Aix-en-Provence, onde tenho oferecido cursos e dirigido ateliês de
um deles organizado em torno de um fio condutor - a forma, o poema, a tradução. Ainda: Celina Mello, Bernardo Oliveira, Fabio Akcelrud Durão,
tradução-, percebe desde já o leitor que está livre para percorrê-los a seu Rafael Viegas, Masé Lemos, Laura Erber, Helena Martins, Célia Pedrosa,
bel-prazer e de acordo com seus próprios interesses. Ida Alves, Maria Elizabeth Chaves de Mello, Ângela Dias, Vera Casa Nova,
Evando Nascimento, Alberto Pucheu, Susana Scramim, Caio Meira, Marí-
lia Garcia, Flávia Trocoli, pelos eventos e publicações organizados ao longo
*
destes anos, bem como pelos encontros e discussões decorrentes, na uni-
Ao preparar estes volumes e, especialmente, ao reconstituir, no final, versidade e fora dela. E agradeço também muito especialmente, pelas capas
a gênese de cada um dos ensaios que os compõem para as notas bibliográ- destes volumes, a Helena Trindade, artista visual cujo trabalho dá a ver sin-
ficas, senti-me como diante daquele vaso "repleto de perfumes, de sons, gularmente, entre outras coisas, a força sensível e irredutível da letra. Não
de projetos e de climas" de que falava Marcel Proust para definir a relação poderia tampouco deixar de lembrar aqui alguns parceiros franceses que
entre sensações e lembranças que faz nossa experiência da realidade e do me abriram portas e perspectivas fundamentais para o meu trabalho com a
tempo que a constitui. Foram muitos os lugares, os rostos, as cenas que literatura francesa: Jean-Pierre Marcos e Jacob Rogozinski, que me recebe-
não pude deixar de evocar, naturalmente associados a tantos nomes- anti- ram em 2003 para o meu primeiro pós-doutorado na França, na Universi-
gos, continuados, renovados - de parceiros, colegas, amigos, professores, dade de Paris 8, e Christophe Bident e Evelyne Grossman, para o segundo,
alunos, orientandos. Seria impossível citar todos aqueles com quem tive em 2010, na Universidade de Paris 7. Jean-Marie Gleize, Philippe Beck e
a chance de trabalhar e interagir durante os vinte anos de vida profissio- Christian Prigent, com quem tive encontros bastante produtivos nos últi-
nal e pessoal que esses textos refletem, mas gostaria de lembrar alguns dos mos anos, a partir dos quais alguns dos ensaios aqui publicados foram
nomes fundamentais em sua gênese. A começar por Edson Rosa da Silva, desenvolvidos. E Bénédicte Gorrillot, com quem venho estabelecendo uma
meu primeiro parceiro de projetos e companheiro de congressos e coló- sólida parceria de trabalho em torno da poesia francesa contemporânea.
quios (e de viagens ...) na área de Letras. Paula Glenadel, cúmplice já antiga Gostaria ainda, nestes tempos sombrios que atingem com força as ati-
e duradoura no trabalho com a poesia francesa (e na vida ...). Ana Maria vidades de ensino e pesquisa nas universidades brasileiras, de estender estes
Alencar e João Camillo Penna, interlocutores cruciais em disciplinas dadas agradecimentos a todas as instituições brasileiras em que estive durante estes
a quatro e seis mãos - e também pelos corredores da Faculdade de Letras anos para atuar das maneiras mais diversas, ministrando cursos, palestras,
da UFRJ(e em vários outros sítios ...). Ana Kiffer, de energia vital inigualá- participando de eventos, bancas, comissões, experiências certamente deci-
vel, com quem tive a chance de compartilhar convênios, cursos, seminários sivas para a minha trajetória como professor e pesquisador. Primeiramente
e mesas-redondas (mas não só ...) no Brasil e na França. Marcos Siscar, que à Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde estudo, trabalho e pes-
me acolheu para um pós-doutorado em 2015 na UNICAMP,fundamental quiso - me formo - desde 1988 (sempre contando com a recep~vidade dos
para a finalização deste trabalho, mas sobretudo pelo privilégio de poder meus colegas e amigos do Departamento de Letras Neolatinas e do Setor
seguir de perto (e sempre em outras excelentes companhias ...) sua mili- de Letras Francesas). Para além da UFRJ,às diversas universidades federais:
tância poética consistente e generosa. Walter Costa, Marie- Hélene Torres, UFAL,UFBA,UFES,UFF,UFMG,UF0P,UFPA,UFPB,UFPR,UFRGS,UFSC,UNB,
Márcia Attala Pietróluongo, Izabela Leal, Mayara Guimarães, Germana UNIFESP,UNIR;estaduais: UERJ,UNESP,UNICAMP,USP;e privadas: PUC-RI0,
Henriques Pereira, Maurício Cardozo, amigos queridos que me estimula- PUC-SP.E, também, ao CNPq, à CAPESe à FAPERJ,pelas diversas modalida-
ram a me lançar e a avançar na pesquisa no domínio da tradução literá- des de bolsas e auxílios sem os quais nada disso teria sido possível.
ria e que, um pouco em toda parte, têm sido companheiros frequentes de

12 13
Há estrangeiro em todo outro. É a vários que definimos,
reformulamos, explicamos, buscamos dizer
a mesma coisade outro modo.
PAUL RICCEUR
Afetos de leitura:reverência e irreverênciana tradução

Ao contrário de muitos colegas, sempre me referi a minha "tarefa de


tradutor" como a uma modalidade de escrita que tende a ser especialmente
prazerosa. Costumo dizer que ela me permite experimentar menos ambi-
guamente o prazer implicado pelos desafios, impasses e dificuldades ine-
rentes à atividade da escrita na medida em que nela fica um pouco ate-
nuada a angústia da autoria.
Por quê? Simplificando um pouco, eu diria:
Em primeiro lugar, porque a tradução de um texto implica a relação
com algo menos inefável do que aquilo a que visaria uma escrita primeira,
i autoral: um texto a ser traduzido constitui um ponto de partida mais mate-
i
rial, mais consistente, mais objetivo, do que os fantasmas mais ou menos
encarnados que impulsionam em nós o desejo de escrever. É claro que essa
escrita a ser transformada em escrita também é assombrada por fantas-
mas, e estes podem ser terríveis, chegaremos a isso, mas é algo reconfor-
tante saber que a escrita tem, no empreendimento tradutório, um roteiro
pré-traçado, um volume pré-definido.
Em segundo lugar, a responsabilidade de apostar na relevância de se
tornar público aquilo que se escreveu, no caso do tradutor, é, por definição,
compartilhada. Ainda que venhamos a traduzir, por iniciativa própria, um
texto inédito na própria língua em que foi escrito, compartilhamos essa
responsabilidade quando menos com o próprio autor.
Assim, em minha experiência prática, esse prazer que experimento
como tradutor me parece estar associado a esses dois fatos: ter parâme-
tros materiais para balizar meu desejo de escrever, livrando-me de certos
problemas fundamentais de uma escrita autoral (como e de onde come-
çar, como e onde terminar, o que retirar, o que acrescentar ao longo do
caminho: na experiência da tradução, um outro já decidiu por mim); ter, desempenhará melhor a tarefa de traduzir filosofia, e um poeta a de tra-
portanto, referências concretas para dar à escrita uma dimensão no espaço duzir poesia etc. Mas trabalhar na "floresta interna da línguà: para usar a
e no tempo (isso pode ser muito enganoso); e além disso, ter com quem expressão do próprio Benjamin, com uma "intenção" "ingênua, primeira,
dividir a responsabilidade pela iniciativa de dar a ler o que escrevo, e poder intuitivà: como faz o escritor de um original, é completamente diferente
gozar, por antecipação, da identificação com cúmplices mais ou. menos de trabalhar entre línguas, com uma intenção "derivada, última, ideativà'
próximos, vivos ou mortos, que, assim, povoam a solidão do gesto origi- (BENJAMIN, 2008, p. 91), como faz o tradutor.
nário - ainda que não necessariamente original - que constituiria uma A segunda razão do preâmbulo, que é a que me interessa mais particu-
escrita autoral. Ou seja, ao contrário do que acontece quando decido ceder larmente (e que também seria, é claro, fundamental desenvolver para tratar
ao meu desejo de escrever alguma coisa minha, não estou só quando me da questão da escrita autoral - aqui vou me limitar à escrita tradtitória), é a
lanço à escrita tradutória. (E mesmo quando não me identifico com o ori- seguinte: parece-me que são essas relações de afeto com estes outros mais
ginal que vou traduzir, ou com aqueles que se fazem seus cúmplices, deixo ou menos concretos que estão ao nosso lado desde o primeiro momento
de ter cúmplices para ter álibis: mas são ainda os outros, agora como lei- num empreendimento tradutório - o editor, o autor, seus leitores, seus crí-
tores potenciais de mercado, ou como agentes do mundo editorial, são ticos etc., estes outros que, para nós, o texto a ser traduzido materializa
ainda esses outros que me pag~ que me acompanham e me justificam em objetivamente -, são essas afinidades eletivas que determinam nossa pos-
minha escrita.) tura como tradutores em tal empreendimento específico, nosso modo de
Claro que isso tudo tem seu avesso, e todos sabemos que a angústia fazer face às dificuldades de tradução do projeto em questão.
do tradutor tem outras faces, e que, bem entendido, ela pode se aproximar Dizendo de outra maneira, é a relação transferencial com o texto ori-
bastante da angústia da escrita autoral, pode até mesmo ser - e frequente- ginal, e, naturalmente, com os personagens mais ou menos fantasmáticos
mente o é - mais terrível e mais paralisante do que ela. Chegarei lá. que, para nós, o assombram - relação esta que não é estática, e que, evi-
Mas faço esse preâmbulo por duas razões. A primeira delas, que não dentemente, se desénvolve ao longo do processo -, é essa relação que acaba
discutirei aqui, mas que não creio ser destituída de importância nos estu- determinando a preponderância de uma postura mais reverente ou mais
dos de tradução, é a seguinte: parece-me mais ou menos óbvio que a escrita irreverente com o original. É essa relação transferencial que vai modular,
na tradução tem suas especificidades e não se confunde plenamente com em tal processo tradutório específico, as manifestações do desejo de afir-
a escrita autoral. É claro que há nuanças comuns, mas quero dizer que há mação de uma escrita que, como eu dizia, sempre assombra a tarefa do
problemas específicos da tradução de textos entre línguas que não se con- tradutor. Eni outras palavras, e voltando à primeira pessoa: minha postura,
fundem com o uso muito amplo que se vem cada vez mais fazendo do como tradutor, não é sempre a mesma.
termo tradução. Assim, como ouço vez por outra dizerem, em nome de Como varia essa postura? Quanto mais tenho a sensação de que, por
Walter Benjamin ou de Jacques Derrida, por exemplo, que todo original já trás daquele texto, há um trabalho de escrita, de que aquele texto consti-
é tradução, pois todo texto filosófico já é tradução de outro texto filosófico, tui não um modo de dizer específico daquela língua estrangeira, mas, para
que todo poema já é tradução de outro poema etc., mas sem dar a essas dizer como Marcel Proust, uma língua estrangeira dentro daquela língua
afirmações sua devida dimensão metafórica, acho que é importante lem - estrangeira;' ou seja, quanto mais tenho a tendência a considerar que estou
brar que é preciso manter vivo o esforço de distinguir as coisas (da mesma diante não do sintoma de uma.língua (isto é, de um modo de dizer a que
maneira, nos estudos literários, o "tudo é texto" da explosão da semiologia uma língua obriga), mas de um. estilo naquela língua (isto é, de um modo
criou uma tendência a indiferenciar tudo o que se escreve, e de repente, a de dizer que se impõe àquela língua e que, de certa forma, amplia suas
partir dos anos 1970/ 1980, tudo se tornou "escriturà' e todos nos torna-
1 "Os belos livros são escritos numa espécie de língua estrangeira:' (PROUST, 1954a,p. 297-298)
mos escritores ...). É claro que certamente se pode dizer que um filósofo Quando a referência for a edições francesas, a tradução das citações é minha.

18 19
possibilidades), mais reverente se torna minha atitude em relação a esse encontrar um dos grandes dilemas do tradutor: como se sabe, de um mau
texto, mais impotente me parece minha língua para restituí-lo, e mais resis- original traduzido, sempre se dirá que se trata provavelmente de uma má
tência encontro diante da tarefa de traduzi-lo. tradução. E que as boas traduções se devem na maioria dos casos aos méri-
Mas vamos começar pelo texto que nos parece mais fácil, por aquele tos do original. A despeito, contudo, dos ressentimentos que frequente-
que nos deixa antes irreverentes. Tal texto se caracteriza pelo fato de que mente nos abatem, a nós, tradutores (e que vivemos em parte como uma
minha mente e minha língua, sobretudo minha língua, o envolvem com questão de vaidade, em parte como uma questão de mercado), resta a
certa facilidade. As equivalências me assaltam à minha revelia. l:Jma vez questão da responsabilidade ética e prática do tradutor diante de um origi-
tomadas algumas decisões quanto à transposição do registro linguístico nal que ele pensa que poderia ser melhorado na própria língua de origem
do original, o que leio só me levanta problemas relativamente a um certo - o que ele só pode fazer concretamente em sua tradução, em sua própria
vocabulário, a um certo léxico. Uma expressão, um jogo de palavras que se língua. De toda maneira, e para voltar à minha própria prática, a diferença
mostre literalmente intraduzível em minha língua simplesmente me põe em relação a um texto que tomo por literário está no fato de que aqui não
a questão: como alguém diria isto em minha língua? O importante é que achamos que nossa tradução mais ou menos adaptadora, mais ou menos
isto já se oferece a mim como uma palavra em minha língua, mesmo que irreverente, modifique de maneira essencial a dimensão significante do
eu ainda não saiba que palavra é essa. E se houver expressões que consi- original; às vezes, até mesmo, ao contrário, vemos aqui e ali a possibilidade
dero que ninguém utilizaria em minha língua, tento compensar, fazer com de torná-lo ainda mais fiel a si mesmo por meio de nossa tradução.
que ela as diga de outra maneira, mostro suas possibilidades, seus recursos Para o texto que consideramos "difícil': a coisa é completamente dife-
próprios em relação à língua estrangeira. E nada que uma nota do tradutor rente. Se acreditamos na possibilidade de vertê-lo para nossa língua, é fre-
não possa resolver. Aqui, a nota do tradutor, esta confissão de impotência 2
quentemente à custa de zonas de deformação não desprezíveis. Aliás, com-
- uma vez que remete sempre de algum modo a algo que não se deixou preendo com o incontornável Benjamin que, longe de ser uma reprodução,
transferir em minha tradução -, não me incomoda. uma restituição do original, uma tradução poética bem-sucedida é seu
O importante, justamente, é que, nesse caso, não me sinto linguísti- "suplemento': 3 e um dos efeitos de sua sobrevida. O filósofo alemão com-
camente impotente, linguísticamente castrado, não tenho nenhum ressen- para, numa célebre metáfora, origÍl,lal e tradução aos cacos de um mesmo
timento em relação a minha língua. Muito pelo contrário, neste texto que vaso (BENJAMIN, 2008, p. 93-94), implicando, assim, em seu modelo mes-
me parece mais ou menos objetivamente compreensível, precisamente por- siânico, o devir incessante, a intensificação do sentido da obra original em
que sua materialidade específica, sua carne própria, sua letra, não me parece suas traduções sempre por vir.
desempenhar nenhum papel significativo na produção de seu sentido, redes- Ora, retomando essa metáfora do vaso, eu diria que, na tradução de
cubro com alegria os recursos de minha língua, sinto-me perfeitamente à um texto "fácil': aquele cujo sentido se impõe a despeito da letra, acredita-
vontade nela. Permito-me até mesmo rearranjar mais ou menos livremente mos produzir não um fragmento que se ajustaria, em suas irregularidades,
algumas passagens, às vezes chego a ter a impressão, um pouco insolente, de
que a tradução é mais precisa que o original, que este deveria ser reescrito a 3 Os tradutores de Benjamin costumam usar o termo "complementd; mas creio que a noção
partir dela. É, portanto, nesse caso, minha língua que ilumina para mim esse derridiana de suplemento mostra bem a tensão em jogo para o filósofo entre original e tra-
dução. Pois para o filósofo alemão, o "complementd; assim como o suplemento para o fran-
texto estrangeiro, e a questão da letra original mal se coloca para mim. cês, não totaliza aquilo que deflagraria sua emergência (ao contrário do que dá a entender a
Por outro lado, nessa tendência à hipercorreção do original a partir noção de complemento). Como se pode ler, por exemplo, nesta passagem crucial da Tarefa,
aqui em tradução de João Barreto: "Nas línguas isoladas, sem complemento, o que nelas se
de modelos mais ou menos normatizados na língua da tradução, podemos quer dizer nunca se encontra numa autonomia relativa, como acontece com as palavras ou
frases isoladas, mas sempre em permanente mudança, até conseguir emergir, sob a forma da
2 Diz Jacques Derrida que a nota do tradutor, "sempre, até mesmo no melhor dos casos, o caso língua pura, da harmonia de todos os modos do querer dizer. Até aí, permanece oculto nas
da maior relevância, confessa a impotência ou o fracasso da traduçãd' (DERRIDA, 2005, p. 26). línguas:' (BENJAMIN, 2008, p. 88-89)

20 21
ao fragmento constituído pelo original - como Benjamin define a tradu- outro modo, na imanência da obra se alojaria o movimento sempre por se
ção de uma obra de arte -, mas uma espécie de fac-símile desse fragmento realizar de sua transcendência.
original (eventualmente até mais bem polido e adequado do que ele no Mas quero aqui reiterar que, na experiência de leitura de tal original,
sentido de contribuir para a recomposição do vaso total - da "língua purà: há algo que afeta nossa sensibilidade a partir daquela materialidade, e que
para dizer como Benjamin). parece enclausurar-se nela no momento mesmo em que a traduzimos,
E como fica a posição do tradutor diante daquele texto "difícil': daquele obrigando, uma vez mais, a retornar a ela. Trata-se daquele isto que per-
fragmento de língua do qual nos parece impossível fazer um fac-símile em manece sem nome - e que poderíamos aproximar do sublime, na tradição
nossa língua? Em primeiro lugar, como o reconheço? Como vimos, quanto kantiana, ou do que Proust definia metaforicamente como aquele sotaque
mais um texto me parece aderir inevitavelmente, em sua materialidade estrangeiro dentro da própria língua de um grande escritor -, isto que, jus-
própria, em sua letra, àquilo que diz, mais ele me parece tornar-se intra- tamente, se impõe, junto com aquela materialidade linguística, à minha
duzível, mais a tradução que começo a arriscar me parece por princípio tarefa de tradutor literário. Mas esse "inapreensível" só se deixa ler em sua
destinada ao fracasso. literalidade, com aquele sotaque, e assim minha insolência linguística -
Aqui talvez fosse o caso· de desenvolver o argumento de Benjamin "em minha língua isto se diria assim" - deixa de funcionar. Entro então
sobre a dimensão paradoxal daquele "inapreensível" que a materialidade em conflito com minha língua, com sua potência expressiva: "Em minha
do texto originàl permite vislumbrar, mas está longe de encarnar. 4 Argu- língua, isto não é dizível..:' Pois de fato, em minha hesitação tradutora, os
mento que leva Benjamin a afirmar que o sucesso do original - remeter implícitos predicativos de toda escolha supostamente literal não param de
ao inapreensível sem, justamente, apreendê-lo - implica na verdade seu se trair. Encontro aí a hiperdeterminação intraduzível da letra estrangeira,
fracasso: ele exige tradução. Daí a necessidade de um "crescimento': de a infinitização de suas derivas de sentido que, no limite, tornam toda tra-
uma "evolução" do original,5 que - e valho-me agora da reflexão do filó- dução dessa experiência de leitura estranha, estrangeira a si mesma.
sofo sobre os românticos alemães, para os quais ato tradutório e ato crí- E é aí que a angústia do tradutor se confunde com a angústia autoral.
tico definitivamente se aproximam 6 - permitiria que ele desdobrasse suas Assim, o texto profuso em sotaques de língua estrangeira na língua
potencialidades, que intensificasse seu próprio movimento de autorrefle- estrangeira exige, para que eu o traduza, a ampliação da potência signifi-
xão, revelando assim ao mesmo tempo, paradoxalmente, ironicamente, seu cante de minha língua. Uma vez que isto não se diz, é preciso forçar minha
inacabamento constitutivo - revelado essencialmente por sua "criticabili- língua a dizê-lo. A confrontação com o indizível da língua estrangeira me
dade" - ou por aquela sua traduzibilidade, sua tensão tradutora de prin- obriga, portanto, ao esforço de ampliar as margens da língua. Mas se o ori-
cípio. Assim, na instabilidade da autolimitação que a constitui, a obra se ginal impõe, na língua do tradutor, a necessidade de escolher a impossível
afirmaria exatamente por .sua vocação à autossuperação. Ou, dizendo de correspondência, o sucesso da tradução literária implica justamente o movi-
mento contrário. Consistindo precisamente, segundo Haroldo de Campos,
4 Diz Benjamin no início de seu texto: "Mas aquilo que uma obra literária contém, para lá da
informação - e até o mau tradutor reconhece que é isso o essencial -, não será precisamente na possibilidade de "transformar, por um átimo, o original na tradução de
o que nela há de inapreensível, de misterioso, de "poético"?" (BENJAMIN, 2008, p. 82) sua tradução" (CAMPOS, 1992, p. 84), esse sucesso do tradutor não leva,
5 "Na tradução o original evolui, cresce, alçando-se a uma atmosfera por assim dizer mais ele-
como no caso de minha tradução irreverente, tomada de amor por minha
vada e mais pura da língua, onde, naturalmente, não poderá viver eternamente, como está
longe de alcançá-la em todas as partes de sua figura, mas à qual no mínimo alude de modo língua, a tradução a substituir o original: enquanto seu "suplemento': ela
maravilhosamente penetrante, como o âmbito predestinado e interdito da reconciliação e da o altera irreversivelmente, como também disse Benjamin. É por isso que,
plenitude das línguas:' (BENJAMIN, 2008, p. 73). A tradução aqui é de Susana KampffLages.
6 Um exemplo: "Talvez Novalis pense, na medida em que aproxima uma da outra crítica e tra-
como afirmou ainda da tradução poética o filósofo alemão, esta, parado-
dução, numa passagem medial constante da obra de uma língua a outra, uma concepção que, xalmente, só faz realmente sentido para quem "entende o original" (BEN-
devido à natureza infinitamente enigmática da tradução, é desde já tão lícita quanto uma
JAMIN, 2008, p. 82). Pois então eles podem iluminar-se, suplementar-se
outra:' (BENJAMIN, 1999, p. 78-79)

22 23
reciprocamente. Mas ainda aí, bem entendido, reencontramos a hesitação De duas coisas uma: ou a poesia de Safo é isso mesmo, ou essas imagens, tal-
vez vivas na época, difundiram-se tanto que perderam qualquer poder sobre
que não para de assoIT<1brar o tradutor literário em sua tarefa.
nós. Trata-se, de qualquer modo, de uma tradução decepcionante, assim
É evidente que as coisas não são simples assim. E que tais posturas se como as de muitos "grandes clássicos''. (BERMAN,2007, p. 74-75)
alternam, e que as fronteiras da língua são muito tênues etc. Mas a impres-
são geral que minha experiência de traduzir tem me dado é a seguinte: se a Resta saber se certos "clássicos" realmente não se tornam "poetica-
irreverência com o original, nossa impaciência para com ele, muitas vezes mente banais" na perspectiva da cultura em que foram produzidos. Pois
mascara a reverência em relação a nossa própria língua - nossos sintomas se, como já havia dito Goethe, a tradução sempre pode ser rejuvenescedora
linguísticos - , ela também nos leva a nos interrogar sobre suas fronteiras e - até porque é necessariamente anacrônica-, fica a questão de como reju-
sobre as fronteiras da língua desse original. Seus silêncios. Por outro lado, venescer tais clássicos em sua própria língua de origem, de como evitar que
contudo, se é fundamental não ter a reverência ao original como um parti se tornem "decepcionantes" para os leitores nativos dessa língua.
pris absoluto, esta é também fundamental no sentido da contaminação Quero com isso dizer que não me parece que possamos definitiva-
com o estrangeiro, que, despertando as latências de nossa língua, permite mente proceder na prática a apenas um modo de traduzir. Quando, tradu-
também atentar para sua "riqueza heterológicà' (BERMAN, 2002, p. 340) e, tor irreverente, permito-me interrogar o original, frequentemente o faço
assim, nuançá-la, renová-la, alterá-la. em nome das virtudes estabelecidas pelas tradições textuais de minha pró-
E esse segundo viés é particularmente destacado por Benjamin quando pria língua - ainda que talvez aí, do ponto de vista de Berman, eu tenda
ele afirma que a tarefa do tradutor é menos a de dar a conhecer uma obra a produzir uma tradução "poeticamente banal': Ao passo que, em minha
produzida em língua estrangeira do que a de exprimir "a relação mais reverência ao texto estrangeiro, a isto que, nele, não se deixa traduzir para
íntima entre as línguas': Trata-se, portanto, de produzir um texto híbrido, a minha, vejo-me obrigado a brincar com minha língua, a deformá-la, a
que revele o "pàrentesco"7 entre as línguas, fazendo brilhar "a dupla luz das desvirtuá-la, a explorar suas virtualidades insuspeitas, a desvirtualizá-la ...
duas línguas reunidas': como dirá Antoine Berman (BERMAN, 2007, p. 77). Em suma, por mais que tome este ou aquele partido em tal projeto tra-
Gera-se, assim, antes de qualquer outra coisa, um recurso poético que se dutório, com frequência é o texto que decide por mim, conforme, em sua
dispõe ao mesmo tempo para as duas línguas. tensão tradutória para com minha língua, onde, precisamente, ele se dá à
No entanto, ao privilegiar justamente essa relação, o tradutor pode minha experiência, a língua estrangeira me afete mais ou menos como tal,
perder de vista a relação de um texto original com sua própria cultura, ou seja, conforme esta já se ofereça a mim sob a sombra, a pressão tradu-
acentuando nele uma estranheza, uma estrangeiridade, que ele só adquire tora de minha língua, ou resista, justamente, com maior ou menor obstina-
de fato ao transpor-se para outra língua. Ou seja, na exacerbação do lite- ção, a essa sombra.
ral, a tradução produziria, na língua do tradutor, um texto frequentemente É por isso que o tradutor não pode escapar - e aproprio-me aqui de
bem mais estrangeiro do que o original em sua própria língua, falseando, uma frase de Isabelle Berman - de "amar e odiar a língua tradutorà: de
portanto, o lugar que este ocuparia em sua própria cultura. O mesmo "amar e odiar a língua a ser traduzidà' ... (BERMAN, 1995, p. 48)
Berman faz uma afirmação um pouco ambígua, nesse sentido, quando,
propondo-se a comparar duas traduções francesas de Safo, comenta a tra-
dução de Edith Mora, menos "literal': segundo ele, que a de Michel Deguy.
Depois de afirmar que, naquela, "poeticamente, tudo é banal': ele conclui:
7 ''Assim, a tradução tem por finalidade dar expressão à relação mais íntima das línguas umas
com as outras:' E um pouco mais adiante: "E no entanto uma tradução é um testemunho
muito mais profundo e exato daquele parentesco entre as línguas do que a semelhança super-
ficial e indefinível entre duas obras literárias:' (BENJAMIN,2008, p. 85-86)

24 25
Sobre a relação entre as línguas
desde A tarefado tradutor

Em 1920, Walter Benjamin publicava O conceitode crítica de arte no


romantismoalemão,sua tese de doutorado, que ele havia defendido na Uni-
versidade de Berna em 1919. Benjamin desenvolve aí a concepção român-
tica da obra e da crítica de arte a partir da reflexão teórica de Schlegel e
Novalis, tal como esta se apresenta entre 1798 e 1800 na revista Athenéium.
Para tanto, Benjamin apresenta e discute longamente a dimensão autorre-
flexiva da obra de arte, dimensão que, intrínseca a toda verdadeira obra,
implica a crítica como o seu necessário desdobramento, como o desdobra-
mento de suas potencialidades e, nesse sentido, como sua intensificação
enquanto obra. O filósofo mostra como os românticos alemães afirmam
assim o autoconhecimento inerente à obra, que é condição para que ela
persevere em sua vocação para tornar-se cada vez mais ela mesma, o que
ela faz por meio da crítica que ela própria solicita, crítica que potencializa
seus desdobramentos em infinitas conexões. O que se define então como
a "criticabilidade" da obra são essas virtualidades a ela subjacentes, cuja
realização leva ao seu próprio acabamento - ou inacabamento - enquanto
obra. A "tarefa da crítica da obrà: Benjamin usa essa expressão, será justa-
mente "muito menos o julgamento de uma obra do que o método de seu
acabamento" (BENJAMIN, 1999, p. 77).
Para o filósofo alemão, portanto, o movimento de autodesdobramento
da obra, que a crítica realiza, não é um movimento exterior a essa obra,
ele está inscrito em sua própria organização formal, é um efeito dela. E
é também esse movimento que explicita a dimensão propriamente irô-
nica da obra, ou melhor, autoirônica: ao autolimitar-se em uma forma que
tende virtual e infinitamente ao desdobramento, a obra revela sua vocação
'
intrínseca para a autodestruição. Pois é em sua tensão, em sua tendência
í i

i !

27
a alterar-se que, paradoxalmente - ironicamente -, ela se constitui e se tradicionais da tradução - afinal, seria natural que se destine uma tradução
afirma como forma autônoma e idêntica a si mesma. aos "leitores que não entendem o original''. Mas ao formulá-la, Benjamin
Assim, contra a ideia clássica de perfeição - que supõe justamente a reitera que sua questão diz respeito ao conhecimento da obra em sua forma
forma desde sempre acabada e que recusa, assim, a possibilidade da crítica, própria de original, no plano artístico, e não às possibilidades de trans-
que lhe seria sempre exterior - os românticos reivindicam a criticabilidade, missão de seu conteúdo numa outra forma. Pois, diz ele, "o que há nela de
o inacabamento das obras, sua espessura virtualmente infinita, infiniti- essencial não é da ordem da comunicação nem da enunciação" (p. 82).
zando o próprio processo de constituição dessas obras enquanto tais. Nesse sentido, aliás, parece-me que, do ponto de vista de Benjamin,
Essas ideias, rigorosamente desenvolvidas e exploradas por Benjamin apenas para quem não conhece a língua do original - e para quem não se
ao longo da tese, não são sem relação com seu famoso artigo sobre a "tarefa coloca a questão do conhecimento da obra-, a tradução poderá ser con-
do tradutor': publicado em 1923, na Alemanha, como prefácio de sua tra- siderada como um original autônomo, como pretenderá, por exemplo,
dução dos Tableauxparisiens de Charles Baudelaire. Pois essa dimensão Haroldo de Campos. Voltaremos à questão mais adiante. Prossigamos, por
paradoxal que constitui a relação entre a obra de arte e sua crítica na leitura ora, com o texto de Benjamin.
do romantismo alemão empreendida pelo filósofo marcará também a rela- Em seu terceiro parágrafo, após algumas especulações sobre o que
ção entre original e tradução que ele problematiza em seu texto. seriam "más traduções': ele arrisca uma definição positiva da tradução:
Analogamente ao que ocorria no caso da tarefa da crítica, a tarefa do "A tradução é uma forma: diz ele. "Mas para a apreender enquanto tal,
tradutor não passa, para Benjamin, pela simples decisão de transpor deter- continua, é necessário regressar ao original, pois nele reside a lei da tradu-
minada obra para outra lín$ua, para outra cultura, sob a perspectiva de um ção, contida na sua traduzibilidade" (p. 83). Ou seja, assim como, para os
sujeito historicamente situado, que dela de algum modo simplesmente se
românticos alemães, a obra encerrava em si mesma sua criticabilidade, para
apropriaria. Na verdade, para Benjamin pouco importam as intenções ou
Benjamin, o original encerra em si mesmo sua traduzibilidade. A traduzi-
iniciativas de um tradutor empírico, sua cultura literária específica, se este
bilidade, a palavra o diz, é uma potencialidade da obra. De fato, Benjamin
destina sua tradução a este ou àquele leitor específico. A questão para ele
vai afirmar que a obra, mais do que admitir ou permitir tradução, exige,
é, desde o início, eminentemente teórica, e se centra na possibilidade do
deseja tradução. Como dirá Antoine Berman ao longo de seu seminário
conhecimento da obra. É isso que está em questão, e não a mera possibi-
sobre o texto, uma tradução não é uma iniciativa exterior e independente
lidade de fruição da obra proporcionada a um leitor estrangeiro por uma
da obra, uma casualidade que lhe adviria, determinada pela sensibilidade
tradução mais ou menos bem realizada. Trata-se de investigar, analoga-
de um certo tradutor que decidiria fazê-la circular (BERMAN, 2008, p. 52).
mente ao que ocorria na consideração da crítica, o papel da tradução na
Não é possível entrar aqui em todas as minúcias do texto de Benja-
possibilidade de intensificação da obra.
O segundo parágrafo do texto se inicia, aliás, com uma pergunta fun- min, reputadamente difícil e por vezes obscuro, mas quero chamar atenção
damental nesta modulação da relação da tradução com o original: "Uma para o fato de que a tarefa do tradutor está de saída ligada acima de tudo
tradução vale para os leitores que não entendem o original?" (BENJAMIN, ao problema do conhecimento da obra, problema que se coloca nesse texto
2008, p. 82). 1 Essa pergunta põe em questão um postulado básico das teorias menos no âmbito da relação de um autor com um original, ou de um tra-
dutor com um original, mas no âmbito da "traduzibilidade inerente" a esse
1 Essa edição comporta quatro traduções do texto de Benjamim em português, feitas por Fer- original. Nas palavras do autor:
nando Camacho, Karlheinz Barck e outros, Susana Kampff Lages e João Barrento. Usarei
1
aqui a de João Barrento, eventualmente modificada com base na tradução francesa de Mar- A traduzibilidade é essencialmente inerente a certas obras - o que não quer
1,
tine Broda, realizada a partir do seminário de Antoine Berman sobre o texto de Benjamin, dizer que a sua tradução seja essencial para elas, mas antes que uma determi-
realizado em 1984-1985 e publicado em 2008 por Isabelle Berman (BERMAN,2008). Quando nada significação inerente aos originais se manifesta na possibilidade de eles
a referência for a edições francesas, a tradução das citações é minha. Daqui por diante, no
serem traduzidos. (p. 84)
caso das citações da Tarefa,referirei apenas o número da página.

