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SANTOS Josiane Particularidades Da Questao Social No Brasil (Temas & Matizes 2010)
SANTOS Josiane Particularidades Da Questao Social No Brasil (Temas & Matizes 2010)
RESUMO: O presente texto tem o objetivo de apresentar alguns elementos para o debate das
particularidades da “questão social” no Brasil. Sua necessidade advém da compreensão de que é
preciso adensar o debate conceitual sobre a “questão social” saturando-o de mediações referentes às
formações sociais específicas. A partir da análise do desemprego, como uma de suas expressões,
busco identificar as modalidades de exploração da força de trabalho dominantes na constituição do
capitalismo brasileiro. Ao considerá-las de modo central uma das principais conclusões extraídas do
texto é de que a flexibilidade e precariedade das ocupações no mercado de trabalho brasileiro são
marcas históricas da “questão social”; isso significa dizer que não se pode tributá-las ao atual padrão
de acumulação flexível, advindo com a crise capitalista contemporânea. As conclusões apresentadas
foram resultantes da pesquisa teórica realizada para elaboração da minha tese de doutoramento.
Palavras-chave: Mercado de trabalho; Formação social; Desemprego.
ABSTRACT: This paper aims to present some of the elements for discussion of the peculiarities of the
"social issues" in Brazil. Their need arises from the understanding that we must enrich the conceptual
debate on the "social issues" saturating the mediation relating to specific social formations. From the
analysis of unemployment as one of its expressions, I try to identify the terms of exploitation of
workforce modalities prevailing in the constitution of Brazilian capitalism. Considering these
modalities as a central point, one of the main conclusions of the paper is that the flexibility and
precariousness of jobs in the Brazilian labor market are historical marks of the "social issue" in Brazil.
It means that we can not attribute them to the current standard of flexible accumulation, arising from
the crisis of contemporary capitalist. The conclusions presented were the result of theoretical research
carried out for preparation of my doctoral thesis.
KEY WORDS: Labor market; Social formation; Unemployment.
Entendo que Marx, citado acima, está chamando atenção para a dimensão
histórico-concreta do modo de produção, portanto, para o nível da “formação
social”1 e colocando em questão as mediações que impossibilitam a existência da
categoria “modo de produção” num “estado puro”. Tomando essa indicação e
observando o debate teórico acerca da “questão social”, sob o ângulo do marxismo,
vê-se que o marco referencial é dado apenas por categorias do modo de produção
(capital e trabalho). Isso coloca o debate num nível genérico evidenciando o desafio
de ultrapassá-lo apanhando as mediações sócio-históricas próprias ao nível da
formação social, para além das suas determinações em termos do modo de
produção capitalista – como o são as categorias centrais do debate já instaurado
sobre a “questão social”.
Dizendo de outro modo: para explicar a “questão social” no Brasil não basta
identificar as categorias centrais ao modo de produção capitalista, que compõem o
nível da universalidade; há que acrescentar a esse nível a singularidade dos
1 “[...] a análise histórica demonstra que, nas sociedades que sucederam à comunidade primitiva,
havendo sempre um modo de produção dominante, ele subordina formas remanescentes de modos já
substituídos, formas que se apresentam como vestígios mais ou menos fortes do passado – podendo
mesmo, em certos casos, ocorrer a combinação de formas de mais de um modo de produção numa
sociedade determinada. Por isso, emprega-se a expressão formação econômico-social (ou,
simplesmente, formação social) para designar a estrutura econômico-social específica de uma
sociedade determinada, em que um modo de produção dominante pode coexistir com formas
precedentes (e mesmo, com formas que prenunciam elementos a se desenvolverem posteriormente)”
(NETTO & BRAZ, 2006, p. 62-63).
Social do país inteiro2, dada a ausência de fontes que particularizem esse debate no
nível da formação social brasileira.
Foi partindo dessa dificuldade e conhecendo-a bem, devido à minha inserção
no campo do ensino de Serviço Social, que me propus a contribuir com o debate na
direção de uma aproximação mais concreta às mediações históricas da “questão
social”. Essa aproximação teve em conta a premissa da insuficiência da categoria
“modo de produção”, que precisa ser acompanhada da categoria “formação social”,
a fim de alcançar as particularidades da “questão social”, ultrapassando a
“generalidade” predominante no debate teórico travado até aqui no campo do
Serviço Social sobre o tema.
