A música da Cigana ainda cantarola em mim. Participar de certos
processos é mais difícil do que imaginava. É mergulhar sem permanecer. Mãe Maria, com seu jeito seguro, firme e protetor – acalentador- já estava no barracão quando cheguei, sentada. Fui trazida por seu Ogã. Não incorporou, pelo menos durante o tempo em que estive lá, pois não pude ficar até o final. São muitos os afetos, cigarros, charutos, tambores e minha vida inteira vibrava junto com eles, num sopro, num relampejar. Mais uma vez, suspirei sua vida inteira, in memória, de uma vez só. Muitas crianças circulavam pela casa durante a gira, que durou em torno de umas quatro horas e meia, cinco horas. Algumas dançavam, enquanto outras brincavam. Fiquei surpresa por nenhuma delas ser atropelada pelos adultos, que nos momentos de transe muitas vezes andavam bruscamente, cambaleavam ou sapateavam no chão. Era um encontro lindo. A estética de matriz africana é fortemente bela, seja ela Umbanda ou Candomblé. É potente, muita vida. São tantas cantigas e toques fortes nos tambores quanto as batidas de meu coração acelerado, em êxtase. Chegue tímida, bem tímida, com vergonha de tudo. Medo de que me perguntassem algo e se desnudasse minha ignorância sobre a fé nos Orixás, nas entidades. Mas como pode uma galinha d’angola não ser macumbeira, minha gente? Eram cavalos amalucados, exagerados. Faz isso com seu cavalo não, Catiço! Eram as senhoras pretinhas, retintas. Que lindas, que cena. Que sorte a minha, caso eu não estivesse sendo preparada para o meu próprio sacrifício. As pessoas cuidam umas das outras para que não haja nenhuma queda, nenhum acidente. Cuidam de suas entidades com bebidas, cigarros, agrados e as entidades chegam para trabalhar (diz um canto), cuidam dos mortais, saram as feridas, dão conselhos, abençoam. Saí mais cedo do espaço, o olho já embaralhava. O Ogã, que se chama Marcos me levou para um dos aposentos dentro da casa. Eram muitos sons, muitas cores, muitos suores, muitas fumaças e com tanta força e deslumbramento fiquei cheia. Há quanto este terreiro existe lá, perto de minha casa, e eu, nem ao menos, tinha ouvido falar? Beleza, religiosidade, resistência. Sou uma galinha d’angola, criada em cativeiro e em bem pouco tempo irei sacralizar um rito de passagem de uma moça, que se chama Maitê, ela irá raspar a cabeça pra Yemanjá e precisa de mim pra que essa consagração seja feita. Irei morrer, mas não é de qualquer jeito. A partir daquele dia comecei a morar nesta casa e fui participando dos rituais, das giras, vi muita coisa bonita. Na segunda vez que fui convocada a participar, adentrei o espaço e mais uma vez me deparei com mãe Maria sentada na cadeira principal lendo um pequeno e velho livro de orações. Me aproximei e perguntei se estava tudo bem, mas ela não respondeu. Vida complexa essa das galinhas. Apenas gatos e cachorros são ouvidos. A chuva que caía deixava as ruas muito cheias de lama e isso incomodava mãe Maria, que já estava com o barracão todo limpinho. O espaço é sagrado, de uma sacralidade como a vida é. As brincadeiras e os brinquedos dos pequenos se misturam aos sons que vibram pela casa. De repente, tudo é tomado de vida mundana, imunda, sacra. Velas e cuspes gargalham junto com a roda que se solta de uma demonização medíocre e hipócrita que insiste em exorcizar e exterminar suas crenças. Entretanto, tudo está ali. Até as rezas rezadeiras e o canto de Oxóssi mais Jesus saúdam a resistência da Umbanda naquela fria noite. E eu era toda emoção.Tomei um passe, depois de a senhorinha ao meu lado me colocar ao lado do cavalo. Sou mesmo preciosa, pensei, e me peguei a me sentir imensamente grata por tudo que estava experimentando ali. Dias se passam e chega a gira de Erê. Ela começa numa potência absurda. Uma senhora começa a incorporar e dá uma dúvida se ela está