28 29
No entanto, como se vê, ainda que o original exija, deseje tradução, Nenhuma tradução seria possível se sua aspiração, se sua essência última
esta não significa nada para ele. Pois, diante desta forma que é a tradução, e fosse a da semelhança com o original. Pois o original transforma-se ao longo
de sua sobre-vida, que não poderia ter este nome se não fosse uma transmu-
que a própria obra solicita, esta, ironicamente, volta a se enclausurar ainda
tação e renovação do vivo. Até as palavras cujo significado foi fixado estão
mais em si mesma, em sua própria forma de original. Pois nenhuma tradu- sujeitas a um processo de maturação. (p. 86-87)
ção efetivamente acaba a obra, tão-somente obriga a que seja retraduzida,
a que persevere em seu (in)acabamento. A tarefa do tradutor está sempre Essa noção de maturação remete a obra original menos à "subjetivi-
por ser feita. De toda maneira, é como forma potencializada da traduzibili- dade dos [leitores/ tradutores] que vêm depois" do que à "vida mais pró-
dade do original, de sua tensão tradutória, é como a vocação desse original pria da língua e das suas obras" (p. 87), em permanente transformação, o
para a autossuperação, como sua ironia imanente, que a tradução, assim que também ocorre com a língua da tradução. E uma vez que as línguas
como a crítica, é convocada a efetuar-se. Essa traduzibilidade implica, por- não se renovam na mesma direção, a relação entre original e tradução é
tanto, uma vitalidade, uma organicidade própria, que Benjamin traduz em completamente instável, e está sempre em vias de se dissolver. Aí temos
termos de uma historicidade própria da obra, em termos do que ele cha- mais um argumento para compreender por que a retradução é necessá-
mará de "sobre-vida'' da obra (p. 84). ria. E por que a tradução, com o tempo, perde seu valor enquanto tal - o
Mas para Benjamin, essa historicidade própria do original em sua que não significa que não possa seguir valendo enquanto um original, para
relação com a tradução, para além dessa traduzibilidade análoga à perspec- aqueles que não o conhecem.
tiva da criticabilidade, implica ainda um aspecto específico quanto à tarefa E ao desenvolver seus argumentos relativamente a essa historicidade
do tradutor: "A tradução tem por finalidade dar expressão à relação mais complexa, a essa instabilidade da relação entre original e tradução, Benja-
íntima das línguas umas com as outras:' (p. 86) min problematiza cada vez mais a relação de semelhança, chegando, enfim,
Há, portanto, aí uma mudança radical de perspectiva: não se trata à definição de um parentesco supra-histórico entre línguas, definido nos
mais de obras, mas de línguas. A finalidade da tradução é, portanto, revelar seguintes termos:
uma relação entre línguas, entre a língua traduzida e a língua tradutora. É O parentesco supra-histórico entre línguas reside antes no fato de, em cada
apresentar "uma conexão íntima'' entre elas (p. 84), mas que é irredutivel- uma delas como um todo, se querer dizer uma e a mesma coisa, qualquer
mente uma distância. coisa que, no entanto, não é acessível a nenhuma delas isoladamente, mas
apenas à totalidade das suas intencionalidades que se complementam umas
O que é interessante é que Benjamin destaca a tradução literária como
às outras:.à língua pura. (p. 88)
uma experiência essencialmente linguística, como a apresentação de um
"objeto': de uma "realidade': de um "significado': de um "alguma coisa'' - as A "língua pura'' é, evidentemente, uma virtualidade, que implica que
traduções brasileiras variam -, de um seja lá o que for que se constitui não as línguas empíricas, impuras, são imperfeitas e fragmentárias. Não é à
mais numa ou noutra língua, mas numa "convergência'' que o leva a pensar toa que o único poeta referido por Benjamin em seu texto é Mallarmé,
que as línguas não são "estranhas umas às outras': mas "aparentadas [...] num trecho de sua Crise de verso (que, diga-se de passagem, ele não tra-
naquilo que querem dizer" (p. 86). duz, o que já daria margem a muitos comentários, aliás, nesse prefácio de
E depois de criticar uma vez mais as perspectivas de uma "teoria tradi- uma tradução de Baudelaire em que ele não cita Baudelaire). Nesse trecho,
cional da tradução': aquela que busca a "transmissão, o mais exata possível, que Benjamin cita apenas em parte, o poeta alude à incongruência entre a
da forma e do sentido do original': e de afirmar que "uma tradução é um materialidade da língua e a experiência do real, e termina condicionando a
testemunho mais profundo e exato do parentesco entre as línguas do que a própria existência do verso à imperfeição das línguas (p. 92).
semelhança superficial e indefinível entre duas obras literárias': Benjamin É o que permitirá a Berman dizer que a língua pura - ou "pura lín-
conclui pela "impossibilidade da teoria da imitação'': gua': como ele propõe, voltarei a isso no final - "é a língua que não veicula

30 31
conteúdos, a língua que repousa em si mesma e não é um meio em vista peso da comunicação, tão-somente ecoando um ao outro e produzindo
de ..:' (BERMAN,2008, p. 116). Não é, justamente, a língua da "universal um texto entre dois textos, híbrido e fugaz, que funciona mallarmeana-
reportagem': que a poesia de Mallarmé visa justamente a silenciar. mente no plano da sugestão.
Colocado o parêntese, deixemos Benjamin prosseguir: É a partir dessa perspectiva que se dão a ver, para Benjamin, as con-
cepções de fidelidade e de liberdade do tradutor, aliás, um dos aspectos
De fato enquanto todos os elementos isolados - as palavras, as frases,os con-
textos - de línguas estranhas umas às outras se excluem, essas línguas com- mais importantes de sua reflexão, e que contribui para afirmar que a "lín-
pletam-se nas suas próprias intencionalidades.(p. 88) gua purà' - ou pura língua -, longe de constituir uma dimensão trans-
cendental e sagrada das línguas, é simplesmente seu horizonte de abertura
O exemplo de Benjamin é bem conhecido: se Brot, em alemão, e pain, para o estranho, para o estrangeiro. Nos termos dele:
em francês, querem dizer a mesma coisa, o "modo de querer dizer" leva
as palavras a "[significarem] coisas diferentes para um alemão e para um Esta liberdade não deve a sua existênciaao sentido da informação - o sentido
da fidelidade é precisamente o de a emancipar dele. Pelo contrário, a liber-
francês". Nesse sentido, "elas não são permutáveis" e "tendem para a exclu- dade afirma-se na língua própria tendo em vista a língua pura. A tarefa do
são mútuà' (p. 88). Mas se a tradução atualiza a distância intransponí- tradutor é a de redimir na língua própria aquela língua pura que se exilou nas
vel entre as línguas, ela também faz com que elas ao mesmo tempo se alheias,a de a libertar da prisão da obra através da recriação poética. (p. 95)
iluminem reciprocamente, o que leva justamente à intensificação daquilo
Não é por outra razão que Haroldo de Campos estabelecerá, a partir
que cada uma dessas línguas, por si só, oculta. Releiamos nos termos de
do que ele define como "um rasgo paradoxal de sua [de Benjamin] teoria
Benjamin:
do traduzir': "uma hipótese de tradução luciferinà: "que se recusa à tirania
Destarte, os modos do querer dizer nestas duas palavrascontrariam-se um ao de um Logos pré-ordenado" e "[rompe] a clausura metafísica da presença,
outro, mas completam-se nas duas línguas de onde elas provêm. E nelas esse
como diria Derridà' (CAMPOS,1981, p. 179-180 ).
modo de querer dizer completa-se para convergir naquilo que se quer dizer.
Nas línguas isoladas, sem complemento, o que nelas se quer dizer nunca se Mas, voltando à Tarefa,se a tradução consegue atingir em certos pon-
encontra numa autonomia relativa,como acontece com as palavras ou frases tos esse patamar de reconciliação entre as línguas, se ela, como dirá Berman,
isoladas,mas sempre em permanente mudança, até conseguir emergir, sob a enquanto "significante da pura língua': "libera a obra do que Novalis cha-
forma da língua pura, da harmonia de todos os modos do querer dizer. Até mava de 'a tirania do conteúdo"' (BERMAN,2008, p. 144), e que Benjamin
aí, permanece oculto nas línguas. Mas se estas crescem deste modo até ao fim
messiânico da sua história, é a tradução que se inflama na eterna sobre-vida chama de "peso do sentidd' (p. 95), sua artificialidade mais ou menos lite-
das obras e na infinita renovação da vida das línguas, para continuamente ral, ao tocar ooriginal apenas num "ponto infinitamente pequeno do sen-
pôr à prova aquele crescimento sagrado das línguas - para determinar a que tido'; a torna, "na relação com seus próprios conteúdos'; "desajustada, for-
distância o que nelas é oculto se encontra da revelação e como isso se pode çada e estranhà: (p. 96)
tornar presente no saber dessa distância. (p. 88-89)
Assim, esse devir-estrangeiro da língua tradutora ameaça ao mesmo
A passagem é densa, mas o que quero destacar aqui é que, a partir tempo "encerrar o tradutor no silêncid'. É o que Benjamin afirma, referin-
disso tudo, a partir especificamente desse "saber da distâncià' que tradu- do-se às traduções de Sófocles por Hõlderlin: "Nelas, o sentido precipita-se
ção e original revelam um ao outro - ao menos para quem conhece as de abismo em abismo até ameaçar perder-se no sem fundo das profunde-
duas línguas -, Benjamin vai distinguir a tradução por sua capacidade de zas da língua:' (p. 97)
elevar o originàl a uma atmosfera mais elevada, mais pura, que não se De todo modo, se as línguas "crescem': a tradução, para Benjamin,
alcança em todos os pontos, mas que remete justamente a "essa região desempenha nesse crescimento um papel central, uma vez que ela leva, em
prometida e inalcançada da reconciliação e da plenitude das línguas" (p. última instância, naquela recíproca iluminação opacificante que eventual-
89). Como se original e tradução, ao se reunirem, perdessem aqui e ali o mente produz, à experiência daquilo que simultaneamente separa e une

32 33
as línguas. Se para Mallarmé é o verso que remunera o defeito das línguas, Língua,lugar da experiência
talvez se possa dizer que, para Walter Benjamin, é a tradução que o faz.
Talvez por isso, no caso de Haroldo de Campos, por exemplo, a tra-
dução entre línguas seja apenas um dos passos para o trabalho de "recria-
ção" que se faz depois, na "floresta interna da línguà: como diria Benjamin.
Trabalho que, como diz o poeta e tradutor brasileiro, "intenta, no limite, a
rasura da origem: a obliteração do original': No entanto, "essa desmedida
parricidà: essa "transluciferação"(CAMPOS, 1981, p. 209), muitas vezes,
longe de deixar ver a luz do original, ao tocá-lo apenas fugidiamente como
queria Benjamin, simplesmente o barra. ·
A dimensão problemática da tradução literária se coloca, a meu ver,
Para terminar, uma última observação sobre o papel da tradução na
plenamente e em sua especificidade, no momento em que passamos a
contemporaneidade e sobre a importância da "tarefa do tradutor':
considerar que, na literatura, a língua deixa de se oferecer como meio,
Em texto apresentado num colóquio em homenagem a Antoine Ber-
como médium, como ferramenta de transmissão de uma experiência que
man, Michel Deguy reitera a importância de recusar essa pureza pretensa-
a precederia e que ela tornaria compartilhável, para se oferecer como o
mente autossuficiente da língua própria contra a qual o princípio poético
próprio lugar da experiência, como o lugar por excelência da experiência
e sua traduzibilidade intrinsecamente se insurgem (DEGUY, 1999, p. 90 ).
de si, do corpo, do mundo, e, muito especialmente, como o lugar da expe-
Pois a língua pura reivindicada por Benjamin é o contrário dessa pureza,
riência da própria língua. A língua como o lugar em que a experiência
ela remete ao seu devir-impuro, ao seu devir justamente pura língua, em
acontece, como o lugar em que a experiência tem lugar, e que torna essa
sua "essência dialetal': como dirá Berman (BERMAN, 2008, p. 181).
experiência, fora desse lugar, justamente, incompartilhável. Esse modo de
Creio que esse é um dos caminhos interessantes a que ainda pode nos
apresentar a questão pressupõe de fato uma partilha entre duas concep-
levar A tarefado tradutor.
ções diferentes da língua.
Haveria, de um lado, a dimensão intercambiável da língua, sua dimen-
são de médium, sua dimensão supostamente transparente, já que a língua,
nesse sentido, nessa suposta transparência, se ofereceria justamente pelo
acesso àquilo que ela não é, pelo acesso a um fora-da-língua, a um mundo
pré-linguageiro, do qual, portanto, a língua não seria constituinte, do qual
ela seria, na melhor das hipóteses, o porta-voz, a passagem: a tradução.
Haveria, assim, de um lado, a língua como tradução do fora-da-língua,
de um mundo que seria independente dela, e ao qual ela viria emprestar
sua voz. A língua como expressão de algo que lhe seria exterior, a língua
da comunicação, a língua como instrumento de comunicação, em suma.
E, de outro lado - e temos aí uma segunda concepção da língua -,
haveria a irredutibilidade intratável, irremediável da língua, sua solidez ina-
balável, na medida em que ela seria, paradoxalmente, o lugar próprio da
i 1
experiência de seu fora, o lugar onde esse fora se constituiria como tal, lugar
1 1:
! ·:

35
34
onde esse fora estranhamente ressoaria, e fora do qual, justamente, ele se Digo isso porque o que caracteriza o monolinguismo enquanto tal é
dissolveria: pois esse lugar-fora só acederia a si próprio na língua, ele só viria justamente a tendência à abstração da materialidade da língua, à abstra-
a ser sempre já posto em língua. Ou seja, nesse caso a língua se poria como ção de sua opacidade intrínseca, e que se deve à sua ilusória objetividade
lugar de uma tradução por definição intraduzível, uma vez que seu original comunicante. Objetividade que sempre se problematiza no contato com
- a experiência - só se ofereceria como tal em sua própria tradução. A expe- outra língua. Pois como diz a filósofa Barbara Cassin, organizadora do belo
riência posta em língua seria, assim, no limite, uma tradução sem original. trabalho que é o Vocabulárioeuropeu das filosofias:Dicionáriodos intra-
Assim, proponho-me a pensar aqui o problema da tradução literária a duzíveis (2004), "é preciso compreender ao menos duas línguas para saber
partir desse segundo ponto de vista, em que se perspectiva a língua estran- que se fala uma:' (CASSIN, 2010)
geira dentro da língua, e que talvez possamos considerar, ao menos a par- Embora minha intenção não seja aqui desenvolver o tema da tese de
tir de certa consciência moderna, como a língua propriamente literária; Angélica Deângeli (que vai em outra direção, sobretudo explorando as
língua que se põe não como transitiva, comunicativa, como porta-voz de relações afetivas e conceituais entre as obras de Kathibi e Derrida), quero,
uma experiência ou como um simples meio de transmiti-la, como mera de todo modo, enfatizar a importância geral, entre nós, no Brasil, deste
tradução segunda de um original a que ela serviria, mas como seu lugar tema da "literatura na língua do outrd: antes de tecer algumas considera-
insubstituível, como o lugar material e insubstituível dessa experiência, ções sobre a questão da língua como lugar da experiência e sobre sua rela-
como sua tradução primeira e por princípio intraduzível. Uma tradução ção com a literatura e com tradução.
sem original, ressalto. Em primeiro lugar, como todos sabemos por experiência própria, os
Essa formulação da experiência da língua em termos de uma oposição fenômenos de interação, apropriação e expropriação linguística são hoje
entre a língua como meio, como veículo de uma experiência, e a língua uma realidade profusa e incontestável. Os meios reais e virtuais de contato
como o próprio lugar de seu advento me parece produtiva para pensar o e de contaminação linguística e cultural se multiplicam numa velocidade
lugar da literatura e da tradução neste mundo de línguas em contato que é crescente, tornando cada vez mais insustentável, para o bem e para o mal,
cada vez mais insistentemente o de nossa contemporaneidade. Ela me veio a identificação de uma língua a uma nação, d.e uma língua a uma cultura,
à mente quando eu preparava a arguição de uma tese de doutorado intitu- · de uma língua a si mesma. Toda noção eugênica de língua, de uma língua
lada A literaturana língua do outro:JacquesDerrida e AbdelkebirKhatibi, pura, autônoma, monolinguística, monocultura!, se encontra evidente-
escrita pela professora Maria Angélica Deângeli, da Unesp, sob a orienta- mente em declínio, e é cada vez menos sustentável.
ção de Marcos Siscar.1 Nesse sentido, a discussão dessas questões entre nós, que vivemos até
A tese tem por objeto mais geral, como indica seu próprio título, a certo ponto, aqui no Brasil, numa espécie de ilusão monolinguística, é fun-
análise do sentido, do tratamento, do estatuto da língua em obras escri- damental. É claro que essa ilusão a que estou me referindo não diz respeito
tas numa língua não-materna a partir de certas obras do escritor marro- à cultura brasileira ou à produção literária no Brasil, pois podemos encon-
quino bilíngue Abdelkebir Khatibi e do filósofo autodeclarado monolíngue trar entre nós muitos exemplos de "línguas cheias de línguas" (CIXOUS,
Jacques Derrida. O trabalho é, assim, perpassado pela discussão mais ou 2000, p. 10). A afirmação do português brasileiro coincide, aliás, com a

menos explícita da violência inerente à experiência de viver entre línguas, afirmação de sua vocação antropofágica, que, de certa forma, está longe
entre culturas, de viver - mas disto a tese não trata diretamente - sem que, de ser monolinguística. Essa ilusão diz respeito, antes de tudo, ao nosso
justamente, se possa ver o mundo pela ilusão transparente de um monolin- próprio universo acadêmico, onde o ensino de literatura ainda é bastante
guismo, ou de um monoculturalismo. pautado pelo recorte das línguas e literaturas nacionais. Mas deixemos essa
questão de lado e retomemos o problema que nos interessa aqui.
Num contexto moriolíngue, o mundo da tradução tende a ser
1 A tese foi defendida em 2010 (cf. DEÂNGELI, 2012). dominado, de um modo geral, por tendências funcionalistas, ciosas da

37
objetividade comunicante a que me referi há pouco, e parece frequente- humor inalterável de indiferença, ou de desprezo, quando não de pureza ou
mente operar com a ideia de que o êxito de uma tradução estaria justa- de purificação, de integridade e de legítima defesà' (DEGUY, 1999, p. 90 ).
mente na passagem da monolíngua original à monolíngua de chegada, de Passa por aí, a meu ver, um dos sentidos fortes da célebre metáfora
uma língua encerrada em si mesma a outra língua encerrada em si mesma. da ânfora em mil cacos de Walter Benjamin (BENJAMIN, 2008, p. 93-94).
Dois textos autônomos e transparentes, cuja identidade pressuporia jus- (Aqui um parêntese: em seu texto sobre a "tarefa do tradutor", como se
tamente um fora-da-língua neutro e equidistante, por assim dizer, a que sabe, o filósofo alemão compara original e tradução aos cacos de uma
ambos remeteriam de maneira mais ou menos inequívoca. Lembro aqui mesma ânfora, implicando, com isso, em seu modelo messiânico, o devir
uma passagem de uma conferência de Paul Ricreur em que ele justifica nos incessante do sentido da obra original e sua intensificação a partir de suas
seguintes termos a inexistência daquilo a que se refere como um "critério traduções sempre por vir, até constituir o que ele chama de "pura línguà: 2

absoluto da boa tradução'. Diz ele: Ou seja, na experiência da tradução, as línguas se dão a ver justamente em
Para que tal critério estivesse disponível, seria preciso que se pudesse compa- sua incompletude. A língua da tradução, é claro, mas também a língua do
rar o texto de partida e o texto de chegada a um terceiro texto que seria porta- original. É por isso que Benjamin vai afirmar que há "parentesco" entre as
dor do sentido idêntico que supostamente circula do primeiro ao segundo. A
línguas, mas não equivalência.)
mesma coisa dita de um lado e de outro. (RIC<EUR, 2004, p. 39)
Assim, se, como reitera o mito de Babel, só há línguas, no plural, se
Se assim fosse, a "boa tradução" seria aquela que, ao produzir a ilusão cada uma delas se encontra encerrada em seus próprios limites e obriga-
da identidade a partir da referência a um fora autônomo - o terceiro texto ções, se cada uma delas é alienada e alienante, é quando se está entre elas
de Ricreur -, reforçaria a potência autônoma de cada uma das monolín- - no sentido forte da palavra "entre" - que se vislumbra virtualmente, na
guas envolvidas, a do texto de partida e a do texto de chegada, sem atentar, tensão tradutória que leva incessantemente de uma a outra, uma língua
11
justamente, para a dimensão própria da experiência do mundo a que cada por vir. Se assim for, o sentido mais forte da "pura línguà' remete sobre-
1

uma delas obriga. tudo a essa virtualidade infinita de toda língua, que se deixa entrever bas-
Lembro-me aqui de Roland Barthes em sua Aula evocando Jakobson. tante especialmente na experiência de traduiir. É por isso que à tradução
para falar do fascismo da língua, e afirmando que esta "se define menos cabe justamente revelar e expor os limites e obrigações das línguas que ela
pelo que permite dizer do que pelo que obriga a dizer" (BARTHES, 1978, p. põe em contato e, ao mesmo tempo, forçar esses limites e obrigações numa
12). Ora, é por isso que viver encerrado em sua monolíngua é viver assu- língua e noutra, em vez de simplesmente velá-los e reforçá-los. Ou seja,
jeitado, alienado. Como diz Barthes pouco adiante no mesmo texto: "Por em vez de preservar e afirmar as monolínguas, cabe à tradução apontar na
sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de alienação" direção fantasmática de uma língua por vir.
(BARTHES, 1978, p. 13). E são esses limites e obrigações estruturais que con- Assim, o que a noção de "pura línguà' metaforizada pela ânfora anun-
formam uma certa experiência do mundo, tornando a língua que a consti- cia, irônica e paradoxalmente, é o devir-impuro de cada língua monolín-
tui intraduzível nas outras línguas. gue, que se diferencia de si própria pela contaminação de outras línguas
Ora, o que ocorre no mundo de hoje é justamente uma confrontação monolíngues, das virtualidades que nenhuma delas realiza, mas que cada
permanente no espaço real do cotidiano entre diferentes línguas impli- uma delas projeta na outra, produzindo ofantasma, justamente, da "língua
cando diferentes experiências do mundo. Atualizando o problema para a purà: Que Derrida define assim em seu texto sobre Benjamin: "o ser-lín-
Europa contemporânea, definitivamente exposta a uma realidade multicul- gua da língua, a língua ou a linguagem enquanto tais, essa unidade sem
tural e plurilinguística por vezes explosiva, o poeta e ensaísta Michel Deguy
sublinha a necessidade de se voltar contra os integrismos linguísticos con-
temporâneos, contra "a incestuosa ferocidade do vernacular [...] com seu 2 Conforme explicitado no ensaio anterior, é assim que Antoine Berman traduz a "língua pura''
de Benjamin num seminário de 1986 sobre ''A tarefa do tradutor" (BERMAN, 2008, p. 114).

39
qualquer identidade a si que faz com que existam línguas, e que sejam lín- francês para dizer aos franceses que eu não sou francês': diz ainda Yacine
guas:' (DERRIDA,1987, p. 232) (DEANGELI,2012, p. 55-56).
Assim, em suma, é justamente contra a aspiração à pretensa pureza da Sem entrar no mérito da importância política de tal iniciativa, que
língua própria - aspiração defensiva que, por essência, rejeita quase que certamente tem suas razões de ser, pergunto-me se aqui não estamos no
por instinto toda língua por vir -, é contra essa aspiração que se insurge âmbito do uso da língua como meio, de uma literatura que não opera, jus-
a reflexão de Benjamin sobre a traduzibilidade inerente ao texto poético, tamente, sobre a língua inscrevendo nela uma outra língua - e uma expe-
"desejada'' e "exigida'' por ele, segundo os termos da Tarefa do tradutor riência - que a viola, deslocando, assim, suas fronteiras, mas de uma litera-
(BENJAMIN,2008, p. 84). tura que, usando a língua simplesmente para dar recados, para transmitir
Nesse contexto, se concebemos a língua como o lugar próprio de uma mensagens, para comunicar, acaba por enclausurar as duas línguas, cada
experiência, como sua tradução primeira, de que maneira, justamente, uma em sua fronteira.
transmitir, retraduzir a experiência, sem fazer passar materialmente sua Pois nesse caso, a "literatura na língua do outro" funciona não tanto
língua, a língua dessa experiência? Nesse sentido, a língua de uma tradu- como o testemunho de uma experiência radical e violenta do bilinguismo,
1
;I'
ção não deveria mais ser uma monolíngua, uma língua autônoma, pura desta experiência que tenderia a operar, em sua vertente positiva, no sen-
i!
:!l1 de si, mas uma língua impura, uma língua híbrida. Uma língua que ainda tido da produção de afinidades na diferença e da desconstrução dos inte-
1111.: não existe, uma língua que só vem a ser na experiência da tradução. Pura grismos; nesse caso, a meu ver, tal literatura tenderia antes a funcionar ape-
1 1
1 I 1
1!11 língua, ainda e sempre por vir. Este seria, aliás, para mim, no limite, o sen- nas como a possibilidade de veicular uma mensagem política conhecida a
tido possível do que se po,ssa compreender como uma tradução literal. Não priori, a questão das injustiças cometidas pela colonização, por exemplo,
uma tradução palavra por palavra, letra a letra, como parece frequente- o que pode ter o efeito colateral nefasto bastante conhecido de reforçar -
mente se pensar, mas uma tradução que carregue uma monolíngua para para não dizer de construir - o desejo de impermeabilizar as diferença e de,
dentro da outra, violando a ambas em seu monolinguismo, tornando-as, consequentemente, erigi-las em integrismos.
justamente, bilíngues, ou "bilínguas': como queria Kathibi. Outra coisa radicalmente diferente - passo ao segundo exemplo
Ora, essa é justamente a experiência de que se trata no trabalho de colhido na tese - é a experiência de Kafka da língua alemã, referida por
Angélica Deângeli, quando, do ponto de vista de Kathibi e de Derrida, Angélica através da alusão do escritor à sua estranheza com a "Mãe" tal
ela discute a ambiguidade irredutível da perspectiva da hospitalidade, ou como a língua a materializa (DEANGELI,2012, p. 64). Diz o escritor numa
"hostipitalidade': como quer Derrida (1997), enfatizando a hostilidade passagem do seu Diário de 24 de outubro de 1911:
inevitavelmente implicada na relação com o estrangeiro e sua língua, no
Ontem veio-me à mente que se nem sempre amei minha mãe como ela o
desejo mais ou menos ambivalente de acolhê-los. Pois desejar acolhê-los, merecia e como eu era capaz de fazê-lo,foi unicamente porque a língua alemã
ao estrangeiro e à sua língua, é, de certa forma, já ter sido violentado em impediu-me. A mãe judia não é uma "Mutter", esse modo de chamá-la a
sua própria língua pela língua do outro, é, de algum modo, já ter-se tor- torna um pouco ridícula (a palavra Mutter não o é em si, posto que estamos
nado de algum modo bilíngue, é já ter tornado sua própria língua também na Alemanha); damos a uma mulher judia o nome de mãe alemã, mas esque-
cemos que há aí uma contradição, e a contradição se aprofunda ainda mais
bilíngue, à própria revelia de si e dela, da língua. no sentimento. Para os judeus, a palavra Mutter é particularmente alemã. Ela
E para retomar a distinção que proponho entre a língua como meio, contem à revelia deles tanto a frieza quanto o esplendor cristão, e é por isso
como veículo, e a língua como lugar, vou citar dois exemplos colhidos na que a mulher judia chamada Mutter não é apenas ridícula, ela nos é também
tese de Angélicà. No primeiro deles, a pesquisadora valoriza, ecoando a estrangeira.Mamãe seria preft:!rívelse fosse possívelnão imaginar Mutter por
voz de certos escritores magrebinos, a crítica à francofonia "como máquina detrás. Creio que só as lembranças do gueto mantêm ainda a família judia,
pois a palavra Vater também não designa muito melhor o pai judeu.3
política neocolonial" e a reivindicação de uma "língua francesa como butim
de guerra': como diz o romancista argelino· Kateb Yacine. "Eu escrevo em 3 Carta citada em parte por DEÂNGELI (2012, p. 64).

40 41
Ou seja, no caso deste tipo de experiência de que fala Kafka, não se Yarowsky,professor de ciência da computação da Universidade John Hop-
escolhe esta ou aquela língua como um meio, um instrumento de comu- kins, citado na matéria da revista, referindo-se ao espantoso desenvolvi-
nicação; pois não se escolhe dizer isto ou aquilo nesta ou naquela língua, mento da ferramenta de tradução do Google, que o que está aí em jogo "é
quando se vive de fato entre elas. Isso quando se trata de duas línguas "sabi- a chance de pessoas de todas as partes do mundo saberem o que as demais
das': e não apenas "conhecidas': (Um pequeno parêntese: refiro-me aqui à pensam. Assim, suas diferenças podem ser minimizadas': Porque não creio
distinção proposta pelo psicanalista Charles Melmah (1992), e referida por que se deva justamente pensar a tradução apenas como a minimização
Deângeli, entre saber e conhecer uma língua: ou a redução das diferenças - o que evidentemente às vezes pode ser fun-
Saber uma língua é muito diferente de conhecê-la. Saber uma língua quer damental, se pensamos num certo imediatismo político (pensemos, por
dizer ser falado por ela [...]. Conhecer uma língua quer dizer ser capaz exemplo, nas necessidades diplomáticas neste mundo em que fronteiras se
de traduzir mentalmente, a partir da língua que se sabe, a língua que se erguem e se destroem incessantemente). Creio que se deve pensá-latam-
conhece. Desde então, não falamos mais do mesmo lugar, nos comunicamos
bém, e talvez sobretudo, no que tange aos humanos que podemos vir a ser,
[...].(DEÂNGELI, 2012, p. 74)
como o lugar da afirmação das diferenças, de sua irredutibilidade e de sua
Ou seja, no caso em questão, no de Kafka, com a Mamãe do iídiche e multiplicação, de sua potencialização. A tal matéria da Vejatermina assim:
a Mutter do alemão, as duas línguas "sabidas" (mais do que "conhecidas") ''.Agora,com os tradutores automáticos, o homem tem a chance de derru-
permanecem ao mesmo tempo unidas e separadas, e essa experiência não bar, com a ajuda da tecnologia, a barreira que Deus, segundo a tradição
é desprezível na consideração da obra literária de Kafka. bíblica, ergueu com a Torre de Babel:'
Mas para retomar a discussão sobre a tradução, o que me parece mais Quero pensar, por minha vez, que, no futuro, com tradutores huma-
interessante nesse exemplo de Kafka é o modo como a experiência bilín- nos, ou com humanos bilíngues, trilíngues ou plurilíngues, não falando
gue, plurilíngue, ou multicultural, permite que nos interroguemos sobre uma língua de cada vez, mas duas ou três ao mesmo tempo, repotenciali-
a tradução num contexto em que prevalece uma cultura de forte tradição zando assim cada uma delas na direção de uma língua por vir, talvez possa-
como a francesa, "alojada na potência veicular de sua línguà' (GLISSANT,. mos, não tanto derrubar as barreiras, mas circular entre elas, multiplicar os
2010, p. 15), e que tende a reduzir a língua estrangeira à sua função comuni- fluxos, os lugares e as experiências. Da língua, do mundo, de si.
cativa nos limites dessa tradição - isto é, que tende a reduzir a língua como Uma das coisas mais ou menos terríveis a que a matéria da Vejatam-
lugar à língua como meio. O que se traduz, por exemplo, em nosso con- bém se refere, e de maneira um pouco ambígua, é ao desestímulo e à quase
texto predominantemente monolinguístico, a despeito de nossa vocação desnecessidade futura de aprender línguas estrangeiras, em função da rela-
antropofágica, por este subtítulo de uma matéria de capa da Revista Veja ção custo-benefício: "Mas, se a tecnologia evoluir como se espera, a ques-
de maio deste ano, 4 sobre o significativo desenvolvimento das ferramentas tão terá de ser revista: valerá a pena investir mais de 50.000 reais, custo de
de tradução do Google nos últimos anos: "A tradução quase instantânea de um curso completo de inglês de primeiro nível, se em tese for possível con-
textos para 52 línguas é apenas o primeiro passo rumo a um comunicador tar com as máquinas?': pergunta-se em certo momento o jornalista.
universal em que o idioma deixa de ser barreira e passa a ser o portal do Eis, portanto, a grande ameaça: apagar os tradutores, estes homens
grande encontro das culturas:' que, longe de apagar as fronteiras entre as línguas, as conservam, ao mesmo
Ora, o que a ideia de um "comunicador universal" implica é justa- tempo em que preservam a possibilidade de circular entre elas. Em um
mente a suposição da preservação das monolínguas no processo da tradu- livro recente, e onde faz, não sem polemizar, o "elogio das fronteiras': Régis
ção. Nesse sentido, parece-me bastante perigoso afirmar, como faz David Debray escreveu:

4 O artigo foi originalmente escrito em 2010, e a matéria citada não se encontra mais disponí- A fronteira, este fortificante, nos dá vontade de nos desenraizar, faz recuar a
vel na Internet. saciedade terminal. De sua salvaguarda depende a sobrevida não de "cidadãos

42 43
do mundo: clichê vaidoso e que não engaja a coisa alguma, mas cidadãos de Sobre a violência da relação tradutória
vários mundos ao mesmo tempo (dois ou três, já não é mau), e que se tor-
nam, por aí mesmo, estes fecundos andróginos que são os homens-fronteiras.
(DEBRAY,2010, p. 93)

Esses "fecundos andróginos': esses "homens-fronteiras': digo-o por


minha vez, são primeiramente e acima de tudo tradutores. E essas frontei-
ras são sobretudo as línguas.

No Brasil e em toda parte, traduz-se hoje cada vez mais, e por inú-
meras razões, das mais explicitamente comerciais às mais supostamente
desinteressadas. Cobrem-se na prática quase todos os matizes da oposição
posta por Humboldt no século XVIII em sua célebre formulação do dilema
do tradutor, sempre dilacerado entre o autor e o leitor, a língua estrangeira
e a própria, o original e a tradução.'
Para ir rapidamente ao domínio que me interessa mais especifica-
mente, que é o da tradução literária, parece-me que a tendência etnocêntrica
de sacrificar "a obra a ser traduzidà' em proveito da "língua de seu povo:
para citar os termos de Humboldt, tendência que prevaleceu por muito
tempo especialmente na França, parece-me que essa tendência começou a
se inverter. A posição de um Antoine Berman, por exemplo, para quem "a
essência da tradução é ser abertura, diálogo, mestiçagem, descentralização"
(BERMAN, 2002, p. 17), tornou-se hoje quase consensual. É claro que na
prática do mundo editorial as coisas caminham lentamente, até porque ali
não se escolhe servir apenas entre dois senhores - ao autor estrangeiro ou
ao leitor.2 Há também os editores, os agentes literários, os patrocinadores
dos prêmios literários, a crítica jornalística, a crítica universitária etc.
Mas creio que ao menos se pode dizer que sensibilidade crítica à cha-
mada tradução etnocêntrica tornou-se quase moeda corrente, modulando,

1 Diz o filósofo e tradutor numa carta a Schlegel: "Cada tradutor deve infalivelmente encontrar
um dos dois escolhos seguintes: ele se limitará com demasiada exatidão seja ao original, em
detrimento do gosto e da língua de seu povo, seja à originalidade de seu povo, em detrimento
da obra a ser traduzida:' (BERMAN, 2002, p. 9)
2 Trata-se da definição de Franz Rosenzweig, segundo a qual "traduzir é servir a dois senho-
res'; "ao estrangeiro em sua estrangeirice, ao leitor em seu desejo de apropriação" (RICOEUR,
2004, p. 41).