O exposto a seguir pretende oferecer, obviamente sem qualquer pretensão
exaustiva, alguns dos elementos para o debate dessas particularidades baseado na
análise do desemprego como expressão da “questão social” no Brasil. Ao considerar
a centralidade do trabalho como elemento fundante da sociabilidade, o desemprego
me pareceu a expressão da “questão social” que mais fecundamente poderia
elucidar suas particularidades. Nele, e mais precisamente em suas causalidades, se
mostram algumas mediações essenciais à apreensão de tais particularidades, entre
as quais destaco, seguindo as sugestões de Netto (2001), as modalidades de
exploração da força de trabalho dominantes na constituição do capitalismo
brasileiro.
Assim é que me proponho a enfatizar dois aspectos da tese que terão
necessariamente, por suposto, uma série de elementos presentes no texto original.
Trata-se de elencar o que considerei como particularidades da formação social
brasileira e, na sequência, como tais particularidades determinam a “questão
social” no Brasil, com foco no desemprego, como elementos para o debate.
2 A recente avaliação da ABEPSS sobre a implementação das Diretrizes Curriculares (2008), coloca, em
relação ao eixo da “questão social”, que uma das dificuldades centrais tem sido a ausência de
bibliografia que possibilite uma discussão acerca das expressões da “questão social” no Brasil.
Registra-se que os textos utilizados pelos docentes nos programas de disciplinas trabalham, no mais
das vezes, a questão conceitual, ou seja, as diferentes concepções acerca do que seria a “questão
social”, normalmente por meio da afirmação e/ou contraposição aos textos de Castel e Rosanvallon.
Ficam ausentes do ensino – nas diferentes disciplinas pelas quais perpassa o eixo da “questão social” –
as suas expressões, fundamentalmente as relacionadas com a particularidade da sociedade brasileira
e das regiões e estados onde estão inseridos os cursos de graduação. Assim é que a escassez
bibliográfica a respeito dessa temática na direção supramencionada é hoje um indicativo de que é
preciso adensar esse campo de investigações.
realizar essa exposição e, assim sendo, preciso demarcar de que forma pretendo
fazê-lo.
Meu ponto de partida são as hipóteses sugeridas por Netto (1996) e
enriquecidas no diálogo com vários autores como Florestan Fernandes, Werneck
Sodré, Caio Prado Jr., João Manuel Cardoso de Mello, entre outros. Três ordens de
fenômenos caracterizam, nessa hipótese, as particularidades históricas da formação
do Brasil moderno. A primeira delas é o caráter conservador da modernização
capitalista no Brasil.
3 Sodré (1990, p. 09) considera esse desenvolvimento desigual entre o caso brasileiro e os parâmetros
“clássicos” de formação do capitalismo enquanto heterocronia. Entende o autor que o desenvolvimento
desigual, produz diferenças consideráveis entre o universal e o particular “que [precisam ser levadas]
em consideração, a todo momento, na discussão dos problemas históricos. Ela permanece, ao longo
dos tempos, sob formas diversas”.
4 “[...] ocorreu um deslocamento econômico das „fronteiras naturais‟ daquelas sociedades: as nações
5 “[...] o padrão de acumulação do período de transição [não se manteve] intocado desde 1889 até
1950. Sua ruptura efetiva começa a configurar-se em 1933/37, quando, passada a crise de 1930,
tanto a acumulação industrial-urbana quanto a renda fiscal do governo se desvincularam da
acumulação cafeeira, e daí em diante submetem-na aos destinos e interesses do desenvolvimento
urbano-industrial. [...] A esse período, que vai de 1933 a 1955, [...] convencionamos denominar,
provisoriamente, de industrialização restringida” (TAVARES, 1998, p.128 &131).