mesmo bem. Quando menos se espera sai um canto forte como que saindo de suas entranhas e ela canta, gira, vibra, como se o mundo fosse aquele movimento imanente de pulso de vida – e fosse tão único – e realmente é. Uma moça que estava em um dos tambores chorou, se emocionou várias vezes, e eu também. E a casa foi enchendo. Mais do que nunca as crianças são convidadas a permanecer, ficar à vontade. Que lindo isso! Enquanto isso, as senhoras se divertem pulando com suas chupetas na boca, em seus devires crianças... No dia dois de novembro, finados, também foi dia de gira. É a primeira vez que mãe Maria faz algo nesta data e é especial. Uma gira em homenagem a Exú. Ela começa em torno das 18 horas e, aos poucos, vai sendo tomada por muitas gentes, cores, corpos, festa. A experiência da vida se (re)atualiza com aqueles corpos disponíveis. Seria essa uma outra forma de lidar com a morte? Do lado de fora, a circulação de ar costuma minimizar as pressões que sinto na cabeça toda vez que estou dentro da casa. E do lado de fora se encontram também aquelas vidas outras, são outros movimentos que giram. Existem muitas pessoas trans, gays, travestis que circulam por aquele lugar. Corpos outros, que fogem do padrão hegemônico de existência. São outras posturas, outras sobrancelhas, cabelos, cinturas, formas que rompem. Formas que quebram com o modo de pensar e de olhar coloniais, que causam rachaduras no modo de enxergar a vida, de existir. Volto pra dentro do barracão e vejo um menino de, aparentemente, doze anos de idade incorporando. Muitas pessoas olhavam. Queriam chegar mais perto pra contemplar aquele acontecimento e eu, extasiada. A figura daquela criança ali com as mãos nos ouvidos e girando, cambaleante, era como uma roda gigante de afetos. Era como se a paisagem fosse e voltasse. Era como se eu visse o mundo por vários ângulos. Como se eu estivesse em uma senzala pedindo aos meus deuses que me protegessem. Era finados e era vida, batuque. Será que nós, galinhas, também temos ancestralidade? Será que me encontrarei com a minha assim que eu for sacrificada em nome dela, Yemanjá? E passados mais uns dias, chega o dia da minha partida. Será que existe o céu dos bichos? Para onde irei? Será que ficarei encarnada em Maitê? Talvez meu corpo se transmute para o elemento água, elemento de sua Orixá. Talvez eu me transforme em um ser que passa, como a onda do mar. Minha paixão por Exú é grande, mas hoje irei me deitar nos braços de Ikú. Hoje é tudo partida, é tudo tristeza, mas também é tudo arco-íris, é tudo contemplação, sentimento de tarefa cumprida com a própria vida. Dia desses minha antiga dona estava ouvindo ouviu num álbum de Luedji Luna que “o amor é coisa que mói muchimba e depois o mesmo que faz curar” e essa frase não sai de mim. Essa era a vida que eu esperava. Viver com um propósito e partir por ele. Casa aberta, ventre aberto para o que havia de vir. Me pego enxergando o real em sua dimensão mais bela, esses encontros me transformarão em outra. Os humanos têm essas tais instituições neles, construções históricas, pertenças. Seu olho é permeado delas. E a nossa vida está atrelada a deles. Então, de alguma forma, também somos constituídas pelas instituições. A presença de uma galinha d’angola adentrando em um terreiro não é trivial. O encontro ressalta as implicações. Mãe Maria é filha de Omolú, orixá ligado à saúde. Ela vai ao posto, ela é o posto. Ela benze, reza, cuida, prescreve suas tradições. E tudo cabe num mundo múltiplo em seus fazeres, fés, correrias e relações. Aqueles tambores me levaram várias vezes a sentir a força da terra. Conexão com a terra, aterramento, incorporação, imanência. Sou uma vida que cisca.Fui uma vida que cisca. Referências: Experiência de estágio básico I, no terreiro de mãe Maninha, em Itanguá, Cariacica, no ano de 2016.