45
44
"pulsão tradutórià' (BERMAN 2002, p. 24) a que se refere Berman em seu
parece-me, de maneira às vezes mais, às vezes menos explícita, a maior
já clássico ensaio sobre a tradição alemã do pensamento sobre a tradução.
parte das reflexões sobre a tradução que se fazem hoje, ao menos no campo
Aliás, creio que se pode dizer, no que tange a essa pulsão tradutória, que
dos estudos da tradução. Creio que essa é uma conquista importante, com
não há primeiramente o original, apreendido na autonomia significante de
resultados práticos que começam a aparecer, entre os quais eu destacaria
sua língua, e depois a tradução, por meio da qual o tradutor transporia
especialmente a tendência crescente a retraduzir, que reflete essa sensibili-
esse original para sua própria língua, ela também autônoma. A experiên-
dade crítica e essa atenção cada vez maior para o estrangeiro enquanto tal.
cia subjetiva da tradução é, de saída, uma relação já em movimento, uma
Por outro lado, há um efeito curioso desse processo que tende a idea-
tensão já estabelecida com um original que, se ele "exige':se "desejà' intrin-
lizar a figura do tradutor, que passa a encarnar o altruísmo e a tolerância
secamente tradução, como ensinou Walter Benjamin (BENJAMIN, 2008, p.
na relação com o estrangeiro, às vezes de maneira quase simplória. Nesse
84), é justamente por apresentar-se desde sempre já em tensão tradutória.
sentido, invoca-se frequentemente, por exemplo, no mais das vezes inge-
Por isso, se a tradução é Bildung, como queriam os alemães, não é apenas
nuamente, bem entendido, a necessidade do acolhimento "incondicional"
no sentido de um "movimento em direção a uma forma que é uma forma
ao estrangeiro a que se refere Jacques Derrida em sua reflexão sobre a hospi-
próprià' (BERMAN, 2002, p. 80 ), como disse Berman, mas também no sen-
talidade (DERRIDA 1997), para sustentar a imagem de um tradutor volunta-
tido freudiano de uma forma em formação, em tensão consigo própria, de
riamente acolhedor, cheio de boa vontade para com o estrangeiro, por mais
uma forma que se apresenta intrinsecamente numa perspectiva conflitante
radicalmente outro que este estrangeiro possa ser. (Digo ingenuamente por-
consigo mesma, de uma forma que se apresenta por sua própria natureza
que em Derrida a experiência da hospitalidade implica também, e necessa-
como forma instável.
riamente, uma relação de violência, o que ele chama de "hostipitalidade': de
Com efeito, é com o termo Bildung que Freud designa tanto a noção
que o etnocentrismo é apenas uma das faces, como veremos mais à frente.)
de formação de sintoma [Symptombildung]quanto outras noções por ela
Não creio que se deva recusar inteiramente essa perspectiva idealiza-
englobadas, como as de formação substitutiva [Ersatzbildung],formação
dora de consideração do trabalho do tradutor, perspectiva que não deixa
reativa [Reaktionsbildung]ou formação de compromisso [Kompromissbil-
de ter sua importância e sua razão de ser. Muito pelo contrário. Mas ela se
dung].3Ou seja, na perspectiva freudiana, a Bildung está intrinsecamente
torna tanto mais irrealista e enganosa se ignorarmos a dimensão necessa- ·
ligada à ideia de sintoma, envolvendo, portanto, processos e formas desen-
riamente ambivalente da relação com o outro implicada de fato na expe-
cadeados por um embate entre representações em conflito, que jamais se
riência do tradutor, se ignorarmos o modo como essa dimensão está ligada
estabilizam, processos e formas que se dão a ver por sua implicação numa
a um processo de subjetivação que, intrinsecamente, não tem finalidade
relação que a interpretação psicanalítica deve por sua vez, por que não
nem fim, e que é marcado por uma violência subjetiva que a relação tra-
dizê-lo?, traduzir. Pois interpretar, na psicanálise, é de algum modo tra-
dutória, justamente, jamais resolve satisfatoriamente, mas, ao contrário,
duzir o manifesto em latente, num processo inesgotável, inesgotabilidade
incessantemente reexpõe.
que Freud sintetiza na célebre imagem do umbigo do sonho: este seria uma
Nesse sentido, para pensar o ato da tradução, ou a tradução como ato,
espécie de ponto de suspensão da interpretação, mas não o seu fim, não
parece-me fundamental discutir a violência intrínseca à operação tradutó-
o fim da interpretação. Tal perspectiva me parece constituir um pano de
ria, mas não tanto em sua direção mais frequentemente referida, isto é, a
fundo interessante para a discussão dessa violência fundamental que per-
violência do próprio sobre o estrangeiro que seria operada pelo trabalho de
meia a experiência do tradutor.
tradução de vocação etnocêntrica, a violência da língua tradutora sobre a
língua traduzida. Trata-se, antes, da experiência da violência do estrangeiro
3 Podemos encontrar os quatro verbetes com as respectivas remissões bibliográficas na obra
sobre o próprio, da língua traduzida, da língua do original sobre o tradutor de Freud no Vocabulárioda Psicanálisede Laplanche & Pontalis (LAPLANCHE & PONTALIS,
e sua língua, experiência que é, a meu ver, a que deflagra propriamente a 1983, p. 257-263).

47

L

Para esboçar o problema, partirei de uma breve reflexão sobre a expe- no mesmo movimento fixar-, é por essa remissão que ela pode ser consi-
riência primeira do tradutor diante de um "original': experiência anterior derada boa ou ruim. Até porque quando digo que uma tradução é boa ou
a qualquer decisão que ele tome de deter-se mais praticamente, mais prag- ruim, só o posso dizer evocando o original, um certo sentido do original, já
maticamente, em sua tarefa de traduzi-lo. Experiência, porém, decisiva contaminado por essa tradução, que ele assim reafirma ou recusa.
para a compreensão dessa dimensão pulsional do traduzir. Se assim for, o que será que está em jogo quando Berman diz, repito,
Quando, diante de letra estrangeira, alguém decide traduzir, é porque que a tradução ou "é relação, ou [bem] não é nadà'? O que seria a tradução
a experiência da tradução já se deflagrou. Como sabe por experiência pró- que não é nada? Creio que, para o filósofo, não há dúvida: é justamente a
pria todo aquele que se vê chamado a traduzir um texto, não há antes o ori- tradução etnocêntrica, aquela que é baseada, nos termos do próprio autor,
ginal, radicalmente estrangeiro, a desafiá-lo, e depois a tradução, por meio na "captação do sentidd' do original, que "afirma sempre a primazia de
da qual esse estrangeiro seria enfrentado e transportado para outra língua, uma línguà' (BERMAN, 2007, p. 33). A tradução que não é relação, e que por
para a língua do tradutor. A experiência da tradução é, de saída, uma rela- isso não é nada, seria então aquela em que a língua do tradutor ilumina-
ção já em movimento, uma tensão já estabelecida com um original que só ria o texto estrangeiro de tal forma que o clássico problema da literalidade
se furta e exige tradução por se apresentar virtualmente, desde sempre, em da tradução sequer chegaria a se formular como tal. É a partir daí, aliás,
tradução, em tensão tradutória, justamente. Por isso mesmo ela é Bildung, que o teórico define a "transformação literárià' operada pela tradução, que
que, como eu dizia, remete em alemão a um só tempo a resultado e processo, ele opõe justamente ao que reivindica como tradução literal (cf. BERMAN,
a forma e formação, a uma forma em formação. Por isso mesmo, como diz 2007, p. 28-44 e 63-71).
Berman, a tradução ou bem "ela é relação, ou [bem] ela não é nadà' (BER- Ora, mas se tal tradução existe, a tradução que apagaria o original ao
MAN, 2002, p. 17). Se a tradução é essencialmente relação, é na medida em iluminá-lo plenamente com outra língua, se tal tradução existe - para o
que ela só existe enquanto tal se for assombrada pelo estrangeiro, por este pior ou para o melhor, não importa aqui o ponto de vista -, ela não se
estrangeiro cujo sentido, já por meio dela, da própria tradução, se apre- deve jamais, a meu ver, à presença ou à falta de qualidades intrínsecas a
senta e se furta, se furta exatamente ao se apresentar, se apresenta ao se um trabalho específico de tradução, à presença ou à falta de virtudes meto-
furtar, sustentando, assim, uma relação entre línguas, entre sentidos em · dológicas de um tradutor empírico qualquer, em qualquer sentido que
tensão, em pulsação. Creio que é aí que podemos, com Freud, pensar a tra- seja. Até porque, por mais que uma prática etnocêntrica recalque o outro
dução por analogia a uma Ersatzbildung,a uma formação substitutiva, que enquanto tal, este sempre deixa seus traços, e o estrangeiro original sempre
se define por este mecanismo paradoxal que é o recalque, mecanismo que acaba por retornar. Ao menos para quem conhece a língua do original (cf.
só se dá a ver como bem-sucedido por seu próprio fracasso, já que é pelo BENJAMIN, 2008, p. 82).
retorno do recalcado que ele se revela como tal, como recalque. O mal-es- É justamente esse o ponto que quero explicitar agora: uma tradução
tar diante de tal formação é índice de sua dimensão sintomática, conflitiva. que não é nada só poderia existir para quem não conhece a língua do ori-
Analogamente ao que ocorre com a formação substitutiva freudiana, que é ginal. Porque, para quem não a conhece, jamais existe traqução. Eu, por
ao mesmo tempo apagamento e traço da representação perturbadora que exemplo, costumo dizer que não tenho ideia do que seja uma tradução
a determina, analogamente podemos dizer que não há tradução bem ou de Dostoievski. Para mim, uma tradução de Dostoievski não é relação. É
malsucedida que se revele como tal, que se revele como tradução, sem o nada. Pois por detrás do Dostoievski que leio em uma "traduçãd: aqui entre
retorno mais ou menos assombroso do original, independentemente de ela aspas, já que para mim ela não.se coloca como tal, por detrás desse Dos-
se oferecer como boa ou ruim. Pois é por remeter, positiva ou negativa- toievski não ouço nenhuma língua estrangeira, é puro silêncio. Por isso,
mente, expressamente ou à sua revelia, a uma certa virtualidade ou a certas para mim, essa tradução é nada. Dostoievski só pode soar para mim como
virtualidades de sentido do original, virtualidades que ela vem revelar - e um original em português, pois a língua russa não me sopra ao ouvido, ela

49
11

li
1
não me assombra. Por outro lado, deem-me uma frase de Flaubert em por- si mesma. Ficamos como que dilacerados nesse vaivém entre a letra tradu-
tuguês e não poderei evitar ouvir, involuntariamente, ecos dessa frase em zida e a letra tradutora.
francês independentemente de conhecer a frase original. E por mais flau- Ou seja, parece-me que ao fim e ao cabo, a experiência do literal é
bertiana que a frase possa me parecer em língua portuguesa, a língua fran- sempre a experiência do retorno enigmático do original, em sua mate-
cesa continua a ressoar para mim por trás da tradução. E aí começo a ouvir rialidade irredutível, a certa virtualidade do sentido que teria sido traída,
o original "literal': mesmo sem conhecê-lo, e em nome dele me ponho a
recusada por suas sucessivas traduções. Quero dizer que não há literal em
criticar as predicações figurais operadas pela tradução em minha língua.
estado puro, sem a sombra de suas predicações - de suas traduções mais
Todos sabemos o burburinho da letra estrangeira que ouvimos diante da
ou menos flutuantes, mais ou menos estabelecidas. Ou seja, não há literal
tradução de um original de uma língua que nos é familiar.
sem a historicidade de suas traduções, ou o que Benjamin chama de sua
Em suma, a tradução, para quem não conhece a língua do original,
"Fortleben':ou "sobre-vidà: "sobrevivêncià: "pervivêncià: de acordo com
vale como um original qualquer, e não como relação, e isso a despeito do
o tradutor (cf. BENJAMIN, p. 84, 68 e 53, respectivamente).
maior ou menor esforço relacional do tradutor. Ou seja, para quem não
Nesse sentido, podemos evocar um exemplo clássico, no caso da filo-
conhece a língua do original, a tradução tem o mesmo valor (que pode ser
sofia, do famoso problema apontado por Heidegger em sua "Introdução à
imenso!) que a tradução que faz um Guimarães Rosa de um original que
Metafísicà' na tradução do grego physis para o latino natura. Em relação a
não existe. Todos sabem a importância para Rosa das traduções, e evoco
essa discussão, Andrew Benjamin (cf. BENJAMIN, 1989, p. 9-39) afirma, por
aqui um trecho de uma famosa carta do escritor ao tradutor italiano:
exemplo, visando a apresentar a posição de Heidegger sobre a tradução, que
Eu quando escrevo um ,livro,vou fazendo como se o estivesse"traduzindo", haveria para o filósofo alemão uma equivalência, ainda que problemática,
de algum alto original,existente alhures, no mundo astral ou no "plano
entre a palavra e o que ela diz, entre a letra e o sentido. Equivalência que
das ideias': dos arquétipos, por exemplo. Nunca sei se estou acertando ou
falhando, nessa "tradução''. Assim, quando me "re"traduzem para outro se recupera, ou que se destrói, na tradução. De todo modo, a pergunta que
idioma, nunca sei, também, em casos de divergência, se não foi o tradutor retorna é sempre a mesma: o que resta do original enquanto tal, o que resta
quem, de fato, acertou, restabelecendo a verdade do "original ideal': que eu do "sentido original': como quer Heidegger, atrelado à sua letra, quando
desvirtuara. (GUIMARÃES ROSA, 2003, p. 99) .
esse significado só se dá a ver enquanto tal já em tradução? O que resta da
Isso dito, poderíamos colocar em questão o que seria a tradução literal physys literal, quando já não a posso compreender sem a sombra equívoca
que Berman, entre outros, não cessa de reivindicar. Pois é essa espécie de de sua tradução por natura contestada em uma discussão feita em alemão?
retorno tautológico do original, para quem conhece a língua em que ele é Podemos também relatar uma curiosa anedota do escritor bilíngue
produzido, que funda a sensação paradoxal de uma espécie de resistên- Julian Green, que expõe de maneira interessante esse impasse a partir de sua
cia de sua literalidade aos efeitos de significação que qualquer tradução própria experiência de viver entre duas línguas, a inglesa, materna, e a fran-
não pode evitar derivar dele, desse suposto original literal. Ficamos sempre cesa, do país onde cresceu e viveu grande parte da vida. Primeiro ele conta a
entre a materialidade do significante, sua letra, e seus efeitos de sentido, história de uma criança francesa que teria perguntado à mãe: "Quando você
que de algum modo brigam com a letra original. O que a experiência da pensa, você pensa com pensamentos ou com palavras?" Ao que a mãe res-
tradução enquanto tal propicia ao transfigurar necessariamente o original pondeu prontamente que pensava com pensamentos ... Intrigada, porém, ela
em outra letra, desliteralizando-o inevitavelmente, é uma espécie de dife- apresentou a questão a um amigo filósofo, que lhe teria dito: "Seria melhor
·rença original do original para consigo próprio, que o torna desde sem- que você dissesse ao seu filho que não sabemos nada a respeito disso': Na
pre irremediavelmente distinto de si mesmo. Distinto de sua própria letra, sequência do relato, Green evoca a pergunta que sempre lhe faziam e que
sempre já traduzida em outra letra, sempre retornando tautologicamente a sempre o aborrecia: "Você pensa em inglês ou em francês?" "Eu tinha uma
resposta pront1: continua ele: "Primeiro me diga se pensamos com palavras"

50 51
(GREEN, 1987,p. 153-155).E assim o escritor termina seu relato. Seria, talvez, exigência do original a alguém que vive em mais de uma língua, uma exi-
o caso de nos perguntarmos o que resta dos pensamentos depois que os tra- gência que este original impõe justamente ao apresentar-se já em tradução
duzimos em palavras. E, sobretudo, depois que traduzimos essas palavras e ao mesmo tempo furtar-se a ela, constituindo, assim, a relação. É assim
por palavras em outra língua. Em todo caso, trata-se de nossa eterna e espi- que esse original violenta a língua do tradutor e atinge a estrutura etnocên-
nhosa tarefa de seres de linguagem que nos leva irremediavelmente a nos trica de sua cultura, em seu narcisismo, naquele "narcisismo das pequenas
mover entre a imaterial}dade assombrosa do sentido - o original primeiro diferenças" de que falava Freud,5 e que consolida cotidianamente - e reati-
de Rosa? - e a materialidade literal das palavras. vamente - a inserção de cada um em sua própria cultura, por oposição às
De todo modo, é a partir dessa tensão entre original e tradução que outras que o rodeiam de forma mais ou menos próxima. Nesse sentido, se
o original se revela como passível de múltiplas determinações em si. Ou a tradução etnocêntrica tem um caráter violento e traiçoeiro em relação ao
seja, que o literal se desdobra em outras letras, refigurando-se, ganhando e estrangeiro, tal violência responde de certa forma a uma violência anterior:
perdendo necessariamente predicações. Daí a célebre frase de Rimbaud ao à violência do original sobre a língua do tradutor. Desse ponto de vista, será
responder sobre o que queria dizer seu Unesaisonen enfer,Uma estadiano que não poderíamos apelidar a tradução etnocêntrica de Reaktionsbildung,
inferno,na tradução de Ivo Barroso. Disse o poeta: "Eu quis dizer o que isso a formação reativa freudiana?
diz, literalmente e em todos os sentidos" (RIMBAUD, 1914, p. 699). Tradu- Mas antes de terminar, persistamos ainda um pouco nessa analogia
zindo:primeiro Rimbaud aponta a tautologia do sentido do literal: "eu quis com Freud e a trama de traduções que constitui a interpretação psicanalí-
dizer o que isso diz, literalmente"; para em seguida solicitar os sentidos da tica. Pensemos novamente na Ersatzbildung,na f~rmação substitutiva. No
tradução operada pela leitura e por sua proliferação figural, que ele marca âmbito do trabalho analítico, o sentido que determina tal formação e que
pela conjunção aditiva "e': "literalmente e em todos os sentidos': Essa proli- ela de certa maneira traduz - o sentido do original perturbador que havia
feração se reflete, por exemplo, nas várias traduções em português da pala- sido recalcado - só pode ser construído a partir da rede de associações que
vra saison, do título: estadia, estação, temporada, época, sazão ... e até cer- ela desencadeia. Temos aí dois níveis de tradução: 6 uma primeira tradução,
veja, Uma cervejano inferno.4 Qual seria a tradução literal? Talvez alguns digamos, simbólica - a Ersatzbildung,a formação que "substitui': cifran-
tendessem a dizer que fosse "sazão"? É, aliás, este conflito insolúvel entre do-a, uma forma original cujo sentido de algum modo violenta o sujeito
traduzibilidade e intraduzibilidade que sustenta o infinito processo de e de que ele não é capaz de se apropriar integralmente, que ele recalca. E
interpretação que define um texto para Derrida - ou sua "sobre-vidà: Até a tradução dessa tradução propiciada por meio de uma rede de associa-
porque se a tradução efetivamente se realizasse e estabilizasse o texto, ela o ções que só se materializa a posteriori, nachtriiglichcomo diria Freud (ou
negaria enquanto tal. Pois a tradução revela justamente, talvez melhor do "só-depois': conforme a tradução brasileira de MD Magno 7), em função
que qualquer outro tipo de leitura, a instabilidade do sentido de um texto, da instabilidade da primeira tradução, instabilidade que se deve ao fra -
e de uma língua. casso do recalque. É o retorno do recalcado que leva a retramar as ligações
Feitas essas reflexões e digressões, que creio serem de uma maneira
ou de outra recorrentes para todos aqueles que vivem entre literaturas e 5 Freud propõe a expressão em "O tabu da virgindade" (1918),a partir da reflexão sobre a dife-
rença sexual, e retoma-a mais tarde, sobretudo em seus textos sobre a cultura - particular-
línguas estrangeiras, retorno ao ponto que propus como central desta fala mente em "O mal-estar na cultura'' (1930) e "Moisés e o monoteísmo" (1939) - para refletir
sobre a (in)tolerância do homem em relação ao semelhante.
para começar a terminar.
6 Inspiro-me aqui em parte nas reflexões de Andrew Benjamin em seu capítulo "Psychoanalysis
Em primeiro lugar, a violência fundamental que deflagra de fato a pul-
and translation'; de Translationand the nature ofphilosophy(cf. BENJAMIN, 1989, p.109-149 e
são de traduzir é a violência do original sobre o tradutor. Pois, repito, sem- 143-147).
pre no rastro da Tarefade Benjamin, a tradução é uma solicitação, uma 7 Cf. verbete "Posterioridade, posterior, posteriormente" do Vocabulário da Psicanálise
(LAPLANCHE & PONTALIS, 1983,p. 441-445). A tradução brasileira de MD Magno foi proposta
4 Ivo Barroso apresenta algumas dessas versões em seu blog (2011). a partir da tradução francesa do termo por Jacques Lacan - "apres-coup''.

52 53
associativas entre o suposto original e a primeira tradução, impondo um afirmação da sua irredutibilidade, da irredutibilidade dessas diferenças.
processo interminável de retraduções. O que vemos aí no ato de tradução Fazendo com que a tradução seja necessariamente interminada e intermi-
psicanalítica é, ao mesmo tempo, uma "produção retrospectiva das pré~ nável. Ao menos para aqueles que têm - e para quem sempre se impõe -
mais de uma língua (cf. CASSIN, 2010). É evidente que tal deriva é intermi-
-condições para a tradução" (BENJAMIN, 1989, p. 146) e a inseparabilidade
do original de suas sucessivas e infinitas, interminadas, traduções. Pôr em tente e vai produzindo seus pontos de fixação: a tradução se encarna, e é aí
que talvez se possa falar da interpretação como ato.
relação representações que se propagam incessantemente por sua própria
natureza conflituosa. É o que poderíamos definir como a tarefa do crítico Mas à guisa de conclusão, eu diria que o grande mérito da atual ten-
da tradução, ele também forçosamente tradutor. Ou do crítico tout court. dência crítica a que eu me referia no início, na área dos estudos da tra-
Em suma - e retomo a ideia do início -, talvez tal analogia com a noção de dução, a tendência a criticar o etnocentrismo necessariamente presente
em toda tradução e a encorajar traduções e retraduções que privilegiem a
formação substitutiva - de formação sintomática - possa nos ajudar a pen-
sar aquela tradução que o tradutor faz à sua própria revelia de um original estranheza, a estrangeiridade, seu grande mérito é o de levar o leitor que
que o assalta, deflagrando um processo infinito de retorno de um original não conhece a língua do original a suspeitar, a intuir essa violência ori-
ginal do processo e, consequentemente, a suspeitar e a intuir também a
que sempre revela e reivindica outra rede de determinações, atualizando,
dimensão intrinsecamente interminável da tarefa do tradutor, que é efeito
assim, a tensão irredutível da relação tradutória.
Da mesma maneira, como vimos, no que concerne à experiência da dessa violência. E, nesse sentido, estimular esse leitor a aprender-línguas
tradução de que estou tratando aqui, só há relação se houver violência, e estrangeiras. Pois é isso que pode fazer face a uma das ambiguidades do
isso não passa por uma decisão, por um livre-arbítrio. A relação já se dá a crescimento da atividade da tradução, a um de seus aspectos negativos:
partir da violência da língua outra sobre a língua própria, produzindo uma como chama a atenção Emily Apter, "se a tradução é considerada essen-
experiência vertiginosa de linguagem entre as duas línguas e suspendendo cial para a disseminação e a preservação da herança textual, ela também
o fluxo contínuo de ambas. Assim, da mesma maneira que o ato de hospi- pode ser entendida como um agente de exterminação linguística" (APTER,
2006, p. 4).
talidade, de acolher o estrangeiro, reivindicado por Derrida, o ato tradutó-
rio não é voluntário, mas imposto por uma violação da soberania - aqui a Pois não é apenas lendo traduções mais ou menos etnocêntricas que
soberania da língua e do sujeito que se fala nessa língua-, violação que não podemos nos tornar mais permeáveis ao estrangeiro. Precisamos acima de
se trata de acatar ou não, com maior ou menor boa vontade. É, digamos, tudo nos tornarmos todos, e cada vez mais, ao menos virtualmente, tradu-
uma espécie de irrupção significante com que o sujeito-tradutor tem que tores, para, diante da violência que só entre línguas podemos experimen-
se haver à sua própria revelia. É por isso que a relação de hospitalidade é, tar, sermos capazes de dobrar aqui e ali, de fato, nossas pequenas e grandes
como reivindica Derrida, incondicional. E não porque seja motivada por diferenças, com toda a ambivalência que isso implica, e vislumbrar, assim,
algum imperativo ético que teria levado alguém a decidir que ela o fosse, outras possibilidades de dizer a vida - e, portanto, de viver.
que fosse incondicional, por alguma espécie de generosidade, de boa von-
tade, de tolerância ou de altruísmo, como eu dizia no início, que seriam
intrínsecos a um tradutor empírico qualquer ou a uma certa posição de
tradutor. Assim, o que está em jogo na experiência-limite da relação tradu-
tória não é a incorporação de recursos e de valores de uma língua, de uma
cultura, por outra, como queriam de certa forma os alemães nos séculos
XVIII e XIX. A relação vale não tanto como experiência da incorporação
ou da contaminação de diferenças, mas, sobretudo, como experiência da

55
54
Envelhecimento e esquecimento, contratempos
da tradução (com Walter Benjamin e Marcel Proust)

Como se sabe, as lembranças que fazem a trama do "tempo reencon-


trado" na obra de Marcel Proust são sempre marcadas por uma dupla tem-
poralidade: elas constituem o traço da fugacidade, do envelhecimento, da
desaparição, da destruição definitiva daquilo - da vida - que evocam, e,
simultaneamente, o traço da inscrição dessa vida numa rede de sentidos
que se configura para além de todo "acontecimento vivido" (BENJAMIN,
2012, p. 38), numa sobrevida em que enfim se torna possível viver tudo o

que não se terá vivido da vida que se viveu, tudo o que não se terá vivido
justamente por estar encerrado em uma espécie de esquecimento original,
determinado pelas oscilações inconscientes do desejo e do sentimento que,
para o escritor, filtram a cada vez, para cada um, a percepção do que se vive
(cf. BENJAMIN, 1989, p. 108). Como diz Walter Benjamin, referindo-se, em
pequena nota sobre Proust,' às "imagens" da memória involuntária prous-
tiana e explicitando a experiência paradoxal do tempo que elas implicam,
"trata-se[ ...] de imagens que nunca tínhamos visto, antes de nos lembrar~
mos delas" (BENJAMIN, 2015, p. 150 ).2 Imagens, portanto, de um passado
que se torna presente no presente sem jamais ter sido presente no passado
- ao menos "nunca sob nosso próprio olhar': como diz ainda Benjamin na
sequência da passagem em questão. Imagens daquilo que aconteceu sem
tér acontecido, de uma "verdade que se esqueceu de acontecer': para evocar
aqui de través uma conhecida imagem do poeta Mário Quintana, primeiro

1 ''D'un petit discours sur Proust, prononcé lors de mon quarantieme anniversaire" (1932).
Trata-se de uma nota manuscrita recolhida por Robert Kahn nos Arquivos Benjamin de
Berlim. O texto é inédito em português e só foi traduzido para o francês em 2015.
2 Quando a referência for a edições francesas, a tradução das citações é minha.

57
É, portanto, partindo do contraponto proustiano que eu gostaria de
tradutor de Proust no Brasil. O passado depende, portanto, de uma lem-
retornar ao pensamento de Benjamin sobre a literatura e a tradução, sobre
brança no futuro para enfim ter sido plenamente presente, e só assim, de
as "conexões de vidà' entre elas, para especular mais especialmente sobre a
algum modo, sobrevir, ou sobreviver, à sua própria morte.
dimensão produtiva do envelhecimento e do esquecimento, tomados aqui
É em meio a um deslizamento temporal análogo entre vida consu-
mada e "vida continuadà' (ou entre "experiência vividà' e "pervivêncià') como contratempos críticos inerentes a toda obra - original ou tradução -,
que se tece a "sobrevivêncià' de uma obra em sua historicidade,3 e, mais e que destinam ambos - original ou tradução-, necessária e inexoravel-
precisamente quanto ao que nos interessa aqui, é em meio a esse desliza- mente, ao inacabamento e à "vida continuadà: Isso tanto no âmbito do
mento temporal que se tecem as "conexões de vidà' (BENJAMIN, 2011, p. "interior da mata da linguagem" (BENJAMIN, 2011, p. 112) de cada uma das
104) - implicadas também nessa sobrevivência- que a obra entretém com
línguas envolvidas - como exemplifica a própria obra de Proust - quanto
suas traduções, tal como as concebe Benjamin em suas reflexões sobre a no âmbito da fronteira entre elas. Mais especialmente no caso de uma tra-
tarefa do tradutor. dução strictosensu - ao menos, segundo a expressão de Benjamin, para os
Pois assim como a obra de Proust, instável por essa complexidade leitores "que compreendem o original" (BENJAMIN, 2011, p. 102), ou seja,
temporal inscrita em sua própria natureza, condenada por sua virtuali- dizendo de outro modo, para aqueles leitores que não podem ler, a despeito
dade intrínseca a se reescrever ao infinito, assim como ela, uma tradução, de sua própria vontade, sem o assombro de outra língua.
à maneira que Benjamin permite pensá-la, é, como se sabe, inacabada por Para começar com Proust, eu gostaria de evocar duas passagens muito
definição: entre o salto no agora de uma outra língua em que ela sobrevém conhecidas, muito citadas, nos mais diversos contextos, mas que, curio-
à revelia do original estrangeiro e de sua língua, entre esse salto e o irrecor- samente, encontrei pouquíssimas vezes associadas numa reflexão sobre a
rível reencontro de um tempo e de um sentido perdidos que esse original e tradução. E que não podem deixar de fazer pensar quem quer que se inte-
essa língua, em sua "transformação e renovação" próprias (BENJAMIN, 2011, resse pela questão da relação entre escrita dita original, criativa, e a escrita
p. 107), teimam em buscar, entre a sombra coercitiva da propriedade das propriamente tradutória.
línguas - da própria e da estrangeira - e os lampejos de sentido virtualiza- A primeira passagem, extraída dos fragmentos de CentreSainte-Beuve
dos pelas mutações dessas línguas, entre esses dois tempos intricados que (1908-1909), circulou e circula muito a partir de Gilles Deleuze, que usou a
lhe espelham, portanto, dela, tradução, os esquecimentos que a constituem primeira frase como epígrafe de Críticae clínica:
e o envelhecimento que sempre já a alcançou, entre esses dois tempos, ela, Os belos livros são escritos numa espécie de língua estrangeira. [Mas Proust
a tradução, não cessa de solicitar, em contratempo, e a um só tempo, o seu prossegue:] Sob cada palavra cada um de nós coloca seu sentido ou ao menos
próprio acabamento e o do original, a sua própria metamorfose e a do ori- sua imagem, que é frequentemente um contrassenso. Mas nos belos livros,
ginal, o seu próprio "crescimento" (BENJAMIN, 2011, p. no) e o do original. todos os contrassensos que fazemos são belos. (PROUST, 1954a,p. 297-298)
Ou seja, no limite, a tradução não cessa de solicitar uma outra tradução,
E na sequência, Proust dá exemplos de seus supostos "contrassensos"
uma retradução, se quisermos, que reabre e reinterroga, no mesmo movi-
como leitor, referindo-se a um romance de Barbey d'.Aurevilly ou a um
mento, o original e suas precedentes traduções, bem como "o mais íntimo
poema de Baudelaire.
relacionamento das línguas entre si" (BENJAMIN, 2011, p. 106), as quais,
A segunda passagem é retirada de O tempo reencontrado[Le temps
assim, se recolocam em contato - ou seja, em confluência e em conflito.
retrouvé],último volume de Em busca do tempoperdido, no momento em
3 Reconhecem-se os termos de que se serve Benjamin para discutir as relações entre original que o narrador começa a se dar conta do sentido possível de sua obra por
e tradução em A tarefado tradutor,em torno de uma semântica da vida ("Fortleben''. "Über- vir e da realização enfim vislumbrada de sua vocação de escritor:
leben").A tradução desses termos oscila bastante tanto nas traduções francesas quanto nas
brasileiras, como se pôde notar nos ensaios anteriores. Cf. nota de Susana KampffLages, de
cuja tradução me servirei neste ensaio. (BENJAMIN, 2011, p. 104).

59
Se eu tentasse me dar conta do que acontece, de fato, em nós no momento em - de "impressões': ou de "imagens': termos caros a Proust -, a assombrar a
que algo nos causa uma certa impressão [... ] [e Proust dá umas dez linhas língua própria a partir de uma outra língua estrangeira, língua agora sem
de exemplos de impressões desenvolvidas dispersamente ao longo da Recher-
aspas, uma língua não de todo estranha ao leitor-tradutor em questão, uma
che...], eu percebia que, para expressar essas impressões, para escrever esse
livro essencial, o único verdadeiro livro, um grande escritor não tem, no sen- língua mais ou menos estabelecida, feita de "signos" que lhe são mais ou
tido corrente, que inventá-lo mas que traduzi-lo. O dever e a tarefa de um menos familiares ...
escritor são os de um tradutor. (PROUST, 1954b,v. 3, p. 890) Uma bela imagem dessa experiência é dada pelo próprio Benjamin
ao relatar o "regime" que havia "descoberto" para empreender sua própria
Entre as poucas articulações que encontrei reunindo essas duas pas-
tradução de Proust. 4 Em uma carta a Julia Radt de 1926, ele escreve, referin-
sagens no entanto tão comunicantes destaco uma de Julia Kristeva. Numa
do-se a essa experiência e ao tal "regime" tradutório:
reflexão sobre a experiência do "amor da outra língua': como ela diz, Kris-
teva formula, a meu ver, o essencial, ou quase, quanto ao sentido que essas Quando me levanto de manhã, sem me vestir, sem tampouco que uma gota
passagens possam ter para Proust. Na passagem que se segue ela parte jus- d'água toque minhas mãos ou meu corpo, sem muito menos beber, começo
a trabalhar e não faço nada enquanto a labuta do dia não estiver terminada -
tamente do uso abusivo e deturpado que frequentemente se faz da frase de sem sequer falar de desjejum. (WEIDNER, 2015,p. 30-31)
Proust via Deleuze para chegar à relação entre escritor e tradutor:
Como diz Daniel Weidner, é como se Benjamin aspirasse a traduzir
O que se esquece com frequência de dizer é que a língua que Proust traduzia
para o francês não era urn outro idioma já feito: como o inglês, por exem-
"numa espécie de transe artificial, num estado buscado de semivigília':
plo, ou o búlgaro para mim. O que o escritor - e o estrangeiro, esse tradu- numa "espécie de escrita automática'' (p. 31). Weidner evoca então uma
tor - transfere para a língua de sua comunidade é a língua singular de sua passagem do fragmento "Sala de desjejum': de Rua de mão única, em que
"memória involuntária'' e de suas "sensações''. [...] Essa "língua'' sensível não Benjamin associa o "desjejum'' à "quebra entre mundo noturno e diurno':
é uma língua de signos: ela é uma "língua'' entre aspas, um caos e uma ordem
de batimentos, de impressões, de dores e de êxtases nas fronteiras da infor-
interrompendo "o sortilégio do sonho': "a cinzenta penumbra onírica''
mulável biologia. Essa "língua'' é uma verdadeira "estranheza'' - mais estran- (BENJAMIN, 1994, p. 11-12). Mas se o crítico quer enfatizar aqui um certo
geira do que qualquer idioma já constituído - que o escritor espera formular. desejo "mimético" de Benjamin em relação a Proust por "imitação espon-
(KRISTEVA, 1998, p. 391-392) tânea de um estilo" (WEIDNER, 2015, p. 31), que tal "regime" favoreceria, o
Mas eu gostaria de sublinhar também em relação a essas passagens que me parece interessante destacar na imagem encenada por Benjamin é
a intuição da.tradução como uma espécie de "relato" do original "de dentro
algo que Kristeva não explora aqui, e que diz respeito à consideração implí-
do sono'' - "Quem está em jejum fala do sonho como se falasse ainda de
cita do leitor - e não apenas do autor, que ela privilegia aqui - como tra-
dutor. Quando Proust escreve que, "sob cada palavra'' da tal língua estran- dentro do sono': diz Benjamin no final do tal fragmento sobre o desjejum
(BENJAMIN, 1994, p. 12) -, de um "relato" em que "reina'' o princípio da
geira que constitui uma obra, "cada um de nós coloca seu sentido ou ao
"semelhança': e não o da "identidade': Como em Proust, que exerce em
menos sua imagem, que é frequentemente um contrassenso': para em
sua escrita, segundo a expressão de Benjamin em "A imagem de Proust':
seguida falar de si mesmo como leitor, ele também povoa o mundo da lei-
o "culto apaixonado da semelhança''. "Semelhança'' que ele, Benjamin, no
tura, para repetir os termos de Kristeva, com "uma 'língua' entre aspas, um
mesmo artigo, define assim:
caos e uma ordem de batimentos, de impressões, de dores e de êxtases nas
fronteiras da informulável biologia':.. Ora, se pensarmos na experiência
deste leitor que nos interessa em particular que é o tradutor stricto sensu, 4 Para recordar aqui: Benjamin começou a ler Proust em 1919. Entre 1925 e 1926 traduziu com
traduzir também implicaria, sob essa ótica, deparar-se com uma estranha Franz Hessel A lómbre desjeunesfilies enfleurs e Du côtéde Guermantes,publicados respecti-
vamente em 1927 e em 1930. O manuscrito de Sodome et Gomorrhe,em que os dois trabalha-
língua estrangeira, feita, por que não?, de "memórias" e de "sensações" vam desde 1926, perdeu-se (cf. WEIDNER, 2015, p. 26-29).