6 “Penso que o conceito de forças produtivas capitalistas prende-se a um tipo de desenvolvimento das
forças produtivas cuja natureza e ritmo estão determinados por um certo processo de acumulação de
capital. Isto é, aquele conceito só encontra sua razão de ser na medida em que se defina a partir de
uma dinâmica da acumulação especificamente capitalista, que vai muito além do aumento do
excedente por trabalhador derivado da introdução do progresso técnico. Deste ponto de vista,
pensamos em constituição de forças produtivas capitalistas em termos de processo de criação das
bases materiais do capitalismo. Quer dizer, em termos da constituição de um departamento de
décadas anteriores, a agricultura era responsável por 74,1% das exportações nacionais” (BRAUN,
2004, p.6).
9A agroindústria “teve crescimento de 24%, na safra, mas que não repercute no mercado interno, pois
está fortemente voltado para as exportações, assim como não altera o desempenho da renda e do
emprego, uma vez que trata-se de setor mecanizado com altos índices de produtividade” (BRAZ, 2004).
10 De origem gramsciana, o “transformismo” tornou-se bastante utilizado nas análises sobre o Brasil a
partir de sua popularização na obra de Carlos Nelson Coutinho. O mesmo é assim definido em uma
das notas dos Editores dos Cadernos do Cárcere vol.3 (2000): “O fenômeno do transformismo está
presente em diversas passagens dos Cadernos, em conexão com o conceito de “revolução passiva” ou
“revolução-restauração”. [...] O transformismo significa um método para implementar um programa
limitado de reformas, mediante a cooptação pelo bloco no poder de membros da oposição” (p.396)
“para toda a nação”. O Estado não só protagoniza, desse modo, um papel político
central enquanto recorre ao “transformismo” como estratégia de manutenção da
posição subalterna dos interesses das classes trabalhadoras, mas também se
caracteriza como protagonista do ponto de vista econômico.
Para além das óbvias consequências que a intervenção política do Estado
possui no sentido de garantir as condições para o elevadíssimo grau de exploração
da força de trabalho11, sua participação foi central no processo de constituição de
forças produtivas capitalistas em todas as fases: da transição para a
industrialização restringida, depois para a industrialização pesada até consolidação
do capitalismo monopolista no Brasil, após-1964.
11 Entre 1933 e 1955 nas condições de uma industrialização restringida “o que se exige do Estado é
bem claro: garantir forte proteção contra as importações concorrentes, impedir o fortalecimento do
poder de barganha dos trabalhadores, que poderia surgir com um sindicalismo independente, e
realizar investimentos em infra-estrutura assegurando economias externas baratas ao capital
industrial. Quer dizer, um tipo de ação político-econômica inteiramente solidário a um esquema
privado de acumulação que repousava em bases técnicas ainda estreitas” (CARDOSO DE MELLO,
1994, p. 114).
exemplo, que a pobreza – muitas vezes tomada como expressão máxima da “questão
social” – somente pode ser entendida quando considerada a partir da incapacidade
de reprodução social autônoma dos sujeitos que, na sociedade capitalista, remete
de modo central à questão do desemprego. Sem esquecer, é claro, que também
trabalhadores inseridos no mercado de trabalho, e, portanto, empregados (formal
e/ou informalmente) não estão isentos de sofrerem processos de pauperização. Isso
porque vários estudiosos da formação social brasileira são enfáticos na afirmação
de que o Brasil, no contexto do capitalismo mundial, destaca-se, entre outras
características, por uma superexploração da força de trabalho que se “naturalizou”
como condição para sua inserção subordinada nas engrenagens do capitalismo
monopolista de corte imperialista. Essa condição da força de trabalho no Brasil
remete às particularidades da formação social brasileira, de acordo com hipóteses
de Netto (1996) supra mencionadas.
É claro também, para continuar no mesmo exemplo, que este processo
remete a outros indicadores sociais como acesso a saneamento básico, habitação,
educação, que determinam, por sua vez, os indicadores de saúde e assim por
diante. Embora essas articulações não estejam sendo objeto do presente estudo do
ponto de vista reflexivo é importante demarcar que tenho presente sua existência
ontológica e, é tendo-a em vista, que visualizo a fecundidade do debate em torno da
“questão social”.
