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Universidade Federal do Espírito Santo

Centro de Ciências Humanas e Naturais

Departamento de Psicologia

Disciplina Animalidade, subjetividade e política

Aluna: Valéria Moreira Teriquelhe

Avaliação escrita

O Conto do meu canto

A música da Cigana ainda cantarola em mim. Participar de certos


processos é mais difícil do que imaginava. É mergulhar sem
permanecer. Mãe Maria, com seu jeito seguro, firme e protetor –
acalentador- já estava no barracão quando cheguei, sentada. Fui trazida
por seu Ogã. Não incorporou, pelo menos durante o tempo em que
estive lá, pois não pude ficar até o final. São muitos os afetos, cigarros,
charutos, tambores e minha vida inteira vibrava junto com eles, num
sopro, num relampejar. Mais uma vez, suspirei sua vida inteira, in
memória, de uma vez só.
Muitas crianças circulavam pela casa durante a gira, que durou em torno
de umas quatro horas e meia, cinco horas. Algumas dançavam,
enquanto outras brincavam. Fiquei surpresa por nenhuma delas ser
atropelada pelos adultos, que nos momentos de transe muitas vezes
andavam bruscamente, cambaleavam ou sapateavam no chão. Era um
encontro lindo. A estética de matriz africana é fortemente bela, seja ela
Umbanda ou Candomblé. É potente, muita vida. São tantas cantigas e
toques fortes nos tambores quanto as batidas de meu coração
acelerado, em êxtase. Chegue tímida, bem tímida, com vergonha de
tudo. Medo de que me perguntassem algo e se desnudasse minha
ignorância sobre a fé nos Orixás, nas entidades. Mas como pode uma
galinha d’angola não ser macumbeira, minha gente?
Eram cavalos amalucados, exagerados. Faz isso com seu cavalo não,
Catiço! Eram as senhoras pretinhas, retintas. Que lindas, que cena. Que
sorte a minha, caso eu não estivesse sendo preparada para o meu
próprio sacrifício. As pessoas cuidam umas das outras para que não
haja nenhuma queda, nenhum acidente. Cuidam de suas entidades com
bebidas, cigarros, agrados e as entidades chegam para trabalhar (diz
um canto), cuidam dos mortais, saram as feridas, dão conselhos,
abençoam.
Saí mais cedo do espaço, o olho já embaralhava. O Ogã, que se chama
Marcos me levou para um dos aposentos dentro da casa. Eram muitos
sons, muitas cores, muitos suores, muitas fumaças e com tanta força e
deslumbramento fiquei cheia. Há quanto este terreiro existe lá, perto de
minha casa, e eu, nem ao menos, tinha ouvido falar? Beleza,
religiosidade, resistência.
Sou uma galinha d’angola, criada em cativeiro e em bem pouco tempo
irei sacralizar um rito de passagem de uma moça, que se chama Maitê,
ela irá raspar a cabeça pra Yemanjá e precisa de mim pra que essa
consagração seja feita. Irei morrer, mas não é de qualquer jeito. A partir
daquele dia comecei a morar nesta casa e fui participando dos rituais,
das giras, vi muita coisa bonita. Na segunda vez que fui convocada a
participar, adentrei o espaço e mais uma vez me deparei com mãe Maria
sentada na cadeira principal lendo um pequeno e velho livro de orações.
Me aproximei e perguntei se estava tudo bem, mas ela não respondeu.
Vida complexa essa das galinhas. Apenas gatos e cachorros são
ouvidos. A chuva que caía deixava as ruas muito cheias de lama e isso
incomodava mãe Maria, que já estava com o barracão todo limpinho.
O espaço é sagrado, de uma sacralidade como a vida é. As brincadeiras
e os brinquedos dos pequenos se misturam aos sons que vibram pela
casa. De repente, tudo é tomado de vida mundana, imunda, sacra. Velas
e cuspes gargalham junto com a roda que se solta de uma demonização
medíocre e hipócrita que insiste em exorcizar e exterminar suas crenças.
Entretanto, tudo está ali. Até as rezas rezadeiras e o canto de Oxóssi
mais Jesus saúdam a resistência da Umbanda naquela fria noite. E eu
era toda emoção.Tomei um passe, depois de a senhorinha ao meu lado
me colocar ao lado do cavalo. Sou mesmo preciosa, pensei, e me
peguei a me sentir imensamente grata por tudo que estava
experimentando ali. Dias se passam e chega a gira de Erê. Ela começa