60 61
A semelhança entre dois seres, a que estamos habituados e com que nos ocu-
durante sua permanência no inconsciente'' (BENJAMIN,1989, p. 131, tradu-
pamos em estado de vigília, é apenas um reflexo impreciso da se~elhança
mais profunda que reina no mundo dos sonhos, em que os acontecm~entos ção ligeiramente modificada). Retomemos a passagem:
não aparecem jamais como idênticos, mas sempre como semelhantes:1mp~.-
netravelrnentesemelhantes a si mesmos. (BENJAMIN, 2012, p. 40-41, traduçao Aqui é o dia que desfaz o trabalho da noite. Em cada manhã, ao acordarmos,
ligeiramente modificada) em geral fracos e apenas semiconscientes,seguramos em nossas mãos apenas
algumas franjas da tapeçaria da existênciavivida, tal como o esquecimento a
Daí a descrição do manuscrito da tradução de Sodome et Gomor- teceu para nós. Mas cada dia, com suas ações intencionais, e, mais ainda, com
suas rememorações intencionais, desfaz os fios, os ornamentos do olvido. Foi
rhe (que foi devolvido a Benjamin para revisão e acabou desaparecido) por isso que Proust transformou, ao final, seus dias em noites... (BENJAMIN,
pelo editor alemão Reinhard Piper (que no fim das contas se recusou a 2012, p. 38)
publicá-lo), numa imagem que não deixa de lembrar os manuscritos da
Recherche(cujo primeiro volume, como se sabe, a editora NRF se recusara a Vemos, pois, que a "traduzibilidade" da vida constitui para Proust,
publicar em 1912). Diz o editor em carta a Franz Hessel: de acordo com Benjamin, sempre, um processo de sobrevida, de sobrevi-
vência, tributário do envelhecimento e do esquecimento, que se oferecem,
A tradução não é datilografada,mas manuscrita, com uma escrita apert~da e
desordenada. Falta, além disso, toda uma série de palavras, que devem amda assim, como contratempos produtivos justamente porque rejuvenescedo-
ser acrescentadas.Inúmeras palavras francesas estão anotadas à margem[ ...]. res, como queria Goethe da tradução ... E Proust, deste exercício de "tradu-
Essatradução não parece pronta para ser impressa,e é lícito pensar que tenha- ção" da vida que a obra pretende ser. .. Os termos de Benjamin, na última
mos que mandar datilografá-la,e então corrigi-la. (WEIDNER, 2015, p. 30) seção do artigo, sintetizam de certa forma o que pretendi dizer até aqui:
Essa descrição corrobora a aproximação da experiência tradutória Acompanhar a interação entre envelhecimento e rememoração significa
benjaminiana, tanto do ponto de vista conceituai quanto do ponto de vista penetrar no coração do mundo proustiano, no universo do entrecruzamento.
prático, da experiência proustiana de leitura do "belo livro': ambas esca- É o mundo em estado de semelhança, e nela reinam as "correspondências"
[...]. É esta a obra da mémoire involontaire,da força rejuvenescedora capaz
pando, como o mundo dos sonhos freudiano, ao princípio da não-contra-
de enfrentar o implacável envelhecimento. Quando o passado se reflete no
dição (lembremos dos "belos contrassensos" invocados por Proust), e ao "instante': úmido de orvalho, o choque doloroso do rejuvenescimentoo con-
crivo do saber constituído do tradutor/ leitor relativamente às "proprieda- densa tão irresistivelmente como a orientação de Guermantes se entrecruza,
des" das línguas em jogo, se podemos dizer assim, saber que reflete as cor- para Proust, com a orientação de Swann, quando o autor, no 132 volume, [...]
respondências mais ou menos estabelecidas entre elas muito mais segundo descobre o entrecruzamento dos caminhos. (BENJAMIN, 2012, p. 47)
o princípio das "identidades" do que sobre o das "semelhanças': na medida Para começar a concluir, eu gostaria de trazer à baila mais um ele-
em que elas supostamente se esgotam e se estabilizam, tais correspondên- mento importante para a relação entre a memória involuntária e a tradu-
cias, no âmbito pragmático-comunicativo dos sentidos socialmente com- ção da vida em Proust, elemento especialmente destacado por Benjamin
partilháveis em dado momento histórico. no penúltimo parágrafo de ''A imagem de Proust': Trata-se das "recorda-
A todo esse processo "onírico': sintetizemos assim, de leitura e tra- ções preservadas no olfato': que, mais do que as "imagens visuais" que
dução, também não deixa de remeter aquilo que Benjamin, referindo-se
colorem no mais das vezes as lembranças do narrador proustiano, con-
à produtividade própria da memória involuntária proustiana, descreve
servam, em sua "tenacidade especial': o peso e a vagueza que fazem vibrar
bem no início de ''A imagem de Proust" como "um trabalho de Penélope
mais enigmaticamente, em "b.atimentos e impressões': tais lembranças
do esquecimento': trabalho noturno que desfaz a "tapeçaria da existência
expressas em frases, potencializando, assim, sensos e contrassensos da lei-
vividà' (BENJAMIN,2012, p. 38) à medida que "põ[e] à luz o fluxo fugido, tura. Eis a passagem:
saturado de todas as reminiscências que haviam penetrado em seus poros
Mas se quisermos captar com pleno conhecimento de causa a vibração mais Nesse sentido, eu gostaria de propor uma imagem conceituai: a de
íntima dessa literatura, temos que mergulhar numa camada dessa memória
uma traduçãoodorante,de uma tradução que recendesse, em suas "redes';
involuntária, a mais profunda, na qual os momentos da recordação anun-
ciam-nos, não mais isoladamente, com imagens, mas desformes, não visuais, para "reencontrá-lo'; o vago "sopro do tempo perdido" "bafejado"8 pelo
indefinidos e densos, um todo, como o peso da rede anuncia sua pesca ao original naquela fase onírica, digamos assim, da experiência tradutória.
pescador. O odor é o sentido do peso daquele que lança suas redes no oceano Como uma palavra que recendesse a "não-palavrà' entrevista a partir da
do tempsperdu. E suas frases são a totalidade do jogo muscular do corpo
leitura do original, a "entrelinhà' passível de "morder a iscà' como escre-
inteligível, contêm todo o esforço indizível necessário para erguer o que foi
capturado. (BENJAMIN, 2012, p. 50) veu Clarice Lispector para definir sua experiência da escrita.9 Experiência
de certa forma análoga, a meu ver, àquela que Benjamin sintetiza enig-
Como se lê aqui, a prevalência mais indefinida do odor na economia maticamente ao fim de sua Tarefa como "tradução virtual" ou "versão
da recordação, colocando em questão o paradigma da visualidade, expõe interlinear do texto sagrado" (BENJAMIN, 2011, p. 119), a qual remeteria,
a dimensão algo estrangeira e intraduzível - "indizível'; diz Benjamin - do nesta perspectiva que proponho aqui, a uma língua muscularmente aspi-
"esforço" do sentido inerente à escrita proustiana. Assim, se a consciência rada, farejada, se podemos dizer assim, pelo tradutor-pescador a partir do
trágica da potência destruidora do tempo levara Baudelaire, autor deci- "peso do sentido" que se constitui, no tempo sempre já chegado e sempre
sivo tanto para Proust quanto para Benjamin, a constatar que "a Prima- ainda por vir da tradução, por meio de seu embate com as frases entre
vera adorável [havia perdido] seu odor" e a se perguntar nostalgicamente duas "línguas de signos" a se esgrimir 10 , de um lado, e, de outro, com "a
"onde [estavam] os perfumes embriagantes das flores desaparecidas" (BAU- língua sensível, entre aspas'; nos termos de Kristeva, ou língua odorante,
DELAIRE, 1975,vol I, p. 77 e 386), 5 Proust, por meio justamente do odor como proponho, que tais frases inevitavelmente deflagram na iminência
- "refúgio inacessível da mémoire involontaire';capaz de "anestesiar pro- da tradução e na resistência a ela.
fundamente a consciência do fluxo do tempo" (BENJAMIN, 1989, p. 135, tra- "É somente quando deixamos uma coisa que a nomeamos'; disse
dução ligeiramente modificada) -, condensa e traduz o que é para ele a André Gide numa conversa com Benjamin no momento em que falava
experiência de gozo6 por excelência da escrita, isto é, da tradução de si: justamente de sua relação com as línguas estrangeiras (BENJAMIN, 2015,
trata-se, como resume uma expressão que aparece no último volume da p. 142). Nesse sentido, parece-me, nomear é sempre também esquecer e
Recherche,de "[libertar-se] da ordem do tempo':7 envelhecer um pouco, e traduzir, que é renomear, implica necessariamente,
faz sentir - tenho vontade de dizer em francês, fait sentir, remetendo, jus-
5 ''Le Printemps adorable a perdu son odeur!"; "Oit sont les parfums enivrants des fleurs tamente, ao perfume da língua -, "no meio da vidà;" da vida própria e
disparues?''.Trata-se, respectivamente, de um verso do poema "Legoút du néant", de Les
Fleursdu mal, e de uma frase do ensaio "Du vin et du haschisch".Jeanne-Marie Gagnebin
(2007) discute rapidamente a questão no texto "LePrintempsadorablea perdu son odeur".
6 Proust, por meio de suas "ressurreições da memória': apresentou-se, segundo Benjamin,
"como o substituto dos pobres e dos deserdados do gozo': atribuindo-se, palavras de Benja- 8 Trata-se de uma nota de Walter Benjamin, vale a pena citar a frase inteira: "O alçado arquite-
min, "a obrigação[ ...] de não apenas viver o gozo para todos, mas em cada lugar e para toda tônico da obra de Proust se baseia nisso: cada uma das situações nas quais o cronista é bafe-
coisa que o tornasse possível''. Benjamin refere-se ainda, no mesmo texto, ao "projeto incon- jado com o sopro do tempo perdido se torna, por isso, incomparável e liberta-se da sequên-
dicionado de salvar o gozo, justificá-lo': como "uma paixão proustiana que vai muito mais cia do tempo:' (BENJAMIN, 1989, p. 139,tradução ligeiramente modificada)
longe que suas análises desiludidas" (BENJAMIN, 2015,p. 150-151). 9 Todos terão reconhecido aqui as palavras de Clarice em Agua viva "Então escrever é o modo
7 "Maisqu'un bruit déjà entendu, qu'uneodeur respiréejadis, le soientde nouveau,à lafois dans de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa
le présent et dans le passé, réelssans être actuels,idéaux sans être abstraits,aussitôt lessence não-palavra - a entrelinha - morde a isca, alguma coisa se escreveu:'
permanente et habituellementcachéedes chosesse trouve libéréeet notre vrai moi qui, parfois 10 Penso aqui na "estranha esgrima" ("fantasqueescrime")do poeta encenada por Baudelaire no
depuis longtemps,semblaitmort, mais ne letait pas autrement,seveille,sânime en recevantla poema "LeSolei/"(BAUDELAIRE, 1975,I, p. 83).
célestenourriturequi lui est apportée.Une minute affranchie de l'ordre du temps a recréé en n Para lembrar Barthes evocando Dante ao falar de seu desejo de romance a partir de Proust,
nous pour la sentir l'homme affranchi de l'ordre du temps:' (PROUST, 1954b,v. 4, p. 451) no célebre artigo "Longtempsje me suis couchéde bonne heure"(BARTHES, 1984, p. 341-342).
da vida da obra, o "choque doloroso' mas, como uma passagem,'3 por
12 Aurélio e os poemas em prosa de Baudelaire:
um instante rejuvenescedor, com esses dois implacáveis contratempos do notas sobre uma tradução rebuscada
"movimento inodorante do tempo':•4

Os chamados poemas em prosa de Charles Baudelaire foram publica-


dos pela primeira vez em livro em 1869, sob o título Petitspoemes en prose,
alguns anos depois da morte do poeta, que permaneceria por muitos anos
sendo conhecido sobretudo como o poeta das Floresdo mal. A tradição da
hierarquia entre os gêneros, especialmente forte na França, de certa forma
o impôs, como notava ainda, mais de cem anos depois, Claude Pichois,
em sua nota de apresentação, para as Obras completas(Bibliotheque de
la Pléiade), do Spleen de Paris' - título adotado pelo poeta (mas não por
grande parte de seus editores ao longo do tempo) desde que começara a
conceber a publicação em conjunto daqueles pequenos textos.
Entre nós, no Brasil, não foi muito diferente. Se muitas das "flores"
foram sendo traduzidas e retraduzidas para dezenas de periódicos,
antologias ou edições parciais desde os anos 1870, por poetas e escritores
de calibres bem diversos, como mostram os estudos sobre as traduções de
Baudelaire no país,2 os poemas em prosa, até os anos 1980, conheceram

1 Diz aí Pichois: "Na história da criação baudelairiana, [os poemas em prosa] se inscrevem
como uma 'contraparte' das Floresdo mal, o que lhes dá um lugar eminente, embora[ ...] sua
importância ainda não seja plenamente reconhecida:' (BAUDELAIRE,1975,I, p. 1293)
2 Na edição completa de Asfloresdo mal,com tradução de Ivan Junqueira, há uma lista exaustiva
das traduções integrais e parciais até 1985,ano da publicação (BAUDELAIRE,1985,p. 648-655).
12 Susana Kampff Lages sintetiza nestes termos a trama temporal subjacente à relação entre Poderíamos citar, entre muitos outros, Olavo Bilac, Cruz e Souza, Dante Milano e Guilherme
original e tradução: "O original, que é o objeto empírico que abriga em si, em sua traduzi- de Almeida, além do próprio Junqueira. Glória Carneiro do Amaral faz um interessante
bilidade, a lei da forma, do gênero tradução, não se encontra no início de uma cadeia tem- estudo sobre as primeiras traduções, ainda no século XIX(AclimatandoBaudelaire.São Paulo:
poral cronologicamente determinada, mas presentificável no meio, entre o passado de sua Annablume, 1996). Ricardo Meirelles explora em sua tese de doutorado as traduções feitas a
produção na obra e o futuro de suas reproduções na forma de múltiplas traduções possíveis:' partir de 1957 (Les Fleurs du mal no Brasil:traduções.São Paulo: USP, 2010. Disponível em:
(LAGES,2002, p. 203) <http:/ /www.teses.usp. br/teses/dispohiveis/8/8146/tde-18102010-102721/pt-br.php>). Denise
13 Aqui o diálogo possível seria com a passante. (BAUDELAIRE,1975,I, p. 92-93). Bottman faz um bom levantamento - mais sintético - das traduções das obras do poeta
publicadas em livro no Brasil, incluindo poesia e ensaios, em seu blog "Não gosto de plágio"
14 E homenageio aqui, com esta última expressão, o poeta francês contemporâneo Christian
(Disponível em: <http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/2013/02/traducoes-de-baudelaire-
Prigent, que com ela conclui seu proustiano romance Umafrase para minha mãe (1996), em
no-brasil.html> ).
cuja tradução venho, por minha vez, trabalhando.

66
pouquíssimas traduções. Aliás, curiosamente, antes do célebre trabalho anos 1990 6 -, a despeito de sua maior ou menor qualidade, foi realizada por
que Aurélio Buarque de Holanda começou a empreender no final dos anos tradutores reconhecidos como poetas, como foi frequentemente o caso das
1940, a única tradução, salvo engano, existente desses poemas no Brasil Floresdo mal, sobretudo em suas primeiras traduções.
sequer podia ser claramente identificada. Tratava-se de sua primeira edição Não me darei, contudo, aqui por tarefa tentar desenvolver explicações
integral, publicada em 1937 no Rio de Janeiro pela Editora Athena, intitulada sobre as razões desse estado de coisas. Fica, porém, como pista, o ponto
Pequenos Poemas em Prosa e assinada por um prolífico mas misterioso de que eu certamente partiria se pretendesse derivar em tal direção: talvez
tradutor, Paulo M. Oliveira - pseudônimo do jornalista trotskista Aristides seja por estarem ligados, segundo as palavras de Jean-Marie Gleize, a "um
Lobo, que fez inúmeras e importantes traduções (Rabelais, Pascal, Musset, progressivo desaparecimento da instância autoral, da grande figura histó-
Dante, Erasmo, entre outros) enquanto se encontrava na prisão durante rica do Exilado ou do Maldito (o albatroz), em proveito das próprias coi-
o Estado Novo, como mostrou pesquisa recente de Denise Bottman sas[ ...] e de suas combinações" (GLEIZE, 2007), que aqueles "fragmentos"
(BOTTMAN, 2013). Alguns dos poemas dessa edição viriam ainda a aparecer baudelairianos "sem ritmo e sem rimà' (BAUDELAIRE, 1950, p. 7-8) 7 jamais
no suplemento da Gazeta de Notícias,do Rio de Janeiro, entre dezembro de apareceram aos olhos dos poetas brasileiros como um desafio à sua altura.
1944 e abril de 1945 - dessa vez sem qualquer assinatura. 3 Além disso, porém, Por outro lado, talvez seja também por isso que, por uma espécie de estra-
não encontrei mais qualquer traço desses poemas em português. Parece, tégia de compensação, muitos dos tradutores de Baudelaire - e aqui refi-
portanto, que seu primeiro tradutor realmente conhecido foi Aurélio, mas ro-me tanto ao Spleen quanto às Flores- tenderam a manter-se uma nota
é preciso sobretudo dizer, isso é certo, que foram suas traduções veiculadas acima do original, solenizando aqui e ali o tom da tradução e devolvendo
na imprensa ao menos desde o ano de 1947 que, antes da edição completa, assim, através dela, a "auréolà' ao poeta que, como ele próprio escreveu
primeiramente publicada em 1950 pela Editora José Olympio e reeditada provocativamente no delicioso poema "Perda de auréolà: não queria outra
pela Nova Fronteira a partir de 1976, efetivamente começaram a fazer coisa senão "passear incógnito, praticar ações vis e entregar-se à crápula,
circular no Brasil os poemas em prosa de Baudelaire4 • E até onde pude como os simples mortais" (BAUDELAIRE, 1950, p. 148-149). Alguns desses
verificar, estes só voltariam a ser traduzidos no país em 1988,5 por Dorothée tradutores, autodeclarados poetas ou não, pareceram mesmo ávidos por
de Bruchard - gerando, desde então, uma sequência de retraduções. É "[adornar-se] com ela impudentemente': como diz o poeta dos "bebedores
ainda curioso notar, de passagem, que nenhuma das traduções integrais de quintessências" e "comedores de ambrosià' seus contemporâneos. 8
realizadas até hoje - há ao menos mais quatro delas publicadas a partir dos Mas tampouco é meu propósito aqui propor uma investigação sobre
a recepção do Spleen de Paris no Brasil ou um estudo comparativo sobre
suas diversas traduções. Pretendo apenas especular rapidamente sobre o
3 Eis os que encontrei numa pesquisa no site da Hemeroteca Digital Brasileira (http:/ /hemero- papel de Aurélio em toda essa já longa história. Voltemo-nos, pois, para o
tecadigital.bn.br/): "As Prendas e as Fadas': 3 de dezembro de 1944; "O Bolo'; 25 de fevereiro trabalho do professor, escritor e filólogo que, já em 1945, havia organizado
de 1945; "O Relógio'; 25 de março de 1945; "A Senhorita Bisturi': 1 de abril de 1945.
com Paulo Rónai o primeiro dos dez volumes que constituiriam a coleção
4 É curioso observar que na seção "Nomes do Dià' de A Manhã de 6 de agosto de 1944,
dedicada em parte a Aurélio, já consta o anúncio de que teria feito a tradução dos "Pequenos
Poemas em Prosà' de Baudelaire. Mas foi na edição de 23 de março de 1947 do Diário de 6 Eis os tradutores: Leda Tenório da Motta (O spleende Paris:pequenospoemas em prosa. Rio
Notícias que encontrei pela primeira vez a publicação de um dos poemas traduzidos por de Janeiro: Imago, 1995); Gilson Maurity (Pequenospoemas em prosa.Rio de Janeiro: Record,
Aurélio. Daí até a publicação do livro, em abril de 1950, ao menos trinta dos cinquenta 2006); Oleg Almeida (O esplim de Paris:pequenos poemas em prosa. São Paulo: Martin
Claret, 2010 ); Milton Lins (Pequenospoemas em prosa.Recife: Bagaço, 2010 ).
poemas seriam publicados em vários periódicos.
5 Tradução publicada pela Editora da UFSC, e reeditada em 2007 pela Editora Hedra, de São 7 Trata-se da tradução de Aurélio..
Paulo, sob o título Pequenospoemas em prosa (O Spleende Paris).Omitimos aqui a tradução 8 Por curiosidade, cito aqui a resenha feita por Tasso da Silveira para o Diário de Notícias
portuguesa de 1963 por António Pinheiro Guimaràes, O Spleen de Paris (Pequenospoemas em 26/o9/i937, por ocasião do lançamento da tradução da Athena. Diz o crítico, com
em prosa) (Cooperativa do Povo Portuense, 1963, reeditada pela Relógio D'.Água,de Lisboa, precisão: "Baudelaire perde, neles [nos Pequenospoemas em prosa],a permanente postura de
em 1991), que parece ter circulado bem pouco no Brasil. celebrante, que mantém no outro livro [nas Floresdo mal]''.

68
Mar de Histórias:Antologiado Conto Mundial e começava a consolidar-se e "O 'confiteor' do artista''), 4 de abril de 1948 ("O Porto': 'liny where out of
definitivamente como homem de letras e, mais especialmente, como tra- this world","O relógio" e "O estrangeiro'') e 1º de maio de 1948 ("Um cavalo
dutor. Ele traduzia diretamente de várias línguas e passou a assinar, a partir de raça': ''A Franz Liszt" e "O espelho").
de 1947 (até 1960), a seção "O Conto da Semana': do suplemento literário Antes de passarmos às traduções, uma observação: embora sejam bas-
do Diário de Notícias,do Rio de Janeiro. E foi aí - mas também em outros tante representativos quanto à diversidade de temas e de tom que com-
jornais cariocas, como o Jornalde Notícias,o Correioda Manhã e A Manhã põem o conjunto Spleen de Paris, os poemas escolhidos para a Folha do
- que, entre 1947 e 1950, publicou grande parte de suas traduções de Baude- Norte tendem mais a evocar a "spleenética"- voltaremos a este termo mais
laire então em curso. Se os poemas em português não eram inéditos, essas adiante - atmosfera que predomina no espírito do flâneur baudelairiano do
traduções devidamente assinadas imporiam cada vez mais sua autoridade, que propriamente suas ativas jlâneries pela Paris moderna, que perfazem
não só por suas indiscutíveis qualidades mas também pelo prestígio inte- uma série do livro e que, como mostrou Walter Benjamin, constituíram
lectual de seu autor, que se consolidaria nacionalmente ao longo das déca- o núcleo da originalidade de Baudelaire. Por isso, guardarei para o final
das seguintes. Mas parece-nos que Aurélio, culto e bem informado, prota- o exemplo de um poema que não foi publicado previamente na imprensa
gonista no mundo da edição e da tradução literária, não poderia ignorar (nem na França, onde fora recusado pela Revue Nationaleet Étrangeree só
aquela primeira tradução, a de "Paulo M. Oliveira''.9E minha hipótese aqui publicado na edição de 1869, nem, aparentemente, no Brasil - tampouco
é de que se, por um lado, Aurélio trabalhava um pouco mais próximo ao na "Paris N'América'' que Belém deixara há pouco de ser), mas que encena
texto francês, ele ao mesmo tempo tendeu a fazer um texto mais "elegante': diretamente essa atmosfera parisiense, e cuja ironia talvez até se intensifi-
que se valia de uma língua mais normativa, mais "castiça': segundo Ivo :Bar- que a partir das elegâncias de Aurélio. Trata-se do já mencionado "Perda
roso,'º e contribuiu de certa maneira para aquela elevação do texto baude- de auréola':
lairiano, aquele rebuscamento a que alguns tradutores tentariam reagir - e
que outros tentariam superar! - algumas décadas mais tarde. Nesse sen-
*
tido, a tradução de Oliveira tem algumas virtudes que foram retomadas em
algumas das traduções mais recentes.
Em Chacunsa chimere,Baudelaire mostra um grupo de homens cami-
Para mostrá-lo, vou comparar aqui as duas primeiras traduções de
nhando curvados, cada um sob o peso esmagador da própria "Quimera':
Chacunsa chimerepublicadas no Brasil: a de Oliveira e a primeira de Auré-
lio, recolhida da primeira série de poemas de Baudelaire por ele publicados
mas passivamente, todos eles aparentemente resignados com própria a
condição e a sorte desconhecida da própria existência. Reproduzo a seguir,
no suplemento literário Arte-Literatura,do jornal Folhado Norte, de Belém
com os parágrafos numerados para facilitar a comparação, o original de
do Pará, onde o tradutor apresentou uma significativa amostra de seu
11

Baudelaire, a tradução de Oliveira, intitulada "Cada qual com sua Qui-


trabalho, com dez poemas em prosa em três séries publicadas respectiva-
mera': e a de Aurélio publicada na Folha do Norte (que sofreria pequenas
mente em 22 de junho de 1947 ("Cada um sua Quimera': "A bela Dorotéia''
modificações na primeira edição em livro e outras, mais tarde, na reedição
revista de 1976), intitulada "Cada um sua Quimera':
9 Elucidado acima o enigma de sua identidade, vou referir-me ao tradutor da edição da Athena
por seu pseudônimo. . 1.Sous un grand ciel gris, dans une grande plaine poudreuse, sans chemins,
10 "Os pequenos grandes poemas em prosa de Baudelaire''. Prefácio à tradução de 2006 de Gil- sansgazon, sans un chardon,sans une ortie,je rencontraiplusieurshommes qui
son Maurity (p. 9). marchaientcourbés.
11 O suplemento Arte-Literaturacirculou na Folhado Norte (1~96-1974) e~~re 1946_e 1951, ~ as 2.Chacund'euxportait sur son dos une énorme Chimere,aussilourdequ'un sac
traduções que foram nele publicadas têm como autores, alem de Aureho, Mano Faus_tmo
Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meirelles, Raquel de Queiroz,
def arine ou de charbon,ou lefourniment d'unfantassin romain.
RuyBarata ...

71
3. Mais la monstrueuse bête n'étaitpas un poids inerte;au contraire,elle enve- 6. O cortejo passou ao meu lado e afundou-se na atmosfera do horizonte, no
loppait et opprimait l'homme de ses musclesélastiqueset puissants;ellesagra- lugar em que a superfície arredondada do planeta se furta à curiosidade do
fait avecses deux vastesgriffesà la poitrine de sa monture;et sa têtefabuleuse olhar humano.
surmontait lefront de l'homme, comme un de cescasqueshorriblespar lesquels 7. Durante alguns instantes, obstinei-me em querer compreender esse misté-
lesanciensguerriersespéraientajouterà la terreurde l'ennemi. rio. Logo, porém, a irresistível indiferença abateu-se sobre mim, e eu me senti
4. Je questionnai l'un de ces hommes, et je lui demandai ou ils allaient ainsi. mais oprimido do que eles com as pesadas Quimeras.
Il me répondit qu'il n'en savait rien, ni lui, ni les autres;mais qu'évidemment 1.Sob um grande céu de cinza, numa grande planície poeirenta, sem cami-
ils allaient quelquepart, puisqu'ils étaient pousséspar un invinciblebesoinde nhos, sem relva, sem um cardo, sem uma urtiga, encontrei vários homens
marcher. que marchavam curvados.
5.Chose curieuse à noter: aucun de ces voyageursnavait Zairirrité contre la 2.Cada um deles trazia às costas uma enorme Quimera, tão pesada como um
bêteféroce suspendueà son cou et colléeà son dos;on eut dit qu'il la considérait saco de farinha ou de carvão, ou o equipamento de um infante romano.
commefaisant partie de lui-même. Touscesvisagesfatigués et sérieux ne témoi-
gnaient daucun désespoir;sous la coupolespleenétiquedu ciel,lespieds plongés 3. Porém o monstruoso animal não era um peso inerte; ao contrário, envolvia o
dans lapoussiered'un sol aussidésoléque ce ciel,ils cheminaientaveclaphysio- homem, e oprimia-o, com seus músculos elásticos e possantes; segurava-se-lhe
nomie résignéede ceux qui sont condamnésà espérertoujours. ao peito com suas duas garras imensas; e sua cabeça fabulosa elevava-se por
sobre a cabeça do homem, como um desses horríveis capacetes com que os
6. Et le cortegepassa à côté de moí et s'enfonçadans latmospherede l'horizon, antigos guerreiros procuravam agravar o terror do inimigo.
à l'endroitou la surfacearrondiede laplanete se dérobeà la curiositédu regard
humain. 4. Interroguei um daqueles viajantes, indaguei-lhe aonde eles iam assim. Res-
pondeu-me que não sabia de nada, nem ele, nem os outros; mas que evi-
7- Et pendant quelquesi11stants
je m'obstinaià vouloir comprendrece mystere; dentemente iam a alguma parte, pois eram impelidos por uma necessidade
mais bientôt l'irrésistibleIndifférencesabattit sur moi, et j'en Jus plus lourde- invencível de caminhar.
ment accabléqu'ils ne l'étaienteux-mêmespar leursécrasantesChimeres.
5. Curioso: nenhum deles se mostrava irritado contra o animal feroz que tra-
1.Sob um grande céu de cinza, numa vasta planície poeirenta, sem estradas, zia pendurado ao pescoço e agarrado às costas; dir-se-ia considerá-lo parte
sem mato, sem espinho, sem urtiga, encontrei vários homens, curvados, a integrante de si mesmo. Nenhuma daquelas fisionomias extenuadas e graves
marchar. dava indício do mínimo desespero; sob a tediosa cúpula do céu, com os pés
2.Cada um deles levava às costas uma enorme Quimera, pesada como um mergulhados na poeira de um solo tão desolado como o céu, eles marchavam
sacó de farinha ou de carvão, ou como a mochila de um infante romano. com o ar resignado daqueles que são condenados a esperar eternamente.

3. Mas, a monstruosa besta não era um peso inerte. Ao contrário, envolvia e 6. E o cortejo passou ao meu lado e entranhou-se nos longes do horizonte, no
oprimia o homem com os músculos elásticos e potentes. Cravava as garras ponto em que a redonda superfície do planeta se furta à curiosidade do olhar
enormes no peito de sua montaria. E a cabeça fabulosa dominava a fronte humano.
do homem, como os elmos medonhos com que os guerreiros antigos preten- 7. E durante alguns momentos obstinei-me em querer compreender esse
diam aumentar o terror do inimigo. mistério; mas logo a irresistível Indiferença caiu sobre mim, e eu fiquei mais
4. Interpelei um daqueles homens e perguntei-lhe aonde iam. Respondeu-me rudemente abatido do que o estavam aqueles homens pelas suas esmagadoras
que não sabia, nem ele, nem os outros. Evidentemente, porém, acrescen- Quimeras.
tou, iam a alguma parte, pois eram levados por uma incrível necessidade de
marchar. Desde a escolha do título do poema, uma diferença de postura entre
os tradutores se deixa perceber. Oliveira tende quase sempre à solu-
5. Coisa curiosa: nenhum dos viajantes parecia irritado com a fera que
levava suspensa ao pescoço e colada às costas; dir-se-ia que a considerava ção mais coloquial, privilegiando estruturas e expressões imediatamente
como fazendo parte de si mesmo. Nenhum daqueles rostos fatigados e sérios familiares ao leitor brasileiro - às vezes até independentemente da preci-
demonstrava o menor desespero. Sob a cúpula melancólica do céu, pés mer- são semântica, como veremos. Já Aurélio, ao contrário, não teme o artifí-
gulhados na areia de um chão tão desolado quanto o céu, caminhavam com a
cio, seja, como parece ser o caso aqui, para restituir certas construções ou
fisionomia resignada dos que estão condenados a esperar sempre.