Portanto, trata-se de situar os traços do desemprego como resultantes
do caminho percorrido, através da particularização no nível da formação
social brasileira, de como se plasmaram as lutas de classe e os mecanismos
de exploração do trabalho pelo capital. Tal particularização tem o objetivo de
tornar inteligíveis os contornos mais amplos, em que se inserem mediações centrais
para a discussão proposta, quais sejam, a constituição do “mercado de trabalho” e
do “regime de trabalho” (o que inclui os mecanismos de proteção social e regulação
do trabalho) no Brasil.
Assim é que no caso brasileiro, ambas as categorias tiveram seus marcos
regulatórios instituídos durante a “industrialização restringida”: a formação do
mercado de trabalho assalariado, a estrutura sindical corporativa, a CLT e a
resultante disso tudo, expressa no conceito de Wanderley Guilherme dos Santos
(1987) de “cidadania regulada”. A partir da “industrialização pesada”, especialmente
após 1964, passam, entretanto, por um redimensionamento significativo, posto que
neste momento adquirem força as características que imputo como
particularidades da “questão social” no país: a flexibilidade estrutural do
mercado de trabalho e precariedade das ocupações.
Pochmann (In: SILVA & YAZBEK, 2006) considera que a formação do
mercado de trabalho no Brasil possui, especialmente entre os anos de 1930 e 1970,
algumas características sem as quais não se pode entender o “padrão de sociedade
salarial incompleto, com traços marcantes de subdesenvolvimento”, a exemplo da
“distinção entre assalariamento formal e informal [que] constituiu a mais simples
identificação da desregulação, assim como a ampla presença de baixos salários e de
grande quantidade de trabalhadores autônomos (não assalariados)” (p.25).
12Pochmann (In: ANTUNES, (org.), 2006), a partir de dados do IBGE, enfatiza o crescimento do
desemprego no Brasil, cuja presença na década de 1980 correspondia a cerca de um quarto ou um
quinto do que foi registrado na década de 1990.
relação aos anos 1980, o desemprego desse último período tem se caracterizado
como de longa duração. A partir dos anos 1990, registra-se, ao contrário do
ocorrido até a década de 1980, uma tendência à dissociação entre recuperação da
economia brasileira (e, nela, dos índices de produção) e sua repercussão no
emprego regular.
Isso significa que o aprofundamento e extensão quantitativa da flexibilidade
nas relações de trabalho decorrem, antes, de uma crise no padrão de
desenvolvimento e das políticas de ajuste neoliberais do que de quaisquer inovações
organizacionais, ou mesmo produtivas, que estejam sendo operadas em razão do
novo regime de acumulação. Nesse sentido é que se torna fundamental ter em conta
o complexo de mediações assinalado quanto às particularidades do
desenvolvimento capitalista na formação social brasileira.
Tanto assim que apesar de atingir de modo generalizado a estrutura de
ocupações, a flexibilidade estrutural do trabalho no Brasil é especialmente presente
no caso dos postos de trabalho ocupados por trabalhadores com pouca
escolaridade, conforme indicam tendências históricas do regime de trabalho
brasileiro. Em relação a esse extrato das classes trabalhadoras, a flexibilidade
estrutural do trabalho no Brasil tem acentuado o desemprego e a informalidade. A
título de demonstração, dados de 1995 do PNAD/IBGE (apud DEDECCA In:
OLIVEIRA (org.), 1998), apontam que 77% dos trabalhadores por conta própria da
região Nordeste não possuem ensino fundamental completo. Esta situação na
região Sudeste é de 63%.
eixo central as demandas salariais, a partir dos anos 1990, com as medidas de
ajuste neoliberais, reduzem-se a capacidade de pressão e barganha dos sindicatos.
Embora não tenham sido completamente abandonadas, essas negociações
passaram, cada vez mais, a voltarem-se à questão do emprego, com uma tendência
clara à pulverização e descentralização.
É diante desse quadro, francamente regressivo, que a cidadania burguesa
passa também por uma “reestruturação” onde a flexibilidade é alçada a princípio de
“modernidade” diante da aparente ausência de alternativas.
Sobre a autora
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