numa potência absurda. Uma senhora começa a incorporar e dá uma
dúvida se ela está mesmo bem. Quando menos se espera sai um canto
forte como que saindo de suas entranhas e ela canta, gira, vibra, como
se o mundo fosse aquele movimento imanente de pulso de vida – e
fosse tão único – e realmente é. Uma moça que estava em um dos
tambores chorou, se emocionou várias vezes, e eu também. E a casa foi
enchendo. Mais do que nunca as crianças são convidadas a
permanecer, ficar à vontade. Que lindo isso! Enquanto isso, as senhoras
se divertem pulando com suas chupetas na boca, em seus devires
crianças...
No dia dois de novembro, finados, também foi dia de gira. É a primeira
vez que mãe Maria faz algo nesta data e é especial. Uma gira em
homenagem a Exú. Ela começa em torno das 18 horas e, aos poucos,
vai sendo tomada por muitas gentes, cores, corpos, festa. A experiência
da vida se (re)atualiza com aqueles corpos disponíveis. Seria essa uma
outra forma de lidar com a morte? Do lado de fora, a circulação de ar
costuma minimizar as pressões que sinto na cabeça toda vez que estou
dentro da casa. E do lado de fora se encontram também aquelas vidas
outras, são outros movimentos que giram. Existem muitas pessoas
trans, gays, travestis que circulam por aquele lugar. Corpos outros, que
fogem do padrão hegemônico de existência. São outras posturas, outras
sobrancelhas, cabelos, cinturas, formas que rompem. Formas que
quebram com o modo de pensar e de olhar coloniais, que causam
rachaduras no modo de enxergar a vida, de existir.
Volto pra dentro do barracão e vejo um menino de, aparentemente, doze
anos de idade incorporando. Muitas pessoas olhavam. Queriam chegar
mais perto pra contemplar aquele acontecimento e eu, extasiada. A
figura daquela criança ali com as mãos nos ouvidos e girando,
cambaleante, era como uma roda gigante de afetos. Era como se a
paisagem fosse e voltasse. Era como se eu visse o mundo por vários
ângulos. Como se eu estivesse em uma senzala pedindo aos meus
deuses que me protegessem. Era finados e era vida, batuque.
Será que nós, galinhas, também temos ancestralidade? Será que me
encontrarei com a minha assim que eu for sacrificada em nome dela,
Yemanjá? E passados mais uns dias, chega o dia da minha partida.
Será que existe o céu dos bichos? Para onde irei? Será que ficarei
encarnada em Maitê? Talvez meu corpo se transmute para o elemento
água, elemento de sua Orixá. Talvez eu me transforme em um ser que
passa, como a onda do mar. Minha paixão por Exú é grande, mas hoje
irei me deitar nos braços de Ikú. Hoje é tudo partida, é tudo tristeza, mas
também é tudo arco-íris, é tudo contemplação, sentimento de tarefa
cumprida com a própria vida. Dia desses minha antiga dona estava
ouvindo ouviu num álbum de Luedji Luna que “o amor é coisa que mói
muchimba e depois o mesmo que faz curar” e essa frase não sai de
mim.
Essa era a vida que eu esperava. Viver com um propósito e partir por
ele. Casa aberta, ventre aberto para o que havia de vir. Me pego
enxergando o real em sua dimensão mais bela, esses encontros me
transformarão em outra. Os humanos têm essas tais instituições neles,
construções históricas, pertenças. Seu olho é permeado delas. E a
nossa vida está atrelada a deles. Então, de alguma forma, também
somos constituídas pelas instituições. A presença de uma galinha
d’angola adentrando em um terreiro não é trivial. O encontro ressalta as
implicações. Mãe Maria é filha de Omolú, orixá ligado à saúde. Ela vai
ao posto, ela é o posto. Ela benze, reza, cuida, prescreve suas
tradições. E tudo cabe num mundo múltiplo em seus fazeres, fés,
correrias e relações.
Aqueles tambores me levaram várias vezes a sentir a força da terra.
Conexão com a terra, aterramento, incorporação, imanência. Sou uma
vida que cisca.Fui uma vida que cisca.
Referências:
Experiência de estágio básico I, no terreiro de mãe Maninha, em
Itanguá, Cariacica, no ano de 2016.

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