72 73
expressões francesas, seja, como veremos, para privilegiar um certo padrão seguinte do peso da Quimera ao de um saco de farinha ou de carvão, ou
culto da língua portuguesa escrita, muitas vezes em detrimento da colo- ao equipamento de um soldado em campanha, reforça esse aspecto físico
quialidade que caracteriza o projeto baudelairiano. 12
e quotidiano da carga. Essa leitura foi reforçada pelos tradutores posterio-
Essa diferença de perspectiva já começa a se aprofundar e a se esclare- res: De Bruchard e Almeida escolhem um verbo ainda mais físico ("carre-
cer na descrição da paisagem que abre o poema. Se Aurélio retoma a estra- gavà'), ao passo que Maurity recupera o "levavà' de Oliveira. Se Motta, por
nha formulação de Oliveira para o "cielgris" ("céu de cinzà') - nas tradu- sua vez, mantém o "trazià' de Aurélio, ela muda a preposição ("trazia nas
ções posteriores teremos a alternância entre "céu cinzà' e "céu acinzentado' costas") e também contribui para um sentido mais concreto da imagem. E
-, ele não cede às escolhas mais brasileiras do primeiro tradutor: "mato" e para dar um exemplo de tradução que parece se querer mais "poéticà' que
"espinho' para "gazon"e "chardon':Nosso grande _lexicólogodecide-se por a de Aurélio, citemos a de Lins, que escreve: "Cada um deles no dorso por-
"relvà' e "cardo': que, é verdade, restituem o original com maior precisão tava uma enorme Quimera:'
semântica, mas não sem provocar no leitor brasileiro uma impressão mais A tendência oposta de Aurélio e Oliveira quanto ~ esse aspecto já
.solene que os termos originais num leitor francês. E no final do parágrafo, podia, aliás, ser verificada a partir de uma outra escolha ainda no primeiro
há uma outra escolha de Oliveira retomada por Aurélio que me parece parágrafo. Se o primeiro não hesita, com toda legitimidade, a traduzir "che-
infeliz: "marchar" para o "marcher"do francês, que acaba pondo a ênfase mins" por "caminhos': a decisão do segundo pelo termo "estradas': subs-
num certo automatismo do grupo, concebido aos olhos do leitor como um tantivo menos dado a simbolismos, também já anuncia sua opção por uma
exército, quando a perspectiva de Baudelaire tende a remeter desde o título revelação progressiva da dimensão alegórica do poema, opção que certa-
à experiência de "cada um': Aurélio chega a retomar o verbo ao final do mente não deixa de se querer fiel ao texto baudelairiano.
quinto parágrafo, quando Baudelaire usa "cheminer".Não por acaso, as tra- Ainda mais exemplar do estilo "elegante" de Aurélio é a inversão entre
duções posteriores tenderão a utilizar "andar" ou "caminhar': o sujeito e o verbo ("Trazia cada um deles às costas uma enorme Quimerà:
No início do segundo parágrafo, já se pode perceber como sistemático em vez de "Cada um deles trazia às costas uma enorme Quimerà') que pro-
esse movimento de Aurélio rumo a um rebuscamento da frase nos planos põe para o segundo parágrafo em sua edição revista de 1976. Além de fal-
semântico e sintático que nem sempre contribui para uma leitura rigorosa sear o tom absolutamente prosaico de Baudelaire, o tradutor tira o foco da
do original. Comecemos por um exemplo da interferência semântica que retomada enfática, em desenvolvimento, do título do poema, conservada
revela certa tendência de seu trabalho à abstração. Em sua primeira tradu- por todos os outros tradutores.
ção, de 1947, ele substitui o "levavà' com que Oliveira restituía o "portait'' Por outro lado, ao optar, no terceiro parágrafo, por "monstruoso ani-
do original por "trazià: que antecipa, talvez, sutilmente a perspectiva mais mal" em vez da "monstruosa bestà' de Oliveira (escolha esta que também
abstrata e alegórica do peso em questão, que começará a ser explicitada será retomada pela maioria dos tradutores posteriores, à exceção de Motta,
e aprofundada no parágrafo seguinte. Pois quando se diz que se "traz" que adere a "animal"), Aurélio mostra maior precisão e mais intimidade
alguma coisa, subentende-se o lugar de onde se fala como destinação, e que com a língua francesa, já que o substantivo "bête"do original implica maior
aquilo que se traz fica sempre conosco. Já o "levar': ao contrário, pressu- familiaridade e mais ambiguidade para um leitor francês do que, para o
põe inexoravelmente o caminho por se fazer, mas também a possibilidade leitor brasileiro, o etimologicamente equivalente "bestà: em que parece
de se desembaraçar do peso que se leva. A comparnção prosaica da frase predominar uma conotação de violência que não favorece a atmosfera de
inconsciência que se inscreve no poema.
12 De todo modo, é preciso dizer que Aurélio não é dado a estrangeirismos e privilegia essa Na sequência, o tradutor continua a trabalhar no sentido de conferir
segunda via, a da norma culta e elegante, como veremos ao longo deste ensaio, Inclusive maior sofisticação à sintaxe do poema, mascarando, assim, a sintaxe sim-
Aurélio não vai perseverar nessa escolha para o título do poema, e desde a edição de 1950,
muda para "Cada um com Sua Quimera''. ples e direta do original. Oliveira, aparentemente pretendendo acentuar

74 75
esse aspecto, havia mudado a pontuação, substituindo os três pontos e vír- Tous ces visagesfatigués et sérieux ne témoignaientd'aucun désespoir;sous la
gulas por pontos, sublinhando certa tendência à parataxe. Comparemos coupolespleenétiquedu ciel, lespieds plongés dans la poussiered'un sol aussi
désoléque ce ciel,ils cheminaientavecla physionomierésignéede ceux qui sont
mais um pouco os dois trechos: condamnésà espérertoujours.
au contraire,elle enveloppaitet opprimait l'homme de ses musclesélastiqueset Nenhum daqueles rostos fatigados e sérios demonstrava o menor desespero.
puissants;elles'agrafait avee ses deux vastesgriffesà la poitrine de sa monture; Sob a cúpula melancólica do céu, pés mergulhados na areia de um chão tão
et sa têtefabuleuse surmontait lefront de l'homme... desolado quanto o céu, caminhavam com a fisionomia resignada dos que
Ao contrário, envolvia e oprimia o homem com os músculos ~lásticos e estão condenados a esperar sempre.
potentes. Cravava as garras enormes no peito de sua montaria. E a cabeça Nenhuma daquelas fisionomias extenuadas e graves dava indício do mínimo
fabulosa dominava a fronte do homem ... desespero; sob a tediosa cúpula do céu, com os pés mergulhados na poeira
ao contrário, envolvia o homem, e oprimia-o, com seus músculos elásticos de um solo tão desolado como o céu, eles marchavam com o ar resignado
e possantes; segurava-se-lhe ao peito com suas duas garras imensas; e sua daqueles que são condenados a esperar eternamente.
cabeça fabulosa elevava-se por sobre a cabeça do homem ...
Destaco aqui dois pontos. Primeiramente, os adjetivos ''fatigués" e
Se, como vemos, Aurélio restabelece a pontuação do original, o uso dos "sérieux': restituídos por Oliveira pelos etimologicamente equivalentes
pronomes que propõe é típico do português escrito ("envolvia o homem, e "fatigados" e "sérios': transformam-se, com Aurélio, nos mais desmedi-
oprimia-o': "segurava-se-lhe ào peito), o que Oliveira evita ("envolvia e opri- dos "extenuadas" e "graves" - qualificando aqui, diga-se ainda, "fisiono-
mia o homem': "Cravava[ ..:] no peito de sua montarià'). Este também não mias': mais abstrato do que "rostos': bem escolhido pelo primeiro tradu-
abusa tanto das restituições sistemáticas dos possessivos (é, aliás, o único tor para "visages':E, mantendo a proporção de intensificação dramática,
dos tradutores a não fazê-lo), que são muito mais frequentes no francês do o "toujours" que termina o parágrafo se converte em "eternamente': Em
que no português, passando ali mais despercebidos - até porque são sempre segundo lugar, chamo atenção para a tradução do adjetivo "spleenétique':
monossilábicos e empregados como determinantes necessariamente sem os que teve que esperar De Bruchard em 1988 para ser traduzido por "splee-
artigos, o que não é o caso do português. Além de tornar o texto de Oliveira néticà' (Morta, em 1995, propôs a variante "spleenáticà'). "Melancólicà' ou
mais ágil - e nesse sentido mais fiel ao de Baudelaire - que o de Aurélio, o "tediosà: escolhidos pelos primeiros tradutores, são termos que têm tam-
uso do artigo em lugar do possessivo contribui para manter à atmosfera bém fortuna baudelariana ("mélancolique"ou "ennnuyeux"são termos que
mais ambígua de indiferenciação entre o homem e sua Quimera, que o uso aparecem ao longo de toda a obra do poeta ...). Mas por que não usar o
reiterado do possessivo por este último de certa forma desfaz. adjetivo de que nosso baudelairiano cronista João do Rio já havia se ser-
Note-se uma vez mais essa tendência à elevação solene de Aurélio com vido em 1908 para referir-se à "alma encantadora das ruas"? 13
o uso do dramático "agravar" para "ajouter" - Oliveira propõe simples- Nos últimos dois parágrafos do poema, não me parece haver diferen-
mente "aumentar" - e em seu por vezes precioso exercício de revisão das ças significativas entre os dois tradutores. Na última frase, apenas, preva-
próprias escolhas, elas também eventualmente preciosas: o "elevava-se por lece uma vez mais a tendência de Aurélio a uma construção mais "elegante':
sobre a cabeça do homem, como um desses horríveis capacetes" da Folhado com o emprego do pronome oblíquo "o': Aqui, contudo, a sobriedade de
Norte de 1947 seria transformado no "sobrelevava a cabeça do homem, tal
um desses horríveis capacetes" da edição revista da Nova Fronteira de 1976. 13 "Oh! sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres,
delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que
No quinto parágrafo, encontramos uma vez mais esse efeito de drama- bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas,
tização semântica realizado por Aurélio: spleenéticas,snobs,ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam sem pinga de
sangue:' Cf. <http://objdigital.bn.br/ Acervo_Digital/livros_eletronicos/alma_encantadora_
das_ruas.pdf>.

77
1. - Olá! Você por aqui, meu caro! Num lugar mal frequentado! Você, o
Oliveira - que elimina o advérbio "lourdement"e atenua o adjetivo "écra- bebedor de quintessências! Você, o comedor de ambrosia! Palavra, que me
santes': ao traduzi-lo por "pesadas" - não condiz com a eloquência com surpreende!
que o próprio Baudelaire termina seu poema, acompanhada aqui, certa- 2. - Meu caro, você conhece o meu pavor dos cavalos e dos veículos. Ainda
mente com gosto, por Aurélio (que, na edição de 1950, aproveitaria ainda há pouco, ao atravessar a avenida, muito apressado, escorreguei na lama, esse
o "oprimido" escolhido por Oliveira e retomado por praticamente todas as caos movediço onde a morte aparece de todos os lados. Minha auréola, num
movimento brusco, saiu-me da cabeça e foi parar no barro do macadame.
traduções posteriores):
Não tive coragem de apanhá-la. Achei menos desagradável perder .minhas
et j'enJus plus lourdement accabléqu'ils ne l'étaienteux-mêmespar leurs écra- insígnias do que quebrar os ossos. Afinal de contas, pensei, há males que são
santes Chimeres. para bem. Posso, agora, andar incógnito, praticar atos baixos e cair na devas-
sidão, como os simples mortais. E eis-me aqui, igual a você, como está vendo!
e eu me senti mais oprimido do que eles com as pesadas Quimeras. 3. - Mas deveria ao menos anunciar a perda da auréola, ou fazê-la reclamar
e eu fiquei mais rudemente abatido do que o estavam aqueles homens pelas pelo comissário.
suas esmagadoras Quimeras. 4. - Isso, não! Estou bem aqui. Só você me reconhece. Além disso, ando
farto de dignidade. E depois acho que não faltará um poeta para apanhá-la e
cobrir-se com ela. Fazer alguém feliz, que prazer! Sobretudo um feliz que me
* fará rir! Pense no X ou no Z! Hein? Vai ser um gozo!

Para terminar, como anunciado, um rápido comentário sobre as tra- 1. - Mas o quê? Você por aqui, meu caro? Você em tão mau lugar! Você, o

duções do célebre Perte d'auréole(a versão de Aurélio é a da edição da José bebedor de quinta-essência! Você, o comedor de ambrosia! Francamente, é
coisa para surpreender.
Olympio, de 1950 ):
2. - Meu caro, você bem conhece o meu pavor dos cavalos e das carruagens.
1. -Eh! quoi! vous ici, mon cher?Vous, dans un mauvais lieu! vous, le buveur Ainda há pouco, quando atravessava a toda a pressa o bulevar, saltitando na
de quintessences!vous, le mangeur d'ambroisie!En vérité, il y a là de quoi me lama, através desse caos movediço onde a morte surge a galope de todos os
surprendre. lados a um só tempo, minha auréola, num movimento súbito, escorregou-me
2. - Mon cher,vous connaissezma terreur des chevaux et des voitures. Tout à da cabeça, caindo no lodo do macadame. Não tive coragem de apanhá-la.
l'heure, comme je traversaisle boulevard,en grande hâte, et que je sautillais Julguei menos desagradável perder as minhas insígnias do que ter os ossos
dans la boue, à travers ce chaos mouvant ou la mort arrive au galop de tous rebentados. E depois, disse com os meus botões, para alguma coisa serve a
les côtés à lafois, mon auréole,dans un mouvement brusque, a glissé de ma desgraça. Agora posso passear incógnito, praticar ações vis, e entregar-me à
tête dans la fange du macadam. Je n'aipas eu le couragede la ramasser.J'ai crápula, como os simples mortais. E aqui estou, inteiramente igual a vocês,
jugé moins désagréablede perdre mes insignesque de mefaire rompreles os. Et como estão vendo!
puis, me suis-je dit, à que/que chose malheur est bon. Jepuis maintenant me 3. - Você deveria ao menos pôr um anúncio, ou comunicar a perda ao
promener incognito,faire des actions basses,et me livrer à la crapule,comme comissário.
lessimples mortels.Et me vaiei, tout semblableà vous, comme vous voyez! 4. - Ah! Não. Estou bem assim. Somente vocês me reconheceram. Aliás a
3. - Vousdevriez au moinsfaire affichercette auréole,ou lafaire réclamerpar dignidade me entedia. Depois, alegra-me pensar que talvez algum mau poeta
le commissaire. encontre a auréola e se adorne com ela impudentemente. Fazer alguém feliz,
4. - Ma foi! non. Je me trouve bien ici. Vous seu/, vous m'avezreconnu. D'ail-
que prazer! e sobretudo um feliz que me fará rir! Pensem no X, ou no Z! Xi!
leurs la dignité m'ennuie.Ensuiteje pense avecjoie que que/que mauvaispoete como será engraçado!
la ramassera et s'en coiffera impudemment. Paire un heureux, quellejouis-
sance!et surtout un heureux qui mefera rireiPensezà X, ou à Z! Hein! comme Aqui vemos os dois tradutores perseverando em suas estratégias: Oli-
ce sera drôle! veira sempre buscando um equivalente mais prosaico e Aurélio sempre
mais próximo do francês. Vejamos algumas das soluções:

79
BAUDELAIRE OLIVEIRA
Aliás, se atentarmos para o fragmento de Fuséesescrito ao menos três anos
AURÉLIO
antes,' 4 e que constitui o germe do poema, constatamos que seu tom é mais
mauvais lieu lugar mal frequentado mau lugar seco, e talvez mais afeito ao tom da tradução de Oliveira, mas também que
é destituído da ironia que se configuraria e prevaleceria no texto reescrito
boulevard avenida bulevar
por Baudelaire para o poema em prosa. Eis a primeira versão:
la mort arrive au galop a morte aparece a morte surge a galope
Commeje traversaisle Boulevardet commeje mettais un peu de précipitation
à éviter les voitures, mon auréoles'estdétachéeet est tombée dans la boue du
a glisséde ma tête dans saiu-me da cabeça e escorregou-me da
foi parar no barro do cabeça, caindo no lodo macadam. J'eus heureusement le temps de la ramasser;mais cette idée mal-
lafange du macadam
heureuse se glissa, un instant apres, dans mon esprit, que c'étaitun mauvais
macadame do macadame
présage;et des lors l'idéen'aplus voulu me lâcher;ellene m'alaisséaucun repas
à quelque chosemal- há males que são para para alguma coisa serve de toute lajournée. (BAUDELAIRE, 1975, I, p. 659) 15
heur est bon bem a desgraça
Aqui a "infelicidade" da "ideià: que se oferece como um "mau pres-
me promener incognito, andar incógnito, prati- passear incógnito, pra - ságio" para o poeta, se opõe ao desfecho pleno de "gozo" do poema do
faire des actions basses, car atos baixos e cair na ticar ações vis, e entre-
Spleen, traindo ainda o "lírico de auréolà: segundo os termos de Benja-
et me livrerà la crapule devassidão gar-me à crápula
min, que logo se tornaria "antiquado para Baudelaire" (BENJAMIN,1989,
D'ailleursla dignité Além disso, ando farto Aliás a dignidade me p. 143).16 Na tradução de "Perte d'auréole"por Aurélio, um certo contraste
m'ennuie de dignidade entedia
' entre, de um lado, um vocabulário um pouco menos quotidiano e uma
sintaxe um pouco mais construída, e, de outro, o desejo de uma poesia
E uma vez mais Oliveira altera a pontuação, buscando um ritmo mais que viesse a "descer na vidà: 17 faz sentir ao leitor, talvez, até com maior
ágil e mais coloquial próprio ao português brasileiro, naturalmente menos evidência que o próprio original, "o preço [a] pagar para adquirir a sensa-
dado às subordinadas que o francês: ção do moderno': e que Benjamin definiria como a "desintegração da aura
Toutà l'heure,commeje traversaisle boulevard,en grande hâte, et queje sautil- na vivência do choque" (BENJAMIN,1989, p. 145).
lais dans la boue,à traversce chaosmouvant ou la mort arriveau galopde tous
les côtésà lafois, mon auréole,dans un mouvement brusque,a glisséde ma tête *
dans lafange du macadam.
Vemos, pois, ao compararmos a tradução mais rebuscada e mais pró-
Ainda há pouco, ao atravessar a avenida, muito apressado, escorreguei na
lama, esse caos movediço onde a morte aparece de todos os lados. Minha xima ao francês de Aurélio Buarque de Holanda com a tradução mais colo-
auréola, num movimento brusco, saiu-me da cabeça e foi parar no barro do quial de Paulo M. Oliveira - Aristides Lobo -, que não é necessariamente a
macadame.
14 Conforme assinala Claude Pichois em sua nota sobre Fusées(BAUDELAIRE, 1975, I, p. 1481).
Ainda há pouco, quando atravessavaa toda a pressa o bulevar, saltitando na
15 Aqui em minha tradução: "Quando atravessava o Bulevar, precipitando-me um pouco para
lama, através desse caos movediço onde a morte surge a galope de todos os
evitar os veículos, minha auréola se desprendeu e caiu na lama do macadame. Tive feliz-
lados a um só tempo, minha auréola, num movimento súbito, escorregou-me mente o tempo de apanhá-la; mas no instante seguinte insinuou-se em meu espírito a ideia
da cabeça, caindo no lodo do macadame. infeliz de que era um mau presságio; e desde então a ideia não me largou mais; ela não me
deixou nenhum repouso durante tocio o dia:'
Contudo, parece-me que, neste poema, as imagens mais coladas ao 16 A frase famosa de Benjamin é a seguinte: "O lírico de auréola tornou-se antiquado para Bau-
francês e a sintaxe mais rebuscada de Aurélio, em vez de contribuírem para delaire" (BENJAMIN, 1989, p. 143).
17 Pois como nos diz Baudelaire em seu artigo sobre Théodore de Banville, "o poeta sabe descer
elevar a "aurà' do poema, dão-lhe um tom precioso e acentuam-lhe a ironia.
na vidà' (BAUDELAIRE, 1976, II, p. 167).

80 81
tradição estrangeirizadora ou domesticadora, para usar os célebres termos
Mallarmétraduzindo Israfel,de Poe:
de Lawrence Venutti, que determina o valor de uma tradução. É fácil per-
ceber que as traduções do Spleen de Paris que se seguiram aproveitaram sobre três "erros"de tradução
aspectos das duas tendências.

ln Heaven a spirit doth dwell


"Whose heart-strings are a lutê';
None sing so wildlywell
As the angel Israfel,
And the giddy stars (so legends tel1),
Ceasing their hymns, attend the spell
Ofhis voice, all mute.

Tottering above
ln her highest noon,
Toe enamoured moon
Blushes with love,
While, to listen, the red levin
(With the rapid Pleiads, even,
Which were seven,)
Pauses in Heaven.

And they say (the starry choir


And the other listening things)
That Israfel's fire
Is owing to that lyre
By which he sits and sings -
Toe trembling living wire
Of those unusual strings.

But the skies that angel trod,


Where deep thoughts are a duty,
Where Love's a grown-up God,
Where'the Houri glances are
Imbued with all the beauty
Which we worship in a star.

82
Therefore, thou art not wrong, Les célestes extases d'en haut, certes, vont bien à tes brulantes mesures ; ta
Israfel, who despisest peine, ta joie, ta haine, ton amour, à la ferveur de ton luth - les étoiles peuvent
An unimpassioned song; être muettes.
To thee the laurels belong, Oui, le ciel est à toi, mais chez nous est un monde de douceurs et d'amer-
Best bard, because the wisest! tumes ; nos fleurs sont simplement - des fleurs ; et l'ombre de ta félicité par-
Merrily live, and long! faite est le sommeil de la nôtre.

Toe ecstasies above Si je pouvais habiter ou Israfel habite et que lui me filt, il se pourrait qu'il
With thy burning measui:es suit - ne chantât pas si étrangement bien une mélodie mortelle; tandis qu'une note
Thy grief, thy joy, thy hate, thy love, plus forte que celle-ci peut-être roulerait de ma lyre dans le Ciel. ("Israfel': p.
With the fervour of thy lute - 214-215)1
Well may the stars be mute!
Para falar dessa tradução de "Israfel" por Mallarmé, é preciso primeiro
Yes,Heaven is thine; but this destacar a importância da relação da poesia com a música para o poeta
Is a world of sweets and sours;
francês. Se a relação com a música sempre foi fundamental para a poesia,
Our flowers are merely - flowers,
And the shadow of thy perfect bliss se a música sempre foi intrínseca à fabricação e à dicção do verso, ela ganha
Is the sunshine of ours. um estatuto diferente no século XIX e, mais especificamente, com a obra de
Mallarmé, quando justamente, e talvez definitivamente, o verso, em "crise':
Ifl could dwell
tende a se "romper" 2 - ou melhor, a se "dissimular" - na prosa. ''Ainda que
Where Israfel
Hath dwelt, and he where I, o chamem de Prosà: escreve o poeta, é sempre dele, do "Versd: que se trata,
He might not sing so wildly well "se permanece alguma secreta busca de música, na reserva do Discursd'. 3
A mortal melody, A "crise de verso': nesse sentido, está longe de declarar o fim do verso.
While a bolder note than this might swell
From my lyre within the sky. ("Israfel': POE) O que ela faz é problematizar sua lógica ao problematizá-lo como unidade,
como lugar da identidade plena entre forma e sentido, de uma identidade
Dans le ciel habite un esprit "dont les fibres du cceur font un luth''. Nul ne acabada, estável, que seria eternizada pela forma fixa, e que prescindiria,
chante si étrangement bien - que l'ange Israfel, et les étoiles si irrésolues (au
para afirmar-se, de sua historicidade infinita. O verso em crise, ao contrá-
dire des légendes) cessant leurs hymnes, se prennent au charme de sa voix,
muettes toutes. rio, modula. a experiência não tanto do acabamento da forma quanto de
Vacillante et lointaine à sa plus haute heure, la lune énamourée rougit de . seu inacabamento, de sua "inquietude": "assiste-se': escreve Mallarmé em
passion; alors, pour écouter, la vermeille clarté ainsi que les rapides Pléiades,
elles- mêmes, toutes les sept, fait une pause dans les Cieux.
Ils disent (le cceur étoilé et tout ce qui écoute là) que la flamme d'Israfel doit à Quando me parecer relevante, restituirei ao longo do ensaio, em nota ou no corpo do texto,
cette lyre, avec quoi il siege et chante, le frémissement de vie qui se prolonge o texto original em francês das citações de Mallarmé. A tradução das citações é minha. No
caso das alusões à edição Plêiade (1945), colocarei entre parênteses apenas o nome do texto
sur ces cordes extraordinaires. original e o número da página.
Mais cet ange a foulé le firmament, ou de profondes pensées sont un devoir 2 "Le vás, je crois,avecrespectattendit que legéant qui l'identifiaità sa main tenaceetplusferme •
- ou l'Amour est un dieu dans sa force - ou les ceillades des houris possedent toujoursdeforgeron,vint à manquer;pour, /ui, se rompre." ("Crisede vers",p. 361)
toute la beauté que l'on adore dans une étoile. 3 "Tandisqu'ily avait, le langagerégna;nt,dabord à laccorderselonson origine,pour qu'un sens
augustese produisit : en le Vers,dispensateur,ordonnateurdu jeu des pages, maitre du livre.
Voilà pourquoi tu n'as pas tort, Israfel, que ne satisfait pas un chant impos- Visiblementsoit quapparaisseson intégralité,parmi lesmargeset du blanc;ou qu'il se dissimule,
sible ; à toi appartiennent les lauriers, ô Barde le meilleur, étant le plus sage ! nommez-le Prose, néanmoins ást lui si demeure quelque secrete poursuite de musique,
Vis joyeusement et longtemps ! et longtemps ! dans la réserve du Discours''. ("Quant au Livre",p. 375) Em outro momento, Mallarmé define
o verso livre como "enprose à coupeméditée''.(''LaMusique et lesLettres",p. 654)

85
"Crise de verso': "a uma inquietude do véu no templo com dobras significa- de véu e lucidez, o Verbo permanece, de temas, de meios, mais maciçamente
ligado à natureza/
tivas e um pouco seu rasgo':4
A partir de então, a "elocução" poética deve " [descer] na noite das Ou seja, Mallarmé vincula a tradição da arte lírica elocutória à natu-
sonoridades': 5 resistindo cada vez mais à sua acomodação à ordem figu- reza, que ele associa ao mundo da percepção positiva, a que, justamente,
rativa, visual (às "imagens" do poema, como se costuma dizer). Como diz ele se contrapõe. Parece-me que é por meio dessa "ação negativamente
Maurice Blanchot (BLANCHOT, 1997, p. 39), referindo-se a Mallarmé, "além criativa': a que sé refere Suzanne Bernard em seu Mallarmé et la musique
de as figuras estarem encurtadas, colocadas de viés, difusas, elas se sucedem (BERNARD, 1959, p. 39), que o "músico de palavras': tomado pelo "tédio
segundo um ritmo bastante rápido para que nenhuma deixe à realidade que com respeito às coisas [que se estabelecem] sólidas e preponderantesª,
ela circunscreve o tempo de se tornar presente para nós por seu intermédid: pode evocar "a noção de um objeto, escapante, que falta: 9 e que cabe ao
As palavras perdem, portanto, seu poder de remissão a uma suposta "rea- poema, "musicalmente': 10 sugerir:
lidade" concreta do mundo para oferecê-lo em seu "quase desparecimento
Surpreender habitualmente isso, marcá-lo, me atinge como uma obrigação
vibratórid: fazendo surgir o que o poeta chama de "noção pura: ou "ideia':6 de quem desencadeou o Infinito; cujo ritmo, por entre as teclas do teclado
Essa virtualidade volátil, fantasmática, sugestiva da linguagem ver- verbal, se oferece, como sob a interrogação de um dedilhado, ao emprego das
bal - "demasiado positiva'' como já dizia Baudelaire (BAUDELAIRE, 1968, palavras, aptas, quotidianas. 11
p. 512), em seu artigo sobre Wagner - aparece para Mallarmé exemplar-
A experiência poético-musical desse "isso': da "ideia'' mallarmeana,
mente na música, como se evidencia nesta passagem de seu texto de 1892,
talvez pudesse ser aproximada do que Jean-Luc Nancy define em seu belo
em homenagem a Théodore de Banville: 1

livro sobre a escuta como a experiência da "ressonância: da escuta como


Se recorro, em vista de um esclarecimento ou de generalizar, às funções da deriva ressonante, consonante ou dissonante, pouco importa, como deriva
Orquestra, diante da qual permaneceu candidamente, sabiamente fechado ressonante entre o registro sensível e o registro inteligível de apreensão
nosso músico de palavras [trata-se de Banville], observem que os instru-
mentos destacam, segundo um sortilégio fácil de surpreender, o cimo, por 7 "Si je recours, en vue d'un éclaircissementou de généraliser,aux fonctions de l'Orchestre,
assim ver, de naturais paisagens; evapora-as e restabelece-as, flutuantes, num devant leque/ resta candidement,savammentfermé notre musicien de mots, observezque les
estado superior [A música contrapõe-se, portanto, digo-o eu, à positividade instrumentsdétachent,selon un sortilegeaisé à surprendre,la cime,pour ainsi voir,de naturels
da percepção]. Eis que para exprimir a floresta dissolvida no verde hori- paysages;lesévaporeet lesrenoue,flottants,dans un état supérieur.Voiciqu'âexprimer laforêt,
fondue en le vert horizon crépusculaire,suffit tel accorddénué presque d'une réminiscencede
zonte crepuscular, basta tal acorde desprovido quase de uma reminiscência chasse;ou le pré, avec sa pastora/efluidité d'une apres-midiécoulée,se mire et fuit dans des
de caça; [...]. Uma linha, alguma vibração, sumárias, e tudo se indica. Con- rappelsde ruisseau. Une ligne, quelque vibration,sommaireset tout s'indique. Contrairement
trariamente à arte lírica, como ela foi, elocutória, em razão da necessidade, à l'artlyrique comme ilfut, élocutoire,en raison du besoin,strict, de signi.fication.- Quoiquy
estrita, de significação. Ainda que com ele confine uma supremacia, ou rasgo confineune suprématie,ou déchirementde voile et lucidité,le Verbereste,de sujets,de moyens,
plus massivementlié à la nature:'("Theodorede Banville",p. 522)
8 "En vue qu'une attirancesupérieurecomme d'un vide, nous avons droit,le tirant de nouspar de
l'ennuià l'égarddes chosessi elless'établissaientsolides et prépondérantes - éperdument les
4 "Qui accordeà cettefonction uneplace ou lapremiere,reconnait,là, lefait d'actualité:on assiste, détachejusqu'â s'enrempliret aussi les douer de resplendissement,à travers/'espacevacant, en
commefina/e d'un siecle,pas ainsi que cefut dans le dernier,à des bouleversements;mais, hors desfêtes à volontéet solitaires:'(''LaMusique et lesLettres",p. 647)
de laplacepublique, à une inquiétude du voile dans le temple avec desplis signi.ficatifset un
peu sa déchirure:'( "Crisede vers",p. 360) 9 "A legalde créer:la notion d'un objet, échappantquifait défaut:'("LaMusique et lesLettres",
p. 647)
5 "Pasque l'un ou l'autreélément ne secarte,avecavantage,vers une intégritéà part triomphant,
en tant que concertmuet s'il n'articuleet le poeme, énonciateur:de leurs communauté et 10 "Je dis: une fleur! et, hors de loubli ou ma voix relegueaucun contour,en tant que quelque
retrempe,éclairel'instrumentationjusqu'â levidencesous le voile, comme l'élocutiondescend chose d'autreque les calicessus, musicalement se leve, idée même et suave, l'absentede tous
au soir des sonorités."("Crisede vers",p. 365) bouquets:'("Crisede vers",p. 368)
6 "A quoi bon la merveillede transposerun fait de nature en sa presque disparition vibratoire 11 "Surprendrehabituellementcela,le marquer,mefrappe comme une obligationde qui déchaina
selon lejeu de la parole, cependant;si ce n'estpour qu'en émane, sans la gêne d'un proche ou l'Infini;dont le rythme, parmi les touchesdu clavierverbal,se rend, comme sous l'interrogation
concretrappel,la notion pure:' ("Crisede vers",p. 368) d'un doigté,à l'emploides mots, aptes,quotidiens."("LaMusique et lesLettres",p. 648)

86
da matéria sonora do mundo em sua relação com o sentido (NANCY, pela amplificação da exploração musical que expulsa, abole o objeto, trans-
2002, p. 50 ). formando-o em "creuxnéant musicien':em "oco Nada musical': para citar o
De todo modo, por meio dessas alusões a textos importantes do último poema Unedentelles'abolit,de 1887, aqui na tradução de Augusto de Campos
Mallarmé, como Crisede versoe A música e as letras,podemos perceber o (MALLARMÉ, 1991, p. 72-73). Não é à toa que Mallarmé dirá dois anos mais
quanto se tornou fundamental para ele pensar a linguagem poética em ter- tarde, ao mesmo Cazalis, que, "depois de ter encontrado o Nada, [encontrou]
mos de sua tensão com a prosa de um lado, e com a música, de outro. o Belo' 15; ou seja, o Belo ficaria desde então associado ao que talvez pudés-
Ora, é interessante pensar que essa relação começa a se colocar desde semos chamar de trabalho de desfiguração musical realizado pelo poema.
cedo em sua obra, e para isso, com efeito, foi decisiva a descoberta de Edgar Ora, essa associação entre a Beleza e a Música está no centro de "Isra-
Poe; que, em seu ensaio sobre o "Princípio poético: postulava a música fel': onde Poe antecipa de certo modo, material e tematicamente, uma das
como "o mais arrebatador dos meios poéticos" e definia o que chamava teses principais de seu "Princípio poético': segundo a qual "[s]omos mui-
de "Poesia de palavras" como a "Criação Rítmica da Belezà' (POE, 1999, p. tas vezes levados a sentir, com prazer calafriante, que de uma harpa ter-
81-82) 12• A primeira menção significativa da importância de Poe para Mal- rena irrompem notas que não podem deixar de ser familiares aos anjos"
larmé está numa carta a Henri Cazalis de 1864, em que o poeta envia ao (POE, 1999, p. 81). 16 Mallarmé, de fato, não se preocupa especialmente com
editor o poema "EA.zur':que ele espera "fiel às severas ideias que lhe foram o aspecto formal de suas traduções, a que ele se refere como "decalques
legadas por [seu] grande mestre Edgar Poe" (MALLARMÉ, 1995, p. 161).13 de um inimitável Poetà: em carta de 1864 (MALLARMÉ, 1995, p. 176).17
Nesse poema célebre, de forte tintura baudelairiana, Mallarmé tenta con- Particularmente no caso do poema em questão, se a tradução em prosa
ciliar a perspectiva do "efeito geral do poemà' (MALLARMÉ, 1995, p. 160) é elegante, ela em nada permite evocar os textos, em verso ou em prosa,
inspirada pelo poeta americano com a consideração do "lado estético': com de Mallarmé. Pois com frases em ordem direta e uma sintaxe bastante
a produção de um "reflexo da Belezà' (MALLARMÉ, 1995, p. 161), como ele simples, sua tradução de modo algum recusa a ordem figurativa proposta
próprio diz. Ele parte "do azul [que] tortura o impotente em geral" para no original. Neste, a voz do poeta desenha a imagem de uma chama musi-
"combinar, em uma justa harmonia, o elemento dramático, hostil à ideia da cal, "Israfel'sfire': "la flamme d'Israfel':que propicia ao bardo "the ecsta-
Poesia pura e subjetiva, com a serenidade e a calma de linhas necessárias à sies above': "les célestesextase d'en haut': ou seja, a própria experiência
Belezà' (MALLARMÉ, 1995, p. 161-162). do paraíso - "Heaven is thine': "le ciel est à toi" -, ainda que, se lhe fosse
O trabalho da dimensão musical do poema, na obra futura de Mal- dada, a ele poeta que celebra esse canto, a chance de habitar aquele céu,
larmé, virá justamente fazer pender a balança para o "lado estético' em ele talvez càntasse melhor do que Israfel; assim como Israfel talvez não
detrimento do "elemento dramático" cuja expressão ainda obseda e divide o cantasse tão bem quanto ele, o poeta, se estivesse aqui neste mundo de
poeta baudelairiano' 4 - no caso de "EA.zur",o ideal da eternidade, materiali- "sweetsand sours':"de douceurset d'amertumes':neste mundo repleto de
zado pelo azul do céu. Tratar-se-á, cada vez mais, de aniquilar esse elemento "doçuras e azedumes': que constituem o inevitável "elemento dramático"
de nossa existência ... Mas parece-nos evidente que o que importa aqui
12 "[... ] Music, the most entrancingof the Poeticmoods.. ."; "I would de.fine,in brief,the Poetryof
wordsas the Rhythmical Creationof Beauty:' ("ThePoeticPrincipie",POE, s/d)
13 É, aliás, também em 1864 que ele alude à experiência de traduzir Poe (MALLARMÉ, 1995, 15 "En vérité,je voyage,mais dans despays inconnus et si, pour fuir la réalitétorride,je me piais
p. 176). Algumas dessas traduções seriam publicadas em 1872, outras em 1876-1877. Mas a à évoquerdes imagesfroides,je te dirai queje suis depuis un mais dans lesplus purs glaciersde
edição completa dos poemas de Poe traduzidos por Mallarmé só aparece em 1888 ( cf. "Notes l'Esthétique- qu'apresavoir trouvé le Néant,j'ai trouvé le Beau, - et que tu nepeux t'imaginer
et variantes",p. 1524). dans quellesaltitudeslucidesje m'aventure:'(MALLARMÉ, 1995, p. 310)
14 Cf., por exemplo, o poema em prosa "LeCon.fitéorde l'artiste",em que Baudelaire dramatiza, 16 "We are often made tofeel, with a shiveringdelight,thatfrom an earthlyharp arestricken notes
justamente, a experiência de representação da beleza que assombra o artista. O poema ter- which cannot have been unfamiliar to the angels:'("ThePoeticPrincipie",POE, s/d)
mina assim: ''Eétudedu beau est un duel oit l'artistecrie defrayeur avant dêtre vaincu:' (BAU- 17 Em suas "Notessur lespoemes",publicadas ao fim do volume da Pléiade, Mallarmé, referin-
DELAIRE, 1975, 1, p. 279) do-se a um outro poema, fala no "calquestrict de notre version"(p. 240).

88
para Mallarmé é acompanhar o pensamento do poema de Poe, mais do para além dessas fronteiras, acima de tudo, que se impunha ao poeta .
que o próprio poema; o que vale realmente para ele é a intuição de que o enfrentar, agora musicalmente, na "noite das sonoridades". Muitos anos
poema não se faz com o "elemento dramático': com os sentimentos, com a mais tarde, depois de aludir, em Crisede verso,às novas práticas formais
sensibilidade que age sobre nós e nossa língua neste mundo, mas com seu de alguns experimentadores, seus contemporâneos, do verso livre, Mal-
silêncio, o silêncio ativo, o poema se faz com o silenciar desses sentimen- larmé observa a ampliação do campo do possível pela latência desmedida,
tos e dessa sensibilidade - e é por esse viés que a questão se radicalizaria heterodoxa, do ouvido e da língua:
para Mallarmé -, sobrepostos pelas "unusual strings':do instrumento, por O notável é que, pela primeira vez, no curso da história literária de algum
suas "cordas extraordinárias"se traduzirmos a tradução do poeta fran- povo, em concorrência com os grandes órgãos gerais e seculares, nos quais
cês. Cordas que impõem silêncio, mudez, às estrelas, "muette toutes':"all se exalta, segundo um latente teclado, a ortodoxia, qualquer um com seu
jogo e seu ouvido individuais pode compor para si um instrumento, desde
mutes':deste nosso mundo, onde as flores não passam de flores: "nosfleurs que o sopre, o roce ou bata com ciência; usá-lo à parte e dedicá-lo também
sont simplement - desfleurs': "ourflowers are - merely - flowers': Silêncio àLíngua. 18
imposto justamente pelo "fervor do alaúde" de Israfel, "laferveur de [son]
luth': "thefervour of [his]luth': Esse silêncio estranho - voltaremos a esse Afirmar o verso pela dicção musical a contrapelo de toda métrica
"estranho" daqui a pouco - e ressonante da música, que se faz compreen- pré-fixada, de toda forma fixa, eis o que realizaria Mallarmé em sua "prosa''
der mas que talvez não se faça ouvir na tradução de Mallarmé. dos últimos anos e no seu Coup de dés...
A tradução de Mallarmé é, portanto, bastante prosaica em seu ritmo e O segundo "erro" está na sétima e penúltima estrofe do poema. Ali
sintaxe, visando talvez, acima de tudo, como se vê por esses poucos exem- onde Poe escreve "Ourflowers are - merely - flowers,! And the shadow of
plos, a precisão na restituição do plano das imagens do "conteúdo" do thy perfect bliss/Is the sunshine of ours':Mallarmé traduz: "Nosfleurs sont
poema. Mas nesse sentido, poderíamos especular sobre três "erros" dessa simplement - desfleurs; et lombre de tafélicitéparfaite est le sommeil de la
tradução pouquíssimo mallarmeana de Mallarmé. nôtre': (Dessa vez, teria Mallarmé querido escrever "solei["?).Talvez por-
O primeiro deles está na quinta estrofe de Poe, onde o poeta francês que para o poeta francês o "brilho': o "sunshine"da "felicidade perfeita':
traduz "Therefore,thou art not wrong,!Israfel,who despisest/An unimpas- viria a estar, justamente, "à sombra'' do sentido, e não em sua exposição
sioned song;" por "Voilàpourquoi tu nas pas tort, Israfel,que ne satisfait à luz; esse brilho seria alcançado, justamente, a partir do "sono" de toda
pas un chant impossible': "Unimpassionedsong' torna-se "chant impos- excitação altiva, do sono dos "êxtases do alto" ("the ecstasiesabove")e das
sible". Talvez Mallarmé quisesse ter escrito "impassible"...Mas pouco "ardentes medidas" ("thy burning measures"),e talvez, mais do que isso, a
importa. Parece-nos que o que aparece aqui é o fato que o principal esco- partir do "sono" dos objetos, da dissolução de seus contornos sabidos, de
lho do poeta, a partir da própria experiência de ler Poe, deixava de ser a sua concretude, como no caso bem conhecido da própria flor tal como dita
tradução da paixão, deixava de ser, mais genericamente, a consideração de por Mallarmé, que não pode "ser simplesmente - uma flor":
"pensamentos profundos" como um "dever" ("deep thoughtsare a duty"), Digo: uma flor! e, para além do esquecimento a que minha voz relega todo
ou a veneração da beleza encarnada pelos astros ("all the beauty which we contorno, enquanto algo diferente dos cálices sabidos, musicalmente se
ergue, ideia própria e suave, a ausente de todos os buquês. 19
worshipin a star"), como diz Poe na estrofe anterior. O que Mallarmé pas-
saria a "desprezar': o que a ele jamais "satisfaria': não estava do lado, como
18 "Le remarquableest que,pour la premierefois, au coursde l'histoirelittérairedàucun peuple,
era o caso para Israfel, do "sem paixão': mas do lado do "impossível': cujas concurremmentaux grandesorguesgénéraleset séculaires,oit sexalte,dàpresun latente/avier,
fronteiras eram determinadas pela forma fixa, de um lado, e, de outro, l'orthodoxie,quiconqueavecsonjeu et son ouie individueissepeut composerun instrument,des
qu'ilsouffle,lefrôle oufrappe avecscience;en useràpart et le dédieraussià la Langue."("Crise
pela própria dimensão significante do poema, comprometida primordial- de vers",p. 363)
mente com a figuração paradisíaca da beleza celeste. Era o "impossível" 19 Cf. nota 10.

91
90
Assim, o que se "ergue'' "musicalmente" à escuta para Mallarmé, a Língua contra (a) língua: traduzindo Christian Prigent
"ideia própria e suave'' da "ausente de todos os buquês': não passa - e aqui
evocamos novamente A escutade Jean-Luc Nancy- da "remissão de uma
presença a outra coisa que não ela mesma, ou a uma ausência de coisa, a
remissão de um aqui a um alhures,de um dado a um dom, e sempre, de
algum modo, de alguma coisa a nada': e, continua Nancy, "isso se chama
[...] sentido" (NANCY, 2002, p. 50).
É por esse viés que queremos compreender o terceiro "erro" de tradu-
ção de Mallarmé, e que tem a ver com essa ressonância irredutível entre
os registros sensível e inteligível que, para Nancy, caracteriza toda escuta
em sua abertura ao sentido. Repetido na primeira e na última estrofe do Parafraseando Mallarmé dirigindo-se a Degas, na famosa anedota
poema, o "wildlywell"que adverbializa o canto de Israfel no poema de Poe contada por Valéry (VALÊRY, 1995, p. 67), eu começaria dizendo que, de
se torna em tradução "étrangementbien".Soar "estranhamente bem': Entre modo ainda mais evidente que no caso de um poema, "não é com ideias
uma língua e outra, entre o verbal e o musical, entre o som e o sentido, que se faz [uma tradução ]':1 "é com palavras': E que, acima de tudo, uma
entre o sensível e o inteligível, entre o estranho e o familiar, soar estranha- tradução se faz a partir de um conjunto acabado, previamente dado, e bem
mente bem ... Não seria esse o maior elogio que poderíamos fazer a uma concreto, de palavras - e tudo o que daí decorre, evidentemente, tudo o que
tradução? está ligado ao processo de enunciação, isto é, som, ritmo, pausas, silêncios
etc. A partir, portanto, de um conjunto que deve ser integralmente atra-
vessado e retomado em sua totalidade material. Pois se toda experiência
de leitura, ou de escuta, é naturalmente flutuante, segmentária e segmen-
tadora em relação à matéria verbal que a origina, e que ela evoca por uma
lembrança mais ou menos lacunar, se toda experiência de leitura, ou de
escuta, é, portanto, feita de esquecimentos, conscientes ou inconscientes,
a experiência da tradução, a seu turno, por sua própria natureza, lida com
uma rede de palavras preestabelecida sem que possamos ignorar qualquer
uma delas, cada palavra deve ser objeto de uma decisão mais ou menos
refletida no que diz respeito ao peso de sua presença no contexto geral da
rede. O que, bem entendido, não evita insucessos e deslizes de toda ordem,
conscientes ou inconscientes.
O tradutor deve, portanto, ler e restituir tudo em uma relação de
homologia, de equivalência, de transferência, de correspondência semân-
tica ou literal- pouco importa por ora a técnica, a tática, a posição, a estra-
tégia do tradutor. Inclusive o que lhe aparece como ilegível, que deve ser
forçosamente lido como tal - âinda que, lido como ilegível, ele já não o

1 Aqui Mallarmé teria dito "versos''. Quando a referência for a edições francesas, a tradução
das citações é minha.

92 93
seja mais tanto, e o tradutor acabe por forçar-lhe um lugar de legibilidade da Bretanhà' ou "entrar na matérià: ou ainda "índice de matérias" [por uma
no interior da rede textual. De todo modo, o tradutor não se pode dar ao espécie de acaso objetivo,poderíamos tomar essa referênciaà Bretanha como
luxo de pular o ilegível como um leitor comum. Condenado a produzir uma alusão a nossa "entrada na matérià' do bretão que é Prigent]. Aquele
que, nesse sentido, toca em sua matéria, encontra facilmente as palavras para
uma alquimia de um verbo forjado por um outro, o tradutor deve pôr em
dizê-lo. Ali onde termina a linguagem não é o indizível que começa, mas a
evidência os elementos da rede em questão sem por isso introduzir algo de matéria da língua. Quem nunca atingiu, como em um sonho, essa substância
novo ou deixar algo de fora. Tarefa impossível, como todos sabemos, mas lenhosa da língua, que os antigos chamavam silva,permanece prisioneiro de
que, mais do que qualquer outra, talvez, permite experimentar, o próprio suas representaçõesmesmo quando se cala. (AGAMBEN, 1998, p. 19)
Christian Prigent o diz, "a verdade da operação poéticà' (PRIGENT, 2004,
Retomemos, pois, rapidamente, essa especulação sobre "a matéria da
p. 165). Pois o texto que experimentamos como poético de fato é aquele que
línguà' a partir de alguns exemplos concretos de meu esforço de atingir
se apresenta a nós no modo tautológico, redobrando-se incessantemente
em nossa língua a "silvà' Prigent, tentando não "permanecer [demasiada-
sobre si mesmo, sobre a materialidade que o constitui, aquele que parece
mente] prisioneiro de suas representações" - se é que isso é possível.
não poder dizer o que parece dizer de outra maneira que não sob a forma
como o diz. Trata-se, portanto, de um texto, no limite, intraduzível.
Por outro lado, porém, para aquele que traduz, e que o faz porque, por *
uma razão qualquer, circula e lê entre pelo menos duas línguas, a própria O texto intitulado Eécritureça crispe le mou ("A. escrita encrespa os
experiência de apreender uma experiência de sentido como intraduzível bofes': tradução que proponho e que discutirei a seguir) apareceu primei-
está ligada a um processo de, tradução que já está em curso, paralelamente ramente na revista TXT, em 1988 (TXT, 1995), antes de ser retomado no
a toda leitura que possa fazer dele, processo ao qual o dito original parece romance Commencement [Começo],de 1989. Depois reapareceria nova-
resistir, justamente. Só se pode dizer que é "intraduzível" aquele texto que mente como fragmento autônomo, em 1997, junto a outros textos, acom-
já se oferece em rumor, em esboço de tradução. Só é intraduzível aquela panhado de CD gravado pelo escritor, numa antologia de textos intitulada
experiência de leitura que recusa as traduções que não cessam de assom- justamente E écritureça crispele mou. O trecho citado na quarta capa do
brá-la. Só é intraduzível aquele texto que não cessa de se traduzir. romance resume o essencial do movimento que é retomado ao longo da
Aliás, não é por acaso que Prigent associa o impossível da tradução narrativa, e o texto que comentarei não é exceção:
ao impossível da linguagem, que constitui, no limite, o que ele chama de
"o desafio específico" da poesia: "simbolizar o real enquanto impossível de Aquele que fala trata de uma dificuldade cômica de se livrar da própria car-
caça, de riascer,de falar, de entrar a cada dia na vida de ação, de conversação,
ser simbolizado" (PRIGENT, 2004, p. 165). Para dizer o essencial sobre essas
de profissão.Ele não expõe as fatias da sua vida mas refaz em línguas sua vida
relações complicadas, instáveis, entre a experiência de leitura e a experiên- de não-vida e sua vida de envides [...]. É feito pra muscular a língua: esfo-
cia da tradução pela qual ela se encontra sempre já assombrada - ainda que lando fôlegos, contorções rítmicas dos ~ítios silábicos, rolamento das frases
apenas em germe, latente, ao menos para aquele que se encontra entre duas na deflação das cenas varridas, exercíciospra começar, nascer e dizer: valeu,
eu vivo, escrevo,e tome descarrego! 2

línguas -, proponho uma pequena analogia com o que diz Giorgio Agam-
ben sobre as relações entre a "experiêncià' e a "matéria da línguà' em uma
2 Quàndo me parecer relevante, restituirei ao longo do ensaio, em nota ou no corpo do texto, o
passagem de seu Ideia da prosa: texto original em francês das citações de Prigent. No caso das obras do poeta, colocarei entre
parênteses apenas o ano de publicação da edição citada e o número da página. "Celui qui
A experiência decisiva que pretendemos ser tão difícil de contar para aquele parle traite d'une difficultécomiqueà se dépêtrerde son propre tas, à nattre, à parler,à entrer
que a viveu não é nem mesmo uma experiência.Ela não é nada além do ponto chaquematin dans la vie d'action,de conversationet de profession.II n'exposepas les tranches
em que se tocam os limites da linguagem. Mas o que é então atingido não é desavie mais refaiten Zanguessa vie de non-vie et sa vie d'envies[... ]. C'estfait pour se muscler
manifestamente uma coisa tão insólita e tão terrível que as palavras nos falta- la Zangue: bousculadesdes sou.ffles,contorsionsrythmiquesdes sitessyllabiques,roulementdes
riam para descrevê-la:é, antes, a matéria, no sentido em que dizemos "matéria phrasessur la déflationdes scenesravagées,exercicespour commencer,naitre et dire : merci,je
vis,j'êcris,congéà lafolie!" (1989, quarta capa)

94 95
Reconstituo rapidamente o contexto da passagem em questão, já me em sua linha rítmica, entre uma referencialidade que pende inevitavel-
servindo de alguns fragmentos de minha tradução para o português, que mente ao simulacro, e uma autorreferencialidade opaca, ecolálica, se pode-
comentarei um pouco adiante. Trata-se do relato de um despertar, quando, mos dizer assim. Como assinala Prigent sinteticamente em texto sobre o
à saída do leito, "palavras': como restos noturnos, "bavam da bocà' 3 do que ele chama de "a voz do escrito":
Narrador - especialmente o refrão que dá título ao fragmento ("a gente [A voz do escrito] visa antes a levar ao confronto língua (sentido) e sono-
quer sempre tudo mole mas a escrita encrespa os bofes") - antes que a rea- ridade. Ela faz forma da dificuldade desse confronto ao propor um laço
lidade comece a assediá-lo por meio de uma "voz de esposadà' que solicita desajeitado, instável [malaisé]entre generalidade semântica (um texto que
faz sentido compartilhável) e particularidade sonora (um fraseado singular-
sua presença. É, pois, uma espécie de monólogo interior onde está em jogo
mente estilizado). (2011,p. 11)
a dificuldade de "entrar nas frases': de entrar, portanto, na língua. A coisa
passa o tempo todo pelo corpo do narrador, por um corpo que desperta, Como, então, fazer escutar em nossa língua portuguesa o modo
por assim dizer, antes dele próprio, assim como seus órgãos, seu humor, seu como a voz Prigent enuncia em francês uma tal dificuldade? Para falar
mau humor, que também o pressionam: "que [lhe] encrespam em verbo os disso, proponho uma discussão de alguns problemas pontuais de tradução
bofes". O despertar se dramatiza assim na tensão entre esse "verbo'' imi- desse texto, mas que me parecem exemplares da dificuldade de traduzir
nente que não chega e esses "bofes estressados': entre a demanda dura a escrita crispante de Prigent, esta escrita que opera por uma espécie de
de sentido encarnada pela voz de mulher ("Que mosca te picou, oh, cê montagem de molambos de língua, de palavras-molambos (Prigent fala
pirou?") e a moleza eriçada das sensações mudas, sua deformidade: ("Eu: em "lambeaux de Zangue':em "mots-lambeaux':retomarei a expressão no
mudo. Pico na almofada. Quieto no meu canto:'). comentário sobre a tradução). Trata-se, pois, desses farrapos de língua que,
Não irei mais longe. O despertar não cessará de não se realizar, na "bavandd' da noite que nos cerca por toda parte, por fora e por dentro, nos
exposição do mal-estar físico, da irritação, da amargura, da imprecação, "encrespam os bofes':
da coprolalia, da relação com o sexo... E de fato ele nunca se realizará ple- Cito a seguir um fragmento um pouco mais longo do texto e sua tra-
namente. Ao menos se esperarmos que um processo de despertar coin- dução, antes de apresentar algumas das soluções propostas, sempre falhas e
cida com uma adequação progressiva da língua à realidade, que ela viria precárias, isto é certo, mas que mostram um pouco as decisões complexas
de algum modo expressar, ou ao mundo, que ela viria de algum modo de leitura e de transposição exigidas do tradutor.
nomear. Mas isso de fato não acontece. I:ÉCRITURE ÇA CRISPE
Escutamos ali, em suma, o pôr em cena ou o pôr em voz da dificul- LEMOU
dade de chegar ao presente, da negatividade que caracteriza essa experiên-
Autre matin maispas l'endemainmême jour peu apres:on a beau vouloirfaire
cia. Mas ao pôr em cena ou em voz a dificuldade de seu próprio despertar, doux lecriture ça crispe le mou. Ces mots de vanité baverent de ma bouche
a escrita de Prigent nos torna sensíveis a este movimento paradoxal, alter- cetait un lambeauamer de la nuitje chus debout du lit l'airméchant.Sitôt lecho
nante, de intensificação e de diluição da experiência sensível do mundo émit d'une voix depousée:questa àfuliginer comme ça?Tu t'espas du pied qu'il
empreendido pela língua, esta sempre já desperta, respondendo à solicita- fallut levé? T'as mal surgé de la surdité? T'as des fourmis dans ton os mort?
Ouc'estl'tétanos?Edémon constipéd'l'analqui t'rendpas gentil oggi?Ton cer-
ção de sentido justamente pela resistência que ela lhe opõe, ao sentido, de veau reptilienqui cracheson venin?Tu vaspas nous r'faireun coupgenreparler
maneira intermitente. Pois em resposta a esta demanda massiva de sentido tordu rutactionsen plaques?Paisvoir si t'asla Zanguechargée!T'asbien digéré?
de nossa era tecnocomunicacional, que exige incessantemente o real em pas? Qui qu a bloqué ton doux babil?T'aspris
C'estquoi la pilule que t'avalise~
tempo real, o que desperta em Prigent é a própria língua, sempre hesitante, un coup de vide?- Ces questionnementsramonent mes tubes, ça démange un
peu mais que rétorcouer?- je fais quefuribonder quia quia quia autrement dit
je restecoij'ai rien à répondreà ça et ça ça me restelàje tourne àfond en rond
3 Refiro desde já passagens do fragmento traduzido, que citarei integralmente mais adiante,
dans cette crispation.Voicimoi, jourse dans !'espacecarrémon tas core trépidé
em português e em francês.

97
A ESCRITA ENCRESPA
du bouillon d'ou il sàttendait pas. Cést tres dur déntrer si tôt dans lesphrases!
OS BOFES
On a le mou stressé comme tout! Ça boule, Zango,ça vous descend léstomac
dans lesgodasses,rien passe! Forcé:à peine enviandé en saucisseté,hop!, la vie Outra manhã mas não de àmanhã mesmo dia pouco após: a gente quer sem-
de sensibilité! Quel don en poison, pour moi, vrai bout de carton sans beau- pre tudo mole mas a escrita encrespa os bofes.Esses verbos de vaidade bava-
coup d'innervation! [... ] Et cést ça, queje m'écriepar en dedans, qui méncrispe ram-me da boca era um molambo amargo da noite tombei de pé do leito o
en mots le mou. [... J Ça provoque Écho à réitérer les torturations, en moins ar de mau. Logo o eco emite com voz de esposada: quiqcetém pra fuliginar
infirmerie, en plus loustics lazzi: pourquoi tés si cramoisi?Quelle mouche ta assim? Não foi com o pé direito que levantaste? Surgeste mal da surdez? Tem
piqué, eh, l'tarentulé?Tas la gigue?La Saint-Guili-Guili?Le sprint-~iqué?La formiga no teu osso morto? Ou é tetanosso? O diabo constipado do anal que
polka du bocal?Moí: cousu. Shoot dans les coussins. Tapinois dans quant-à- te deixa rude oggi? Tua mente de serpente cuspindo seu veneno? Cê não vai
soi. A force de macérations dans la nonaltercation,les aiguisements des espie- de novo dar um golpe tipo falar torto ructações em placas? Deixa ver se a lín-
gleries tournent au gras d'bougie, on passe pity pity aux récrimini en gros et gua tá carregada! Tá bem digerido? Que é que há que cê não quer engolizar?
détails. Làutre bouche aussi cause à son mur. T'étais moins amer, entend le Quem que bloqueou tua doce lábia? Tomaste uma lufada de vazio? - Essas
mur, quand on naquait, rappelle-toile temps qu'on se déveilla moi-toi et toi- perguntas futucam-me os tubos, começa a comichar mas o que retorgitar? -
moi hors du nonamour: autour oiseaux rares, sources de gazons, lauriers et só faço furibundear qua qua qua quer dizer não digo um a nada a responder
épinards, lions et léopards,jolies éclosions.Et cette aria évanescente:volez vos nem quiçá fica-me um bolo cá rodo a fundo em vão nesta encrespação. Olha
queje vos chant un son damors avenant?Et ce qui sénsuivit comme essaistac- eu lá, urseio no espaço quadrado meu tá bom troç'inda trepidado tem caldo
tiles.Et la recetteainsi décrite dans l'opusculequ'on lut: Pourplus sur la Zangue onde ele não esperava. É duríssimo adentrar tão cedo nas frases! Embolam-se
croupir;Entre deus boires un soupir I doit on faire seulement; Si en dure plus os bofes aos montes! Angustressado, o estômago lhe desce aos sapatos, nada
longuement La douceur en bouche et laforce. C'était là les mots que tu bavais passa! Forçado: mal bovinado em salchiciedade, bora!, ávida vazia vida de
doux, on se les mangea, ça crispa le mou mais pas le même mou, pourquoi sensibilidade! Que dom em peçonha, para mim, só ponta de papelão sem
pas remboucher cet éveil par nos trous de même? [...] Mais jéus aussitôt la muita inervação! [...] E é isso, que eu gritescrevo por entre dentro, que me
levre rictusséed'un reste damertume, encare un glaire de nuit, et ça traduisit: encrespa em verbo os bofes. [...] Isso provoca Eco a reiterar as torturações,
salut, vilaindi! merdi! merdredi! buerkday!fientredi! saledi! dimmonde! salut, sem tanta enfermaria, na mais bufa zombaria: por que cê tá assim tão car-
enflance!idolescence!adulterre! vieussorie!et tous les calcendriersdu monde! mesim? Que mosca te picou, oh, cê pirou ? Tá na folia? Na Santa-Cosqui-
- Faut dire que les bestiaux en poil, dits domastiquéspar naif abus, sans doute nha? Se embalou? Polca no aquário? Eu: mudo. Pico na almofada. Quieto
à cause d'une nuit insomniquée pour avoir crouté dans la valériane sans glu- no meu canto. De tanta maceração na não~altercação, o alvoroçar das tra-
tir le riz, avaient cosmétiqué l'oréede la carrée. Ça commençait bien, comme vessuras vira gordura de vela, a gente vai do pity pity à cri-crizice no atacado
civilisé!Bravo, le chien qui cause en merde de chien! Chapeau, le chat qui parle e no varejo. Também a outra boca fala ao muro. Cê era menos amargo, ouve
en rien mais dégobilledans les coins!Quand on a débrenné l'un,faut dévomir o muro, quando a gente foçava, lembra o tempo em desespreita mim-em-ti
le deuze, on passe dabord son temps daurore à torcher les planchons. Dàc- e tiemm~m para além do nãoamor: em torno aves raras, fontes de ervas, lou -
cord, ça fait une transition. Mais on aimerait bien partir d'un pied démblée reiros e aspargos, leões e leopardos, belas eclosões. E esta ária evanescente:
moins emmerdouillé. On a beau vouloirfaire doux, ces réalités,ça vous crispe Então quereis que eu vos cante um som d'amor cativante? E o que se seguiu
le mou. Saleté de tout! Tu vas pas reruminer! Assez! Pince-toi le nez! Allume como ensaio tátil. E a receita assim descrita no opúsculo que se leu: Pra dar na
le gaz, qu'on oye gazouiller les eaux appropriéespar des becs ébouillantés,tés língua um respiro/ Entre dois goles suspiro/ Há que se fazer somente/ Assim
grand maintenant, tés né, baiser!baiser!- et elle méncudepoule son bec volup- dura longamente/ Doçura em boca e a força. Eram esses motes que bavavas
tueux. O, Bec Impec! Bec Délice!Bec d'Abus!Bec d'Entraíne!Bec de Ça-gaze! doce, e que comemos, encrespando os bofes mas não os mesmos, por que
Bec d'Embaise!Bec d'A-laise!Tas beau! Quoique!Même si téssuis!Ne sais que não embocar de volta o despertar assim pelos buracos? [...] Mas logo tive o
fasse pour que je suis! Mastique un cuicui,jamais comme il faudrait cuit! Tu lábio rictussado dum resto d'amargura, ainda um muco de noite, que tradu-
dis quoi? Rien. Tés prêt? Oui. Tu viens? De même. Elle est en ejfet fin prête, zia: saúde, segunda, vilãodia, terça, merdia, quarta, merdardia, quinta, buerk-
sainturée, soutifiée, anorakée de vivifiante réalité. Rien qui démente. Santé day, sexta, cacadia, sábado, sordidia, domingo, imundia! saúde, infância! ido-
patente. Jén peux pas dire tant. Mais elle est tellement quélle sait metre un peu. lescência! adulterra! velhofumice! E todos os calencalvários do mundo! - Há
Tant mieux! Jouvence!Cadence! On prend lauto? Illico!:Descente des étages, que dizer que o gado em pelo, dito domastigado por leigo abuso, sem dúvida
enfilageaccouplédans làutonomile. Facile!Action: on rouleparmi les trottoirs à força de uma noite insonicada por ter caído na valeriana sem glutir o arroz,
quaniment les divers représentants des variées professions. Stop: restau, cést tinha cosmeticado a beira da carreira. Tava começando bem, como civilizado!
midi. Bonjour,je dis, premiere station des vies daujourd'oui!

99
Bravô, o cachorro que versa em merda de cachorro! Chapéu, o gato que fala e a crispação das consoantes em "cr': Mas aí foi preciso fazer o luto do "cri':
ao léu mas desbucha aos jorros! Se a gente descagalhou o um, tem que des- "grito" em francês, que não se ouve na tradução para o português. Chegou-
vomitar o dois, e doura agora o tempo d'aurora esfregando o pranchão. Vam-
-me a ocorrer partir para uma língua híbrida com o neologismo "esgrita':
bora, isso faz a transição. A gente bem queria começar sem tanto se emerda-
lhar. A gente quer sempre tudo mole mas esse mundo, vil lugar, te encrespa os Em se tratando, porém, do título do texto, a solução não me pareceu ade-
bofes! Imundos covis! Cê não vai reruminar! Alto lá! Tapa o nariz! Liga o gás, quada. Em compensação, em outro momento, para um ''je m'écrie':que sig-
oiçamos o gazilar das águas apropriadas pelos bicos escaldados, cê tá grande nifica em francês "eu exclamo': "eu gritd: mas que se ouve também como
agora, acabou de nascer, foder! foder! - e ela me enrabeiça seu bico volup- ''je m'écris':"eu me escrevo': não hesitei em compor "gritescrevd: como se
tuoso. ô, Bico em Pica! Bico Delícia! Bico d'.Abuso!Bico d'.Arrasto! Bico Uma
Brasa! Bico Entrepada! Bico A-vontade! Por mais que cê! Ainda quê! Mesmo
pode ler mais adiante. Mas creio que, por ora, para o título, a crispação
que cê enxugsiga! O que que eu faço para que eu sigo! Mastiga um piu-piu, consonantal bastou para produzir o efeito necessário.
quase sempre cru e nunca pio! Que que cê diz? Nada. Tá pronto? Tô. Cê Para o "le mou': na linha seguinte, objeto direto de "crisper"mas tam-
vem?.Vou. Ela tá de fato toda pronta, santurada, sutianzada, anoraqueada de bém substantivado como subtítulo, não foi uma decisão fácil, sobretudo
vivificante realidade. Nada desmente. Saúde patente. Não posso dizer tanto.
pela ressonância com outros monossílabos que o farão repercutir ao longo
Mas ela é talmente que até sabe ser-me um pouco. Melhor assim! Juvêncio!
Cadência! A gente pega o carro? Claro!: Descendo os andares, enfiada aco- do texto, como "doux': "mots': "tout': "trou':Mas não consegui escapar da
plada no autonomovel. Fácil! Ação: rolando entre as travessas que animam palavra "bofes': que, quando usada no plural, significa, como o "mou" em
os diversos representantes das variadas profissões. Parou: comer, é meio-dia. francês, o "pulmão do boi': as "vísceras': O que me parece ainda interessante
Bom dia, eu digo,primeira estação das vidas de hojediadessim! é que "bofes" também remete, em português, à disposição de caráter, de
Para começar, o título. Tomd como original a versão republicada na temperamento, de humor, como quando dizemos ter bons ou maus "bofes':
antologia TXT de 1995, onde o título em maiúsculas estava centrado na ou estar de bons ou maus "bofes': E há ainda o fato de que a palavra deriva
página em duas linhas, 'Técriture, ça crispe"na primeira linha, "le mou" do italiano "buffo':que dá toda a família da "bufonaria': atmosfera que não
na segunda. Se tomarmos o sintagma "I.:écriture, ça crispe"como uma frase é absolutamente estranha ao texto, como se pode observar, e que também
isolada, considerando o uso intransitivo do verbo "crisper':temos aí, em retomo mais adiante como alternativa na tradução. Além disso, para os que
uma espécie de fórmula, a função por excelência da escrita para Prigent, compreendem o francês, há uma ressonância divertida com o "bof: que é
no limite a função da linguagem: "crisper"quer dizer "irritar': "provo- uma interjeição francesa que expressa um certo mau humor.
car': A escrita vale não pelo que é, por suas qualidades intrínsecas, mas Tudo isso, creio eu, não é sem interesse em relação às cenas de des-
por aquilo que ela suscita, tanto no emissor-produtor quanto no receptor. pertar que, nas sucessivas manhãs de Commencement, se abrem a cada
Para a tradução do verbo "crisper':eu teria então a escolha entre "crispar" dia por uma espécie de resistência humoral, quase fisiológica, à entrada
e "encrespar': duas formas que têm a mesma etimologia e praticamente o em língua. ''A escrita encrespa os bofes': eis, então o título, que será pre-
mesmo sentido da palavra "crisper"em francês. Mas "encrespar" me parece ciso fazer funcionar ao longo de toda a manhã em questão, na qual ele irá
ter um uso mais coloquial, e mais intransitivo, no mesmo sentido do fran- retornar três ou quatro vezes com pequenas variações. E retomo aqui a
cês, e pode ser que soe um pouco mais corrente e familiar, o que compensa primeira vez em que ele retorna, no início do texto. Eis as duas primeiras
um pouco o desaparecimento do pronome anafórico "ça': que em fran- frases do original:
cês também trabalha no sentido da dessacralização do seu referente, e cujo Autre matin mais pas l'endemainmême jour peu apres:on a beau vouloirfaire
emprego em português - com a palavra "isso': que também traduz, por doux l'écritureça crispe le mau. Ces mots de vanité baverent de ma bouche
exemplo, o "ça" da psicanálise - seria aqui demasiado artificial. A escolha c'étaitun lambeau amer de la nuit je chus debout du lit l'airméchant.
vale também para o número de sílabas, reduzido pela queda do "isso".Pre- E sua tradução:
feri, portanto, "A escrita encrespa': em que mantenho o número de sílabas

100 101
Outra manhã mas não de àmanhã mesmo dia pouco após: a gente quer sem- também a "bofes': que precede. Em francês: "on a beau vouloirfaire doux
pre tudo mole mas a escrita encrespa os bofes. Esses verbos de vaidade bava-
ram-me da boca era um molambo amargo da noite tombei de pé do leito o
l'écritureça crispe le mau. Ces mots de vanité baverent de ma bouche... ':
arde mau. Em português: "a gente quer sempre tudo mole mas a escrita encrespa
os bofes. Esses verbos de vaidade bavaram-me da boca ... " Em função
Em primeiro lugar, o fragmento que retoma o título do texto se encon- do ponto de vista do ritmo prosódico, escolhi, pois, "verbos': ainda que
tra agora no interior de uma frase: "on a beau vouloirfaire doux l'écriture eu lamente aqui um pouco a perda de "motes" - que, em compensação,
ça crispe le mou': Cuja tradução proposta é : "a gente quer semgre tudo usei mais adiante. Foi também para conservar essas aliterações que forjei,
mole mas a escrita encrespa os bofes': Aqui era preciso conservar a relação de fato, em português o verbo "bavar': que não existe, a partir de "bava':
sonora "doux"/ "mau" e ao mesmo tempo manter o ritmo prosódico. A forma arcaica de "baba'' em português. A solução também espelha o uso
palavra "mole" me veio imediatamente à mente, por ser a tradução direta arcaizante e artificioso do passé simple na frase, tempo verbal literário do
de "mou" em seu sentido próprio, por oposição a "dur': "duro': e por reme- francês que se emprega em essencialmente na escrita.
ter, como a palavra francesa, ao sentido da preguiça, da lentidão, mas tam- A escolha de "molambo" para "lambeau" levanta um outro aspecto
bém ao sentido da facilidade ("É mole': para "fácil de fazer': ou "Fulano é interessante da tradução entre o francês e o português, duas línguas neo-
mole': no sentido de ser meio devagar). E que eu havia perdido ao tradu- latinas mas que, ao longo de sua história, foram contaminadas por outras
zir "mau" por "bofes': Desse modo guardamos o sentido do "mau" e do línguas mais ou menos distantes: se a palavra "lambeau"vem do frâncico,
"doux': que remete aqui em seu uso adverbial a esse mesmo campo semân- língua germânica, "molambo': que até parece, por um feliz acaso, derivar
tico da lentidão, da suavidadf, da moderação. Assim, além de compensar a dela, vem do quimbundo, língua da família banta; mas o mais surpreen-
ausência do "mole" no título, ainda produzo uma assonância com "bofes" dente é que as duas palavras remetem a um sentido comum, o de "trapos':
pela repetição das vogais: "mole"/ "bofes': "farrapos': além de funcionarem muito bem ao nível das aliterações em "m"
Em seguida acrescenta-se uma dificuldade suplementar, a passa- e em "b''.Interessante ainda é que poderíamos pensar que "molambo" equi-
gem do "mou" que termina esta frase ao "mots" da frase seguinte: "[ ...] vale, para uma orelha francófona, aos "mots-lambeaux"de que eu falava
on a beau vouloirfaire doux l'écritureça crispe le mau. Ces mots de vanité há pouco, já que um francês tenderia a pronunciar "molambô': Aqui, aliás,
baverentde ma bouchec'étaitun lambeau amer de la nuit je chus debout du eu não pude deixar de lembrar de uma frase de Prigent, que escreve em La
lit l'airméchant". Zangueet ses monstres:"Uma língua se funda na devastação das línguas e
Em primeiro lugar, a dificuldade em relação ao monossílabo "mot': tira sua substância de seus cadáveres desmembrados cujos farrapos ("lam-
Difícil fazer caber aí a palavra "palavra': que o traduziria naturalmente. beaux") ela rearticula de outra maneira:' (1989, p. 167)
Pensei em primeiro lugar na palavra "mote': ligada etimologicamente a Para "je chus':verbo raro em francês, e também aqui utilizado no passé
"mot': e que tem o sentido de "divisa': "refrão': O que não deixa de ser simple,escolhi "tombei': que soa também um pouco mais solene em portu-
interessante já que podemos tomar a fórmula ''I:écritureça crispele mau" guês do que "caí': mais comum. "Tombei" também retoma a aliteração em
como uma espécie de divisa no texto. Além disso, manteríamos o eco do "m'' e em "b': ao mesmo tempo em que prolonga os ditongos que fazem em
origina 1 entre "doux", "mau" et "mots" pe 1o eco en t re "mo 1e", "b 01es
e " e
português o trabalho de assonância dado em francês pela sequência "nuit':
"motes': Mas uma segunda solução me fez hesitar: a de traduzir "mot" por A (( • " .,, "le1·to,))((mau."
"chus':"debout," "lit)); em portugues, temos: n01te, ''t om b e1,
"verbo': que também dá a perspectiva de uma frase feita, mas que, por sua Há ainda, nesse trabalho prosódico, os "d" e os "t" em quiasmo ("tombei
solenidade, acentua a ironia da frase assim ao lado da palavra "vaidade": de pé do leito"), e o par "amer"/ "méchant" é retomado em português sem
"esses verbos de vaidade ..:' Por outro lado, a palavra introduz a sequên- dificuldade por "amargo"/ "mau':
cia de ''v'' e "b" que se segue no original ao mesmo tempo em que faz eco

102 103
Mas para referir as considerações de Prigent sobre o trabalho da lín- Eis aqui minha proposta de tradução:
gua contra si mesma 4 e tentar sistematizar um pouco o impasse que se
Logo o eco emite com voz de esposada: quiqcetém pra fuliginar assim?Não
impõe todo o tempo na tarefa de traduzi-lo, eu formularia a seguinte ques-
foi com o pé direito que levantastes?Surgestemal da surdez? Tem formiga
tão: como decidir entre uma perspectiva literal, assinalando antes, nesse no teu osso morto? Ou é tetanosso? O diabo constipado do anal que te deixa
caso, a violência do francês contra o português, e uma perspectiva de equi- rude oggi?Tua mente de serpente cuspindo seu veneno? Cê não vai de novo
valência, em que tenderíamos a forjar um português que se ergueria con- dar um golpe tipo falar torto ructações em placas? Deixa ver se a língua tá
carregada!Tá bem digerido? Que é que há que cê não quer engolizar?Quem
tra si próprio? Na verdade, creio que, no limite, é o que está em jogo em
que bloqueou tua doce lábia?Tomasteuma lufada de vazio?
qualquer tradução, que, como sabemos e vemos por esses poucos exem-
plos, para conservar as relações do original com sua língua, deve ora ficar Fiz aqui, como muitas vezes ao longo do texto, o esforço de fazer com
entre as duas línguas, assinalando, forçando, até, o parentesco entre elas, que predominasse um registro lexical e sintático mais familiar, oral, fre-
ora trabalhar no "interior da floresta da línguà' tradutora, para empregar quentemente forjado por Prigent, o que tento eu também fazer, mas com
aqui uma expressão usada por Walter Benjamin para falar justamente do eventuais rupturas, como faz o original nesse trecho através do uso do passé
trabalho original (BENJAMIN, 2008, p. 91). Evidentemente, essas estratégias simple,ou através de expressões um pouco mais estranhas, ou de neologis-
se superpõem todo o tempo. mos. Nessas frases, alternei os pronomes pessoais (principalmente entre
Vou então lhes dar primeiro alguns exemplos em que tendo, digamos, o "você" e o "tu': como se pode fazer em português, usos que podem dar
a transpor o francês de Prigent para o português, conservando aqui e ali uma inflexão às vezes mais amistosa, às vezes mais íntima, às vezes mais
alguns aspectos da estrutura ,das frases, da sintaxe, dos procedimentos de irônica, de acordo com o tom e com os usos regionais; ali onde o origi-
composição de palavras, tentando engendrar farrapos de língua análogos. nal emprega o passé simple,usei o "vós': que produz um efeito arcaizante).
(Não falarei aqui, é claro, dos momentos em que o português quase não Não vou comentar, pois aqui, de um modo geral, como vocês podem ver, o
resiste ao francês, o que acontece de tempos em tempos uma vez que as texto em português segue de muito perto o texto em francês.
duas línguas têm muitos pontos de contato; há, de fato, ao longo do texto No fragmento seguinte, porém, no qual o narrador expõe uma espécie
muitas passagens em que os textos permanecem bastante "colados': como de mal-estar hesitante entre sua inadequação ao próprio corpo e ao espaço
o leitor poderá verificar por si mesmo.) Retomemos aqui aquele "eco" que que o circunda, explicitando a dificuldade de tomar a palavra, uso, talvez,
se enuncia como uma "voz de esposadà: a que se seguem questões bas- um pouco mais de improvisação linguística, trabalho mais no interior do
tante irônicas e diretas, de ritmo marcado por assonâncias e aliterações, português na tradução. Mas ali também me senti à beira do ilegível, da
mas irregular, às vezes fluindo, às vezes tropeçando: ausência de sentido. Porém, como já disse acima, um tradutor não pode se
Sitôt lí:ichoémit d'une voix d'épousée:questa à fuliginer comme ça?Tu tes pas resignar a isso. Eis a passagem:
du pied qu'ilfallut levé?T'asmal surgéde la surdité? T'asdesfourmis dans ton - Cesquestionnementsramonent mes tubes,ça démangeun peu mais que rétor-
os mort? Ou cest l'tétanos?ülémon constipéd'l'analqui t'rendpas gentil oggi? couer?- je faisque furibonder quia quia quia autrementditje restecoij'ai rien à
Ton cerveau reptilien qui cracheson venin? Tu vas pas nous r'faire un coup répondreà ça et ça ça me restelàje tourne àfond en rond dans cettecrispation.
genre parler tordu rutactions en plaques?Pais voir si t'as la Zanguechargée! Voici moí, j'ourse dans !espacecarré mon tas core trépidé du bouillon d'ou il
T'as bien digéré ? Cest quoi la pilule que t'avalisespas? Qui qu'a bloqué ton s'attendaitpas. Cest tresdur dentrer si tôt dans lesphrases!On a le mou stressé
doux babil?T'aspris un coup de vide? comme tout! Ça boule, l'ango,ça vous descendlestomacdans lesgodasses,rien
passe!Forcé:à peine enviandéen saucisseté,hop!,la vie de sensibilité!
4 "É preciso 'saber-se posto, quando se escreve, não diante de um real concebido como
um pleno estabilizado aquém da linguagem mas diante da realidadeenquanto sempre-já Que traduzi assim:
constituída por blocos significantes (de língua)': '[o] debate está na língua, a ação se faz
língua contra língua:" (MORAES, 2015, p. 11-12)

104 105
- Essasperguntas futucam-me os tubos, começa tudo a comichar mas o que
"être sur le tas': por exemplo, significa genericamente estar trabalhando,
retorgitar?- só faço furibundear qua qua qua quer dizer não digo um a nada
a responder nem quiçá fica-meum bolo cá rodo a fundo em vão nesta encres- mas remete também ao trabalho da prostituição, ou à atividade sexual. E
pação.Olha eu lá, urseio no espaçoquadrado meu tá bom troç'inda trepidado tomei o "core"como a redução do advérbio "encare':"aindà: .. Assim, para
tem caldo onde ele não esperava.É duríssimo adentrar tão cedo nas frases! "tas': escolhi a palavra "troço': que também pode soar maliciosa, sobre-
Embolam-seos bofes aos montes! Angustressado,o estômagolhe desce aos
tudo ao lado da palavra "trepidado'; indiciando, talvez, um membro em
sapatos, nada passa! Forçado: mal bovinado em salchiciedadehora!, ávida
vaziavida de sensibilidade!! · ereção. Finalmente, porém, sem conseguir encontrar alguma coisa que
me permitisse fazer soar esses dois sentidos por meio de uma só forma
Dois ou três comentários não exaustivos sobre o trecho. escrita, tradutor fracassado, decidi colocar juntas uma expressão para o
Comecemos pelo emprego do verbo "futucar': termo que escolhi pri- "d'accord':"tá bom': e outra para o "tas core':tal como pude compreendê-
meiramente pela sonoridade, já que se encaixa na sequência iniciada por -lo. Releio então minha escolha: "Olha eu lá, urseio no espaçoquadrado
"perguntas,,, a que se seguem "futucam,"" tu b os»e,, começa,''"tud""o, com1- · meu tá bom troç'inda (em vez de dizer "troço aindà' em duas palavras)
char': retorgitar': até o "só faço furibundear" da frase seguinte, alternando trepidadotem caldoonde ele não esperava."
as consoantes "C "t" e "k': e as vogais "u" e "à: É interessante também, por Retomo em seguida a tradução de "bofes" para "mou" e, para a fluidez
outro lado, pelo fato de que se pode ouvir aí - um ouvido francófono mais do texto, proponho a inversão das palavras "stressé':"estressado': e "boule':
do que um lusófono, talvez - a raiz latina ''futuere':origem de "foder': con- "embolà: Para "ango':redução de "angoisse':"angústià: propus a palavra
tribuindo para a atmosfera ,maliciosa da passagem. Conta aind~ o fato de composta "angustressado': já que não se costuma fazer tanto a apócope em
que assim privilegiamos a primeira conjugação, em "ar': assim como o fran- português quanto se faz em francês.
cês havia privilegiado a terminação em "er':Do que decorre também a esco- A última frase da sequência exigiu soluções diversas: "Forcé:à peine
lha de "retorgitar" para o "rétorcouer''do francês, que reunia "retorquer" enviandé en saucisseté,hop!, la vie de sensibilité!"Comento rapidamente:
e "sécouer':"retorquir" e "sacudir" em português, que daria "retorcudir"; "enviandé':"saucisseté':"la vie de sensibilité':"Enviandé':neologismo, vem
com a vantagem de evocar o "regurgitar': o que faz imediatamente pensar de "viande':"carne de boi': mas no sentido do alimento, da carne a ser con-
em português no "tubo digestivo': associação que não é totalmente evidente sumida. "Carne': mais genericamente, se diria em francês "chair':Por isso
com a palavra "tubo" empregada sozinha, como é o caso do francês. desisti dos termos que teriam inclusive correspondentes diretos em fran-
Chego agora a uma expressão que me pareceu inicialmente ilegí- cês, como "encarniçar'; ''carnificar" ou ''encarnar': Para fazer também um
vel: "tas core':"Voici moí, j'ourse dans lespacecarré mon tas core trépidé neologismo e remeter à carne morta, de animal; propus o verbo "bovinar':
du bouillon d'oit il s'attendaitpas." Ao ler o texto impresso, não entendi Para a palavra-valise "saucisseté",que compreende "saucisse':"société"e
o que pudesse significar o sintagma "tas core";mas ao reler em voz alta, "satiété",respectivamente "salsichà: "sociedade" e "saciedade': sem proble-
ouvi: ''j'oursedans lespacecarrémon d'accord trépidé";eis portanto que o mas, pois tudo se mantém em português com "salsichiedade': O mais com-
eu-narra d or "ursearia· ", que e1e "passearia
· ,, seu "d'accor:
d", seu "de acor d o", plicado aqui foi traduzir "la vie de sensibilité':que, tal como está escrito,
seu "tá bom': como resposta meio automática às "perguntas" insistentes significa. literalmente "a vida de sensibilidade': Mas em termos fonéticos,
da "voz de esposadà: Mas como entender aquele "tas core" escrito que "lavidesensibilité''remete a mais duas possiblidades em francês: não se
não correspondia absolutamente nem a isso nem a nada que me parecesse pode deixar de escutar "a ávida sensibilidade': em nota mais irônica, ou "a
inteligível, e como traduzi-lo, afinal? Depois de algumas especulações que vazia sensibilidade': em uma alusão mais explícita à dimensão alienante da
passavam por várias "viagens': digamos assim - inclusive pela etimolo- vida em sociedade, em "salchiciedade': .. Como escolher? Aqui mais uma
gia de "cor" (do latim cor,cordis,mesma de "creur''e "coração") -, decidi vez, não o fiz e, com a sensação de ter fracassado, evoquei as três possi-
considerar o "tas" em um sentido meio malicioso: a expressão idiomática bilidades na tradução da frase: "Forçado: mal bovinado em salchiciedade

106
107
hora!, ávida vazia vida de sensibilidade!" (Com "hora!': traduzi a interjei-
*
ção "hop!"do francês).
Para terminar, uma última sequência, onde também me vi forçado a Temos, portanto, aí alguns exemplos do trabalho sobre a língua - em
recriar em português as imagens e o esquema rítmico e sonoro do original. andamento, inacabado e inacabável, como toda tradução - a partir desta
língua, digamos, muscular que é a língua de Christian Prigent, tentando
Mais on aimerait bien partir d'un pied demblée moins emmerdouillé. On a
levar em conta as relações sempre complicadas entre a experiência sonora,
beau vouloirf airedoux, cesréalités,ça vous crispele mou. Saletéde tou.t!Tu vas
pas reruminer!Assez!Pince-toile nez! escultural que fazemos dela, e seus ecos de sentido, que, evidentemente, pro-
liferam e escapam ainda mais a todo controle neste trabalho entre línguas,
Eis como traduzi : língua contra língua, em sua perturbadora e indomesticável materialidade.
A gente bem queria começar sem tanto se emerdalhar. A gente quer sempre
tudo mole mas esse mundo, vil lugar, te encrespa os bofes! Imundos covis! Cê
não vai reruminar! Alto lá! Tapa o nariz!

Em primeiro lugar, propus "começar sem tanto se emerdalhar" para


"partir d'un pied d'embléemoins emmerdouillé':que, palavra por palavra,
daria algo como "partir de um pé de saída menos emerdalhado". A pri-
meira frase que havia guarcfado foi "partir de um pontapé menos pé de
chulé''. Dava a ideia do começo, do pontapé inicial matinal visando a entrar
na língua. Mas o "pé de chulé" ficava um pouco aquém do "emmerdouillé"
original. Embora resolvesse também o problema de marcar o ritmo com a
vogal "e" aberta para acompanhar o francês, onde o "e" fechado se repete
ao longo da sequência. Até pensei na expressão "real ralé" para traduzir
o "réalités"("realidades") da frase seguinte em eco com o "pontapé pé de
chulé''. Mas acabei achando uma solução com o "à: que podia ser retomado
no final da sequência, como no original: onde no francês eu tinha: "pied
d'embléemoins emmerdouillé [...], ces réalités [...], Saleté [...] reruminer!
Assez!Pince-toile nez!':em português eu fiz: "começar sem tanto se emer-
dalhar [...], esse mundo, vil lugar[ ...] Cê não vai reruminar! Alto lá!''. Mas
termino a sequência com "Tapa o nariz!''. Explico-me. No meio da passa-
gem eu tinha a frase-título com a sequência "doux"/ "mou': que já havia
traduzido por "mole" /"bofes': acrescida aqui do "tout": "On a beau vouloir
f aire doux, ces réalités,ça vous crispele mou. Saleté de tout!" Decidi então
ligar as frases, que se encadeiam semanticamente pela atmosfera de um
certo "fedor" que impera nas "realidades" (tanto que é preciso, inevitável,
"tapar o nariz': justamente). Traduzi então o "Saletéde tout': "Imundície de
tudo'' por "Imundos covis': que retoma o "mundo vil lugar" da frase prece-
dente e antecipa o "nariz''.

108
109
Pode-se comer um figo de palavras?
Uma questão (antropofágica?) com/ a Francis Ponge

No início de um texto intitulado "Francis Ponge: o que uma coisa


é': Pierre-Yves Bourdil discorre sobre duas maneiras de experimentar
uma "coisa" como tal. Mais corriqueiramente, costuma-se tomá-la em
seu "duplo caráter elementar e evidente': como diz o crítico, "ao ponto
de considerá-la sem discussão como exemplar da realidade': Por vezes,
contudo, uma coisa qualquer resiste a essa "extrema evidênciâ: "ela resiste
a nós incontinente, nos captura e nos obriga a re-fleti-lâ: produzindo "o
espanto [...] que faz aparecer a insuficiência de nossa preocupação ante-
rior': espanto que, na verdade, "é uma reação ao aparecimento da coisâ'
(BOURDIL, 1988-89, p. 113-114).
Bem entendido, é essa segunda experiência que se encontra funda-
mentalmente em jogo na obra de Ponge. Em uma entrevista dada a Gérard
Parasse, Jacques Derrida responde no mesmo sentido a uma pergunta
sobre a "essênciâ' da coisa para o poeta:
Não é simplesmente a propriedade suposta intrínseca ou natural da coisa mas
a essência da coisa tal como ela me aparece, a essência do aparecer da coisa,
que é um aparecer singular. (DERRIDA, 1992-4, p. 200)

E se a "evidênciâ' da coisa é suportada pela espontaneidade mais ou


menos imediata com que a identificamos a um nome, o seu "aparecer" cor-
responde de certa forma a uma sensação estranha, perturbadora, quanto a
essa identificação, perturbação que Ponge define como sendo justamente
o "reconhecimento" da coisa como tal, reconhecimento que, apenas ele,
pode fazer dela, dessa coisa e de seu nome, ou de seus nomes, o objeto de
nosso amor e de nosso interesse. Evoco em relação a isso duas passagens
do texto intitulado "As sendas da criação" ["LesSentiers de la création"],

111
algum modo o seu epitáfio. O poema termina assim: "Tendo empreendido
de 1970, que introduz a série de fragmentos e rascunhos publicados sob o escrever uma descrição da pedra, ele se empedrou.2"
título "A fábrica do Prado" ["LaFabriquedu Pré"].A primeira: O que me interessa introduzir aqui é isso que poderíamos chamar de
O que nos faz reconheceruma coisa como coisaé exatamente o sentimento de dimensão performativa da poesia de Ponge, essa disposição que ela tem de
que ela é diferentede seu nome, da palavra que a designa, da palavra que porta levar a coisa "escrità' a agir diretamente sobre a materialidade do mundo, a
seu nome, da palavra cujo nome é comovente que ela consinta em portar.
instalar-se nele como tal, a tomar aí seu lugar, tornando-se, assim, por sua
A segunda: concentração ou por sua dispersão na língua, o que ela pode ser para ele, o
poeta, e para nós, seus leitores: um "bem próximo" ("bienproche") (2002,
Atualmente, se amamos as coisas é porque as reconhecemos ao mesmo
II, p. 664), segundo esta outra expressão cara a Ponge, e de que ele se serve
tempo como respondendo (de modo muito comovente) a seus nomes - e,
entretanto, como sendo tão diferentes desses nomes, tão outras, bem mais em seu texto de 1963 sobre Chardin para falar precisamente do "aparecer"
vivas e mais ricas que esses nomes (que as palavras que as designam). de um objeto diante do olhar de um pintor. Um "bem" que, na escrita de
Entretanto, somente as conhecemos - e reconhecemos - graças a esses nomes Ponge, se singulariza e se torna "próximo': justamente, por seu aparecer
(e são até, de fato, esses nomes que nos permitem conhecê-las como outras, em língua, para a língua, em uma certa língua em que finalmente ele se
como mais vivas). escreve, e se inscreve, permitindo-nos lê-lo, ou ouvi-lo, ao mesmo tempo
Dessas duas constatações, o que resulta? O pulo, ao mesmo tempo lógico e
como "nosso" e como "próximo':
ilógico, o salto está aqui - Que devíamos amar também esses nomes. Amá-los
bastante - como tais - de modo que possamos novamente tentar fazer com Quando falo de concentração ou de dispersão na língua, quero dizer
que se encontrem (coisas, e nomes), com que entrem uns nos outros (coisas o seguinte: se, em sua primeira fase, a "justeza da expressão" ("justessede
e nomes). l'expression")(1999, 1, p. 384) em relação às "coisas" se quer concentrada,
O amor pelas palavras é, portanto, de certa maneira necessário ao gozo das sucinta, acabada, como na maior parte dos poemas de "O Partido da
coisas. coisas': por exemplo, a partir de certo momento, a obra para ele deveria
Ou antes, realizar o amor físico (o acoplamento de novo) das palavras e
expressar menos as coisas que a resistência delas,à expressão, o que ela faria
das coisas, esse será nosso gozo, nosso regozijo. E disso, somente nós (nós,
enquanto dotados da palavra, enquanto capazes da escrita), somente nós pela integração cada vez mais sistemática da dimensão espaço-temporal
somos capazes. (2002, II, p. 431-432)' de seu próprio processo de composição, ao fazer com que esse esforço de
"expressão" se dispersasse na sucessão das páginas e dos anos, na suces-
Talvez essa "capacidade'' de "realização" do "acoplamento" perfeito,
são do que Ponge chamaria de seus "brouílldnsacharnés':seus "rascunhos
"gozoso: entre palavras e coisas pela escrita, à maneira do molusco que,
encarniçados': que visariam a "abraçar" as coisas em sua "realidade rugosà:
no poema de "O partido das coisas" ["LePartipris des choses"],o primeiro
conforme a expressão de Rimbaud a que o poeta certamente alude ao falar
grande livro de Ponge, "secretà' a sua própria "moradà' - sua concha - à
dos "maníacos do novo abraço' em um de seus comentários sobre seus
sua justa medida (1999, 1, p. 24), talvez essa "capacidade'' jamais se expresse "métodos" de trabalho. 3
tão sinteticamente, tão proverbialmente, quanto na fórmula final de "O
seixo" ["LeGalet"],o último poema desse mesmo livro, fórmula em que o
poeta vaticina, não sem ironia, é claro, as palavras que ele gostaria que fos- 2 "Ayant entreprisdecrireune descriptionde la pierre, il s'empêtra:'(1999, I, p. 56)
3 Rimbaud: "Moi ! moi qui me suis dit mage ou ange,dispenséde toute mora/e,je suis rendu au
sem as últimas palavras de seus "críticos': as palavras que constituiriam de sol, avec un devoir à chercher,et la réalité rugueuse à étreindre! Paysan!"("Une Saison en
Enfer") (Cf. nota sobre Rimbaud, 1999,·1, p. 1111) Ponge: "Voilà aussipourquoi la véritable
poésie narien à voir avec ce qu'on trouve actuellementdans lescollectionspoétiques.Elle est ce
1 Quando me parecer relevante, restituirei ao longo do ensaio, em nota ou no corpo do texto, o qui ne se donnepas pour poésie.Elle est dans les brouillons acharnés de quelques maniaques
texto original em francês das citações de Ponge. Quando a referência for a edições francesas, de la nouvelle étreinte:' (1999, I, p. 631) Cf. também a entrevista concedida em 1978 a Jean
a tradução das citações é minha. No caso das obras do poeta, colocarei entre parênteses ape- Ristat, na qual a discussão sobre os "rascunhos encarniçados" é retomada (1997, p. 277-279 ).
nas o ano de publicação da edição citada e o número da página.

113
112
Um dos exemplos capitais dessa poética é a "livraison':como diz ("la véritéjouit"),4 diz ele, remetendo uma vez mais ao "acoplamento" de
Ponge (palavra que significa "entrega: o poeta brinca aqui, evidentemente, que eu falava há pouco. Momento que ele descreve explicitamente em
com a palavra "livre':..), em livro, no ano de 1977, dos sucessivos rascunhos alguns de seus "rascunhos" para o figo por meio da oposição entre a apti-
do poema "O figo'' ["La Figue"]ou "O figo (seco)" ["La Figue (seche)"], dão da palavra a "morder a verdade" e as operações metafísicas e abstra-
tas do espírito. Ou, talvez, dizendo melhor, quando ele faz da "mordida''
compostos entre 1951 e 1961, de que ele havia publicado três versões "acaba-
a operação por excelência da "assimilação" do mundo pelo espírito, mas
das" antes de uma quarta publicação de "gênero demonstrativo': como ele
"contra o espírito': em sua vocação para a abstração. Como nestas duas
a define ao justificar o título desta edição do poema que seria a definitiva:
passagens dos rascunhos, que comportam diversas variações. Cito uma de
"Comment unefigue de paroleset pourquoi':"Como um figo de palavras e
19 de agosto de 1958, e outra de 4 de setembro:
por quê" (1997, p. 53).
Numa entrevista a Jean Ristat de 1978, ao explicar o que é "demons- A palavra, graças à sua espessura de pasta, graças à sua resistência e não resis-
trado" por essa "livraison':isto é, o "como" e o "por quê" dessa exposição tência (de início) ao espírito, é também uma maneira de reinar (contra o espí-
rito): uma maneira de morder a verdade (que é a obscuridade): o fundo obs-
exaustiva dos rascunhos, Ponge afirma que se trata de "um elogio, das curo da verdade ...5
letras, da literatura, do que é literal, e sem ilusão sobre a possibilidade da
A poesia é a arte de tratar as palavras de maneira a permitir ao espírito mor-
representação':Pois "o que resta'' "é texto': uma vez que "o figo da realidade,
der as coisas e delas se nutrir.
o figo 'fenomenal"' "resiste absolutamente a qualquer descrição': O "como'' (Trata-se portanto de mais do que de um conhecimento: de uma assimilação). 6
remeteria, assim, simplesmente, nos termos do poeta, à "maneira de fazer
para culminar num texto que satisfaça [seu]bom prazer" e o "por que: à Não é evidentemente o caso de comentar aqui o texto em todos as suas
indicação de que "a realidade das coisas para [ele] é inteiramente indizível" variações, nas quais vai se nuançando, desde o início, a tensão entre poema
e coisa, entre idealismo cristão e materialismo pagão, e entre memória pes-
(1997, p. 275-276).
No entanto, é claro, as coisas não são assim tão simples. Nessa mesma soal e memória da cultura, tensão que estrutura o poema em suas partes e
entrevista, Ponge discorre também sobre todo o alcance etimológico lhe dá seu alcance de conhecimento "subversivo~transgressivo':como mos-
traram em detalhe as análises de Jean-Marie Gleize sobre "o figo" (GLEIZE,
d o t ermo "acharne"', "encarmça · d o"; e1e nos 1em b ra que "h'a o tra b alh o
2000, p. 59). Nem tampouco é o caso de reler aqui sua última versão inteira.
acharné':isto é, o trabalho "obstinado': "o trabalho da 'ragede l'expression:
Mas eu gostaria de chamar a atenção para toda a importância da relação
da obstinação de atingir o que se quer': mas lembra também que a palavra
entre a palavra e a oralidade no poema, para o modo como o poema diz e
remete ao sentido de chamariz, isca, no sentido de "dar carne" a algo, de
performa antes de tudo, nos termos do crítico Henri Scepi, "a pegada oral, o
oferecer um encarne. Nesse sentido, o "encarne" dos "rascunhos encar-
desejo de plenitude saborosa e o gozo de boca que daí resulta'' (SCEPI, 2000,
niçados': se ele dá testemunho de um fracasso provisório, que se deve à
p. 106-107), experiência "cintilante" que se guarda na língua - na língua
"impossibilidade que dura'' (1999, I, p. 631), ele desperta ao mesmo tempo,
e inevitavelmente, o apetite deste "caçador" (1997, p. 277) que é o autor-lei-
4 Eis a frase completa: "Vejam, o momento bendito, o momento feliz, e consequentemente
tor, multiplicando assim, também inevitavelmente, certas zonas limiares, o momento da verdade, é quando a verdade goza (perdoem-me). É o momento em que o
certas zonas de contato, entre a materialidade da língua e a materialidade objeto jubila, se posso dizer, tira de si mesmo suas qualidades; o momento em que se produz
uma espécie de floculação: a palavra, a felicidade de expressão:' (1999, I, p. 666)
sensível, ainda que, no limite, "indizível': do mundo exterior, do mundo
5 "La parole,grâce à son épaisseurde pâte, grâce à sa résistanceet non résistance(dàbord) à
material. A experiência de tal zona de contato constituiria o momento l'esprit,est aussi unefaçon de sévir (contrel'esprit):unefaçon de mordredans la vérité (qui est
que Ponge chama, em sua "Tentativa oral': de momento da "felicidade de l'obscurité):dans lefond obscurde la vérité:'(1997,p. 81-82)
6 "Lapoésieest làrt de traiterlesparolesdefaçon à permettre à l'espritde mordredans les choses
expressão" ("le bonheurd'expression"),momento em que "a verdade goza"
et de s'ennourrir./(IIsàgit daneplus que d'une connaissance:d'une assimi/ation):'(1997,p. 102)

114 115
"propriamente falando': entre aspas, para usar essa expressão a que Ponge Aqui, ao contrário do que ocorre nos primeiros textos de Ponge, sem-
recorre com frequência-, exatamente na medida em que o "rudimento" do pre muito bem-acabados, ele deixa um resto. 8 O que o texto apresenta e
figo resiste à mastigação pelos dentes assim como a "letrà' do poema à sua performa aqui, insisto, é a atenção "saborosà' - como a que se pode con-
decifração pelo espírito, como podemos ver ao final do último dos "rascu- ceder a uma "chupetà' - à perturbação que a ele resiste: isto é, ao "botão
nhos encarniçados" que compõem o poema em sua última versão: de desmame" do figo, que não permite que ele se deixe comer inteira-
mente, que ele se ofereça plenamente como objeto. Isso na medida em que
Eis um dos raros frutos, constato-o, de que podemos comer quase tudo: a
casca, a polpa e as sementes concorrendo juntas para nosso deleite. .. o "botão" evoca, justamente, esse estado de poema, ou de língua, que ele
E talvez, às vezes, seja apenas um celeiro de aborrecimentos para Ós dentes: não ultrapassa, essa sua condição de objeto indefectivelmente "literal': na
não importa, gostamos dele, e o reclamamos como nossa chupeta; uma chu- qual ou bem o colocamos de lado, relegando-o, assim, ao esquecimento,
peta, por sorte, que se tornasse de repente comestível, já que sua principal
ou bem, à maneira de um "provérbio': recomeçamos a "mascá-lo': mais ou
singularidade, no fim das contas, é ser uma borracha ressecada a ponto de
podermos, acentuando apenas um pouco (incisivamente) a pressão das man- menos "encarniçadamente': para relançá-lo a quem quer que se ponha à
díbulas, vencer a resistência - ou antes a não-resistência, primeiramente, nos escuta, constituindo-o, assim, - para nós mesmos e para outrem - como
dentes, de sua casca - um "bem próximo': coisa e nome bem "acoplados':
Para, uma vez açucarados os lábios pela poeira de erosão superficial que ele
Esse "botão de desmame" do "figo de palavras" valeria, pois, por sua
oferece, nos nutrirmos do altar cintilante que em seu interior o preenche
inteiramente com uma polpa de púrpura presenteada de sementes. capacidade de resistir ao esquecimento - à digestão que reduziria sua mate-
Assim acontece com a elasticidade (para o espírito) das palavras, - e da poe- rialidade concreta a uma ideia abstrata - como uma espécie de "rudimento''
sia como a entendo. absoluto, como traço, poderíamos talvez dizer, de uma dívida para com a
coisa e para com língua - estou evocando aqui a reflexão de Derrida sobre
* Ponge 9 -, de uma dívida que não se paga nem se apaga (do "fruto" para
Mas antes de terminar quero dizer mais uma palavra sobre o modo, particu- com o "galho': do "espírito" para com a "letrà: como explicita Ponge). O que
lar da figueira, de desmamar seu fruto de seu galho (como nosso espírito pre-
cisa também fazer com a letra) e sobre esta espécie de rudimento, em nossa
parfois, n'est-cequ'un grenier à tracasseriespour les dents: n'importe,nous l'aimons,nous la
boca:
réclamonscomme notre tétine. Une tétine,par chance,qui deviendraittout à coup comestible,
saprincipalesingularité,à lafin du compte,étant d'êtred'un caoutchoucdesséchéjuste au point
Este pequeno botão de desmame - irredutível - que daí resulta. qubn puisse,en accentuantseulementun peu (incisivement)lapressiondes mâchoires,franchir
Na medida em que nos enfrenta, se certamente não é grande coisa, não é o la résistance- ou plutôt non-résistance,d'abord,aux dents, de son enveloppe-/ Pour,les levres
mesmo que nada. déjà sucréespar la poudre d'érosionsuperficiellequ'elleoffre,se nourrir de l'autelscintillanten
son intérieurqui la remplittoute d'unepulpe depourpregratifiéedepépins./ Ainsi de l'élasticité
Posto, aos resmungos, na borda do prato, (à l'esprit)desparoles,- et de la poésiecommeje l'entends./Mais avant definir je veux dire un
Ou mascado sem fim como se faz com os provérbios: mot encarede lafaçon, particuliereaufiguier, de sevrersonfruit de sa branche(comme ilfaut
Absolutamente compreendido, dá no mesmo. faire aussi notre espritde la lettre) et de cettesorte de rudiment, dans notre bouche:/Ce petit
bouton de sevrage- irréductible- qui en résulte/Pource qu'il nous tient tête,sans doute n'est-ce
Assim seja este pequeno texto: pas grand-chose,ce n'estpas rien./ Poséen maugréantsur le bord de l'assiette,IOu mâchonné
sansfin comme on fait desproverbes:/Absolument compris,c'estégal./ Telsoit ce petit texte:/
Muito menos que um figo (isso se vê),
Beaucoupmoins qu'unefigue (on le voit),/ Du moins à son honneur nous reste-t-il,peut-être:'
Ao menos em sua honra ele nos resta, talvez. (1997, p. 247-248)
8 Retomo aqui em parte a análise feita no ensaio "O lugar das coisas, de Francis Ponge a Chris-
Por nossos deuses imortais, caro Símaco,
tophe Tarkos''. (MORAES, 2017, p. 79-95)
Assimseja.7
9 "A coisa devo um respeito absoluto que nenhuma lei geral mediatiza: a lei da coisa é tam-
bém a singularidade e a diferença. A ela me liga uma dívida infinita, um dever sem fundo.
7 "Voilà l'un des raresfruits, je le constate,dont nous puissions, à peu de chosespres, manger Que jamais saldarei. A coisa não é, portanto, um objeto, não pode tornar-se um:' (DERRIDA,
tout:l'enveloppe,lapulpe, lagraineensembleconcourantà notredélectation./Et peut-être bien, 1984, p. 15)

116 117
assim se exprime, é, finalmente, "muito menos" que o mundo "fenomenal" 2011, p. 164-165). Como resume Fausto, "estamos diante de um modo cen-
que nos cerca, é claro, do que aquilo que, dele, se deixa alegremente ou gozo- trífugo de reprodução sociocultural, que não se funda na acumulação e
sarnente partilhar e reconhecer, escapando ao esquecimento, justamente, na transmissão interna de capacidades e de riquezas simbólicas, mas em
pela boca e pela língua, na boca e na língua. Cabe a cada um apropriar-se sua apropriação desde o exterior. Apropriação de capacidades e perspec-
dele e fazer dele seu próprio "bem': sua própria consolação, sua "consolação tivas que, para se tornarem próprias, devem ser consumidas e familiariza-
materialistà' ("consolationmatérialiste"),como dirá Ponge (1997,p. 74). das:' (FAUSTO, 2011, p. 168) Apropriação que, como estamos vendo, implica
Dito isso, a hipótese que eu gostaria de lançar aqui é a de que pode- conservar a dimensão irremediavelmente desestabilizante da alteridade no
ríamos colocar toda essa encenação pongiana da mordida e da mastigação seio do próprio.'º
- presente, aliás, em tantos outros poemas de Ponge ligados ao comer - a Por outro lado, nunca é demais lembrar que, no âmbito do arranjo da
serviço da reflexão, de um lado, sobre as relações de uma coisa "aparecidà' diversidade cultural que caracteriza a história do Brasil, experiência efetiva
em língua e assim convertida em "bem'' com os extratos de língua mais e intensamente vivida no espaço de alguns séculos a partir do cruzamento
ou menos anacrônicos que transpiram irremediavelmente no aqui e agora entre a colonização, a imigração, o tráfico e a escravidão dos negros afri-
dessa sua assimilação ..:.isto é, as relações dessa coisa em língua com outras canos, e a exploração da mão de obra indígena, tudo isso fazendo parte
textualidades, com outras coisas em língua -, e também, de outro lado, a de nossa constituição enquanto Estado-nação segundo o modelo imposto
serviço da reflexão sobre a possibilidade de transpor tal coisa em língua pelos colonizadores europeus, sempre fomos "desterrados em nossa pró-
para uma outra língua, mais ou menos literalmente - a ver -, isto é, sobre a pria terrà: para usar a famosa expressão de Sérgio Buarque de Holanda
possibilidade de traduzi-la. para definir o sentimento de pertencimento nacional no início de Raízes
Essa reflexões, tentarei fazê-las à luz do "pensamento antropofágico do Brasil(BUARQUE DE HOLANDA, 2000, p. 31). É nesse sentido que a for-
brasileiro" se é que esse sintagma é pensável... Pois parece-me, digo isso de mação do país, o esforço de pensar sua própria identidade, sempre esteve
passagem, que do ponto de vista desse "pensamento': toda aspiração a uma em relação com o ponto de vista do estrangeiro. Nada o mostra melhor,
originalidade referida a um nacional identitário qualquer só pode ser lida quanto ao que me interessa destacar aqui, do que a célebre descrição de
sob a chave da autoironia, como talvez possamos notar com base no que Paulo Prado da "descobertà' do Brasil por Oswald de Andrade:
se segue. Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Place
Antes, pois, de desenvolver essa dupla hipótese com Ponge, quero Clichy - umbigo do mundo - descobriu, deslumbrado, a sua própria terra.
evocar dois ou três aspectos cruciais de tal "pensamento': Em primeiro A volta à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a
lugar, é claro, é preciso ressaltar que, paralelamente à sua condição de prá- revelação surpreendente de que o Brasil existia. (ANDRADE, 2000, p. 89)
tica alimentar, a antropofagia foi muito cedo reconhecida - basta pensar Assim, se, na Europa, a história dos territórios nacionais que foram se
em Montaigne - como uma prática simbólica exprimindo os conflitos e configurando desde a Idade Média impôs-se no mais das vezes às custas do
combates que se encontram invariavelmente em perspectiva nas relações recalque do estrangeiro, o que, na ocupação do território brasileiro, expres-
de dominação entre identidades culturais que se veem em um momento sou-se pela catequização senão pelo massacre maciço dos costumes - e da
dado materialmente confrontadas. Como diz o antropólogo Carlos Fausto, população - indígena, a vocação antropofágica dos habitantes de nossos
nas práticas rituais dos tupis tudo se dava "entre a familiarização do ini- trópicos, sempre ávidos da alteridade alheia, afirmou-se aos poucos em sua
migo e sua predação': Após sua captura, o antagonista era frequentemente dimensão fundamentalmente ambivalente, que implicava uma potência de
incorporado à vida da tribo durante um certo tempo, e sua devoração era autoconhecimento, ou de reconhecimento, que não remetia - e continua
precedida de rituais em que ele era provocado até voltar a ser um inimigo
10 Que podemos, talvez, entender sinteticamente por meio da expressão "Aujhebung antropo-
para poder assim mostrar a todos "sua ferocidade e sua coragem'' (FAUSTO, fágicà; cunhada por Eduardo Viveiros de Castro (VIVEIROS DE CASTRO, 2013, p. 193).

118 119
a não remeter - a nenhuma estabilidade identitária. Eis, portanto, como conhecimento que, nas palavras de Jean-Marie Gleize, "não pode ser sepa-
se desenha o dilema constitutivo da cultura brasileira como tal, exemplar- rado de uma relação sensual-sensível com o sensível, conhecimento físico,
mente expresso no aforismo mais conhecido do Manifesto Antropófago, amoroso, do real, contato" (GLEIZE, 2000, p. 59). Trài~:.:·sede "conhecer o
"Tupy,or not tupy that is the question."(ANDRADE, 2011, p. 67) incognoscível por assimilação':resume o crítico retomando o termo do
Haroldo de Campos resume nestes termos a antropofagia oswaldiana poeta (GLEIZE, 2000, p. 63) igualmente já evocado. E poderíamos, talvez, ir
em seus esforço de afirmação da independência cultural b~asileira: um pouco mais longe e dizer que, a Ponge também, como ao antropófago,
, .:."sóinteressa o que não é [seu]" (ANDRADE, 2011, p. 67); porque, no limite,
A ''.Antropofagia'' oswaldiana [...] é o pensamento da devoração crítica do
legado cultural universal, elaborado não a partir da perspectiva submissa e o "bem'' que de repente pode lhe "aparecer" próximo na verdade sempre
reconciliada do "bom selvagem'' [...], mas segundo o ponto de vista desabu- lhe vem de longe, ainda que no âmbito de seu "horizonte de pedradà' 11,
sado do "mau selvagem': devorador de brancos, antropófago. Ela não envolve como diria Oswald - "caindo': por exemplo, do alto de um "galhd: do galho
uma submissão (uma catequese), mas uma transculturação; melhor ainda,
da "inquietação metafísicà' (GLEIZE, 1997, p. 38), tão cara a uma certa tra-
uma "transvaloração": uma visão crítica da história como função negativa
(no sentido de Nietzsche), capaz tanto de apropriação como de expropria- dição do pensamento e da poesia francesa, que Ponge, por sua vez, devora
ção, desierarquização, desconstrução. Todo passado que nos é "outro" merece aos poucos, paciente mas encarniçadamente, ao "mascá-là: essa tradição,
ser negado. Vale dizer: merece ser comido, devorado. Com esta especificação ao longo de seus rascunhos. O "bem'' cuja "proximidade" precisamos, jus-
elucidativa: o canibal era um "polemista'' (do grego pólemos:luta, combate),
tamente, refabricar como tal, materialmente, no tempo por vir dos "rascu-
mas também um "antologista'': só devorava os inimigos que considerava bra-
vos, para deles tirar proteína e tutano para o robustecimento e a renovação de nhos encarniçados" e de algum modo sempre "erráticos" que não cessamos
suas próprias forças naturais ... (CAMPOS, 2010, p. 234-235) de fazer do mundo que nos cerca.
Como Oswald, Ponge sabia que para fazer algo de próprio, para "sair
Antes de voltar a Ponge, é preciso acrescentar que esse canibal crí-
da cirandà' ("sortir du manege") (1999, I, p. 664), era preciso expor os
tico de que fala Haróldo, imunizado pela "vacina antropofágicà' de que
"bens" que sempre recebemos d'alhures como legado - "as palavras pron-
fala Oswald, "recusa-se a conceber o espírito sem o corpo" (ANDRADE,
tas" ("lesparoles toutesfaites") (1999, I, p. 193) - que era preciso expô-los,
2011, p. 69 ). Que ele se coloca "contra as sublimações antagônicas" "trazidas
esses "bens': essas "palavras': ao tempo e ao espaço que são os nossos,
pelas caravelas" (ANDRADE, 2011, p. 71). E que desafia "a verdade dos povos
fazendo-os, assim, "aparecer" nesse tempo e nesse espaço. É por esse viés,
missionários': a qual não passa de uma "mentira muitas vezes repetidà: E
aliás, que esse tempo, esse espaço, esse corpo e essa língua - essas "pala-
quase no fim do Manifesto,escreve Oswald:
vras" e esses "bens" - se tornam nossos. Não por acaso, a primeira descri-
Somos concretistas. As ideias tomam conta, reagem, queimam gente nas ção do figo no poema é precedida da descrição de uma igreja no meio de
praças públicas. Suprimamos as ideias e as outras paralisias. Pelos roteiros. um bosque, encontrada como se encontra um "fruto caídd: como evoquei
Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas. (ANDRADE,
há pouco, e "desmamadà: se podemos dizê-lo, de sua espiritualidade cristã,
2011, p. 73)
como o figo de seu botão de desmame:
Assim se orienta, pois, esta "ciência do vestígio errático" (AGUILAR,
Assim, vocês podem, como eu, ter encontrado no campo, no fundo de uma
2010) que é o projeto antropofágico de conhecimento, de conhecimento de •região boscareja, alguma igreja ou capela romana, como um fruto caído.
si e do mundo: ela se orienta pela crença nos "sinais" "concretos': sensíveis,
mais do que nas "ideias" ou em "outras paralisias':
11 Eis a passagem: ''Alma para nós não é a divisão tripartida de Platão, nem a pessoa empírica,
Feitas essas reflexões, volto à perspectiva poética de Ponge, lembrando nem o indivíduo físico-psíquico. É, como disse um antropófago, um aparelho mnemônico-
que, como a do projeto estético-cultural de Oswald de Andrade, ela se -telepático encaixado numa cabina física cujo raio de ação não atinge mais que um simples
horizonte de pedrada. A generalização absurda dos fatos psicológicos é o que foi 'alma'. Pura
impõe também, conforme antecipei, como "ato de conhecimento': dt: um
abstração. Atoleiro". (Citado por NODARI, 2015)

120 121
Construída sem muitas maneiras, a relva, o Tempo, o esquecimento a torna- outro fragmento bastante conhecido do Manifesto,que evoca a devoração
ram exteriormente quase informe: às vezes, porém, com o portal aberto, um autóctone da tradição cristã que lhe cai na cabeça, diretamente da Europa,
altar rutilante luz ao fundo. 12 ao evocar regiões brasileiras em que a mestiçagem se impôs muito cedo
É por sua "semelhançà' com esse "altar rutilante'' algo erotizado dessa como uma realidade complexa mas francamente estabelecida: "Nunca
igreja "informe'' que o figo será evocado, ora, segundo a versão, como "um fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos
pequeno ídolo': ora como "uma pequena bombà' "em nossa sensibilidade': Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará:' (ANDRADE, 2011, p. 69)
"incomparavelmente mais antigo e mais inatual ao mesmo tempo': fo~te Para sintetizar um pouco tudo isso e ir direto para o segundo tópico
de "alegrià' em sua "restituição" ao "corpo" pelo "espírito': como escreve prometido - a respeito da tradução -, eu gostaria de evocar uma reflexão
de Derrida sobre "vários modos, infinitamente diferentes, da concepção-
Ponge em seguida (1997, p. 247). O gozo conquistado, como vemos, não
pode deixar de constituir uma relação com uma temporalidade complexa: -apropriação-assimilação do outro': Trata-se de uma entrevista concedida
a Jean-Luc Nancy intitulada "II faut bien manger, ou le calcul du sujet''
tempo da composição, tempo dos rascunhos que se sucedem para a fabri-
(DERRIDA, 1989). Ressalto aqui a ambiguidade do título, explorada por
cação do "culto" que o poeta "prestà' a esse "ídolo': como já explicitei, mas
Derrida ao longo do texto: pode-se ouvir ao mesmo tempo, com "ilfaut
tempo também da "assimilação" em língua ou em voz dos ecos mais ou
bien manger':"é preciso realmente comer" e "é preciso comer bem'' - sem
menos explícitos de certos escritores, de certos personagens históricos,
deixar de lado a ressonância substantiva, a questão do "bem'' que se come ...
encarnando certas tradições de um pensamento materialista que desviam
Eis uma passagem significativa quanto ao que me interessa aqui:
- ou devoram - a força da tradição do pensamento metafísico ociden-
tal. Para o "figo': Gleize já fez o i.nventário: é com Símaco e Boécio, que Para tudo o que se passa na borda dos orifícios (da oralidade mas também do
retornam com frequência à cena e ficam até o "fim."(entre aspas) do texto, ouvido, do olho - e de todos os "sentidos" em geral), a metonímia do "bem
comer" seria sempre a regra. A questão não é mais de saber se é "bom" ou
mas também com Horácio, Lucrécio, Empédocles, Rimbaud ou Michaux, "bem" "comer" o outro, e que outro. A gente o come de todo modo e se deixa
que Ponge toma o "partido" de seus "bens próximos': expressando assim a comer por ele. [...]
"ingenuidade armadà: segundo uma.outra fórmula sua (GLEIZE, 1997, p. A questão infinitamente metonímica do ~'ilfaut .bien manger" não deve ser
39), com a qual ele impõe sua "pequena bombà' ("petitebombe")"na nossa nutriente [nourrissante]apenas para mim, para um eu, que então comeria
mal, ela deve ser partilhada [...]."Ilfaut bien manger" não quer primeira-
[e em sua própria] sensibilidade" (1997, p. 247). mente dizer tomar e compreender em si, mas aprender e dar de comer, apren-
Aqui não resisto à tentação de fazer mais um paralelo: o Manifesto der-a-dar-de-comer-ao-outro. A gente nunca come só, é essa a regra do "il
Antropófagotem também seu "fruto caído': que se explicita na última linha faut bien manger':É uma lei da hospitalidade infinita. (DERRIDA, 1989)
do texto, no momento em que Oswald o data com referência à "Degluti-
Para terminar, eu gostaria falar da dimensão antropofágica da expe-
ção do Bispo Sardinhà' (ANDRADE, 2011, p. 74). Ao identificar os brasilei-
riência da tradução, dessa experiência hospitaleira e ambivalente por exce-
ros aos índios caetés que capturaram e devoraram esse sagrado Sardinha,
lência em que está em jogo a partilha na língua e na boca da devoração do
Oswald faz dele nosso "peixe caído': ou naufragado, a ser devorado, não no
outro, da experiência de devorá-lo e se deixar devorar por ele. Experiência
meio de um bosque, mas à beira de uma costa - "incomparavelmente mais
singular, de todo modo, na medida em que a coisa devorante/ a ser devo-
antigo e mais inatual ao mesmo tempo': talvez pudéssemos também dizer
rada, o "bem'' de que se trata aqui, é, literalmente, a letra.
dele. Espírito de "assimilação" oswaldiano que transpira também num
Agrada-me aqui pensar essa experiência nos termos da assimilação
pongiana do figo, assimilação sempre de algum modo indigerível, indi-
12 "Ainsi avez-vouspu, comme moi, rencontrerdans la campagne,au creuxd'unerégionbocagere,
que/que égliseou chapelleromane, comme un fruit tombê./ Bâtie sans beaucoupde façons, gesta, do rudimento-letra estrangeira enquanto "bem próximo': Entre nós,
l'herbe,le Temps,l'oublil'ontrendue extérieurementpresque informe:mais parfois, le portai/ lusófonos, um dos modos de constituição da "proximidade" desse texto
ouvert, un autel rutilant luit aufond." (1997, p. 246-247)

122 123
de Ponge - "Comment une figue de paroles et pourquoi?'' - se potencia- Referênciasbibliográficas
liza a partir da homonímia acidental entre o advérbio de modo "como':
tradução supostamente literal do francês "comment" (com o qual, nós o
vimos, Ponge sublinha a questão do "método'' de composição do poema), e
o "como" do verbo comer de nossa língua portuguesa, o que leva o poema
AGAMBEN, Giorgio. I.:idéede la prose. Trad. Gérard Macé. Paris: Christian Bour-
a anunciar inevitavelmente, desde o título, sua devoradora performati-
gois, 1998.
vidade, numa piscada de olho à vocação antropofágica reivindicada por
APTER,Emily. Thetranslationzone:a new comparativeliterature.New Jersey: Prin-
nossa tradição literária, sugerindo, assim, uma certa leitura de Ponge que ceton University Presse, 2006.
tentei apresentar aqui. BARROSO, Ivo. Disponível em: <http://gavetadoivo.wordpress.com/2010/10/06/a-
Assim, da mesma maneira que, como Ponge nos ensina, o nome se -proposito-de-um-titulo/>. Acesso em: 08 de jul. de 2011.
desestabiliza diante do aparecer da coisa - e vice-versa -, assim o literal Roland. Leçon.Paris: Seuil, 1978.
BARTHES,
não sobrevive ao encontro com a letra estrangeira, que ele devora ou que ___ . Le bruissementde la Zangue.Paris: Le Seuil, 1984.
o devora inevitável e inelutavelmente. E é assim que, em tradução, para ser BAUDELAIRE, Charles. Pequenospoemas em prosa. Trad. Aurélio Buarque de Hol-
literal, a letra deve inevitavelmente se desliteralizar ao mesmo tempo em landa Ferreira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1950.
que se reliteraliza. ___ . CEuvrescompletes.Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois.
Como todos aqui sabemos, Haroldo gostava de pensar que o êxito Bibliotheque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1975-1976,v. 2.
do tradutor consiste, justamente, na possibilidade de "converter, por um ___ . As flores do mal. Edição bilíngue. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro:
segundo, o original na tradução de sua tradução" (CAMPOS, 1992, p. 84). Nova Fronteira, 1985.
Uma tal insolência do tradutor não significa que a tradução aspire a subs- BENJAMIN, Andrew. Translationand the nature of philosophy.A new theory of
tituir o original, mas que ela o altera de maneira afirmativa e irrevogável,
words.London/ New York:Routledge, 1989.
como uma espécie de "suplemento': para evocar uma última vez Derrida. BENJAMIN, Walter. "Sobre alguns temas de Baudelaire''. CharlesBaudelaire. Um
líricono auge do capitalismo.Obrasescolhidas1II,1. ed. Trad. José Carlos Martins
Assim, se a tradução, como ensinou Walter Benjamin, é um dos modos
Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense,1989.
de um original realizar algumas de• suas próprias virtualidades, sempre
___ . "Rua de mão únicâ'. Rua de mão única. Obras escolhidasII, 4. ed. Trad.
limitadas no tempo e no espaço pelas "imperfeições" (Mallarmé) da língua Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasi-
em que ele vem à letra, essa tradução em nossa língua portuguesa do "figo': liense, 1994.
mais do que permite, impõe e acrescenta mais um "rascunho encarniçado" ___ . O conceitode críticade arte no romantismoalemão.Trad., prefácio e notas
ao poema inacabado, inacabável, indigerível, deste mau (mas laboriosa- de Márcio Seligmann-Silva.São Paulo: Iluminuras, 1999.
mente paciente) selvagem que se torna para nós, brasileiros, Francis Ponge, ___ . A tarefa do tradutor.Quatro traduçõespara o português.Trad. Fernando
a despeito de toda a sua "francidade': .. Camacho, Karlheinz Barck e outros, Susana Kampff Lages e João Barrento. Org.
Lúcia Castello Branco. Belo Horizonte: Fale/UFMG,2008.
___ . "Atarefa do tradutor''. Escritossobremito e linguagem.Trad. Susana Kam-
pffLages. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2011.
___ . ''A imagem de Proust''. Magia e técnica,arte e política.Ensaiossobre lite-
ratura e história da cultura, 8. ed. revista. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense,2012.
___ . Sur Proust.Trad. Robert Kahn. Caen: Nous, 2015.

124 125
BERMAN,Antoine. Pour une critique des traductions:John Donne. Paris: Éditions ___ . "Traduction/ Adaptation''. ln: ERODA,Martine. La Traduction-poésie.À
Gallimard, 1995. Antoine Berman. Strasbourg: Presses Universitaires de Strasbourg, 1999.
___ . A prova do estrangeiro:cultura e traduçãona Alemanha romântica.Trad. DERRIDAJacques. Signéponge= Signsponge.New York: Columbia University Press,
Maria Emília Pereira Chanut. Bauru, SP:EDUSC,2002. 1984.
___ . A tradução e a letra ou o alberguedo longínquo.Trad. Marie- Hélene C. ___ . "Des tours de Babel''. Psyché.Inventionsde l'autre.Paris: Galilée, 1987.
Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.
___ . "II faut bien manger, ou le calcul du sujet''. Entretien (avec Jean-Luc
___ . L'Agede la traduction. "La tâche du traducteur" de Walter Benjamin, un Nancy). Disponível em: <http://www.egs.edu/faculty/jacques-derrida/articles/
commentaire. Saint-Denis: Presses Universitaires de Vincennes, 2008. il-faut-bien-manger>. 1989.
BERNARD,Suzanne. Malldrmé et la musique. Paris: Librairie Nizet, 1959. ___ . "Répliques''. ln: PARASSE,Gérard (Dir.). Pongeà letude, Revue des Sciences
BLANCHOT,Maurice. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Humaines,n. 228, 1992-4, p. 147-207.
Rocco, 1997. ___ . De l'hospitalité.Paris: Calmann-Lévy, 1997.
BOTTMAN,Denise. "Uma vinhetâ'. Traduzires.Programa de Pós-graduação em ___ . Quést-cequ'une traductionrelevante?Paris: Ed. De l'Herne, 2005.
Estudos da Tradução/ UNB, v. 2, n. 1 (2013). Disponível em: <http://seer.bce.unb.
FAUSTOCarlos, "Cinco Séculos de Carne de Vaca: Antropofagia Literal e Antropo-
br/index.php/traduzires/article/view/8048/6118>.
Jorge (Org.). Antro-
fagia Literáriâ'. ln: CASTROROCHA,João Cezar de; RUFFINELLI,
BOURDILPierre-Yves. "Francis Ponge: ce qu'une chose est''. Em: Latelierde Francis pofagiahoje?:Oswaldde Andrade em cena.São Paulo: É Realizações, 2011,p. 161-170.
Ponge.L'Écoledes LettresII, n. 8, 1988-1989, p. 113-131.
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. "Le printemps adorable a perdu son odeur''. Alea
BRETON,André. "lntroduction au discours sur le peu de réalité''. CEuvresComple- [online]. 2007, vol.9, n.1, pp. 64-74. ISSN1517-106X.Disponível em: <http://dx.doi.
tes. Paris: Gallimard, 1988, v. I. org/10.1590/S1517-106X2007000100005>.
BUARQUEDE HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das GLEIZE,Jean-Marie. "Présentation''. Em: PONGE, Francis. Comment une .figue de
Letras, 2000. paroleset pourquoi. Paris: Flammarion, 1997,p. 9-50.
CAMPOS,Haroldo de. Deus e o diabo no Fausto de Goethe.São Paulo: Perspectiva, ___ . "Prenez et mangez (fragment d'un manifeste réeliste )''. Em: FrancisPonge.
1981. Matiere, Matériau, Matérialisme, La Licorne. Poitiers: Maison des Sciences de
__ . _. Metalinguageme outras metas. São Paulo: Perspectiva, 4 ed., 2010. l'Homme et de la Société, 2000, n. 53, p. 53-64:
___ . "O que é mais importante: a escrita ou o escrito? Teoria da linguagem em ___ . "Les chiens s'approchent, et seloignent''. Alea v. 9 n. 2. Rio de Janeiro, July/
Walter Benjamin''. Revista da USP, n. 15, set/out/nov. 1992, p. 84. Disponível em: Dec. 2007. Disponível em:<http://dx.doi.org/lo.1590/S1517-106X2007000200002>.
<http:/ /www. usp. br/revistausp/15/ 06-haroldo.pdf>. GLISSANT,Édouard. Entretiens avec Lise Gauvin (1991-2009). Paris: Gallimard,
CASSIN,Barbara. "Plus d'une langue. Appel pour une politique européenne de la 2010.
traduction''. Disponível em: <http:/ /www.dglflf.culture.gouv.fr/publications/Refe- GREEN,Julian. Le langageet son double.Paris: Seuil, 1987.
rences1o_Traduire.pdf>. Acesso em 05 de set. de 2010.
GUIMARÃESROSA,João. João GuimarãesRosa: correspondênciacom seu tradutor
___ . Vocabulaireeuropéendes philosophies.Paris: Éditions du Seuil/ Diction- italianoEdoardoBizzarri. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Belo Horizonte: Ed. da
naires Le Robert, 2004. UFMG,2003.
CIXOUS,Hélene. "La langue est le seul refoge''. Entretien avec Bernard Leclair. Em: KRISTEVA, Julia. 'Tautre langue ou traduire le sensible''. FrenchStudiesLII (4), 1998.
La Quinzaine littéraire,n. 793, 1-i5 octobre 2000. Disponível em: <http:/ /fs.oxfordjournals.org/ content/LII/ 4.toe>.
DEÂNGELI,Maria Angélica. A literatura na língua do outro: JacquesDerrida e LACAN,Jacques. O seminário,livroI, Os escritostécnicosde Freud.Trad. MD Magno.
AbdelkebirKhatibi. São Paulo: UNESP,2012. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1979.
DEBRAY,Régis. Élogedesfrontieres.Paris: Gallimard, 2010. LAGES,Susana Kampff. WalterBenjamin: traduçãoe melancolia.São Paulo: Edusp,
DEGUY,Michel. Aux heuresd'affluence.Paris: Seuil, 1993. 2002.
___ . Lenergiedu désespoir.Paris: PUF, 1998. LAPLANCHE,Jean; PONTALIS,Jean-Baptiste. Vocabulárioda Psicanálise.Trad.
Pedro Tamen. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

126 127
MALLARMÉ,Stéphane. CEuvrescompletes.Bibliotheque de la Pléiade. Henri Mon-
dar e G. Jean-Aubry (Org.). Paris: Gallimard, 1945. SCEPI, Henri. "La parole 'demeurée' (retour sur La Figue)''.ln: Francis Ponge.
Matiere, Matériau, Matérialisme, La Licorne. Poitiers: Maison des Sciences de
___ . Mallarmé.T;ad.Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Cam- l'Homme et de la Société, 2000, n. 53, p. 89-108.
pos (Org. e trad.). São Paulo: Editora Perspectiva, 1991.
TXT 1969/1993. UNE ANTHOLOGIE. Paris: Bourgois Éditeur, 1995.
___ . Correspondance.Lettressur lapoésie.Bertrand Marchal (Org.). Paris: Gal-
limard, 1995. VALÉRY,Paul. Discursosobrea estética.Poesiae pensamento abstrato.Trad. Pedro
Schachtt Pereira. Lisboa: Passagens, 1995.
MELMAN, Charles. Imigrantes:incidênciassubjetivas das mudanças de língua e
país. São Paulo: Escuta, 1992. WEIDNER,Daniel. Traductionet survie. Walter Benjamin lit MarcelProust. Trad.
Guillaume Burnod e Aurélia Kalisky. Paris: Éditions de l'éclat, 2015.
MORAES,Marcelo Jacques de. ChristianPrigent.Coleção Ciranda da Poesia. Rio de
Janeiro: EdUERJ, 2015.
___ . O fracassodo poema. Rio de Janeiro: 7Letras, 2017.
NANCY,Jean-Luc. EÉcoute.Paris: Galilée, 2002.
NODARI, Alexandre. ''A transformação do Tabu em totem: notas sobre (um)a
fórmula antropofágicà'. Revista Das Questões,n. 2, 2015. Disponível em: <http://
periodicos.unb.br/index.php/dasquestoes/article/view/15415>.
NOVARINA,Valere. Devant laparole.Paris: POL, 2010.
Inês (Org.). Traduction& poésie.Paris: Maisonneuve & Larose, 2004.
OSEKI-DEPRE,
PENNEQUIN,Charles. La Villeest un trou suivi de Unjour. Paris: P. o.L.,2007.

POE, Edgar Allan. Poetryand tales.New York: Library of America, 1984.


___ . Poemase ensaios.Trad. Oscar Mendes e Milton Amado. São Paulo: Globo,
1999.
___ . EdgarAllan Poe'sCompletePoeticalWorks.Ed. John H. Ingram. Disponí-
vel em: <http:/ /www.gutenberg.org/files/Ioo31/Ioo31-h/Ioo31 -h.htm>.
PONGE,Francis. Comment une.figuedeparolesetpourquoi.Paris: Flammarion, 1997.
___ . CEuvrescompletes.Bibliotheque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1999-
2002, V. 2.
PRIGENT,Christian. Commencement.Paris: P.O.L.,1989.
___ . ChristianPrigent,quatre temps. RencontreavecBénédicteGorrillot.Paris:
Argol, 2004.
___ . Compile.Paris: P.O.L.,2011.
PROUST,Marcel. ContreSainte-Beuve.Paris: Gallimard, 1954a.
___ . A la recherchedu tempsperdu, Bibl. de la Pléiade, 4 vol. Paris: Gallimard,
1954b.
RICOEUR,Paul. Sur la traduction.Paris: Bayard, 2004.
RIMBAUD,Isabelle. Rimbaud mystique. Paris: Le Mercure de France, 1914.

128
129
Notas bibliográficas sobre os textos

Os ensaios que compõem este volume foram apresentados em even-


tos, numa primeira versão, antes de serem publicados como artigos em
periódicos ou como capítulos de livros. Alguns deles tiveram mais de uma
versão publicada, às vezes em português e em francês, sempre mais ou
menos remanejados. Nesse sentido, as informações abaixo não são exausti-
vas, constituindo apenas uma referência sobre a gênese do texto. Mudei os
títulos de alguns, com vistas à composição deste conjunto.

AFETOS DE LEITURA: REVERÊNCIA E IRREVERÊNCIA NA TRADUÇÃO

Teve por base um texto apresentado em 2006 no I Encontrode Tradutores


de ObrasFrancesasno Brasil,em Brasília, e publicado em 2007 na revista
Cerrados(v. 16, n. 23), do Programa de Pós-Graduação em Letras da Uni-
versidade de Brasília, em número com as intervenções dos participantes
organizado por Álvaro Faleiros e André Luís Gomes. O ensaio foi poste-
riormente ampliado para o colóquio Traduirele même, l'autreet le soi,orga-
nizado em Aix-en-Provence em 2008 por Inês Oseki-Depré e Francesca
Manzari, e teve mais duas versões publicadas, uma em francês ("Letra-
ducteur et ses affects': no livro Traduirele même, l'autreet le soi, Presses
Universitaires de Provence, 2011) e outra em português ("O tradutor e seus
afetos': na revista Remate de males,do Departamento de Teoria Literária do
Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, 2008, v. 28, n. 2).

SOBRE A RELAÇÃO ENTRE AS LÍNGUAS DESDE A TAREFA DO TRADUTOR

Teve por base uma intervenção no II Encontrode tradutoresde obrasfran-


cesasno Brasil,realizado em 2009 na Casa das Rosas, em São Paulo, com
o título ''A tarefa do tradutor: entre textos e línguas''. O evento resultou no AURÉLIO E OS POEMAS EM PROSA DE CHARLES BAUDELAIRE:
livro A traduçãode obrasfrancesasno Brasil,organizado por Álvaro Faleiros, NOTAS SOBRE UMA TRADUÇÃO REBUSCADA
Adriana Zavaglia e Alain Mouzat (São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2011).
Foi feito sob encomenda de Izabela Leal para publicação em livro sobre
traduções literárias publicadas em jornais do Pará. Deverá ser publicado
LÍNGUA, LUGAR DA EXPERIÊNCIA
em livro organizado pela pesquisadora em 2017.
Foi inicialmente apresentado em 2010 no II Simpósiode LiteraturaCompa-
rada e Tradução,na Universidade Federal de Santa Catarina, e em 2011, em MALLARMÉ TRADUZINDO POE: SOBRE TRÊS "ERROS" DE TRADUÇÃO
versão ampliada em francês, na Université de Bordeaux, no Colóquio Tra-
Foi primeiramente apresentado no simpósio Poéticasda Tradução,organi-
duction et partages:que pensons-nousdevoir transmettre?Foi publicado em
zado por mim, Paula Glenadel e Izabela Leal no XI EncontroInternacional
português no livro Traduçãoliterária:a vertigemdopróximo,organizado por
da AssociaçãoBrasileirade Pesquisadoresem Tradução,que teve lugar na
Ana de Alencar, Caio Meira e Izabela Leal (Rio de Janeiro: Azougue/ Faperj,
Universidade Federal de Santa Catarina em 2013. O texto foi em parte reto-
2011), com o título "Viver entre línguas: língua, lugar/ tradução da experiên-
mado em artigo feito a quatro mãos com Izabela Leal, intitulado "Edgar
cià: e em francês na revista PluralPluriel- revue des culturesde Zanguepor-
Poe em tradução: Mallarmé, Artaud, Herberto Helder" e publicado na
tugaise(n. 7, automne-hiver 2010 ), da Universidade de Nanterre - Paris XI,
revista Remate de males,do Departamento de Teoria Literária do Instituto
com o título "VivreentreZangues: Zangue,lieu/ traductionde l'expérience".
de Estudos da Linguagem da Unicamp, 2015, v. 35, n. 1.

SOBRE A VIOLÊNCIA DA RELAÇÃO TRADUTÓRIA.


LÍNGUA CONTRA (A) LÍNGUA: TRADUZINDO CHRISTIAN PRIGENT
OU: A TRADUÇÃO COMO ATO
Foi primeiramente apresentado em francês, com o título "Trou(v)ersa
Teve por base uma conferência apresentada no XII CongressoInternacional
Zanguepar la Zanguede l'autre:en traduisant Christian Prigent",no coló-
da Abralic,que se realizou em 2011 na Universidade Federal do Paraná. O
quio ChristianPrigent:Trou(v)er sa Zangue,que se realizou no Centro Cul-
texto foi publicado no mesmo ano na RevistaBrasileirade LiteraturaCom-
tural Cerisy-la-Salle, em Cerisy-la-Salle, França, em 2014, com a presença
parada (v. 19). Uma segunda versão foi apresentada em 2013 no V Encontro
do poeta. O texto será publicado em 2017 pela editora francesa Hermann,
Outràrte,realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo sido
em volume preparado por Bénédicte Gorrillot e Fabrice Thumérel, orga-
publicada no livro Girosda interpretação(Campinas: Mercado de Letras,
nizadores do colóquio, com as intervenções dos participantes do evento.
2015), organizado por Nina Virgínia de Araújo Leite e Flávia Trocoli com
Uma versão adaptada para o português, base do texto atual, foi apresentada
os trabalhos do evento.
no mesmo ano na mesa-redonda "Estudos da Tradução': no XIV Congresso
Regionalda Abralic,realizado na Universidade Federal do Pará.
ENVELHECIMENTO E ESQUECIMENTO, CONTRATEMPOS
DA TRADUÇÃO (COM WALTER BENJAMIN E MARCEL PROUST)
PODE-SE COMER UM FIGO DE PALAVRAS?
Teve uma primeira versão em português apresentada no simpósio Tradu- UMA QUESTÃO (ANTROPOFÁGICA?) COM/ A FRANCIS PONGE
ção,contemporaneidadee extemporaneidade,organizado por mim, Maurí-
Teve uma primeira versão em português apresentada no Simpósio "Tra-
cio Cardozo e Helena Martins no âmbito do XV EncontroInternacionalda
dução e antropofagià: organizado por mim e Izabela Leal no âmbito do
Abralic,realizado em 2016 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
XIV CongressoInternacional da Abralic, realizado em junho de 2015 na
Universidade Federal do Pará. Foi em seguida desenvolvido em francês,

132 133
com o título "Mange-t-on une figue de paroles?': para ser apresentado no
colóquio FrancisPonge:AteliersContemporains,que se realizou no Centro
Cultural Cerisy-la-Salle, em Cerisy-la-Salle, França, em setembro de 2015.
Os textos apresentados devem ser publicados em 2017 pelas Edições Gar-
nier. O novo texto teve uma primeira versão em português publicada no
periódico Traduçãoem Revista, da PUC-Rio (vol. 19, 2015.2), em volume
organizado por Maurício Cardozo e Helena Martins, e foi também apre-
sentado no colóquio Linhas defuga: poesia,modernidadee contemporanei-
dade, organizado por Susana Scramim, Marcos Siscar e Alberto Pucheu
e realizado na Universidade Federal de Santa Catarina em novembro de
2015. Os trabalhos desse evento foram publicados em livro homônimo (São

Paulo: Iluminuras, 2016).

134
sobre a experiência reverentemente
irreverente de leitura, crítica e prática de
tradução de obras da literatura francesa
moderna e contemporânea. Mas isso
significa, igualmente, que, para além de
um pensamento sobre a violência e as
ambivalências da tradução no sentido estrito
da relação entre obras, o leitor também
se sentirá incessantemente confrontado
com um pensamento sobre os amores e
assombros da tradução como relação entre
línguas - explicitando-se, assim, a força
com que o pensamento benjaminiano
reverbera nestes textos. E é por articular-se
nesses termos que o pensamento de Marcelo
Jacques de Moraes impõe-se, ainda, como
um pensamento sobre o que recende na
tradução enquanto relação com o outro, essa
relação sempre singular e irredutivelmente
olorosa, que tanto funda a experiência de
traduzir-se em si e a si mesmo a cada novo
instante, quanto atravessa toda prática de
tradução experimentada com a densidade e
complexidade do demasiadamente humano.

Mauricio Mendonça Cardozo

MARCELO JACQUES DE MORAES é


professor titular de literatura francesa na
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
tradutor e pesquisador do CNPq.Recebe
atualmente a bolsa Cientista do Nosso
Estado da Faperj (2016-2019).É doutor
em Letras Neolatinas pela UFRJ (1996)
e fez estágios de pós-doutorado nas
Universidades de Paris VIII (2003), de
IMPRESSO NA GRÁFICA DA EDITORA VOZES Paris vn (2010) e na Unicamp (2015).
PARA VIVEIROS DE CASTRO EDITORA É autor de Ofracasso do poema e de
EM JULHO DE 2017. A incertezadasformas, também
publicados pela Editora 7Letras em
2017,entre outros.

Você também pode gostar